Acessibilidade / Reportar erro

NOTA SOBRE A RECEPÇÃO DE PIERRE BOURDIEU NO BRASIL

NOTES ON PIERRE BOURDIEU'S RECEPTION IN BRAZIL

Resumo

Neste artigo, Renato Ortiz recorda sua primeiras leituras da obra do autor na década de 1970 quando estudava na França. Observa que no Brasil a recepção de Bourdieu não se fez sem controvérsias, entre outros motivos, devido aos debates sobre sociologia da ordem e sociologia do conflito, nos quais se identificava a sociologia de Bourdieu à primeira. Conta de sua relação com Florestan Fernandes para a organização e publicação da coletânea sobre Bourdieu na Coleção Grandes Cientistas Sociais pela Ática. Depois dos anos de 1980, entretanto, a obra do sociólogo francês é cada vez mais difundida nas ciências sociais brasileiras, contribuindo para isso, tanto a modernização e autonomização das instituições científicas brasileiras quanto a apropriação pelas ciências sociais de nova concepção de poder, nos anos de regime democrático, a qual permitiu a distinção entre política e poder.

Palavras-chave
Pierre Bourdieu; Recepção controversa; Ciências sociais brasileiras; Poder e política; Campo intelectual

Abstract

In this article, Renato Ortiz remembers his first readings of Pierre Bourdieu's in the 1970's when he was studying in France. According to Ortiz the reception of Bourdieu's work in Brazil did not foreclose controversies, among other reasons, because it was identified with a sociology of order rather than a sociology of conflict. Ortiz collaborated with Florestan Fernandes to edit a collection of Bourdieu's articles in a series Coleção Grandes Cientistas Sociais published by Ática. After the 1980's the work of the French sociologist is widely disseminated among Brazilian social scientists both because of the modernization and autonomization of Brazilian scientific institutions and the articulation of a new conception of power, with the introduction of the democratic regime, which allowed for a distinction between power and politics.

Keywords
Pierre Bourdieu; Controversial reception; Social Sciences in Brazil; Power and politics; Intellectual field

As ideias viajam para portos distintos e carregam consigo o fundamento dos conceitos e a materialidade da história. Entre o ponto de partida e de chegada alguma coisa se perde, outras são acrescentadas no local de acolhida. A noção de recepção busca dar conta desse hiato entre o texto e a leitura, o discurso e sua decodificação. Talvez fosse mais correto dizer letramento (literacy). A escrita é algo estático, acabado, diferente da sensação de movimento que letramento evoca. O termo nos remete ao contexto e aos usos da leitura. Ler Bourdieu no Brasil não é o mesmo que fazê-lo na França. Meu primeiro contato com seus escritos foi em Vincennes, por volta de 1970, durante meu curso de graduação em Sociologia. Não me refiro à Université de Paris VIII, forma institucional que a revestia. Vincennes desapareceu da memória educacional e política francesas, o trauma dos eventos políticos a relegou ao esquecimento. Ela tinha sido criada em 1969, logo após a rebelião de maio de 1968, e abrigava uma cultura contestatória de esquerda. Paris VIII sobreviveu às intempéries do tempo como instituição de ensino de pouco prestígio, tendo sido deslocada para a periferia da cidade (Saint Denis), onde amarga uma existência opaca. As notícias que eu tinha de Bourdieu vinham primeiro de meus professores. François Chatelêt, nos seus cursos de Filosofia, referia-se de maneira elogiosa a Les héritiers (1964); meu professor de Semiologia, o argentino Luis Prieto, o conhecia pessoalmente; nas aulas muitas vezes seu nome surgia ao lado de Passeron, e suas simpatias pendiam sempre para este último; por fim, pelo próprio Passeron, de quem fui aluno. Le métier de sociologue (1968) foi um livro importante na minha formação. Para um jovem iniciante em ciências sociais ele continha um conjunto de ensinamentos que nos fornecia um horizonte sedutor e bem delimitado do trabalho intelectual. A ideia de autonomia do conhecimento, de vigilância epistemológica, assim como a crítica ao empiricismo, particularmente norte-americano, pareciam-me fecundas e promissoras. Mas Bourdieu não existia ainda como uma figura singular, autor cuja idiossincrasia esgotava-se em si mesmo. Apesar de ter publicado vários textos individualmente - os trabalhos sobre a Argélia e um conjunto de artigos -, seu reconhecimento público estava ainda vinculado a outras pessoas. Os franceses tinham por hábito referir-se a Bourdieu-Passeron como se tratasse de uma dupla indissociável. Isso se devia à repercussão de Les héritiers e La reproduction (1970), e aplicava-se ainda a Le métier de sociologue , embora o texto incorporasse um autor a mais, Chamboredon. Na verdade muitos de seus trabalhos foram realizados em conjunto, como L'amour de l'art (1966), escrito em parceria com Alain Darbel e Dominique Schnapper. É somente a partir de 1975, com a fundação dos Actes de la Recherche en Sciences Sociales , que ele vai se distanciar de uma escrita mais coletiva. Seu nome se conjuga agora no singular, é um traço intransferível: a eleição para o Collège de France irá, definitivamente, consagrá-lo.

No Brasil as coisas não se passam exatamente desta maneira. A associação Bourdieu-Passeron existe, mas não é predominante. Os primeiros textos traduzidos levam sua assinatura pessoal e dizem respeito ao campo intelectual e à temática da juventude, mas são partes de livros coordenados por outras pessoas (Pouillon et al., 1968Pouillon, Jean et al. (1968). Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar.; Brito, 1968Brito, Sulamita de (org.). (1968). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar.). O texto organizado por Sergio Miceli (Bourdieu, 1974Bourdieu, Pierre. (1974). A economia das trocas simbólicas. Organizado por Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva.) não foge à regra e é também composto por um conjunto de artigos. Mas ele possui um mérito em relação aos anteriores: trata-se de uma coletânea editada em forma de livro, seu objetivo era apresentar ao leitor brasileiro um amplo panorama dos interesses e da metodologia do autor. Sua entrada entre nós se faz, portanto, no singular, e a associação com outros nomes é tênue (A reprodução foi traduzida em 1975). Les héritiers e Le métier de sociologue serão conhecidos do grande público tardiamente, depois de seu nome estar consagrado pela chancela do Collège de France. Não obstante, a repercussão de seus escritos é pequena; na década de 1970 são poucos os textos disponíveis e raros os autores brasileiros que o utilizam no âmbito das ciências sociais. Recordo-me quando propus a Florestan Fernandes a inclusão de seu nome na coleção Grandes Cientistas Sociais, pois ele era um autor ainda bastante desconhecido. Creio que a repercussão de seus escritos, embora limitada, fazia-se sobretudo no domínio da educação. A tradução de La reproduction teve um impacto relativo entre alguns setores desta área. O livro adquiriu certo prestígio entre os que viam com restrição o pensamento de Paulo Freyre. Pode-se dizer que as duas perspectivas eram inteiramente antagônicas. Freyre pensava a educação como um espaço de libertação, toda a sua experiência pedagógica ancorava-se nessa dimensão. A escola deveria estimular os alunos a superarem suas dificuldades ou, como se costumava dizer, "ler o mundo para transformá-lo". A ideia de conscientização do "oprimido" encontrava-se na base de sua metodologia de ensino. Era necessário que os alunos-sujeitos tomassem consciência da sociedade que os envolvia para poderem apreciá-la criticamente. Eles chegariam à escola com uma cultura anterior que não seria melhor nem pior do que a do professor, e durante o aprendizado seriam estimulados a apreender "em conjunto". Não caberia ao ensino apenas transmitir um saber consolidado, mas despertar no estudante um espírito criativo e engajado. La reproduction caminhava na direção oposta. A crítica visava à manutenção das desigualdades sociais a partir da escola, vista como uma espécie de "aparelho ideológico do Estado". O indivíduo seria modelado por elementos sociais internalizados no habitus de cada um. Isso lhe daria pouca liberdade de escolha, tratava-se de se transmitir uma cultura determinada por uma instituição socialmente legítima. Havia, assim, uma forte resistência em relação à proposta teórica dos autores.

Não se pode esquecer o contexto no qual tudo isso se passa: a presença da ditadura militar. O clima intelectual é influenciado pelo autoritarismo existente, ele marca as ciências sociais, assim como a aclimatação das ideias "estrangeiras" a tal situação repressiva. A restrição que se faz aos escritos de Bourdieu, ou seja, à versão que enfatiza os aspectos da reprodução social, de uma certa maneira aplica-se também a outros autores. Um exemplo: a Escola de Frankfurt. Os escritos de seus membros são introduzidos entre nós no final dos anos 1960 e a revista Tempo Brasileiro tem um papel importante na sua tradução e disseminação. No entanto, dificilmente um texto como "O iluminismo como mistificação das massas" poderia prosperar no Brasil em tempos de censura e repressão. A Escola de Frankfurt tinha como objetivo a crítica do capitalismo avançado, isto é, a forma que ele havia adquirido em alguns países europeus e nos Estados Unidos. Desconfiava-se da modernidade, ela era percebida na sua realização perversa e desencantada, consolidando um novo tipo de dominação. A visão de Adorno e Horkheimer deixava pouco espaço, praticamente nenhum, para a atuação política no interior dos partidos ou das associações sindicais. Por isso a esfera da arte encerrava para eles uma dimensão metafórica, era o espaço de "alienação" possível num mundo dominado pela racionalidade tecnocrática e as regras da mercadoria (o conceito de alienação possui, neste caso, uma inflexão positiva). A arte seria a única escapatória aos tentáculos de uma opressão que contaminaria todos os poros da sociedade. A questão política encontrava-se, portanto, diluída e qualquer ação neste sentido seria inútil ou necessariamente recuperada pelo "sistema" como um todo. Esse tipo de diagnóstico tinha poucas chances de prosperar no quadro de uma polarização ideológica na qual a violência e o arbítrio predominavam. Não é casual que a recepção ao pensamento frankfurtiano tenha sido pouco entusiasta; foi preciso esperar um certo tempo para que ele se convertesse em categorias analíticas para o entendimento de aspectos da realidade brasileira (por exemplo: indústria cultural). O clima político favorecia o acolhimento de algumas ideias, mas prejudicava outras. Gramsci também foi introduzido neste momento, porém sua aceitação foi inteiramente distinta, afinal sua perspectiva estava voltada para o tema da revolução e da transformação social, a política habitava o âmago de suas preocupações. Na área da educação, na qual o livro de Bourdieu e Passeron era mais conhecido, Gramsci teve um êxito excepcional. Seus textos não eram apenas lidos com atenção, mas um conjunto de pesquisas foram realizadas a partir de sua concepção teórica. A questão da reprodução, mesmo fundamentando-se na crítica à desigualdade social, deparava-se com um terreno que lhe era adverso.

Pode-se acrescentar a esse argumento um outro. Durante a ditadura militar, particularmente nos anos 1960 e 1970, a vida intelectual encontrava-se cindida do ponto de vista político. Nesse contexto, diversas correntes do marxismo faziam-se presentes. Não se deve imaginar que elas dominavam o debate intelectual, certamente as coisas não se passaram assim. Um olhar retrospectivo mais sereno sobre o período irá discernir uma diversidade de pensamentos em concorrência. Entretanto, o regime autoritário funcionava como uma espécie de caixa de ressonância e, para certos grupos, ampliava a magnitude do debate. Creio que isso se passou com o althusserianismo - sua chegada ao Brasil foi bastante controversa. São inúmeros os textos publicados contra tal tendência teórica: José Arthur Giannoti (Contra Althusser , 1968), Caio Prado Jr. (O marxismo de Louis Althusser , 1971), Fernando Henrique Cardoso (Althusserianismo ou marxismo ?, 1972), Carlos Nelson Coutinho (O estruturalismo e a miséria da razão , 1972) e vários outros. Minha impressão é que havia certo exagero neste tipo de reação, afinal a presença de Althusser nada tinha de substancial, ela limitava-se a pequenos agrupamentos de intelectuais engajados numa reavaliação do pensamento de Marx. Por outro lado, sabendo que entre o lugar de origem das ideias e sua viagem para outros portos havia uma incongruência, eu percebia que a apropriação do pensamento althusseriano também não coincidia com minha experiência anterior. No âmbito da discussão francesa a contribuição de Althusser não se resumia à sua pretensão em construir um marxismo "verdadeiramente" científico. Seus textos faziam parte de todo um debate no qual se encontravam perspectivas diversas, Lévi-Strauss na Antropologia, Saussure na Linguística, Roland Barthes na Semiologia, Gaston Bachelard na Filosofia. A leitura pressupunha um campo múltiplo de sentido no qual o marxismo era uma das configurações possíveis. De qualquer maneira, cabe ressaltar no contexto brasileiro o vínculo que se estabelece entre La reprodution e as propostas de Althusser (na França, Bourdieu não é visto como um althusseriano. Há inúmeros pontos que o afastam dessa corrente de pensamento, desde sua relação com o marxismo à contribuição de outros autores como Durkheim e Weber à sua concepção teórica). Há, primeiro, a tese central do livro. Pode-se argumentar que na perspectiva althusseriana a escola seria apenas um "aparelho ideológico de Estado", enquanto para Bourdieu e Passeron sua eficácia dependeria de como o social inscreve-se no habitus individual. Por isso o conceito de mediação é central para os autores. Permanece, entretanto, uma certa convergência entre essas duas concepções. Mas a aproximação com Althusser manifesta-se também na forma como o livro é escrito. Ele se estrutura a partir de afirmações genéricas - as teses -, comentadas em seguida em seções separadas, os escólios, artifício geralmente utilizado em Filosofia e particularmente por Althusser em diversos de seus trabalhos. O fato é que este vínculo reforçou uma certa resistência em relação aos trabalhos de Bourdieu entre nós.

A proposta de colaboração com Florestan Fernandes foi o desdobramento de uma longa correspondência que havíamos mantido até então. Logo ao chegar ao Brasil eu lhe enviei uma cópia de minha tese de doutorado em francês. Como antigo aluno de Bastide, pareceu-me apropriado fazê-lo. Ele leu e gostou, foi quando começamos a nos corresponder com uma certa frequência. Tomei por hábito enviar-lhe vários textos nos quais estava trabalhando, fiz isso com os ensaios sobre Gramsci publicados em A consciência fragmentada . Não o conhecia pessoalmente até que recebi o convite para participar da Coleção Grandes Cientistas Sociais (1977). Viajei a São Paulo, eu vivia em Belo Horizonte, era professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e acertamos as coisas. Florestan queria que eu organizasse dois livros, um sobre Franz Fanon, outro sobre Georges Balandier. Atendi o seu pedido desde que fizesse uma pequena modificação. O livro sobre Fanon nunca foi editado, mesmo eu tendo trabalhado sobre a seleção dos textos e escrito uma longa introdução a seu respeito; na verdade, a coleção tinha uma série de problemas com a Editora Ática, voltada para a publicação de livros didáticos, e terminou sendo cancelada. Quanto a Balandier, sugeri-lhe substituir por Pierre Bourdieu. Parecia-me importante torná-lo mais conhecido entre o público brasileiro. Nessa época ele já havia fundado uma revista de grande prestígio internacional, mas ainda não havia publicado La distinction , e ingressou no Collège de France um pouco depois. Entrei em contato por carta e ele gentilmente me enviou por correio um conjunto de artigos, além de um exemplar de Esquisse d'une théorie de la pratique . A escolha dos textos foi feita a partir da amostra sugerida pelo próprio Bourdieu. O livro (Bourdieu, 1983Bourdieu, Pierre. (1983). Pierre Bourdieu: Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. São Paulo: Ática (Coleção Grandes Cientistas Sociais).) tardou a ser publicado devido a problemas editoriais (a jovem que se ocupava da coleção, um tanto inconformada, fez questão de incluir na introdução a data que eu lhe havia remetido o texto para publicação: novembro de 1978).

Florestan Fernandes não tinha uma visão muito positiva de Bourdieu, foi necessário argumentar várias vezes para convencê-lo da importância de seus escritos. Logo percebi que não se tratava de uma resistência meramente pessoal, ela resultava do ambiente intelectual reinante na época. No âmbito da Sociologia havia uma oposição clara entre dois tipos de perspectivas teóricas: sociologia da ordem versus sociologia do conflito. Essa divisão dicotômica (nunca consegui entender o seu sentido) encontrava-se estampada nos currículos dos cursos de graduação. Ordem e conflito eram matérias distintas, ensinadas como individualidades contrapostas uma à outra. A sociologia da ordem identificava-se ao estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons, seu representante máximo, e a ela associava-se o funcionalismo de Robert Merton e seus seguidores. Em princípio essa corrente de pensamento teria uma concepção holística na qual a sociedade seria constituída por partes, cada uma com funções específicas no intuito de promover a estabilidade do sistema social. Sua contra-cara seria um pensamento voltado para o entendimento dos conflitos, ou seja, os mecanismo que colocavam em xeque essa mesma estabilidade. No caso do Brasil, e eu diria da América Latina, havia uma forte reação à hegemonia americana nas ciências sociais, em que o tema da mudança era decisivo no processo de modernização desses países "periféricos". A problemática do conflito, às vezes associada à luta de classes, terminava por prevalecer num ambiente de disputa ideológica. Bourdieu era visto como representante da sociologia da ordem. Essa amálgama parecia-me estranha. Afinal, sua proposta era justamente de se contrapor à hegemonia norte-americana no terreno sociológico (um ponto em comum com os latino-americanos). Isso encontrava-se claramente esboçado na longa introdução a Le métier de sociologue. Quanto ao funcionalismo, este encontrava-se ausente de suas análises. A sociedade não é, para ele, uma totalidade cujas partes se integram através da realização de suas funções parciais. A noção de habitus visava justamente estabelecer uma mediação entre o sujeito e a dimensão coletiva partilhada pelos outros, projeto anteriormente empreendido por Sartre na sua tentativa de aproximar o marxismo do existencialismo. A associação com a temática da ordem e do conflito talvez pudesse ser explicada pela presença do estruturalismo, ou melhor, a controvérsia que o envolvia. De fato, sua valorização no cenário intelectual francês tinha implicações teóricas. Recordo-me que Sartre, ao fazer uma resenha crítica do belo livro de Foucault, Les mots et les choses (1966), dizia que ele tinha razão em analisar os diferentes epistemes cognitivos em distintos momentos históricos. Mas a questão que lhe intrigava era: como se passava de um episteme para outro? Ou seja, como introduzir a história no seio de uma análise de tipo estruturalista? No entanto, não devemos confundir as coisas. O debate em torno do estruturalismo e da história (Lévi-Strauss, respondendo a Sartre, havia escrito todo um capítulo de seu livro O pensamento selvagem ) não era homólogo à questão da "mudança", tal como a entendíamos no contexto de modernização brasileira e latino-americana. Tampouco o método estruturalista resumia-se à noção de ordem. Os escritos de Bourdieu têm, certamente, algo de "estruturalista", talvez fosse mais correto dizer que ao incorporar a problemática das classificações ele recuperava uma parte dos ensinamentos de Durkheim, posteriormente valorizados pela corrente estruturalista em Antropologia. Entretanto, em momento algum isso era sinônimo de uma sociologia da ordem em contraposição a uma suposta sociologia do conflito (sua análise era uma crítica da ordem estabelecida). Tal antinomia somente fazia sentido em solo brasileiro, terreno no qual as ideias eram aclimatadas e investidas de outro significado.

A partir dos anos 1980 os textos de Bourdieu serão cada vez mais difundidos no Brasil: traduções de livros, organizações de coletâneas e, sobretudo, a utilização de sua metodologia de trabalho na compreensão de questões da realidade brasileira. A meu ver existem dois aspectos que merecem ser sublinhados para o seu êxito entre nós. Primeiro, o processo de institucionalização das ciências sociais. A criação dos cursos de pós-graduação, assim como as regras de funcionamento da vida acadêmica transformam-se radicalmente a partir do final dos anos 1960. Isso terá implicações no processo de autonomização do conhecimento. A importância e o prestígio dos cientistas sociais recai agora na avaliação entre os pares, distanciando-se do tipo de intelectual engajado do qual o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) era talvez a referência principal. A noção de "campo" surge como elemento analítico para dar conta da história das ciências sociais no Brasil. Essa Sociologia "mais acadêmica", ou, se preferirem, "mais institucional", torna-se cada vez mais prevalente; Bourdieu nos fornecia as ferramentas teóricas para a sua compreensão. Mas não se deve perder de vista o outro lado da moeda, isto é, a legitimação desta nova ordem acadêmica. Ironicamente, o hiato entre a viagem e as ideias irá novamente se manifestar. Desde seus primeiros escritos sobre o campo intelectual Pierre Bourdieu exercita um olhar crítico em relação ao conhecimento sociológico. Posteriormente isso ficará ainda mais explícito em textos como Méditations pascaliennes (1997) e Science de la science et reflexivité (2001). Dentro de sua perspectiva analítica a autonomia do pensamento sempre se encontra ameaçada: pela ideologia, pelo senso comum, pelo saber publicamente consagrado na grande mídia. No entanto, a organização interna do mundo acadêmico cria também novos obstáculos para a sua emancipação. A mera existência de um espaço intelectual separado de outras instâncias não lhe confere um estatuto "científico". A busca pelo conhecimento é uma espécie de inconformismo constante que encontra barreiras inclusive no âmbito universitário. Por isso uma publicação como Actes de la Recherche en Sciences Sociales dedica diversos artigos críticos ao tema da institucionalização do saber acadêmico: disputa entre os agentes do campo intelectual para manter a ordem estabelecida das ideias; os critérios quantitativos de avaliação científica; a emergência da noção de citação; a classificação das revistas etc. Sintomaticamente, essa dimensão controversa permaneceu ausente dos estudos brasileiros, o importante era captar o movimento de institucionalização: criação das associações nacionais de pós-graduação, revitalização ou emergência das associações disciplinares, desenvolvimento das agências de financiamento de pesquisa. Diante da modernização das instituições científicas brasileiras, a desconfiança de Bourdieu em relação às amarras acadêmicas tornou-se efêmera, ausente.

O segundo elemento ao qual eu me referia diz respeito à problemática do poder. Bourdieu (também Foucault) fazia parte de uma geração para a qual ela se colocava de outra forma. Não eram os elementos "conscientes" que lhe interessavam. A tradição marxista e fenomenológica, particularmente Sartre, tinha por hábito trabalhar as relações de poder em termos de "consciência". Consciência de classe, diante do processo de alienação da classe operária, ou consciência de si mesmo, ao se considerar a ideia de engajamento. O projeto sartreano de literatura engajada partia da noção de uma "tomada de consciência" do escritor diante das injustiças que ele presenciava no mundo. Para convencer o outro ele devia, antes de mais nada, compreender a si mesmo e sua relação conflituosa com a realidade envolvente. Essa ênfase na "tomada de consciência" era também partilhada pelos marxistas, daí a importância da luta ideológica; essa era a maneira pela qual os indivíduos poderiam ser esclarecidos das armadilhas de uma "falsa consciência". É muito possível que no ambiente intelectual francês o estruturalismo tenha contribuído para uma mudança desta perspectiva teórica. Ao privilegiar a "estrutura" ele afastava-se dos fenômenos que se situavam na superfície do real, ou seja, da "consciência". Neste sentido, as relações de poder deveriam ser analisadas numa esfera mais ampla de sentido. Dito de outra maneira, elas não se confundiriam com a política. Esse é um traço que marca os estudos de Bourdieu. O habitus é um mecanismo que atua de maneira imperceptível, não se trata de um comportamento no qual o indivíduo escolhe essa ou aquela direção em função da existência de determinados valores. Pode-se dizer o mesmo das classificações do gosto, elas não se apresentam no nível da consciência, tratam-se de formas classificatórias que antecedem aquilo que é classificado. O poder se aninha no interstício desses "lugares" inacessíveis. Num primeiro momento, quando Bourdieu é introduzido no Brasil, a convergência entre poder e política se impõe. Resulta disso o mal-entendido em relação à sua recepção. No confronto da luta política contra a ditadura militar o nível da "consciência" prevalece, era difícil distinguir poder de política. Porém, com o passar do tempo, sobretudo com a democratização da sociedade brasileira, percebe-se cada vez mais que esses termos não são propriamente homólogos. A leitura crítica das relações de poder pode agora efetuar-se sem os constrangimentos anteriores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bourdieu, Pierre. (1983). Pierre Bourdieu: Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. São Paulo: Ática (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
  • Bourdieu, Pierre. (1974). A economia das trocas simbólicas Organizado por Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva.
  • Brito, Sulamita de (org.). (1968). Sociologia da juventude Rio de Janeiro: Zahar.
  • Pouillon, Jean et al. (1968). Problemas do estruturalismo Rio de Janeiro: Zahar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2012
  • Aceito
    04 Maio 2013
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com