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Entre a Escola Nova e a Escola Básica: a modernização curricular para o ensino do português no ensino primário paulista (1949-1968)

Between the New School and Basic School: curriculum modernization for the teaching of portuguese in primary education in São Paulo (1949-1968)

Entre la Escuela Nueva y la Escuela Básica: modernización curricular para la enseñanza del portugués en educación primaria en São Paulo (1949-1968)

Resumo:

Com o objetivo de problematizar como as prescrições para o ensino da língua portuguesa estiveram associadas a projetos de formação do povo e a ideais de Educação, focalizam-se neste artigo os programas publicados entre 1949 e 1968 em São Paulo, decorrentes de duas reformas curriculares do ensino primário. Fundamentada nas contribuições da História do Currículo, a análise desses programas indica que a modernização curricular para o ensino do português implementada em São Paulo no período estudado foi marcada pela permanência do princípio filosófico e conceitual de entendimento da língua, porém correspondeu à importante ruptura com relação à cultura escolar moldada pelo ideal republicano, marcando o intento da escola básica fundada na razão técnico-instrumental.

Palavras-chave:
língua portuguesa; escola primária; prescrições para o ensino; currículo

Abstract:

In order to discuss how the prescriptions for teaching the Portuguese language were associated with projects for the formation of the people and ideals of Education, this article focuses on the programs published between 1949 and 1968 in São Paulo, resulting from two curriculum reforms from primary school. Based on the contributions of the History of Curriculum, the analysis of these programs indicates that the modernization of the curriculum for teaching Portuguese implemented in São Paulo in the period studied was marked by the permanence of the philosophical and conceptual principle of understanding the language. However, it corresponded to an important break with the school culture shaped by the republican ideal, marking the intent of the basic school founded on technical-instrumental reason.

Keywords:
portuguese language; primary school; prescriptions for teaching; curriculum

Resumen:

Con el fin de discutir cómo las prescripciones para la enseñanza de la lengua portuguesa se asociaron con proyectos para la formación de las personas y los ideales de la Educación, este artículo se centra en los programas publicados entre 1949 y 1968 en São Paulo, resultado de dos reformas curriculares educativas. Con base en los aportes de la Historia del Currículo, el análisis de estos programas indica que la modernización curricular para la enseñanza del portugués impuesta en São Paulo durante el período estudiado estuvo marcada por la permanencia del principio filosófico y conceptual de comprensión de la lengua, sin embargo, correspondió a una importante ruptura en relación a la cultura escolar conformada por el ideal republicano, marcando la intención de la escuela básica fundada en la razón técnica e instrumental.

Palabras clave:
lengua portuguesa; escuela primaria; prescripciones para la enseñanza; currículo

Introdução

Por que a escola ensina o que ensina? Que aspectos estão envolvidos na determinação de alguns conteúdos como ‘escolarizáveis’ e outros como dispensáveis na formação pretendida por meio dessa instituição? Quais bases teóricas e científicas balizam as escolhas sobre o que e como ensinar?

Questionamentos como esses têm motivado, nas últimas décadas, uma série de investigações, especialmente com base nas teorias do currículo e da história das disciplinas escolares, as quais problematizam a aparente natureza meramente técnica e organizativa do ensino e o analisam sob a perspectiva do fundo cultural, político e ideológico que a organização dos conteúdos escolares possui.

Nessa perspectiva, as prescrições para o ensino (programas, guias e propostas curriculares), organizadas a fim de prescrever e regrar a prática docente e condensar o sentido e o papel social da escola, ocupam lugar importante para pensar a história das práticas de escolarização, pois correspondem a determinações legais do quê e como ensinar, tendo em vista projetos de escola, de educação e de sociedade difundidos ao longo do tempo.

No que compete especificamente ao ensino da língua portuguesa, apesar de essa ter se consolidado como um dos principais signos que sintetizam a finalidade da escola brasileira e o propósito de formação do ‘futuro homem’, estudos que recaem sobre a história das suas prescrições para a escola primária são ainda escassos. O que se tem são os trabalhos relativos à história da alfabetização, em especial dos métodos de alfabetização, que focalizam o ensino inicial da leitura e da escrita em língua portuguesa, portanto, apenas parte do ensino de português. As prescrições subsequentes à etapa da alfabetização e à sua configuração como disciplina/matéria escolar não têm sido tomadas como objeto de investigação. O que há são trabalhos relativos às políticas curriculares que mencionam ou descrevem aspectos do ensino do português, mas que não se debruçam especificamente sobre esse objeto.

Em vista disso, este artigo tem como objetivo contribuir para a produção de uma história do ensino do português na escola primária, de modo a compreender os diferentes aspectos que estiveram envolvidos na organização desse ensino. Enfoca-se, dessa maneira, a modernização curricular implementada no ensino primário paulista entre 1949 e 1968, mediante análise dos programas de ensino publicados nesse período.

Para essa análise, tem-se como fundamento teórico-metodológico as contribuições da História do Currículo, sendo essa entendida como forma de adentrar os ‘padrões internos’ de escolarização, a fim de se compreender como essas instituições “[...] tanto refletem como refratam definições da sociedade sobre conhecimento culturalmente válido em formas que desafiam os modelos simplistas da teoria de reprodução” (Goodson, 2010Goodson, I. (2010). Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes. , p. 118).

Por esse ponto de vista, o currículo é aqui concebido como uma construção histórica e social, que não se configura como entidade fixa, resultante da simples reprodução vulgarizada dos saberes científicos. Pelo contrário, trata-se de ‘amálgama mutável’, decorrente de lutas, interesses e disputas de poder implicados na definição de quais conhecimentos são social e culturalmente aceitos como válidos para serem ensinados na escola. Portanto, rompendo com a dicotomia clássica de que as prescrições pouco afetam a ‘prática’, pensar o currículo como objeto histórico é entendê-lo como epicentro do “[...] processo pelo qual se inventa tradição. [...] Não é, porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por todas; é, antes, algo a ser defendido onde, com o tempo, as mistificações tendem a se construir e reconstruir” (Goodson, 2010Goodson, I. (2010). Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes. , p. 27).

Os pressupostos da Escola Nova e a problemática da modernização dos programas de ensino em São Paulo entre 1930 e 1940

A partir da década de 1920, à medida que o ideário escolanovista passou a exercer papel catalisador no debate educacional no país e foi institucionalizado mediante reformas educacionais nos diferentes estados, a questão dos programas de ensino logo assumiu importante espaço nas disputas e nos embates entre os reformistas.

Ao se estruturar na crítica do modelo estático e suplementar da ‘escola tradicional’ e na defesa por um ensino ativo, voltado à valorização da atividade, da experiência e do interesse da criança, o movimento da Escola Nova imprimiu à escola republicana uma nova feição, correspondente à profunda alteração no entendimento de sua função social e na compreensão dos processos de ensino que se devia empreender nesse aparato formativo.

Para os reformistas, mais do que corrigir antigas práticas de escolarização, a escola devia se renovar em favor do processo civilizatório e nacionalizador das crianças, propiciando ampla formação cultural, científica e moral, condizente com a ordem estabelecida pelo progresso científico e material, pelo industrialismo e pela tendência democrática. Desse ponto de vista, ainda que marcado como movimento multifacetado e não consensual, o horizonte maior sob o qual se estruturou o ideário da Escola Nova, no Brasil, foi o da reconstrução da sociedade brasileira e o da transformação do país, por meio da articulação entre projeto educacional, projeto político e mudança social.

Diante desse ambicioso intento, no caso específico de São Paulo, a problemática dos programas de ensino, desde muito cedo, se colocou central aos reformistas, pois era por intermédio da sistematização de conteúdos, métodos e técnicas de ensino que se entedia contemplar, em grande medida, a efetivação dos pressupostos da pedagogia nova. Em vista disso, devido à defesa da educação com base no fator psicobiológico do interesse, os defensores do escolanovismo, em São Paulo, se postaram contra o caráter rígido dos programas vigentes, bem como contra a definição apriorística, subjetiva e conservadora dos conteúdos, dos métodos e das técnicas de ensino que configuravam a ‘escola tradicional’.

Sobre esse aspecto, Lourenço Filho, quando assumiu, em 1930Lourenço Filho. (1930). Escola Nova. Revista Escola Nova, 1(1) 3-8., a Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo e deu início ao processo de institucionalização do escolanovismo no estado, asseverou sobre a importância de o trabalho pedagógico passar por radical transformação de seus processos didáticos. Segundo ele:

A escola publica não pode continuar a ser um apparelho formal de alphabetisação, ou simplemente machina que prepare alumnos para certificados de exames e de conclusão de curso, segundo programmas elaborados em abstracto, para uma criança ideal, que não existe [...] Tem que ser um organismo vivo, capaz de reflectir o meio, nas suas qualidades e de cooperar para a melhoria dos costumes [...] De adaptação, pelo interesse em affeiçoar a intelligencia infantil aos problemas de seu ambiente próprio [...] Desde as questões econômicas, básicas na organisação social, até as preocupações moraes da localidade, de tudo a escola deve reflectir a vida que a criança vive lá fora, por tudo a escola deve interessar-se; porque a escola nova deixa de ser a escola do mestre, do inspector ou do director geral, como até agora tem sido, para tornar-se a escola das crianças a que deve servir [...] De um apparelho formal, rígido, separado da vida real, teremos, pois que fazer um aparelho flexivel, animado por um espirito de finalidades social, sempre presente. A escola nova tem que ser uma escola com alma, a alma do Brasil novo (Lourenço Filho, 1930Lourenço Filho. (1930). Escola Nova. Revista Escola Nova, 1(1) 3-8., p. 2-4).

Esses apontamentos de Lourenço Filho ganharam valor legal nos anos seguintes, mais especificamente em 1933, quando foi instituído, na gestão de Fernando de Azevedo como Diretor da Instrução Pública, o Código de Educação do estado. Esse Código estabeleceu que a organização dos programas e dos métodos gerais do ensino primário deveriam se adequar às seguintes normativas:

Art. 237 - O plano de educação primaria abrange: - Leitura, Linguagem oral e escrita, Aritmética e Geometria, Geografia, Historia do Brasil e Instrução Civica, Ciencias Fisicas e Naturais, trabalhos manuais, desenho caligrafia, canto e ginástica.

Art. 238 - O ensino terá como base essencial a observação e a experiencia pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em comum, a atividade manual, os jogos educativos e as excursões escolares.

§ unico: - O uso de manuais escolares, indispensáveis como instrumentos auxiliares do ensino, deve ceder passo, sempre que possível a exercicios que desenvolvam o poder de criação, investigação e critica do aluno (São Paulo, 1933São Paulo. Secretaria da Educação e da Saúde Pública. (1933). Decreto nº 5.884, de 21 de abril de 1933. Código de educação do Estado de São Paulo. São Paulo, SP: Imprensa Oficial. ).

Coadunando com a lógica instituída pelo Código de Educação, no ano seguinte, em 1934, José Ribeiro Escobar, então chefe do Serviço de Programas e Livros Escolares da Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo, sistematizou, no livro A construção científica dos programas, uma série de princípios que deveriam orientar a modernização dos programas na perspectiva da Escola Nova, defendendo que esses necessitariam se basear na análise científica dos processos mentais das crianças e no estudo científico da organização social. Escobar (1934Escobar, J. R. (1934). A construção científica dos programas. São Paulo, SP: Imprensa Oficial.) pontuou a diferenciação entre os programas ‘tradicionais’ e os escolanovistas, destacando que:

A reorganização dos programas da escola tradicional - é uma simples questão de eliminação e acréscimo; na escola nova - é um problema complexo e difícil, para o qual se vão buscar novas técnicas na racionalização do ensino.

O programa da escola tradicional - é rígido, logico discriminado em materiais: leitura; escrita; aritmerica, geografia, ciências, etc.

O programa da escola nova - é flexivel, globalizado, psicológico e seu vocabulário ressoa com projetos, unidades de trabalho, centros de interesse, situações vitais, atividade criadora, empreendimentos infantis, jogos, hora de historias, conferencias em grupos irregulares, fóruns abertos e debates, experiências em loja, cozinha, laboratórios e estúdios, pesquiza na biblioteca e no campo (Escobar, 1934Escobar, J. R. (1934). A construção científica dos programas. São Paulo, SP: Imprensa Oficial., p. 9).

Essa mudança de racionalidade dos programas de ensino que se foi evidenciando no processo de renovação da educação paulista colocou, no campo pedagógico da época, um de seus grandes desafios, qual seja, o de conciliar a nova visão dos programas como lugar da experiência e de liberdade e, ao mesmo tempo, atender aos anseios de seleção cultural e cumprimento de conteúdos, herança essa decorrente do modelo paulista de escolarização do final do século XIX. A pergunta que pairava como plano de fundo das ações reformistas era a de como garantir o ensino de saberes elementares e direcionar e normatizar o trabalho docente, sem incorrer no imobilismo ou no ‘didatismo deformador’.

Souza (2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.) explica que essa problemática posta sobre os programas de ensino no interior do movimento da Escola Nova correspondeu a um importante deslocamento da questão, pois “[...] [r]acionalizar os programas e reconstituí-los cientificamente significava inserir o plano de estudos dentro de outra inteligibilidade muito diferente daquela consolidada na institucionalização da escola graduada” (p. 213). Nesse sentido, complementa Souza (2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.) que pensar sobre os programas deixou de ser uma atividade simples, apenas de seleção e distribuição de conteúdos em séries, e se tornou trabalho complexo, mais racional e científico, no qual se deveria considerar tanto a atuação dos professores quanto a dos alunos.

Diante dessa nova racionalidade e dos desafios decorrentes dela, como se equacionou, no caso paulista, a problemática dos programas de ensino?

Postos o desafio e a urgência em ajustar os programas à lógica escolanovista, os administradores do ensino paulista se voltaram a discutir sobre a melhor forma de estruturar os novos programas. De um lado, havia os que defendiam a formulação de programas analíticos, detalhados e pormenorizados com relação às novas orientações metodológicas. De outro, os que se colocavam favoráveis a programas sintéticos, na direção de orientações gerais e prescrições mínimas (Souza, 2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.).

No contexto desse debate, a opção inicial foi pela adoção dos programas mínimos, pois, se o pressuposto da nova orientação pedagógica se centrava nas experiências que a escola devia propiciar às crianças, o mais importante era a transformação do ambiente escolar de modo a permitir a realização das potencialidades contidas na personalidade infantil (Nagle, 1974Nagle, J. (1974). Educação e sociedade na primeira república. São Paulo, SP: EPU. ).

Com isso, em 1934, foi aprovado pelo Diretor de Ensino, Luiz Mota Mercier, o ‘Programa mínimo para o curso primário’, o qual estabeleceu o conjunto mínimo de conhecimentos exigíveis dos estudantes ao longo dos anos escolares, garantindo aos professores autonomia didática para ir além das matérias determinadas.

Apesar da aprovação desse programa ter tido como objetivo um ‘plano de estudos globalizado’, ela não correspondeu à mudança efetiva na lógica até então estabelecida. Pelo contrário, esse projeto estabeleceu que os programas até então vigentes, aprovados em 1925, deviam continuar a ser seguidos, destinando-se o programa mínimo aos grupos escolares com funcionamento em três turnos. Além disso, evidenciou-se, na explicação desse projeto, que sua elaboração não teve o propósito de “[...] subordiná-lo a determinada orientação individual ou adaptá-lo a qualquer dos tipos escolares, abrangidos pela genérica denominação de ‘escola nova’” (São Paulo, 1941São Paulo. Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública. (1941). Programa de ensino para as escolas primárias [1925]. São Paulo, SP: Serviço Técnico de Publicidade., p. 67, grifo do autor). Dessa forma, o programa de 1934 não apresentou qualquer modificação significativa do ponto de vista da inovação que se pretendia, pois apenas correspondeu a uma tentativa de adequação dos programas vigentes desde 1925.

Foi somente no final da década de 1940, quando foi aprovado, em caráter experimental, o Programa para o ensino primário fundamental, que se efetivou, em São Paulo, a conciliação de algumas das tensões envolvidas com a renovação pedagógica e com as prescrições de ensino.

Esse programa, publicado em cinco volumes, entre 1949 e 1950, pela Livraria Francisco Alves, resultou do trabalho de uma comissão composta por oito professores1 1 Integraram essa comissão: Luiz G. C. Castro (presidente); Dirce Ribeiro de Arruda; Francisca Portugal Gouvêa; Maria Aparecida Pimenta; Maria Odila Guimarães Bueno; Mathilde Brasiliense Almeida Bessa; Orlando Simonetti; e Palmyra Amazonas Sampaio Morais (São Paulo, 1949c). , designados pelo então Secretário da Educação, João de Deus Cardoso de Mello, com o propósito de atualizar os programas de ensino vigentes à época. Para isso, essa comissão tomou como base “[...] as mais modernas obras pedagógicas, recorreram aos mais recentes programas do ensino primário, nacionais e estrangeiros, assim como à experiência, não só própria, como à de professores que se têm sobressaído no exercício do magistério público” (São Paulo, 1949cSão Paulo. (1949c). Ato nº 46, de 26 de julho de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 3º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves., p. 5).

Aderindo ao modelo de um programa detalhado, conforme propunha uma das correntes do ideário renovador, o novo programa foi subdividido em ‘objetivos de ensino’, ‘considerações’, ‘sumário da matéria’ e ‘orientação’, com “[...] sugestões para aplicação de artifícios e atividades, a fim de que sirvam de auxiliar aos professores [...]” (São Paulo, 1949cSão Paulo. (1949c). Ato nº 46, de 26 de julho de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 3º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves., p. 5).

Em decorrência dessas características, o programa de 1949-1950 correspondeu simbolicamente à importante conquista da Escola Nova sobre os redutos da ordenação pedagógica, conciliando modernidade pedagógica representada pelos princípios da escola ativa com tradição prescritiva fundada com a escola republicana do final do século XIX (Souza, 2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.).

Bases conceituais e as prescrições para o ensino do Português no Programa do ensino primário fundamental (1949-1950)

No que compete especificamente ao ensino do português, o Programa do ensino primário fundamental estrutura-se a partir da compreensão de que a língua corresponde ao principal mecanismo de expressão do pensamento e das ideias, de tal modo que o seu aperfeiçoamento compreende valor educativo imprescindível para se alcançar êxito nas relações sociais.

Desse ponto de vista, o ensino da língua é defendido como instrumento central do progresso intelectual, moral e econômico de um povo, pois, ao lado da unidade da raça e da unidade geográfica, está um dos três pilares da integração e estruturação nacional.

Dada a importância que o ensino da língua tem para o desenvolvimento social, argumenta-se que ele deve ser pautado em torno da valorização da expressão própria, espontânea, consciente e como resultado da observação individual, visando ao aperfeiçoamento e cultivo da linguagem consciente. Entende-se que quanto maior fosse a expressão técnica da linguagem, maior seria também a consciência nacional e o nível cultural do povo.

Nesse sentido, a fim de se atender a esses pressupostos, propõe-se que o ensino da língua deve ser atividade presente desde o início da infância, para se evitar ‘obscurecer’ o pensamento e garantir a elevação do grau de civilidade das crianças.

Considerando-se o exposto, com o intuito de cumprir o seu propósito educativo, o ensino da língua portuguesa é organizado no Programa do ensino primário fundamental em cinco eixos - Linguagem oral, Leitura, Escrita, Linguagem Escrita e Gramática Aplicada -, os quais, embora concorram para finalidade única, apresentam objetivos, conteúdos, atividades e orientações metodológicas próprias e específicas.

Sobre esse modo de organização do ensino do português, cumpre esclarecer que, nos programas vigentes em São Paulo desde a implantação do modelo de escola graduada, no final do século XIX, o ensino da língua sempre esteve estruturado em três eixos: leitura, linguagem e caligrafia. Nesse sentido, o programa de 1949-1950 consiste em uma mudança no que concerne a essa organização, ampliando o ensino do português, por exemplo, para o estudo da gramática em forma aplicada e deslocando o debate sobre a caligrafia para o campo da mecanização da escrita.

Sob essas bases, o ensino do português no Programa do ensino primário fundamental se organiza em objetivos, considerações, sumário da matéria e orientações, com prescrições conforme sintetizadas no Quadro 1.

Quadro 1
Síntese das prescrições para o ensino da língua portuguesa no Programa do ensino primário fundamental (1949-1950).

Conforme se pode verificar pelas informações sintetizadas no Quadro 1, o programa de 1949-1950 apresenta, de forma detalhada, os objetivos, os conteúdos e as orientações didáticas para o ensino da língua portuguesa no ensino primário, buscando coerência com os princípios de uma escola ativa, a qual valoriza a experiência e as vivências do aprendiz, favorecendo o trabalho voltado ao interesse e à atividade como construção de bases sólidas para o desenvolvimento da civilidade e do progresso individual e coletivo.

Ao tomar a linguagem como elemento de estruturação e expressão do pensamento, subjaz a essas prescrições o pressuposto de que a erudição e o uso correto da língua possibilitam à criança maior treino dos hábitos necessários ao convívio social, de tal modo que ela aprenda como expressar-se corretamente em público, saiba fazer uso apropriado da linguagem oral e da linguagem escrita, em função de suas necessidades cotidianas, utilize a leitura como modelo de correção e como meio de assimilação de conhecimentos e busque, na expressão verbal, a elegância e a organização das ideias necessárias ao desempenho das atividades sociais. Com isso, destaca-se nesse programa a proposta de um trabalho que visava à aprendizagem prática e indutiva da língua, partindo-se do empirismo, que conectava a ‘experiência’ às ‘leis’. Caberia ao professor, dessa forma:

[...] levar a criança a adquirir a noção experimental dos fatos da linguagem, a exprimir seus pensamentos com vocabulário próprio e boa síntaxe [...] Mais tarde, porém [...] já possuindo a criança maior desenvolvimento da capacidade de compreender o domínio prático dos princípios da linguagem, a sistematização do ensino torna-se necessário, para que ela infira dos fatos as leis que os regulem, melhor os compreenda e mais firmemente os retenha.

O ensino deve ser feito do particular para o geral em passos sucessivos, levando a criança a perceber as relações e atributos, a desdobrar, precisar e completar as noções, a prover para, espontaneamente, generalizar e formular as definições e regras da linguagem (São Paulo, 1949aSão Paulo. (1949a). Ato nº 17, de 23 de fevereiro de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 1º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves., p. 45).

Com relação ao aspecto metodológico, observa-se nessas prescrições a orientação para o uso de conjunto diversificado de técnicas e recursos pedagógicos, todos com a finalidade de aproximar a escola da atividade espontânea, sendo a vivência do aluno o centro do processo educativo. Para isso, são sugeridas atividades como: utilização de gravuras do cotidiano infantil; descrição e composição a partir de pessoas, animais e fatos conhecidos; observação do contexto doméstico e escolar; abordagem nos exercícios orais e escritos de temas correntes (vestuário, alimentação, afazeres domésticos, estudos etc.); utilização de comentários e expressões das crianças como elementos de estudo; transmissão e composição de recados ou textos que propiciem treino social; palestras; jogos e atividades lúdicas; invenção de histórias; criação de jornal escolar; conversação; pesquisas; realização de excursões; uso de diário; simulação de lojinhas; organização de festas; organização de bibliotecas de sala de aula; sistematização e registro de relatos, dentre outros.

Como se observa, é possível compreender o regramento do ensino da língua aliado à vida da criança, especialmente pela adoção de recursos didáticos e metodológicos centrados na noção do ‘aprender fazendo’, que imprime a esse programa uma de suas principais marcas de inovação com relação à tradução do ideário escolanovista para o campo das prescrições pedagógicas. Desse ponto de vista, ainda que parte dos conteúdos elencados nesse programa de 1949-1950 remonte a aspectos do ensino da língua previstos em programas anteriores (Oliveira, 2016Oliveira, F. R. (2016). A reforma do ensino da língua portuguesa na escola primária paulista sob a égide da escola ativa (1949-1950). São Carlos, SP: Pedro & João Editores.), ele representa importante inovação no campo pedagógico da época, seja pelo formato detalhado e minucioso, seja pelo redirecionamento do papel da língua na formação escolar da criança, ou pelo emprego de metodologia e recursos didáticos sob outra lógica.

O sentido da Escola Básica e a reorientação curricular na década de 1960

Após a publicação do programa de ensino de 1949-1950, que representou a conquista de um dos últimos terrenos do campo pedagógico pelos renovadores paulistas, até o início da década seguinte, 1960, o pensamento escolanovista permaneceu como base das orientações pedagógicas no estado de São Paulo, porém não mais com o tom combativo, publicitário e de persuasão das primeiras décadas do século XX (Souza, 2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.).

Em 1959, como sintoma de uma nova etapa do movimento de reconstrução educacional (Sanfelice, 2007Sanfelice, J. L. (2007). O manifesto dos educadores (1959) à luz da história. Educação e Sociedade, 28(99). ), os pioneiros da renovação ‘mais uma vez convocados’ e os representantes de novas gerações de educadores preocupados com o presente e o futuro da escola pública lançaram um novo manifesto2 2 Esse novo manifesto, intitulado ‘Mais uma vez convocados: Manifesto ao povo e ao governo’, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1º de julho de 1959, com a assinatura de mais de 80 educadores e escritores da ‘antiga’ e ‘nova’ geração dos sujeitos que se empenhavam em “[...] resguardar a escola pública das ameaças que pesam sobre ela” (Mais uma vez convocados..., 1959, p. 8). Esse documento, assim como o de 1932, foi redigido por Fernando de Azevedo. ‘ao povo e ao governo’, a fim de reafirmar e atualizar o compromisso e a luta por uma escola de qualidade, de acesso democrático e voltada ao desenvolvimento social. Na sua nova versão, o manifesto de 1959:

[...] sem abandonar sua linha de pensamento original, deixava um pouco de lado a preocupação de afirmar os princípios da Escola Nova, para, acima de tudo, tratar do aspecto social da educação, dos deveres do Estado Democrático e da imperiosa necessidade de não só cuidar o Estado da sobrevivência da escola pública, como também de efetivamente assegurá-la a todos (Romanelli, 1986Romanelli, O. (1986). História da educação no Brasil: 1930-1973. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 179).

Nesse contexto, a luta continuava a ser contra a ‘escola tradicional’ e suas características, mas outras urgências e problemas foram se impondo à educação paulista, por exemplo, como a precariedade das escolas, a insuficiência de vagas, a descontinuidade entre ensino primário e secundário, a má formação dos professores, o rendimento escolar e a inexequibilidade dos programas. Com isso, ao longo dos anos de 1960, especialmente após a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em dezembro de 1961 (Lei Federal nº 4.024), e a difusão das orientações do Programa de Assistência Brasileira-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), diferentes iniciativas reformistas foram ensaiadas em São Paulo, com o propósito de promover melhorias na escola pública e reagir contra as críticas de perda de qualidade de seu ensino (Souza, 2008Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.).

Dentre essas iniciativas, ganharam destaque as ações reformistas efetuadas entre 1967 e 1970, quando Antônio de Barros Ulhôa Cintra ocupou o cargo de Secretário da Educação do estado de São Paulo, e José Mário Pires Azanha, o cargo de Diretor do Departamento de Educação.

Logo que assumiram esses cargos, Ulhôa Cintra e José Mário Pires Azanha se incumbiram de promover duas importantes reformas na educação paulista, uma de caráter administrativo, com vistas à modernização da pasta e em consonância com os anseios do então governador, Abreu Sodré, e outra direcionada à reformulação do próprio sistema de ensino, objetivando a implantação de uma nova política educacional. Desse modo, já nos primeiros meses de 1967, o Departamento de Educação produziu, em versão preliminar, o documento direcionador de suas ações, o Plano de educação de São Paulo, no qual se desenhou o perfil das medidas a serem implantadas nos anos seguintes.

Nesse plano, no tocante ao ensino primário, há destaque para a necessidade fundamental de as políticas educacionais da época se voltarem aos problemas da expansão do atendimento e da melhoria qualitativa da educação paulista, pois esses constituíam a principal fragilidade a ser enfrentada para concretização de um ensino público universal e de qualidade. Para tanto, na visão dos gestores da Secretaria da Educação, a carência de vagas e a qualidade do ensino não podiam ser vistos como problemas dissociáveis ou alternativos. Para eles,

[...] o ‘déficit’ de vagas tem de tal modo sido sobreposto aos demais problemas, que a melhoria da qualidade apenas mereceu tratamento parcial e aleatório e, por isso mesmo sem resultados expressivos e cumulativos. Essa situação tem se agravado tão rapidamente nos últimos anos, que a ninguém escapa, nem mesmo ao leigo, a flagrante deteriorização dos padrões de ensino oferecido nas escolas primárias. No entanto, tal constatação não deve conduzir ao êrro oposto do que se tem cometido. Expansão da rêde e melhoria do ensino não são e não podem ser objeto de uma opção que seria absurda, pois nem o reerguimento do ensino primário pode ser remetido para um tempo em que a última criança encontra vaga nas escolas, nem a ampliação do atendimento pode ser detida até que se complete uma renovação dos padrões do ensino. Ambos os problemas exigem uma abordagem conjunta e integrada (São Paulo, 1967São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1967). Plano de educação de São Paulo (documento preliminar). , p. 4, grifo do autor).

Diante desse desafio, com relação à ampliação da rede, o Plano de educação de São Paulo, de 1967, propôs o esforço de desenvolvimento e de aplicação de recursos estaduais, municipais e federais na busca de novas soluções para se evitar a expansão tumultuada e desorganizada da rede, assim como a mobilização da opinião pública, de entidades e de instituições particulares, para cederem espaço para a instalação de novas escolas até que a construção de novos edifícios fosse possível.

Com relação à melhoria da qualidade do ensino, o plano de 1967 destaca que a questão a ser reformulada correspondia a problema muito maior que a simples renovação dos métodos, pois se tratava da necessidade de profundo redimensionamento de todo processo educativo elementar. Com isso, se entendia necessário romper com a concepção das funções sociais da escola primária, que desde as primeiras décadas do século XX insistia em atribuir a essa instituição o papel de ‘agência realizadora’ de tarefas que extrapolavam seus limites e finalidades. Nessa lógica, argumenta-se nesse plano que:

[...] num contexto urbano-industrial em elevado estágio de desenvolvimento, a escola primária forme a personalidade integral do educando, não é, de maneira alguma, valorizar-lhe as funções. É antes uma colocação ingênua e até certo ponto prejudicial por quê, desconsiderando as reais possibilidades de ação da escola primária, lhe propõe objetivos quê, por inatingíveis, não propiciam ao processo educativo a orientação, necessária à sua organização e desenvolvimento. Uma instituição que retém a criança durante apenas algumas horas do dia, quase sempre empobrecendo o seu ambiente, não pode nem deve se propor à formação integral de personalidade dessa criança porque essa é uma tarefa irrealizável nessas condições (São Paulo, 1967São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1967). Plano de educação de São Paulo (documento preliminar). , p. 5-6).

Mediante essa visão e planificação ainda preliminar, em março de 1967, foi nomeado pelo Secretário da Educação um grupo de trabalho para reformulação do currículo e dos programas do ensino primário de todo estado, adotando-se como ‘espírito’ o pressuposto de uma educação primária verdadeiramente fundamental e básica, com base em modelo de escola que pudesse garantir o possível e o mínimo necessários para o progresso das aptidões pessoais dos educandos. Competiu a esse grupo, portanto, a missão de elaborar um programa simples e singelo, responsável apenas por exercer papel integrador das experiências dos alunos, contribuindo para o desenvolvimento harmônico de suas respectivas personalidades.

Nessa lógica, o ideal de simplicidade não compreendia apenas medida para fugir das prescrições minuciosas tão criticadas nas reformas anteriores, mas

[...] condição de diferenciação e de complementação, que se fará levando em conta as características peculiares a cada comunidade em que a escola viva. Somente assim - básico e comum -, haverá o ensejo para que a escola realize a experiência integradora de experiências (São Paulo, 1968São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação., p. 8).

No ano seguinte ao da formação desse grupo de trabalho, em 1968, foi publicado o documento Programa da escola primária do Estado de São Paulo (São Paulo, 1968São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação.), o qual incidiu, além da definição de novas prescrições de ensino, em nova reorganização da escolarização primária. A partir desse novo programa, o ensino primário, ministrado em quatro anos, passou a compreender dois níveis: o nível I, correspondente à primeira e segunda séries, e o nível II, correspondente à terceira e quarta séries. Essa medida, conforme explica Souza (2008Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.), significou, de certo modo, a adoção da ideia de ciclos de estudos, alterando também a lógica do sistema de avaliação do rendimento escolar, pois em cada nível os exames tinham função diagnóstica e não mais seletiva.

Com essa nova organização, o nível I tinha caráter preparatório e sua avaliação se voltava predominantemente ao ensino da língua, entendida como aquisição do mecanismo da leitura. O nível II consistia em ensino sistemático e mais normativo, abrangendo sete áreas de estudo.

Essas mudanças operacionalizadas no ensino primário paulista, embora tenham permanecido em vigor por tempo relativamente curto, pois a instituição do ensino de 1º e 2º graus, em 1971, viria alterar profunda e definitivamente esse ensino, corresponderam a importante movimento de instauração de um novo conceito de escola no estado de São Paulo, antecipando e delineando a configuração da chamada ‘escola básica’, que se desenvolveu nas décadas seguintes (Souza, 2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.).

Bases conceituais e prescrições para o ensino do português no advento da Escola Básica (1968)

Quanto ao ensino da língua portuguesa no Programa da escola primária, de 1968, no diálogo com os propósitos ‘singelos’, sem ‘excessos’, sem ‘conteúdos exaustivos’ e ‘básicos’, verifica-se a manutenção de alguns dos princípios da escola ativa, em especial o do trabalho centrado na atividade e na experiência do aluno, porém a finalidade desse ensino passou a se restringir à criação das primeiras condições para o desenvolvimento de sensibilidades necessárias à identificação do mundo físico existente.

Por esse prisma, o ensino do português, cuja matéria passou a ser denominada ‘Língua pátria’, permaneceu definido com base no pressuposto da linguagem como expressão do pensamento, no entanto assumiu uma outra finalidade, a de dotação da criança de suas capacidades de criação e expressão mediante a fala e a escrita. Explicita-se, com isso, que o ‘bom ensino’ da língua deveria corresponder ao ensino da leitura integral e da composição plena para fins práticos, sendo tudo o mais secundário, inclusive a gramática.

E razão desses pressupostos, se definem como objetivos gerais do ensino da língua portuguesa nos dois níveis do ensino primário: possibilitar à criança expressão precisa e correta de suas ideias; favorecer o enriquecimento do vocabulário; desenvolver técnicas específicas de linguagem como integração ao meio social; e possibilitar a criança a apreciar o que é significativo e belo na língua escrita e falada.

Para atender a esses objetivos, as prescrições para ‘Língua pátria’ se organizam em leitura, composição oral e escrita e iniciação gramatical, conforme síntese apresentada na Quadro 2.

Quadro 2
Síntese das prescrições para o ensino da língua portuguesa no Programa da escola primária do Estado de São Paulo (1968).

Conforme se verifica pelos dados apresentados na Quadro 2, o programa de 1968 se apresenta bastante sintético, sobretudo se comparado ao programa anterior, de 1949-1950. As prescrições contidas nele consistem na definição apenas de pontos genéricos a serem ensinados com relação à língua, tendo como direcionamento três perguntas básicas: o que deve a criança aprender? O que pode a criança aprender? Para que deve aprender?

Reconhecida a limitação que a escola representa como aparato de formação integral, o ensino da língua se apresenta aberto, de tal modo que se busca garantir apenas noções básicas sobre o papel da leitura e da composição como instrumentos de organização e sistematização do pensamento e como elementos imprescindíveis para o desenvolvimento de outras capacidades de comunicação social e potencialidades expressivas.

Nota-se, com isso, que não há grande diversificação das prescrições para cada uma das séries. O que perpassa é a ideia de enriquecimento gradativo das experiências e das atividades envolvendo o uso da língua, visando sempre ao preparo para a realidade prática. Trata-se de prescrições pautadas no pressuposto da revisão, consolidação, ampliação, aprofundamento e sistematização ao longo de cada nível e cada série. Nesse aspecto, merece destaque a importância que se observa com relação ao lugar ocupado pela composição, pois esse componente da língua é entendido como uma forma de reunir ideias e transmitir/expressar pensamentos e sentimentos, ou seja, compreende toda a finalidade do ensino da linguagem.

Também se observa nessas prescrições pouca ênfase nos conhecimentos de natureza gramatical, asseverando-se o discurso contrário à normatização da língua e ao estudo de regras.

Outro diferencial do programa de 1968 é quanto às orientações metodológicas. As prescrições para o ensino da língua contidas nesse programa são excessivamente abertas, quase lacunares, com a ausência total de orientação metodológica. Diferentemente do programa anterior, esse se coloca contrário às indicações dessa natureza, pois parte-se do princípio de que o programa não se encerra em si mesmo. Ao se propor a apresentar um conteúdo funcional, a ideia é que o programa permitisse “[...] processos criadores e de espírito de pesquisa; [valorizasse] a capacidade individual” (São Paulo, 1968São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação., p. 6).

Dessa forma, cabe ao professor realizar trabalho pautado na ampla liberdade, que se descobre em práticas de ensino que propicie a preparação para o futuro. É função dele, então: “[...] ser um técnico. Profissional hábil. Competente. Atualizado. Líder. O estudo é seu descanso. Um intelectual” (São Paulo, 1968São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação., p. 139).

Por intermédio dessas características, pode-se compreender que as prescrições contidas no programa de 1968 significaram um importante movimento de conversão do ensino da língua, antes de caráter ampliado e estruturante da própria sociedade, em aprendizagens básicas e elementares, com finalidade prática e de realização futura, corporificando o ideal de escola básica ou mínima.

Considerações finais

Estritamente ligados à ideia de que o ordenamento de conteúdos e a determinação de orientações curriculares configuram lócus central de consolidação dos projetos de educação e sociedade que se impõem à escola, os documentos aqui analisados indicam importante movimento de modernização das propostas para o ensino da língua portuguesa entre as décadas de 1940 e 1960, apontando redefinição de sua finalidade e de seu papel na formação do alunado. Nesse sentido, mais do que corresponder a uma simples seleção cultural de conteúdos, esses programas assumiram, no interior das reformas de que decorreram, a missão de concretizar grande parte dos ideais pedagógicos que se disseminaram no período.

Nesse sentido, o que se nota, tanto nos programas estabelecidos em 1949-1950 quanto na reformulação ocasionada em 1968, é a manutenção de uma base conceitual centrada na concepção de língua e de linguagem como mecanismo de expressão do pensamento, referindo-se ao papel da escola como o de desenvolver nas crianças a capacidade dessa expressão.

Esse entendimento sobre a língua/linguagem se vincula, em certa medida, à tradição filosófica iniciada entre os séculos XVIII e XIX, denominada por Bakthin (2009Bakhtin, M. (2009). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, SP: Haucitec. ) ‘subjetivismo idealista’, que se fundou na defesa de profunda interdependência entre a palavra e o pensamento. Nessa tradição, a linguagem constitui a própria razão, pois sem a primeira não pode haver o pensamento. Rompe-se, portanto, com a ideia da linguagem como sistema acabado, como um produto, atribuindo-se a ela aspecto criador, como atividade e produção, seja em perspectiva pragmática, seja em perspectiva semântica.

Em vista disso, embora os programas aqui analisados se sustentam em mesma base conceitual para o entendimento da língua/linguagem, verifica-se entre eles uma alteração substancial no que se refere à finalidade e ao sentido do ensino do português.

Enquanto no projeto escolanovista esse ensino se volta à erudição, com base na correção por meio de treino e de exploração quase exaustiva de conteúdos, no projeto da escola básica, a centralidade da aprendizagem da língua está no mínimo necessário para o desenvolvimento da capacidade de composição e de leitura, com vistas ao uso ‘prático’. De um modelo prescritivo minucioso, que almejava grandiosa formação cultural associada ao desenvolvimento da moralidade, da civilidade e do sentimento nacionalista, se apresentam, no rompimento com as funções sociais realizadoras da escola, prescrições simplificadas, direcionadas ao modesto incremento de alguns aspectos da personalidade mediante experiências integradoras.

Dessa forma, enquanto na modernização curricular operada pelo princípio escolanovista prevalece a ideia enciclopédica do ensino da língua, visando a atingir o máximo de aperfeiçoamento da expressão verbal e oral como um dos pilares do intento civilizatório, a modernização prescrita sob os princípios da escola básica se ancora no mínimo necessário para o desenvolvimento de potencialidades futuras e capacidades expressivas em razão da ‘educação para a vida’. Passa a ter a escola, no que compete ao ensino do português, a “[...] finalidade soberana [de] ensinar a criança a pensar” (São Paulo, 1968São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação., p. 139), em contraposição à ideia de integralidade de formação do sujeito.

Pelo exposto, ainda que o movimento de modernização curricular para o ensino da língua portuguesa levado a cabo no estado de São Paulo entre 1949 e 1968 seja marcado por algumas permanências, sobretudo no que tange ao princípio filosófico e conceitual de entendimento da língua e da linguagem, vislumbra-se e confirma-se, por meio dele, o movimento de ruptura entre a cultura escolar moldada desde o início da República e o despontar de um modelo de escola básica desenvolvido a partir das décadas finais do século XX pelo prisma da razão técnico-instrumental (Souza, 2009Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras.).

Referências

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  • Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.
  • Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976) Campinas, SP: Mercado de Letras.
  • 1
    Integraram essa comissão: Luiz G. C. Castro (presidente); Dirce Ribeiro de Arruda; Francisca Portugal Gouvêa; Maria Aparecida Pimenta; Maria Odila Guimarães Bueno; Mathilde Brasiliense Almeida Bessa; Orlando Simonetti; e Palmyra Amazonas Sampaio Morais (São Paulo, 1949cSão Paulo. (1949c). Ato nº 46, de 26 de julho de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 3º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves.).
  • 2
    Esse novo manifesto, intitulado ‘Mais uma vez convocados: Manifesto ao povo e ao governo’, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1º de julho de 1959, com a assinatura de mais de 80 educadores e escritores da ‘antiga’ e ‘nova’ geração dos sujeitos que se empenhavam em “[...] resguardar a escola pública das ameaças que pesam sobre ela” (Mais uma vez convocados..., 1959Mais uma vez convocados: manifesto ao povo e ao governo. (1959). O Estado de S. Paulo. , p. 8). Esse documento, assim como o de 1932, foi redigido por Fernando de Azevedo.
  • 5
    Rodadas de avaliação: R1: três convites; uma avaliação recebida. R2: três convites; uma avaliação recebida.
  • 6
    Como citar este artigo: Oliveira, F. R. Entre a Escola Nova e a Escola Básica: a modernização curricular para o ensino do português no ensino primário paulista (1949-1968). (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e232

Editado por

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2540-2949

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2021
  • Aceito
    27 Dez 2021
  • Publicado
    24 Set 2022
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