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RBHE em tempos de celebração, perplexidades e retrocessos

O ano em que se comemora o Bicentenário da Independência do Brasil pode ser tomado como um marcador importante para se pensar inúmeras iniciativas voltadas para a construção da nação. Uma delas se refere precisamente ao mundo dos impressos, o que também ajuda a nos afastar e problematizar a historiografia que reduz o complexo processo da emancipação do Brasil a uma cena, um homem, uma data e um enunciado imperativo.

Como se sabe, a partir da transferência e necessidade da Corte portuguesa de se comunicar com os súditos, diversos e distribuídos desigualmente no vasto território do Brasil, D. João VI autorizou a criação da Impressão Régia.

A primeira tipografia brasileira publicou alguns livros e decretos até que, em 10 de setembro de 1808, lançou a Gazeta do Rio de Janeiro, considerada a primeira publicação impressa seriada realizada no Brasil. Depois, outras tipografias foram instaladas em outras regiões e, paulatinamente, o Brasil foi ingressando naquilo que Anderson (2008Anderson, B. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo, SP: Cia das Letras.) designou de "capitalismo tipográfico".

A partir de então, é possível observar, efetivamente, a proliferação da publicação de panfletos, jornais, revistas, relatórios, anuários e livros. Essa produção impressa variava tanto em termos de conteúdo, projeto editorial, formatos e destinatários. É igualmente possível observar que os responsáveis, isto é, os editores também apresentavam (e apresentam) pertencimentos os mais diversos; o que reforça a percepção do caráter estratégico da palavra impressa e das disputas no campo da comunicação social, da construção da opinião pública, mais ou menos especializada/especializante, pela ação de selecionar, priorizar e disseminar alguns acontecimentos sociais, de modos bem determinados, a ponto de ser considerada o “quarto poder”, confirmando a máxima da inexistência de poder sem imprensa e de imprensa sem poder.

Uma curiosidade no período pós Independência é que muitos periódicos foram organizados por sociedades ou agremiações comemorativas ao Sete de Setembro e alguns desses periódicos e sociedades intitulavam-se exatamente Sete de Setembro1 1 Alguns exemplos são os impressos O Sete de Setembro (Rio de Janeiro, 1833), 7 de Setembro (Rio de Janeiro, 1859) e O Sete de Setembro (São Paulo, 1865) e Sete de Setembro (Alagoas, 1876). No que se refere às agremiações criadas com a função específica de celebrar o sete de setembro. As sociedades comemorativas, ao lado dos impressos, adotaram recursos assemelhados tais como emprego de fogos de artifícios, banda de música, desfile cívico, decoração de fachadas, etc. A título de exemplo, podemos destacar a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional (1831), Sociedade dos Cavaleiros do Ipiranga (1853), Sociedade Independência Nacional (1856), Sociedade Independência Brasileira (1857), Sociedade Festival Sete de Setembro (1859), Sociedade Comemorativa da Independência do Império (1869-1888), Sociedade Independência (1876), Sociedade Independência (1863) e a Sociedade Conservadora Sete de Setembro (1872). (Pasche et al, 2020Pasche, A. M. L., Nascimento, F. A., Santos, A. M., & Silva, E. O. C. (2020). ‘Pela iluminação do passado’: livros e educação no contexto do Cinquentenário da Independência (capital brasileira, década 1870). Revista Brasileira de História da Educação , 20, e126. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/54270
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/...
). Trata-se de um recurso complementar para confirmar, fazer lembrar e legitimar o evento que é considerado o acontecimento de fundação do Estado Nacional Brasileiro; cumprindo o que Revel (2009Revel, J. (2009). Proposições: ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ, 2009.) designa como “dever de lembrar”.

É, portanto, neste registro ou no reconhecimento da multiplicidade de formas de comunicação social e de compromisso com a ciência para todos que se inscreve mais um número da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE). Neste número observamos uma efeméride de outra ordem. Trata-se da publicação do dossiê que aborda a história da educação das populações negras. Esta pequena efeméride decorre do fato de, transcorridos 18 anos, a RBHE ter publicado um primeiro dossiê em torno desta temática. No caso do atual dossiê, ele difere do anterior em termos de abrangência, de quantidade e de possibilidades de refletir a respeito desta temática tão sensível no caso da experiência nacional.

O Dossiê “História da Educação e Populações Negras”, resultado da chamada pública da Revista Brasileira de História da Educação, recebeu 35 propostas. Após avaliação, foram selecionados 12 artigos que demonstraram adesão ao edital e receberam pareceres positivos dos/as avaliadores/as ad hoc. Os textos selecionados versam sobre temas como mulheres, intelectuais, aulas noturnas, trabalho, ensino de primeiras letras e superior, ensino de artes e ofícios, todos em intersecção com a cor/raça dos sujeitos envolvidos. Contemplam períodos que vão do início do século XIX à metade do século XX, abordando a problemática da educação das populações negras em regiões diversas como Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Contém, ainda, um texto que sobre a questão em Moçambique.

As pesquisas foram realizadas por autores/as consagrados/as no campo, assim como estudantes de mestrado e doutorado das diversas regiões mencionadas. Entre eles e elas, nomes já consagrados na pesquisa em História da Educação e na História da Educação das Populações Negras, e jovens pesquisadoras/es que iniciam suas trajetórias de pesquisa no campo. Vale destacar que Adriana Maria Paulo da Silva, Eliane Peres e Marcus Vinícius da Fonseca integraram o primeiro dossiê sobre o tema, publicado pela RBHE, retornando, 18 anos depois, com pesquisas atualizadas nesse novo dossiê. A diversidade de análises, ênfases, metodologias e de fundamentos teóricos, de sujeitos pesquisando e sendo pesquisados/as transparece no presente. O interesse pela temática, ao lado dos investimentos de pesquisadores e grupos do campo da história da educação, também pode ser compreendido pelo impulso provocado por movimentos, iniciativas e políticas públicas destinados às populações mais vulneráveis, como a Lei 12711/12, a chamada Lei de CotasLuciano, A. (2022, 23 de Março). Lei de Cotas completa 10 anos: qual o impacto dessa política na educação?. UOL. Recuperado de: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/03/26/lei-de-cotas-completa-10-anos-qual-o-impacto-dessa-politica-na-educacao.htm
https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noti...
; que tem dado visibilidade, legalidade e legitimidade ao direito à formação superior a sujeitos historicamente excluídos dessa possibilidade (Arantes, Gondra & Barros, 2022Arantes, A., Gondra, J G., & Barros, S. A. P. (2022). História da Educação e Populações Negras. Revista Brasileira de História da Educação, 22, e207. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/64218
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/...
).2 2 Reflexões a respeito da primeira década de implementação da lei de cotas podem ser conferidas em Luciano (2022).

Os outros 31 artigos que compõe a coleção são provenientes de todas as regiões do Brasil, com contribuições de autores da Argentina, Espanha e Moçambique. A diversidade também é geracional, tendo em vista a presença de autores mais experientes e jovens pesquisadores, alguns destes participando no regime de coautoria. Outra dimensão do diverso remete às temáticas consagradas (a docência, os impressos pedagógicos, as reformas educacionais, políticas públicas) e emergentes (história da educação dos surdos, história da imigração), bem como os aportes teóricos-metodológicos que ancoram os estudos publicados.

Em 2022, até o início de novembro, participaram, como avaliadores ad hoc, 126 colaboradores, do Brasil e do exterior, respeitando-se a diversidade institucional e expertise dos mesmos para validar os trabalhos a eles encaminhados, conforme o Gráfico 1.

Gráfico 1
Distribuição dos pareceristas da RBHE por região (2022)

Há, ainda, que se ressaltar o expressivo investimento da RBHE em disponibilizar 25 artigos deste número em idioma estrangeiro, esforço para tornar mais acessível os textos para públicos não leitores da língua portuguesa. Em tempos de cortes e redução dos investimentos em ciência e educação, esta política merece ser ainda mais sublinhada.

Por fim, o volume de 2022 se encerra com a publicação de 3 resenhas, noticiando e convidando os leitores a conhecerem parte da produção da área difundida por meio dos livros.

A RBHE publica, assim, mais uma série relevante de resultados de investigação, o que demonstra o vigor e qualidade de parte expressiva da produção do campo da história da educação, reforçando o convite para leitura, comentários, divulgação e envio de novos artigos para o periódico.

Referências

  • Anderson, B. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo São Paulo, SP: Cia das Letras.
  • Arantes, A., Gondra, J G., & Barros, S. A. P. (2022). História da Educação e Populações Negras. Revista Brasileira de História da Educação, 22, e207. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/64218
    » https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/64218
  • Luciano, A. (2022, 23 de Março). Lei de Cotas completa 10 anos: qual o impacto dessa política na educação?. UOL Recuperado de: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/03/26/lei-de-cotas-completa-10-anos-qual-o-impacto-dessa-politica-na-educacao.htm
    » https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/03/26/lei-de-cotas-completa-10-anos-qual-o-impacto-dessa-politica-na-educacao.htm
  • Pasche, A. M. L., Nascimento, F. A., Santos, A. M., & Silva, E. O. C. (2020). ‘Pela iluminação do passado’: livros e educação no contexto do Cinquentenário da Independência (capital brasileira, década 1870). Revista Brasileira de História da Educação , 20, e126. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/54270
    » https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/54270
  • Revel, J. (2009). Proposições: ensaios de história e historiografia Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ, 2009.
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    Alguns exemplos são os impressos O Sete de Setembro (Rio de Janeiro, 1833), 7 de Setembro (Rio de Janeiro, 1859) e O Sete de Setembro (São Paulo, 1865) e Sete de Setembro (Alagoas, 1876). No que se refere às agremiações criadas com a função específica de celebrar o sete de setembro. As sociedades comemorativas, ao lado dos impressos, adotaram recursos assemelhados tais como emprego de fogos de artifícios, banda de música, desfile cívico, decoração de fachadas, etc. A título de exemplo, podemos destacar a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional (1831), Sociedade dos Cavaleiros do Ipiranga (1853), Sociedade Independência Nacional (1856), Sociedade Independência Brasileira (1857), Sociedade Festival Sete de Setembro (1859), Sociedade Comemorativa da Independência do Império (1869-1888), Sociedade Independência (1876), Sociedade Independência (1863) e a Sociedade Conservadora Sete de Setembro (1872).
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    Reflexões a respeito da primeira década de implementação da lei de cotas podem ser conferidas em Luciano (2022Luciano, A. (2022, 23 de Março). Lei de Cotas completa 10 anos: qual o impacto dessa política na educação?. UOL. Recuperado de: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/03/26/lei-de-cotas-completa-10-anos-qual-o-impacto-dessa-politica-na-educacao.htm
    https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noti...
    ).
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    Como citar este editorial: Vieira, C. E. et al. RBHE em tempos de celebração, perplexidades e retrocessos. Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e241 Este editorial é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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