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Jaques-Dalcroze e a Rítmica na educação infantil:apresentação e tradução de dois textos selecionados

Jaques-Dalcroze and Eurhythmics in Early Childhood education: introduction and translation of two selected works

Jacques-Dalcroze y la Rítmica en la educación infantil: presentación y traducción de dos textos selecionados

Resumo:

Apresentação crítica seguida de tradução da ‘Au jardin d’enfants’ e ‘Enfants d’hier, d’aujourd’hui, de demain’, dois textos escritos pelo compositor e pedagogo Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) e publicados em 1942 na obra Souvenir, notes et critiques (capítulos VII e VIII). Nesses textos selecionados e aqui traduzidos para o português pela primeira vez, Dalcroze discute o papel da Rítmica na formação integral da criança em idade pré-escolar (educação infantil) e expõe uma leitura bastante original e instigante sobre a infância, apontando caminhos e colocando em xeque os ortodoxos métodos aplicados por seus contemporâneos. Esta produção tornou-se possível na medida em que a vasta obra didático-teórica de Dalcroze entrou em domínio público no ano de 2020.

Palavras-chave:
educação musical; métodos de ensino de música; história da educação musical

Abstract:

Critical presentation followed by translation of ‘Au jardin d'enfants’ and ‘Enfants d'hier, d'aujourd'hui, de demain’, two texts written by the composer and pedagogue Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) and published in 1942 in the book Souvenir, notes et critiques (chapters VII and VIII). In these selected texts and here translated into Portuguese for the first time, Dalcroze discusses the role of Eurhythmics in the integral formation of preschool-age children (infant education) and exposes a very original and thought-provoking view of childhood, pointing out ways and putting in check the orthodox methods applied by his contemporaries. This production became possible to the extent that Dalcroze's vast didactic-theoretical work entered the public domain in the year 2020.

Keywords:
musical education; music teaching methods; history of music education

Resumen:

Presentación crítica seguida de traducción de ‘Au jardin d'enfants’ y ‘Enfants d'hier, d'aujourd'hui, por demain’, dos textos escritos por el compositor y pedagogo Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) y publicados en 1942 en la obra Souvenir, notes et critiques (capítulos VII y VIII). En estos textos seleccionados y aquí traducidos al portugués por primera vez, Dalcroze discute el papel de la Rítmica en la formación integral de los niños en edad preescolar (educación infantil) y expone una visión muy original y sugerente de la infancia, señalando formas y poniendo en jaque los métodos ortodoxos aplicados por sus contemporáneos. Esta producción se hizo posible en la medida en que la vasta obra didáctico-teórica de Dalcroze pasó al dominio público en el año 2020.

Palabras clave:
educación musical; métodos de enseñanza de la música; historia de la educación musical

Introdução

Émile Jaques-Dalcroze tem sido celebrado internacionalmente como criador da Rítmica, um modelo ativo de educação musical baseado na integração entre escuta e movimento, corpo e ritmo musical, no qual a experiência sensorial precede o intelecto ou qualquer análise conceitual ou analítica.

No Brasil, as provocadoras ideias de Dalcroze apareceram pela primeira vez no texto A Menina e o Conservatório, traduzido por Sá Pereira e publicado em 1924 na revista modernista Ariel (Toni, 2015Toni, F. (2015). A primeira fase de Ariel, uma revista de música. Música Hodie, 1(15), 154-170. Recuperado de: https://www.revistas.ufg.br/musica/article/view/39605
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). Mário de Andrade, editor da revista ao lado de Sá Pereira, demonstrou grande interesse pela Rítmica, considerando-a como “[...] um dos progressos técnicos mais importantes do ensino musical da atualidade” (Andrade, 1987Andrade, M. (1987). Pequena história da música. Belo Horizonte, BH: Itatiaia., p. 192).

As inovações presentes na proposta de Dalcroze inspiraram práticas de universalização do ensino de música nas escolas, um movimento semelhante ao projeto idealizado por Villa-Lobos junto ao Plano de Educação Musical da Superintendência Educacional e Artística (SEMA) do governo Vargas.

A disciplina Canto Orfeônico foi criada e encaixava-se perfeitamente ao espírito cívico-militar nacionalista e ao manifesto escolanovista. A proposta foi aplicada inicialmente no Rio de Janeiro (antiga capital da República), mas em pouco tempo, através do Decreto nº 24.794 (1934Decreto nº 24.794, de 14 de Julho de 1934. (1934). Cria, sem aumento de despesa, a Inspetoria Geral do Ensino Emendativo, dispõe sobre o Ensino do Canto Orfeônico, e dá outras providências. Rio de Janeiro, DF: Ministério da Educação e Saúde Pública. Recuperado de: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24794-14-julho-1934-515847-norma-pe.html
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, Art. 11), o ensino do Canto Orfeônico se tornaria extensivo “[...] a todos os estabelecimentos de ensino dependentes do Ministério da Educação e Saúde Pública”.

A promulgação da 1ª Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 4.024, 1961Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. (1961). Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Ministério da Educação . Recuperado de: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-dezembro-1961-353722-publicacaooriginal-1-pl.html
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) deu início ao enfraquecimento do ensino do Canto Orfeônico, da Filosofia e das línguas antigas (latim e grego), que passou a ser facultativo no ensino clássico.

Com a aprovação da Lei nº 5.692 (1971Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. (1971). Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Brasília, DF: Ministério da Educação . Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.htm
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), o Canto Orfeônico foi definitivamente extinto do ensino de música das escolas públicas brasileiras em substituição à Educação Artística, configurada como atividade obrigatória (não mais disciplina) ao lado da Educação Física e da Educação Moral e Cívica.

Do ensino pautado da linguagem musical (canto coral) passou-se ao ensino genérico da Educação Artística, de formação curta, polivalente e com foco no desenho técnico-industrial. A indagação de Viñao (2012Viñao, A. (2012). A história das disciplinas escolares (Maria Fernandes Braga, trad.). Revista Brasileira De História Da Educação, 8(3[18]), 173-215. Recuperado de: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/40818
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, p. 201) sobre o sistema francês de ensino (primário) revela origens e permanências dessa mesma problemática: “O canto é uma disciplina ou é somente uma atividade ou exercício da música que sim, seria hoje, pela nossa perspectiva, a disciplina?”

Depois de 25 anos, a Lei nº 9.394 (1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação nacional. Brasília, DF: Ministério da Educação . Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
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) determinou a substituição da Educação Artística pela Arte, disciplina curricular obrigatória destinada a contemplar as quatro linguagens artísticas, quais sejam a Música, a Dança, o Teatro e as Artes Visuais. Conforme Vieira (2011Vieira, M. S. (2011). As reformas educacionais e o ensino de artes. Cocar, 5(10), p. 65-71. Recuperado de: https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/197
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), a iniciativa do Poder Legislativo foi louvável, mas não resolveu o problema do ensino de Arte, pois as escolas públicas brasileiras não tinham a menor condição de abarcar o ensino de todas essas linguagens. Os Parâmetros Curriculares Nacionais ou PCNs (Brasil, 1997Brasil. Ministérios da Educação. (1997). Parâmetros Curriculares Nacionais: arte. Brasília, DF. Recuperado de: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro06.pdf
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) trouxeram questionamentos importantes em relação às teorias não críticas de educação, mas as orientações didáticas disponibilizadas não ultrapassaram 3 ou 5 páginas em cada caderno/linguagem.

O contínuo e progressivo enfraquecimento do ensino de Música gerou um debate político intenso entre os educadores partidários dos métodos ativos de educação musical para os quais a Rítmica Dalcroze era uma grande fonte de inspiração. Esse movimento deu sanção à Lei 11.769 (2008Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008. (2008). Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica. Brasília, DF: Ministério da Educação. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11769.htm
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), não implementada, que deliberou sobre a obrigatoriedade do ensino de Música na educação básica.

A constituição histórica de uma disciplina escolar possui uma dinâmica intensa e igualmente perversa. Na República idealizada por Platão, a música - ao lado da ginástica - tinha um lugar central na formação do homem livre. A música também ocupou nas Artes Liberais (Idade Média) o seleto grupo de disciplinas do Quadrivium.

Depois de muitas voltas, somadas à precarização do ensino e à desqualificação dos professores, o ensino de Arte/Música, no contexto da cultura escolar, se tornou insipiente e esvaziado de sentido, uma forma de distração e compensação do trabalho realizado pelas disciplinas sérias.

Dalcroze também registrou uma preocupação legítima com a reforma do ensino de música nas escolas, indicando que “[...] a música exerce, na escola, um papel desbotado e secundário” (Jaques-Dalcroze, 1920Jaques-Dalcroze, É. (1920). Le rythme, la musique et l’éducation. Lausanne, CH: Jobin et Cie., p. 13).

Viñao (2012Viñao, A. (2012). A história das disciplinas escolares (Maria Fernandes Braga, trad.). Revista Brasileira De História Da Educação, 8(3[18]), 173-215. Recuperado de: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/40818
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, p. 198) aponta os “[...] diferentes status disciplinares [...]”, enquanto Júnior e Galvão (2005Júnior, M. S., & Galvão, A. M. O. (2005). História das disciplinas escolares e história da educação: algumas reflexões. Educação e Pesquisa, 31(3), 391-408. Recuperado de: https://www.scielo.br/j/ep/a/Gd49ZSgJ4KF8fMRYRkBTvjN/?format=pdf⟨=pt
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) investigam a valorização de certas disciplinas em detrimento de outras. De fato, o professor de Matemática ou Língua Portuguesa goza um status muito mais elevado do que o professor de Arte/Música. Mesmo tendo recuperado a condição de disciplina, a Arte/Música não exerce o mesmo poder real (e simbólico) de reprovação, uma configuração bastante positiva do ponto de vista libertário, embora mantenha a área da Arte em uma busca eterna - consciente ou não - de legitimidade (Silva, 2003Silva, M. B. (2003). A inserção da arte no currículo escolar: Pernambuco, 1950-1980 (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Recuperado de: https://www.researchgate.net/publication/354005914_A_insercao_da_arte_no_curriculo_escolar
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).

Dalcroze tinha o sonho de implementar a Rítmica como disciplina obrigatória em todas as escolas públicas da Suíça, um ousado projeto (malogrado) que despertou a fúria e o desprezo da alta sociedade genebrina em fins do século XIX, afinal: como um jovem da classe média, a despeito de seu grande talento como instrumentista e compositor, poderia questionar o ensino tradicional de música e propor uma abordagem considerada diabólica pelos calvinistas?

Seus experimentos foram violentamente rechaçados, considerados nocivos à saúde das crianças e à moral nacional. Retirar os sapatos e movimentar o corpo pelo espaço da sala de aula ainda era - e ainda é - um grande tabu no ambiente escolar. Muitos educadores musicais brasileiros, ao aplicarem a metodologia da Rítmica, sofrem o mesmo tipo de bullying vivenciado por Dalcroze: risos de deboche, interjeições de espanto e insinuações maldosas (“Isso é coisa de menina!”).

A constituição dos saberes escolares específicos de uma disciplina, assim como a prescrição de um currículo, não é inequívoca e resulta de um processo complexo “[...] que envolve consentimentos, conflitos, diferentes tipos de mediação entre diversos sujeitos e instituições” (Júnior & Galvão, 2005Júnior, M. S., & Galvão, A. M. O. (2005). História das disciplinas escolares e história da educação: algumas reflexões. Educação e Pesquisa, 31(3), 391-408. Recuperado de: https://www.scielo.br/j/ep/a/Gd49ZSgJ4KF8fMRYRkBTvjN/?format=pdf⟨=pt
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, p. 404).

O acesso à obra original de Dalcroze ainda é precário. Encontrar suas obras nas estantes das bibliotecas públicas brasileiras é muito raro. Além do ensaio A Menina e o Conservatório, de acesso extremamente restrito, apenas dois pequenos textos de Dalcroze foram traduzidos até o presente momento: Os Estudos Musicais e a Educação do Ouvido (Jaques-Dalcroze, 2010Jaques-Dalcroze, É. (2010). Os estudos musicais e a educação do ouvido (José Rafael Madureira e Luci Banks-Leite, trad.). Pro-Posições, 21 (1), 219-224. Recuperado de: https://www.scielo.br/j/pp/a/RM8v8jxcXpVwxFJnjPvTqRP/?lang=pt
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), e Os hop Musicais (Jaques-Dalcroze, 2021Jaques-Dalcroze, É. (2021). Os “hop” musicais (José Rafael Madureira, trad.). Orfeu, 6 (1), 1-13. Recuperado de: https://www.revistas.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/19541
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). Também podemos considerar a tradução recente de um ensaio de Adolphe Appia (2021Appia, A. (2021). A ginástica rítmica e a luz. (José Rafael Madureira e Ísis Arrais Padilha, trad.). Dramaturgias, 16, 358-366. Recuperado de: https://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/article/view/37454/29273
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) - grande incentivador de Dalcroze - sobre a dimensão poética dos exercícios de Rítmica, uma tradução precedida de uma apresentação detalhada da experiência de Dalcroze em sua primeira escola, edificada na cidade-jardim de Hellerau, na Alemanha (Madureira & Padilha, 2021Madureira, J. R., & Padilha, I. A. (2021). Adolphe Appia e Émile Jaques-Dalcroze: apresentação da tradução do ensaio “La gymnastique rythmique et la lumière”. Dramaturgias, 16, 358-366. Recuperado de: https://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/article/view/37454/29273
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).

A análise mais completa da obra didática, musical e filosófica de Dalcroze foi organizada por Frank Martin (1965Martin, F. (1965). Émile Jaques-Dalcroze: l’homme, le compositeur et le créateur de la rythmique. Neuchâtel, CH: La Éditions de la Baconnière.), ainda sem tradução (original em francês). No contexto da metodologia de ensino da Rítmica, destacamos o trabalho de Bachmann (1984Bachmann, M. L. (1984). La rythmique Jaques-Dalcroze: une éducation par la musique et pour la musique. Boundry, CH: Éditions de la Baconnière.), traduzido para o inglês (Bachmann, 1991Bachmann, M. L. (1991). Dalcroze today: an education through and into music (David Parlett, trad.). Oxford, UK: Clarendon Press.) e para o espanhol (Bachmann, 1998Bachmann, M. L. (1998). La rítmica Jaques-Dalcroze: una educación por la música y para la música (Alphabet Traducciones, trad.). Madri, ES: Pirámide.).

No Brasil, as pesquisas sobre Dalcroze e a Rítmica encontram-se ainda em um nível introdutório, com destaque para algumas produções: o artigo pioneiro de Santos (2001Santos, R. M. S. (2001). Jaques-Dalcroze avaliador da instituição escolar: em que se pode reconhecer Dalcroze um século depois? Debates, 4, p. 7-48. Recuperado de: http://www.seer.unirio.br/revistadebates/article/view/4142/3792
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), a tese de doutorado de Madureira (2008Madureira, J. R. (2008). Émile Jaques-Dalcroze: sobre a experiência poética da rítmica (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Recuperado de: http://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/435623
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) e as dissertações de Mantovani (2009Mantovani, M. (2009). O movimento corporal na educação musical: influências de Émile Jaques-Dalcroze (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/95169/mantovani_m_me_ia.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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) e Nicoletti (2017Nicoletti, D. A. R. (2017). A educação estética através da música no segundo setênio: aproximações entre Rudolf Steiner e Émile Jaques-Dalcroze (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-17042018-150151/publico/DANIELAAMARALRODRIGUESNICOLETTIVC.pdf
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).

A tradução da obra capital de Dalcroze, a coletânea Le rythme, la musique et l’éducation (1920Jaques-Dalcroze, É. (1920). Le rythme, la musique et l’éducation. Lausanne, CH: Jobin et Cie.), está na iminência de ser publicada no Brasil pela editora da UFRJ, o que deverá abrir novos horizontes de pesquisa sobre as contribuições da Rítmica no contexto escolar.

Na condição de artista, compositor, professor e pensador, Dalcroze tinha uma compreensão muito ampla de educação, um processo atrelado à formação cultural e ao desenvolvimento humano integral. Essa compreensão é consonante aos pressupostos estético-filosóficos do idealismo alemão, traduzidos pela noção do Bildung ou ‘formação cultural’ e imbuídos de fortíssima conotação estética e pedagógica (Suarez, 2005Suarez, R. (2005). Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Kriterion, 112, 191-198. Recuperado de: https://www.scielo.br/j/kr/a/7Hh9d3cv6KNT4bgrNxcPqGn/?format=pdf⟨=pt
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).

Apresentaremos em seguida a tradução de dois capítulos de um livro de memórias intitulado Souvenir, notes et critiques (Jaques-Dalcroze, 1942Jaques-Dalcroze, É. (1942). Souvenir, notes e critiques. Neuchatel, CH: Victor Attinger.), a saber: No jardim de crianças (Au jardin d’enfants) e As crianças de ontem, de hoje, de amanhã (Enfants d’hier, d’aujourd’hui, de demain).

O primeiro texto - No jardim de crianças - já havia sido publicado dez anos antes no boletim do Instituto Jaques-Dalcroze de Genebra, intitulado Le Rythme (Jaques-Dalcroze, 1932Jaques-Dalcroze, É. (1932). Le jardin d’enfants. Le Rythme, 34, 21-24.). No posfácio de Souvenir, notes et critiques (Jaques-Dalcroze, 1942Jaques-Dalcroze, É. (1942). Souvenir, notes e critiques. Neuchatel, CH: Victor Attinger.), Dalcroze justifica a inserção desse e de outros artigos anteriormente publicados em Le Rythme, alegando que o boletim tinha uma circulação restrita aos membros da Associação de Professores de Rítmica e não alcançou um público mais amplo que, desta vez, era o seu foco.

Os textos foram escritos na forma de ensaios e coloridos com relatos pessoais do autor sobre suas experiências em sala de aula como professor de Rítmica, atividade que ele desenvolveu desde o início da carreira docente - iniciada aos 27 anos - até se afastar definitivamente do Instituto por volta dos 77 anos de idade, justamente em 1942, data da publicação de Souvenir, notes et critiques.

Escolhemos traduzir e reunir esses dois textos para evidenciar um dos grandes interesses de Dalcroze: a formação musical da criança. Além desses dois textos, Dalcroze publicou outros quatro com a temática da infância nos quais o termo ‘criança’ (enfant) é uma palavra-chave: La musique et l’enfant (Jaques-Dalcroze, 1920Jaques-Dalcroze, É. (1920). Le rythme, la musique et l’éducation. Lausanne, CH: Jobin et Cie.), L’enfant et le sentiment plastique (Jaques-Dalcroze, 1931Jaques-Dalcroze, É. (1931). L’enfant et le sentiment plastique. Le Rythme, 32, 10-13.) e mais outros dois reunidos em Souvenir, notes et critiques (capítulos IV e IX): Les enfants chantent e La musique, le piano et l’enfant.

Na obra capital de Dalcroze - Le rythme, la musique et l’éducation (1920Jaques-Dalcroze, É. (1920). Le rythme, la musique et l’éducation. Lausanne, CH: Jobin et Cie.), encontramos apenas um capítulo específico dedicado à criança (La musique et l’enfant), embora o termo ‘criança’ apareça 234 vezes (e o termo ‘escola’, 191 entradas).

Dalcroze confessa no primeiro ensaio - No jardim de crianças - que desde o início de seu magistério no Conservatório de Genebra até 1932, ele nunca havia pensado em aplicar a Rítmica no contexto da educação infantil. Embora ele descreva a criança de quatro e cinco anos com alguns traços de romantismo e ingenuidade, sua visão de infância é bastante moderna e revolucionária para a época.

Para Dalcroze, disciplinar, na educação da criança, se coaduna com liberdade, entrevendo o valor da espontaneidade e da fantasia do brincar como algo a ser observado com muito apreço pelo professor, que encontra na própria criança, com quem entretém uma atitude dialógica, o gérmen do que desenvolverá no ensino, escutando suas necessidades e dando vazão às suas potencialidades.

Dalcroze não criou um método para ser reproduzido mecanicamente e de maneira indistinta. Educar, para ele, deve ser uma atividade profundamente criativa, uma arte, e, como tal, imbuída de amor e poesia, singularizada a cada gesto e a cada proposta que se destina às crianças como um encontro existencial.

Dalcroze mostra coerência com todo o seu questionamento sobre ideias caducas e práticas retrógradas. Além disso, ele salienta que o caminho trilhado pelo professor não servirá de guia para as crianças, que deverão construir o seu próprio itinerário de aprendizagem, descobertas e emoções. O professor deve buscar em sua criança interior os meios de aproximação daquilo que sentem seus alunos e comungar com eles o seu próprio prazer de brincar, respeitando o tempo da criança, sem imposições.

Em ambos os textos, Dalcroze exalta a potência criativa da criança, considerada o sujeito principal dessa relação de aprendizagem, e insiste que a família e os educadores devem se desdobrar e garantir a ela espaços acolhedores para que possa brincar, explorar, criar e se expressar com total autonomia e com a inteireza de seu corpo.

Ainda há uma ideia, que se pode reconhecer como condizente com o pensamento de sua época, de que é preciso controlar os movimentos desordenados da criança. Esse direcionamento, todavia, aconteceria de modo orgânico, através do próprio movimento rítmico motivado pela fantasia da criança, que promoveria a organização e harmonização do sistema nervoso. Vemos, nesse ponto, a intuição e a sensibilidade de Dalcroze ao perceber uma interferência mútua entre corpo físico-biológico e psíquico-emocional-espiritual. Assim, a flexibilidade corporal corresponderia a uma disposição flexível para a vida, o que iria assegurar às crianças certa calma, resiliência e coragem, como também a confiança em si mesmas e nos seus parceiros de jogo.

Dalcroze entende que a música deve ser indissociável da liberdade e da alegria de viver e, por isso, adverte que uma lição de música não pode jamais se tornar uma tortura ou algo enfadonho. É preciso que as crianças sintam vontade em inventar e brincar a música, dando sabor ao saber, aproximando-se da sua experiência vivida, de seu repertório sensorial próprio, extraindo a musicalidade da sua realidade e tornando-a significativa.

Dalcroze faz uma análise bastante severa e acurada dos métodos e pedagogias de seu tempo, mas também responsabiliza a instituição familiar - da qual ele é um árduo defensor - por não se envolver ativamente com o processo de escolarização das crianças, cobrindo-as, por outro lado, de exigências e expectativas. Ele insiste que a escola e a família devem interagir e colaborar ativamente a favor do desenvolvimento integral da criança.

Dalcroze põe em relevo um aspecto essencial do desenvolvimento humano, de que depende todo o sentido da nossa interação com o mundo: a dimensão afetiva. Mais do que isso, a consciência de que as condutas dos adultos em torno das crianças semeiam muito dos comportamentos da vida adulta, aquilo que imitam inconscientemente como referências. Ele insiste na importância da autoeducação dos adultos para que eles se renovem na exuberância da experiência com as crianças, ao invés de limitá-las com os seus automatismos e envelhecê-las com a rigidez de suas normas e de seus pensamentos conservadores. É preciso deixar que o novo cante com toda a potência da invenção, da alegria e do movimento.

Dalcroze apresenta uma mirada sensível sobre o ser humano, uma reflexão de caráter filosófico em que a música educa para a arte de viver. Ele nos alerta para a amplitude da responsabilidade do mundo adulto em relação às crianças em devir, no valor de cada instante do seu processo de aprendizado, que é contínuo e não se limita ao espaço escolar. Em outras palavras, Dalcroze reconhece a educação como uma responsabilidade compartilhada pelo mundo adulto, uma responsabilidade que pertence a toda a sociedade por gerações mais sensíveis, conscientes e felizes.

O campo das pesquisas sobre a história das disciplinas escolares, especialmente no contexto do ensino de Música, ainda é pouco explorado e delimitado com imprecisão, conforme advertem Júnior e Galvão (2005Júnior, M. S., & Galvão, A. M. O. (2005). História das disciplinas escolares e história da educação: algumas reflexões. Educação e Pesquisa, 31(3), 391-408. Recuperado de: https://www.scielo.br/j/ep/a/Gd49ZSgJ4KF8fMRYRkBTvjN/?format=pdf⟨=pt
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, p. 405) ao evidenciar as diferenças entre a historiografia da Arte e os estudos da história dos saberes escolares, que “[...] não se confundem e não coincidem”.

Com a tradução inédita desses dois pequenos textos de Dalcroze, esperamos contribuir com o desenvolvimento do ensino de Música na rede pública de ensino, ainda demasiado precário e sem grandes perspectivas de renovação.

Referências

  • 14
    Como citar este artigo: Madureira, J. R., & Nicoletti, D. A. R. Jaques-Dalcroze e a Rítmica na educação infantil: apresentação e tradução de dois textos selecionados. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e253
  • Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 1
    ‘Au jardin d’enfants’, publicado em: Jaques-Dalcroze, É. (1942). Souvenir, notes e critiques. Neuchate, CH: Victor Attinger, p. 53-56 (capítulo VII). Tradução de José Rafael Madureira e Daniela Amaral Rodrigues Nicoletti.
  • 2
    Eu sempre constatei progressos mais rápidos e mais intensos em crianças cujas mamães haviam feito aulas de rítmica [Nota original do autor].
  • 3
    ' ‘Enfants d’hier, d’aujourd’hui, de demain’, publicado em: Jaques-Dalcroze, É. Souvenir, notes e critiques. (1942). Neuchatel, CH: Victor Attinger, p. 57-64 (capítulo VIII). Tradução e notas de José Rafael Madureira e Daniela Amaral Rodrigues Nicoletti.
  • 4
    Dalcroze cultivava uma verdadeira devoção por Montaigne, sendo a obra Ensaios (1580), seu livro de cabeceira [N. dos T.].
  • 5
    Baeriswyl, J. (1891-1988). Rythmicien, regente e diretor teatral nascido em Singapura e naturalizado suíço. Ainda jovem, em Genebra, conheceu Dalcroze. A experiência da Rítmica foi para ele uma revelação que inspirou o seu florescer como artista e professor [N. dos T.].
  • 6
    Kamm, A. (1885-1911). Escritora, religiosa e humanitarista suíça [N. dos T.].
  • 7
    Auberjonois, R. V. (1872-1957). Um dos maiores pintores suíços do século XX [N. dos T.].
  • 8
    Ersatz é uma palavra do vocabulário alemão que significa literalmente ‘compensação’ ou ‘substituição’. Dalcroze remete-se, ironicamente, às restrições alimentares impelidas aos soldados durante a 2ª Guerra Mundial, nas quais o açúcar era substituído pela sacarina. A sacarina é o Ersatz do açúcar, o sabor é doce, mas não é açúcar de verdade [N. dos T.].
  • 9
    Legrand, M. É. (1872-1934). Poeta e libretista francês conhecido no meio artístico como Franc-Nohain. Colaborou com Ravel e Claude Terrasse. A máxima deve ter sido extraída de sua autobiografia Dites-nous quelque chose de Franc-Nohain (Paris, 1930) [N. dos T.].
  • 16
    No jardim de crianças Émile Jaques-Dalcroze1 1 ‘Au jardin d’enfants’, publicado em: Jaques-Dalcroze, É. (1942). Souvenir, notes e critiques. Neuchate, CH: Victor Attinger, p. 53-56 (capítulo VII). Tradução de José Rafael Madureira e Daniela Amaral Rodrigues Nicoletti. Que palavra graciosa para designar a escola das crianças pequeninas, e como é bela a denominação ‘jardineiro’ para qualificar aqueles e aquelas que dedicam os seus esforços ao cultivo da infância como botões de flor, ao amadurecimento dos espíritos pueris, ao despertar de seus sentidos, à germinação de suas ideias, em uma palavra, ao florescer dos organismos dos homenzinhos do amanhã! Não deve ser fácil conduzir à vida consciente pequenos seres que desconhecem a si mesmos ou, pelo menos, que não sabem exprimir com clareza seus sentimentos e desejos secretos! Mas é também uma alegria adentrar, cuidadosamente, os mistérios da vida futura e descobrir os meios de formar essas jovens consciências, desenvolver seus instintos e despertar a sua imaginação! É justamente por isso que nos últimos anos, sem deixar minha habitual pedagogia, eu tenho me interessado pelos pequeninos, àqueles de quatro e cinco anos para os quais eu ainda não havia pensado em adaptar a educação rítmica por mim preconizada. Eu me perguntava se nessa tão tenra idade já seria possível submeter os bebês à jogos educativos apropriados ao florescer de suas faculdades em botão. E eu imaginava diversos meios de lhes oferecer encorajamento em suas reações úteis, resistência contra às ações inúteis, de coordenar os seus movimentos enquanto desenvolvem a atenção, de habituá-los a seguir e diferenciar os ritmos musicais graças a uma prática corporal que pudesse reforçar a sensibilidade nervosa e muscular. Meus excelentes professores constataram, nos primeiros meses de aulas com os pequenos alunos de Rítmica da turma do jardim de infância, uma terrível desordem nas atividades coletivas e individuais, assim como uma inabilidade tão grande em cadenciar movimentos isolados que nos pareceu que o ensino não seria capaz de aplacar. Contudo, eis que próximo ao final do primeiro semestre, uma tal mudança começou a se produzir naqueles corpinhos e em suas mentalidades que nós conquistamos a certeza de que o ‘tratamento da Rítmica’ poderia ser aplicado em bebês e que, sem lhe provocar qualquer fadiga, esse tratamento, com toda certeza, promoveria o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e físicas e, ao mesmo tempo, sua vontade e sua imaginação. Infelizmente, a instrução oferecida às futuras mamães é insuficiente no que concerne ao conhecimento das possibilidades motoras das crianças2 2 Eu sempre constatei progressos mais rápidos e mais intensos em crianças cujas mamães haviam feito aulas de rítmica [Nota original do autor]. . Muitos educadores encontram-se, assim, impossibilitados de constatar que a criança é suscetível de realizar um número muito maior de ações, e ações muito mais completas, do que se havia imaginado até o presente momento. A curiosidade natural da criança se exerce - naturalmente - sobretudo nas ações que consegue executar sozinha. Nada a interessa mais do que conhecer os recursos de que dispõe, nada a diverte mais do que explorar os diversos movimentos que cada um dos seus membros pode realizar de forma isolada, assim como os movimentos que, associados ou dissociados, constituem-se naquilo que poderíamos denominar por orquestração corporal. O ideal é promover a iniciação artística das crianças em uma idade em que elas ainda não são intelectualizadas ao ponto de analisar antes de observar, de formular antes de sentir. A harmonização de movimentos não é natural à criança. Ela não sabe nem encadear nem opor esses movimentos a não ser que a necessidade, o instinto de self defense ou a prática imposta por certas contingências criem em seu espírito e em seu corpo reações úteis. A educação tradicional é negligente por não lhe evidenciar isso. Assim, quanto tempo perdido, quantos esforços inúteis!... Pensai nas desesperadas tentativas de um pássaro ou de um inseto, a voejar dentro do cômodo em que foram aprisionados, de escapar por uma janela que se encontra completamente aberta! Incrivelmente imaginativa, a criança, no entanto, não pode realizar nem a metade de seus desejos (quando os realiza!). Ela sequer considera a possibilidade de reconciliar seus desejos com suas capacidades, abandonando ao tempo e ao acaso a responsabilidade de resolver o assunto. E, portanto, seria tão fácil, com o suporte de um conjunto de experiências vivenciadas sob a forma de brincadeiras, instruí-la enquanto se diverte, conduzi-la deixando-a acreditar que está livre e desenvolver suas forças nervosas e motoras de uma forma fluida e segura - visto que a ‘bondosa Natureza’ está longe de exercer sua bondade no domínio da educação de um modo tão completo como acreditam certos pais. Nas escolas modernas, nos ocupamos com sucesso em educar os sentidos tátil, auditivo e olfativo dos pequeninos, mas o cultivo do sentido nervoso-muscular ainda não ocupa - a meu ver - o devido lugar nos programas de ensino. A sensibilidade do aparelho locomotor poderia ser consideravelmente desenvolvida por uma educação específica que, ao mesmo tempo, estimularia o sistema nervoso, enriqueceria a gama de reflexos, organizaria os desejos e harmonizaria as ações. Trata-se de estabelecer uma benéfica cumplicidade entre a energia motriz e os atos da imaginação, transformando-os em realidade. E de criar íntimas relações dessa energia com a duração e o espaço. Quantas crianças não têm a menor consciência, por exemplo, do número de passos que precisam ser dados, em um tempo determinado, para se deslocar de um lugar a outro. Convém ensiná-las a se orientar, a estar prontas a caminhar partindo do pé esquerdo ou direito, a se deslocar com rapidez ou lentidão conforme as exigências da situação, a saltar no momento propício, a cair com leveza, a se levantar, a cair novamente, a deitar no chão com o mínimo de esforço, a marcar os tempos fortes das canções com movimentos ao mesmo tempo flexíveis e firmes, a tornar os seus membros - com facilidade - leves ou pesados, a calcular e também combinar e dissociar as ações das mãos e dos braços, de modo a realizar, sem esforço, duas tarefas de uma só vez... Essa educação fortalece a vitalidade dos pequeninos enquanto a organiza, e os prepara para as diversas tarefas que a vida lhes reserva. Ela também completa e modifica suas disposições naturais. Quantas crianças, por exemplo, aparentemente indiferentes à música, passam a amá-la graças a exercícios que tem o propósito de despertar sua sensibilidade geral, buscar a conciliação entre suas faculdades de excitação e de ordenação e permitir que as sonoridades vibrem em uníssono com o seu corpo pueril, suprimindo as resistências de todo tipo que impedem que as ondas sonoras o atravessem? É certo que no ‘jardim de crianças’, os pequeninos sentirão ainda mais rápido e de um modo mais completo as influências dos exercícios de rítmica quanto menos forem entulhados das diversas matérias que serão ensinadas mais tarde no ensino primário. Aos quatro anos, a criança é movida por uma curiosidade e um desejo de movimento muito mais intenso do que aos oito ou catorze anos. Qualquer homem que teve a oportunidade de estudar os temperamentos e as características tão diversificadas das crianças - depois de tatear às cegas pelos novos caminhos traçados pelos inúmeros métodos atuais - acaba por adotar o único princípio que deveria conduzir qualquer método de educação infantil, que é de natureza fisiológica. Quanto mais vasta e variada for a experiência corporal da criança, maior será o número de facetas, por assim dizer, sobre as quais sua imaginação infantil irá refletir. Como resultado certeiro, além de um excelente desenvolvimento físico, teremos um refinamento da inteligência, e é este último que lhe permitirá desfrutar da experiência. Quanto maior for a variedade de movimentos rítmicos aprendidos no jardim de infância, mais preparada estará a criança para desfrutar com plenitude das lições da escola. O cérebro, os músculos e os nervos deverão vibrar numa intensa corrente vital cuja função é comunicar sensações, emoções e ideias. A potência que exala essa corrente e regula o seu fluxo é o ritmo, mestre do movimento e do repouso, do som e do silêncio, da luz e da sombra, da alegria e da dor, da derrota e da vitória. Em outro capítulo, dissertarei sobre as disposições artísticas e sobre a força imaginativa dos pequeninos. Por ora, me contentarei em repetir que os exercícios de Rítmica (feitos no jardim de crianças em forma de jogos) são apropriados para preparar seus espíritos, mais tarde, a transformar os gestos habituais do cotidiano de sua infância em conjecturas de ordem superior. Essa vida tão ativa e tão diversificada é fértil em acontecimentos de todo tipo, representativos das constantes lutas que, sem que a criança perceba, se engajam em seu pequeno organismo. Desprovida dessa experiência, ela não estará em condição de ‘ritmar’, mais tarde, sua vida de homem maduro, consciente e sagaz. As crianças de ontem, de hoje, de amanhã Émile Jaques-Dalcroze3 3 ' ‘Enfants d’hier, d’aujourd’hui, de demain’, publicado em: Jaques-Dalcroze, É. Souvenir, notes e critiques. (1942). Neuchatel, CH: Victor Attinger, p. 57-64 (capítulo VIII). Tradução e notas de José Rafael Madureira e Daniela Amaral Rodrigues Nicoletti. Ainda ontem se dizia: “Elas são realmente muito pequenas para entender!” Hoje se diz: “Mas ainda assim, talvez fosse possível lhes explicar!...” Parece-me que, inicialmente, seria preciso ‘prepará-las’ para as explicações, pois, se por enquanto elas não compreendem, ao menos podem ‘sentir’ e, consequentemente, os educadores deveriam tentar transformar essas sensações pueris em sentimentos, desenvolvendo algumas delas, idealizando outras. Sim, sem dúvida a pedagogia moderna fez imensos progressos. Mas todas essas interessantes teorias, essas delicadas análises, esses sugestivos testes são inspirados por uma mentalidade do passado - enquanto a mentalidade atual está completamente deslocada - não seria conveniente, inicialmente, fortalecer e equilibrar o sistema nervoso dos pequenos, proteger o seu espírito de obsessões e vagas inquietações, assegurar-lhes a calma, a resiliência e a coragem, apaziguando seus espíritos naturalmente combativos e orientando o seu pensamento? Assim se espera, evidentemente, mas nem sempre sabemos como fazer isso... A guerra não impediu a realização de congressos em alguns lugares; zelosas associações se formaram: ‘Pro Familia, Pro Juventute’ etc., mas eu gostaria que elas se fundissem em uma única associação intitulada: ‘Pro Schola, Pro Juventute, Pro Familia’! De fato, os congressos ocupam-se, sobretudo, de temáticas especializadas, assim como as associações, mas eu adoraria que eles se agrupassem mais de perto para estabelecer íntimas relações entre a educação na escola e àquela realizada em casa, entre a formação e a terapêutica. Eu adoraria que um número considerável de personalidades generosas - médicos, psicólogos, pedagogos, pais e mães de família - se encontrasse para vislumbrar possibilidades de ‘unificação dos diversos modos de educação’ (muitas árvores na floresta, tão pouca luz!) e discutir possibilidades de fortalecer, nas crianças, faculdades de concentração e reflexão, o domínio sobre si mesmas, o controle sobre suas forças e vontades, produzindo, assim, um número maior de impulsos naturais e manifestações anímicas. Consistiria, consequentemente, em assegurar a harmonização das suas funções físicas, intelectuais e emotivas. Mas isso ‘sem discursos pomposos’, sem pretender que tenham ciência disso, dirigindo-se diretamente às forças motrizes elementares da personalidade humana. Um tipo de cumplicidade se estabeleceria entre a família e a escola, e a liberdade se estabeleceria na disciplina, tanto quanto a disciplina na liberdade. Assim, essas duas vidas estariam ‘intimamente costuradas entre si’ (segundo a expressão de Montaigne4 4 Dalcroze cultivava uma verdadeira devoção por Montaigne, sendo a obra Ensaios (1580), seu livro de cabeceira [N. dos T.]. ), vidas que se tornaram atualmente tão estrangeiras entre si, uma determinada pela vontade e a outra, pelos impulsos do temperamento. Será mesmo imprescindível que tantas áreas de estudo conservem um caráter tão tradicional? Existem, do mesmo modo, tradições que são nefastas, não é mesmo? Não é uma alegria saber que alguns jovens e audaciosos pedagogos se empenham em fazer uma boa faxina em todo esse blábláblá poeirento de doutrinas caducas? Em nossa corrida rumo ao progresso e à liberdade, são as tradições que, na maioria das vezes, atravancam todo processo. Há certos fatos, certas ideias que todo mundo aceita. Por falta de reflexão e personalidade, nós nos apoiamos em assertivas que já não têm fundamentação e praticamos certos costumes unicamente por respeito aos nossos antepassados que, por sua vez, os instituíram quando foi necessário! No campo da educação, por exemplo, é unicamente por respeito aos mais velhos, muito bem-intencionados, que submetemos as crianças, frequentemente e sem hesitar, a modos de ensino ultrapassados. Não é, no entanto, o fato de ter uma barba branca espichada até o joelho que faz os homens serem mais respeitáveis! A própria morte seria realmente tão respeitável, destruindo com tanto desvario e sem nenhuma piedade a vida mais nobre e generosa? Em suma, existem certos jovens que são mais velhos ‘por dentro’ que os ‘velhos mais antiquados’. E não é o fato de ser chamado de ‘papai’ ou ‘mamãe’ que torna o papai mais virtuoso e a mamãe menos coquete. As pessoas que merecem respeito são aquelas que realizaram feitos que foram úteis aos demais e semearam ideias novas e benfazejas. A idade, as funções e os títulos não acrescentam nada à sua personalidade. Algumas tradições retardam a marcha natural do progresso, assim como certos professores muito respeitáveis da ‘velha guarda’ causam um mal tremendo, e nem se dão conta disso. Com frequência a culpa é dos pais se os filhos não se desenvolvem adequadamente. Ou esses pais ignoram a boa maneira de educar os seus filhos, ou não sabem acompanhar as pessoas capazes de instruí-los. Por outro lado, é muito gratificante constatar que, graças à colaboração do pai e da mãe, graças ao seu controle inteligente e participativo e aos seus encorajamentos judiciosamente dosados e distribuídos, se operam, amiúde, transformações físicas e morais surpreendentes. Outras vezes, é a escola que promove esses progressos. Na verdade, a família e a escola devem - por que não? - empenhar-se para se tornar uma verdadeira ‘cooperativa’. As mamães nervosas, as orgulhosas, as apáticas, as coquetes, as distraídas, as preguiçosas, as agitadas, as repressoras ou as tagarelas exercem inocentemente uma influência deplorável sobre o desenvolvimento de seus filhos. Da mesma maneira, as professoras que são desleixadas consigo mesmas, que chegam atrasadas, que são injustas, que se contradizem, que são lamuriosas, que tagarelam como galinhas ou rugem como leões (ainda que sejam pessoas muito bem-intencionadas), não fazem ideia de quantas crianças, pouco a pouco, tomam o seu feitio. Em algumas instituições, encontra-se no programa de estudos o cabeçalho ‘jogos escolares’. Eu temo que a maior parte deles seja apenas jogos úteis, mas um tanto maçantes. Ah! Pode até ser que assim mesmo façam sucesso, pois a criança preferirá sempre uma torradinha amanteigada ou com geleia a um pão seco; mas é da natureza dela gostar mais de um jogo que ‘ela inventa’ a um jogo que lhe é imposto. Dependendo da situação, ela vai adorar imitar os gestos e ações de seus pais, os ruídos da casa, da natureza, o movimento dos animais, dos carros, dos navios ou dos aviões. Esses jogos naturais e intuitivos podem ser interrompidos por ela a qualquer momento assim que - crac! - ela perceba que já é suficiente e que ela poderá retomá-los quando lhe der na veneta. Nos jogos escolares, ela é obrigada a se concentrar por obediência ao professor, e a repetir o jogo até que tudo funcione bem, ou seja, de modo livresco, enquanto no jogo que ela mesma imagina, que surge com todo frescor, charme e alegria de sua própria vida infantil tão singular, tão agitada e audaciosa, ela joga ‘por jogar’, sem pensar em outra coisa senão no prazer em se evadir do fluxo da existência corrente para voltar a mergulhar nela quando quiser e pelo tempo que bem entender... Mas o seu espírito é tão maleável que podemos, se soubermos como, sugerir esta ou aquela maneira de jogar; podemos soprar-lhes ideias. Ela também irá, certamente, soprar as ideias delas a vocês. Durante o verão, meu querido aluno e amigo Jo Baeriswyl5 5 Baeriswyl, J. (1891-1988). Rythmicien, regente e diretor teatral nascido em Singapura e naturalizado suíço. Ainda jovem, em Genebra, conheceu Dalcroze. A experiência da Rítmica foi para ele uma revelação que inspirou o seu florescer como artista e professor [N. dos T.]. , regente de espírito lúcido, de coração indescritivelmente terno, de atuação efervescente (um dos nossos melhores diretores teatrais, não é mesmo?), meu amigo Baeriswyl instiga as crianças de sua colônia de férias a criarem diversos jogos, exigindo que elas se entreguem completamente à sua fantasia mais espontânea e que elas permitam, sem preocupação, que a disciplina dê lugar às suas ‘maluquices’. Não obstante, ele habilmente lhes mostra diversas formas de se divertir; ele as faz discutir sobre as mil maneiras de observar a natureza e de exprimi-la (“[...] quando o vento agita os galhos, o que podemos fazer para imitá-los?”). Ficamos estupefatos ao perceber nesses garotos tanta imaginação e, ao mesmo tempo, tanto discernimento e - na sua inconsciência pueril - tanta verdade e sinceridade. Para conduzi-los por um bom caminho, basta olhar para trás e se recordar das próprias elucubrações infantis. Acredito que praticamente todas as crianças até a idade de quatro a seis anos possuem as mesmas impressões da vida. As mesmas coisas lhes fazem rir ou chorar, lhes cativam ou irritam. O papel do professor consistirá em se lembrar das impressões mais características da sua primeira infância e tentar despertar impressões semelhantes nos seus alunos. Ele se empenhará em variar e dosar os jogos, em interrompê-los quando necessário, em retomá-los sem relutância. É certo que a escola não pode ser só diversão, mas convenhamos que não se deve, tampouco, ter apenas aborrecimentos o tempo todo. Ademais, pelo amor de Deus, que o professor não diga jamais aos seus alunos: “Façam como eu, queridos amiguinhos, desfrutem de minha experiência!” Imitar as experiências dos outros é um contrassenso e, muitas vezes, uma mentira. A nossa experiência só serve para nós mesmos e é um erro oferecê-la como modelo a outros seres, construídos de outra maneira, que sentem as coisas de modo diverso de nós e cujos pensamentos e sentimentos devem ser orientados, não travestidos. A influência do sol no crescimento das plantas é a mesma em todas as latitudes, mas todas reagem à mesma hora e do mesmo modo? Por outro lado, não seria uma loucura esperar que o Sol, por mais potente e generoso que seja, emane de si - conforme as direções, os votos e as circunstâncias - raios especialmente produzidos para agradar o mundo inteiro? Mas, para ser franco, devemos ressaltar que, em muitos casos, a experiência dos anciãos pode ser de bom proveito para os jovens. Primeiramente, há a vantagem de diminuir nossas incertezas para que não nos questionemos o tempo todo, e a irritação quando não sabemos adivinhar as coisas de imediato. É um delicioso travesseiro de preguiça. Mas, infelizmente, essas experiências de homens de outrora podem, por outro lado, subtrair de nós o desejo e a vontade de nos lançarmos por conta própria à descoberta - e também anular, por consequência, a alegria de experimentar e depois constatar a utilidade das nossas pesquisas. Temos muito orgulho de nossa iniciativa em introduzir um pouco de nós mesmos no ensino e por não termos recorrido aos dicionários e as brochuras intituladas O que todo o jovem deveria saber! Não é preciso dizer que devemos mais do que nunca respeitar as tradições nacionais e religiosas. Há experiências que nos foram impostas desde tempos remotos por nosso instinto de conservação. A ginástica e o esporte melhoram nosso estado corporal, fortalecem nossos músculos, intensificam nossa capacidade de impulso, ordenam mais claramente nossos movimentos e determinam as inibições necessárias às nossas potências físicas e intelectuais. Mas, por acaso existe uma super-ginástica desenvolvida com o intuito de fortalecer e multiplicar os movimentos da alma? Praticamos exercícios concebidos para enobrecer e humanizar nossos sentimentos, refinar nosso gosto artístico, harmonizar e sensibilizar nossas intuições, nossos raciocínios e nossas capacidades de ação? Nisso, a influência dos anciãos também se mostra impotente em nos aperfeiçoar, pois ela não se apoia em um ideal sobre-humano como o que inspirava a Srta. Adèle Kamm6 6 Kamm, A. (1885-1911). Escritora, religiosa e humanitarista suíça [N. dos T.]. , essa jovem heroína de Genebra, cuja história vocês, sem dúvida, devem conhecer. Aprisionada à sua cama pela paralisia, ela retirava do seu imenso amor pelos demais a força para esquecer os seus próprios sofrimentos, fazendo da sua existência profundamente dolorosa uma vida vibrante de alegria interior e exterior. É raro que certos pais façam, sem relutar, mesmo em pequenas coisas, ligeiros sacrifícios que possam ser úteis aos seus filhos. Quantos papais consideram a doçura do lar familiar apenas como um animado intermezzo, ao passo que só se sentem verdadeiramente ‘em excelente humor’ quando estão em companhia de velhos camaradas! Quantas mamães se mostram negligentes em acompanhar as tarefas de seus desafortunados rebentos para não perderem o seu five o’clock tea! Como poderemos almejar que eles sejam naturalmente capazes de ajudar os demais se para eles mesmos a ajuda foi tão rara? Como poderão, quando adolescentes, sentir vibrar em si mesmos a necessidade do sacrifício, tendo observado tão frequentemente seus pais hesitarem em sacrificar um tantinho da sua tranquilidade beata, do seu prazer e da sua independência em prol do acolhimento, de corpo e espírito, e o progresso dos seus filhos? Esse instinto familiar não deveria também animar a vida escolar? Não seria possível acrescentar às jornadas, ditas ‘das mães’ ou ‘da bondade’, etc., uma jornada dos ‘sacrifícios’? Quantas vezes eu perguntei aos aluninhos: “E então, meu pequeno, o que o papai lhe disse, por ocasião das avaliações, sobre os grandes progressos que você fez?”, e ouvia deles a resposta: “Meu papai? Ele não disse absolutamente nada!” Eu sei que existe gente absolutamente convencida de que seus filhos podem e, até mesmo devem, desenvolver-se sozinhos, s apenas seguindo os seus instintos naturais. Evidentemente isso simplifica as coisas! Um de nossos grandes pintores, o Sr. Auberjonois7 7 Auberjonois, R. V. (1872-1957). Um dos maiores pintores suíços do século XX [N. dos T.]. , que cultiva o paradoxo, me disse um dia: “Confesse, Sr. Jaques, que o importante mesmo na educação das crianças é ensiná-las a comer apropriadamente”! Alguns naturalistas nos dão o exemplo dos animais selvagens, que conseguem viver segundo seus gostos e suas necessidades, sem dispor de nenhuma educação especial. Para que seu corpo se desenvolva e seus músculos se fortaleçam, basta que subam nas árvores e rolem no mato; eles não precisam de ‘ginástica rítmica’! Acontece que nossas crianças não são animais selvagens! Ao longo da sua vida, elas deverão ter músculos desenvolvidos, mas também serem capazes de variar as trinta e seis mil maneiras de se servir deles e estabelecer relações entre seus dinamismos físicos e psíquicos. Elas também deverão saber lutar contra ações musculares inúteis, sem hesitar e quando necessário. Ademais, será preciso aprender a associar, dissociar, desordenar as ações a fim de aumentar sua potência, sua personalidade e o número de possibilidades, obedecendo assim às mesmas leis que regem as evoluções e o dinamismo do pensamento e do sentimento. Pois a vida física forma, juntamente com a vida intelectual e a vida anímica, uma trindade, cujas manifestações não são apenas livremente associadas, mas também - insisto em repetir as palavras admiráveis de Montaigne - ‘intimamente costuradas entre si’. Todos os educadores estariam de acordo comigo em afirmar que, seja qual for a área de conhecimento, é preciso, no início do ensino, despertar a curiosidade do aluno sobre a questão a ser tratada, fazer com que apreenda o sentido geral disso e sinta a sua importância, estabelecendo relações entre o tema abordado e a vida da própria criança, essa pequena vida ávida do desconhecido e do inesperado. Antes de construir uma casa, é preciso conhecer a natureza do terreno sobre o qual queremos edificá-la; antes de erguer pavimentos é preciso ter escavado o alicerce e ter estabelecido uma sólida fundação. Pois antes de ensinar as crianças a realizarem exercícios de ginástica, raramente se busca despertar nelas o desejo imperioso de se mover em todas as direções, de sentir seus movimentos - seus impulsos, suas paradas, suas vibrações e suas variações de força e de duração, - ‘na inteireza do seu ser’. Uma vez obtendo esse resultado, a própria criança reivindicará movimentos a serem executados isoladamente em cada parte do seu corpo. Será o mesmo nos estudos da arte musical que outrora era cultivada somente por predestinados, enquanto hoje, todas as crianças são, por assim dizer, condenadas a fazer música sem nunca ter manifestado a menor vontade. Se elas não conseguirem, depois de um ano de turbulentas escalas, tocar uma graciosa pecinha na festa de tia Rosalina, a mamãe proclama aos prantos que a criança não leva jeito para a música, esquecendo que ela mesma, a propósito, depois de doze anos de estudos, renunciou subitamente ao piano às vésperas do seu casamento. Pois o piano, como se sabe, é para algumas mocinhas o Ersatz8 8 Ersatz é uma palavra do vocabulário alemão que significa literalmente ‘compensação’ ou ‘substituição’. Dalcroze remete-se, ironicamente, às restrições alimentares impelidas aos soldados durante a 2ª Guerra Mundial, nas quais o açúcar era substituído pela sacarina. A sacarina é o Ersatz do açúcar, o sabor é doce, mas não é açúcar de verdade [N. dos T.]. do noivo. Não seria melhor encontrar a musicalidade no agir da criança rebelde, fazê-la pensar musicalmente, vibrar sua música interior em uníssono com a música exterior? O lema do educador deve ser ‘começar pelo começo’. Primeiramente o despertar dos sentidos, em seguida o do sentimento, e só depois disso as análises, os raciocínios e as teorias. Trata-se, primeiramente, de conduzir cada pequeno ser a viver a sua própria vida, a se exprimir à sua maneira. Ao invés disso, nós nos desdobramos para ensiná-la mil e uma coisas que são apenas uma ilusão da vida. Como disse mais ou menos Franc-Nohain9 9 Legrand, M. É. (1872-1934). Poeta e libretista francês conhecido no meio artístico como Franc-Nohain. Colaborou com Ravel e Claude Terrasse. A máxima deve ter sido extraída de sua autobiografia Dites-nous quelque chose de Franc-Nohain (Paris, 1930) [N. dos T.]. , não basta uma bela corrente de relógio para saber a hora, é preciso, além disso, ter o relógio.

Editado por

Editor-associado responsável: José Gonçalves Gondra (UERJ) E-mail: gondra.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0669-1661
Editor convidado: Ednardo Monti (UFPI) E-mail: ednardo@ufpi.edu.br https://orcid.org/0000-0003-3513-3316

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
  • Publicado
    29 Jan 2023
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