Acessibilidade / Reportar erro

O LUGAR DAS IDEIAS: ROBERTO SCHWARZ E SEUS CRÍTICOS1 1 Agradeço a leitura atenta e os comentários críticos de um parecerista anônimo, de Rubens Ricupero e de André Botelho, e a possibilidade de discutir versões anteriores do trabalho na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade de Campinas (UNICAMP). Não é preciso dizer que as imperfeições do trabalho são de minha inteira responsabilidade.

THE PLACE OF IDEAS: ROBERTO SCHWARZ AND HIS CRITICS

Resumo

Tem sido destacado como os estudos de Roberto Schwarz a respeito de Machado de Assis assumem um ponto de vista dialético, que chama a atenção para as contradições presentes na formação social brasileira. Tal tipo de explicação provocou e continua a provocar intensa controvérsia. Sustento que essa interpretação do crítico literário foi inspirada por certos trabalhos realizados pelas ciências sociais brasileiras. Indo além da visão de Schwarz a respeito do seu país, procuro, no artigo, enfatizar como certas tensões alimentam sua própria análise do romancista oitocentista. Mais importante, num momento em que parece perder-se de vista boa parte das contradições das quais são feitas as sociedades, inclusive a brasileira, defendo que uma análise como essa continua a oferecer vantagens em relação a outras explicações que lidam com ideias.

Palavras-chave
Roberto Schwarz; Ideias; Brasil; Contradições; Ciências sociais

Abstract

It has been pointed out how the studies of Roberto Schwarz about Machado de Assis have a dialectical point of view, which emphasizes contradictions present in Brazilian society. This analysis has stimulated controversy. I defend that such a literary criticism was inspired by some works of Brazilian social sciences. Beyond the critic´s interpretation of his country, the article aims to show how tensions are present in his own interpretation of the Nineteenth century novelist. More important, I defend that this type of explanation regarding ideas has advantages, what is particularly the case in a moment where the contradictions, which make up societies, are no longer being perceived.

Keywords; Roberto Schwarz; Ideas; Brazil; Contradictions; Social sciences

O trabalho de Roberto Schwarz a respeito de Machado de Assis tem algumas fontes principais. Além de desenvolver sua investigação a partir da interpretação de Antonio Candido sobre a literatura brasileira, nutre-se, como revela no Prefácio do seu segundo livro sobre o romancista oitocentista, Um mestre na periferia do capitalismo, de uma tradição contraditória identificada com Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno e de uma "interpretação do Brasil" produzida por alguns trabalhos de ciências sociais realizados na Universidade de São Paulo (USP), especialmente por jovens professores e alunos que se reuniram, no final da década de 1950 e início da década de 1960, para estudarem O capital.2 2 Tradição contraditória, tanto em razão de que as formulações dos autores que a constituem frequentemente se chocam entre si, como devido à sua visada dialética. Sobre a relação de Schwarz com uma certa crítica literária marxista, ver Almeida (2007). Sobre o "Seminário do Capital", ver Rodrigues (2012) e Schwarz (1999).

Significativamente, a análise do crítico mais jovem sobre Machado começa onde o crítico mais velho terminou seu estudo sobre a formação da literatura brasileira. Estabelecido finalmente um sistema literário no Brasil, com a presença de produtores (escritores), de linguagem e de público (leitores), tornava-se possível aparecer o escritor capaz de internalizar na sua obra as condições da sociedade que a produziu.

Já no que se refere às duas outras grandes influências de nosso autor, apesar da inspiração marxista comum a ambas, sua principal realização é saber articulá-las. De certa crítica literária marxista deriva principalmente a sugestão de prestar atenção à relação entre "forma literária e processo social".3 3 Esclarece Schwarz: "a junção de romance e sociedade se faz através da forma. Esta é entendida como um princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos" (Schwarz, 1989: 141). Sobre a forma em Schwarz, ver Waizbort (2007). O marxismo uspiano inspira, por sua vez, o projeto de entender a particularidade brasileira, ligada a um quadro maior, por assim dizer mundial, como indica a aparente estranha combinação entre "capitalismo e escravidão" sugerida pelo título de outro trabalho saído do seminário de O capital. Portanto, para o crítico brasileiro não se trata simplesmente de aplicar Lukács, Benjamin, Brecht ou Adorno ao Brasil. Como deixa claro numa entrevista a respeito do primeiro autor, seu projeto é mesmo o oposto: "a preocupação de Lukács é básica no meu trabalho - como termo diferencial. Acho muito produtivo explicar em que sentido a sua construção é inadequada para a América Latina" (Schwarz, 2001-2002Schwarz, Roberto. (2001-2002). Entrevista com Roberto Schwarz, por Eva Corredor. Literatura e Sociedade, 2, p. 14-39.: 21). Melhor, busca inspiração nos procedimentos utilizados por alguns críticos marxistas nos seus estudos a respeito do desenvolvimento do romance na Europa para entender os feitos e as agruras do romance numa formação social bastante distinta, a brasileira. Nesse sentido, a realização de Schwarz é análoga ao feito que destaca em Machado de Assis, o de saber bem combinar o que se pode chamar de uma forma europeia com a matéria brasileira.

Refletindo essas balizas teóricas, os escritos do crítico sobre o romancista assumem, como indica Paulo Arantes (1992)Arantes, Paulo. (1992). Sentimento de dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra., um ponto de vista dialético, que enfatiza as contradições presentes na formação social do país.4 4 O presente trabalho se concentra em dois livros do crítico sobre Machado, Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, devido à evidente unidade entre eles e por serem a realização mais acabada de seu projeto de pesquisa. Por outro lado, como aponta John Gledson, entre os dois livros não deixam de haver "genuínas mudanças de ênfase, que brotam de suas fontes" (Gledson, 2006: 270), em particular, em razão de que na obra de 1977 se estuda o processo que leva às Memórias póstumas de Brás Cubas, ao passo que na obra de 1990 se analisa o próprio romance. Consequentemente, o primeiro livro é mais diacrônico e o segundo mais sincrônico. Tal tipo de análise provocou e continua a provocar intensa controvérsia.

Procuro, com base nessas referências, chamar a atenção no artigo para os autores, especialmente os cientistas sociais, que, segundo Schwarz, mais o inspiraram e, ligado a isso, as polêmicas suscitadas por suas teses. Indo além da visão do crítico a respeito do Brasil, interessa-me destacar como certas tensões alimentam sua própria análise de Machado. Mais importante, num momento em que parece se perder de vista boa parte das contradições das quais são feitas as sociedades, inclusive a brasileira, acredito que uma interpretação como esta continua a oferecer vantagens em relação a outras explicações que lidam com ideias.

INFLUÊNCIAS E CONTROVÉRSIAS

A relação da investigação de Schwarz com a pesquisa anterior de Candido é direta. Formação da literatura brasileira se encerra em Machado, autor estudado em Ao vencedor as batatas e em Um mestre na periferia do capitalismo. Mais especificamente, o primeiro livro se fecha com a análise de "Instinto de nacionalidade" (1873), artigo que considera como o ponto alto atingido pela crítica romântica brasileira.5 5 Candido confessa, no Prefácio de seu livro, a "falha" de não ter incluído o Machado romântico, mas a justifica devido à unidade subjacente à obra do escritor. De maneira significativa, o ensaio apresenta o programa que permitiria que valores universais encontrassem a realidade local, preocupação que orienta os trabalhos dos dois críticos do século XX.

Schwarz (1999)Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras. interpreta Formação da literatura brasileira dentro de um quadro maior, de trabalhos brasileiros sobre a "formação".6 6 Paulo Arantes (1997) destaca, por sua vez, o grande número de livros importantes sobre o Brasil com a palavra "formação" no título: Formação do Brasil contemporâneo (1942), Formação econômica do Brasil (1958), Formação da literatura brasileira (1959), Formação política do Brasil (1967). Além disso, nota como outros trabalhos relevantes recorrem à palavra no subtítulo: Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1933), Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958). Finalmente, percebe que um título como Raízes do Brasil (1936) aponta para o parentesco com o problema. Indica como, de maneira geral, a questão subjacente a eles é a passagem de uma situação de subordinação colonial para a aspirada autonomia nacional. Nessa referência, segundo defendera Caio Prado Jr., se trataria de estabelecer um quadro social mais integrado, questão que Candido traduz na formação de um sistema literário com a presença de produtores (escritores), linguagem e público (leitores).

Em termos mais específicos, "a história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura" (Candido, 1993Candido, Antonio. (1993). O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades.: 25) se revelaria em dois "momentos decisivos": o Arcadismo e o Romantismo. Tal perspectiva, destaca Schwarz, afasta o estudo de Candido de uma simples investigação evolutiva da literatura brasileira para a busca, em termos menos evidentes, da articulação entre escolas literárias muito distintas. Mais importante, seria um elemento extraliterário, a Independência, que possibilitaria a aproximação entre o universalismo do Arcadismo e o localismo do Romantismo, o que refletiria o próprio caráter "empenhado" de nossa literatura.

Em outra orientação, Schwarz indica as diferenças do livro de Candido em relação a outros que trataram do problema da "formação" no Brasil. A principal delas é que o crítico lida com um processo que se completa com o estabelecimento, em meados dos anos 1870, de um sistema literário.7 7 Por conta disso, o elemento normativo em Formação da literatura brasileira é menos acentuado, apesar de não inteiramente ausente. As demais formações, com especial peso para a econômica, não chegam a se realizar plenamente. Em outras palavras, apesar de não se chegar a criar uma nação integrada no Brasil, estabelece-se uma literatura brasileira. Em termos ainda mais fortes, é possível argumentar que os dois processos estão relacionados, não sendo mero acaso que os romances maduros de Machado apareçam quando o sistema literário brasileiro já está formado. A realização de Machado é precisamente a de internalizar na sua obra as condições de uma sociedade mal formada. Portanto, ainda em outras palavras, pode-se considerar que a formação se realiza na forma (Ricupero, 2008Ricupero, Bernardo. (2008). Da formação à forma. Ainda "as ideias fora do lugar". Lua Nova, 73, p. 59-69.).8 8 Possibilidade, de certo modo, já indicada pelo jovem Lukács, quando considera que, no momento em que se passa a ter forma, haveria "a conciliação do exterior e do interior" (Lukács, 1974: 21).

No que se refere às influências exercidas pelos professores de ciências sociais de Schwarz, ela é melhor percebida num ensaio específico, "As ideias fora do lugar". Pode-se destacar, em particular, o impacto exercido na sua interpretação sobre os romances de Machado da análise de Maria Sylvia Carvalho a respeito dos homens livres pobres na região da "antiga civilização do café", o Vale do Paraíba, e dos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso sobre as relações entre centro e periferia capitalista.9 9 Schwarz, em entrevista, confessa: "Na verdade, o que possibilitou fazer 'As ideias fora do lugar' foi a combinação de Fernando Henrique e Maria Sylvia" (Schwarz, 2008: 149). Os estudos dos dois sociólogos compartilham uma análise da sociedade brasileira que enfatiza seus aspectos contraditórios, podendo mesmo ser considerados complementares (Arantes, 1992Arantes, Paulo. (1992). Sentimento de dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.). No entanto, ao tratarem das tensões subjacentes aos fenômenos que estudam, enfatizam diferentes dimensões, em orientações que, por vezes, se chocam.10 10 É de se assinalar que a autora de Homens livres na ordem escravocrata não participou do Seminário de O capital. Não por acaso, é possível perceber diferenças entre sua análise e a dos outros integrantes da cadeira de Sociologia I da USP. Mais especificamente, Carvalho Franco radicaliza a "interpretação do Brasil" originalmente elaborada por Caio Prado Jr. e desenvolvida pelo marxismo uspiano, que entende a colonização do Brasil no quadro da formação do capitalismo mundial, avaliando nossa formação social como capitalista desde o início da sua história registrada. De maneira complementar, se é comum a Florestan Fernandes e a seus assistentes o questionamento da oposição entre o moderno e o arcaico, Carvalho Franco ressalta, ainda mais, a imbricação entre os dois elementos. Dando sequência a seu projeto de pesquisa, na sua tese de livre docência, O moderno e suas diferenças, reconstrói como a sociologia da modernização, inspirada na leitura equivocada de Weber por Parsons, estabeleceria uma oposição rígida e abstrata entre o que chama de sociedades tradicional e moderna. Ambas seriam supostamente entendidas como tipos ideais, mas apenas no sentido generalizador e, consequentemente, classificatório do conceito, que o afastaria da preocupação original do seu criador com os aspectos genético-históricos presentes nos diferentes fenômenos sociais. Assim, a oposição entre sociedades tradicional e moderna reatualizaria a dualidade imaginada por Tonnies e, incorporada por Weber, entre comunidade e sociedade que, por sua vez, teria sua origem no contraste ressaltado pelo antropólogo envolucionista Lewis Morgan entre societas e civitas. Sobre as diferenças mais amplas de Carvalho Franco com a cadeira de Sociologia I, ver Botelho (2012) e Cazes (2013).

"As ideias fora do lugar" é o primeiro capítulo do primeiro livro de Schwarz a respeito de Machado, Ao vencedor as batatas, que foi publicado em 1977, tendo sido defendido, no ano anterior, como tese de doutorado na Universidade de Paris III, Sorbonne.11 11 Waizbort aponta para o andamento lukacsiano do livro: "composto de três capítulos, o primeiro destaca os pressupostos históricos e ideológicos, armando a situação para a interpretação literária que vem a seguir; o segundo trata dos precedentes, a importação do romance como forma e sua figuração por Alencar; o terceiro, por fim, trata de Machado, o verdadeiro objeto anunciado, a forma que se quer entender" (Waizbort, 2002: 120). Apesar dos trabalhos de Schwarz a respeito de Machado serem melhor compreendidos lidos em conjunto, como é recomendado explicitamente no início de Um mestre na periferia do capitalismo, mas já era indicado no começo e no final de Ao vencedor as batatas, mediante a promessa de se continuar o estudo, o ensaio "As ideias fora do lugar" costuma ser entendido de maneira autônoma. Tal abordagem se deve, em boa medida, ao fato de que o ensaio tenha sido publicado anteriormente, em 1972 e 1973, como artigo, em francês, em L'Homme et la Societé e em português nos Estudos CEBRAP.12 12 A publicação do artigo antes do livro sobre Machado se explica, em parte, pela intenção de se fazer um ajuste de contas com a esquerda hegemônica no Brasil antes do golpe de 1964, aliada ao populismo e identificada com o projeto nacional-desenvolvimentista. Nessa motivação, diversos trabalhos críticos a essa orientação foram publicados depois do golpe. Além de tudo, há uma certa continuidade na crítica dessa esquerda nacionalista às "ideias importadas" e um argumento anterior, mais marcadamente conservador. Também, em grande parte, em razão de sua história editorial o trabalho provocou intensa controvérsia.

Mais especificamente, os críticos costumam tomar o título, "As ideias fora do lugar", como a tese e não como o problema do qual parte a análise. Assim, apesar das reiteradas explicações de Schwarz, não se costuma perceber que o autor lida com um sentimento de despropósito bastante difuso no século XIX e posteriormente em relação à vida ideológica brasileira.13 13 No próprio ensaio em questão sugere: "partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideias estavam fora do centro, em relação ao seu uso europeu" (Schwarz, 1992: 24). Já em "Nacional por subtração", afirma: "brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experiência tem sido um dado formador de nossa reflexão crítica desde os tempos da Independência" (Schwarz, 1989: 29). Ainda em "Discutindo com Alfredo Bosi", rebate: "a mencionada convicção da excentricidade e do deslocamento local das ideias modernas não é uma invenção dos historiadores do século XX, cuja supressão nos pudesse devolver uma visão mais exata das coisas. Pelo contrário, sem prejuízo do caráter ideológico, aquele sentimento de despropósito é justamente o fenômeno que se deveria explicar em sua necessidade histórica, pois foi uma presença notória no Brasil oitocentista" (Schwarz. 1999: 82). Por fim, mais recentemente, esclarece: "o mal entendido principal nasceu do próprio título. Este último teve sorte, pois se tornou conhecido, mas também atrapalhou bastante, pois fixou a discussão num falso problema, ou no problema que o ensaio procurava superar" (Schwarz, 2012: 65). Em termos mais sistemáticos, tal avaliação a respeito do lugar das ideias no Brasil é desenvolvida por autores conservadores oitocentistas, como Paulino José Soares de Sousa, o visconde do Uruguai, além de Silvio Romero, Oliveira Vianna, escritores próximos ao Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB), como Alberto Guerreiro Ramos e Wanderley Guilherme dos Santos e pode ser identificada com o que Gildo Marçal Brandão (2007)Brandão, Gildo Marçal. (2007). Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: HUCITEC. chama da linhagem do idealismo orgânico do pensamento político-social brasileiro.14 14 Brandão, na sua busca das principais famílias intelectuais brasileiras, parte da oposição sugerida por Oliveira Vianna (1939), entre idealismo orgânico e idealismo utópico ou constitucional, procurando neutralizar a carga normativa presente na formulação original, o que é indicado pela não utilização do adjetivo "utópico" na referência à segunda linhagem.

De maneira mais precisa, costuma-se entender o liberalismo, em especial, como uma "ideia fora do lugar". Tal caracterização é derivada do quadro político surgido da Independência brasileira, em que o Estado nacional que se tentou montar tomou emprestadas instituições do liberalismo europeu, ao passo que manteve da colônia a estrutura socioeconômica baseada na grande exploração em que o trabalho escravo produz bens para o mercado externo. Mas enquanto os idealistas orgânicos enfocam o primeiro polo da equação, considerando inadequadas as instituições liberais, Schwarz enfatiza a diferença entre a estrutura socioeconômica brasileira e a dos países que nos servem de modelo.

A partir daí, contrasta o significado assumido pelo liberalismo no Brasil com a Europa. O liberalismo, no seu contexto original, onde trabalho livre e igualdade perante à lei correspondiam às aparências, encobrindo a exploração, funcionaria de fato como uma ideologia, ao passo que, na nova situação, em que prevaleceriam as relações materiais de força da escravidão, que deixariam a exploração às claras, ele passaria a ser o que Schwarz chama de ideologia de segundo grau. Mais especificamente, o liberalismo seria incorporado às práticas e ideias que regulavam as relações dos homens livres entre si, espaço onde transcorreria a vida ideológica, já que, naturalmente, os escravos estavam excluídos dela. As relações entre senhores e dependentes seriam marcadas, como mostrara Homens livres na ordem escravocrata, pelo favor, até porque essa seria uma forma de eles se diferenciarem dos escravos. Nesse quadro, o liberalismo, que proclama o trabalho livre e a igualdade jurídica, se combinaria com a dominação pessoal, o paternalismo, o clientelismo e o favor, alimentados pela escravidão. Consequentemente, ocorreria uma inversão: proclamações originalmente universalistas passariam a defender interesses particularistas, o que caracterizaria uma verdadeira comédia ideológica, em que "com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc." (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 18).15 15 Em Um mestre na periferia do capitalismo já não se fala mais em "ideias fora do lugar", mas numa "ambivalência ideológica das elites brasileiras" (Schwarz, 1990: 41). No entanto, a contradição é basicamente a mesma: nossas elites desejariam ser parte do Ocidente burguês, sem prejuízo de se beneficiar de um dos últimos sistemas escravocratas do mesmo Ocidente.

Por outro lado, a referência ao liberalismo não deixaria de ter base real, já que o país estaria ligado, à sua maneira, à ordem burguesa que o estabelecera. No entanto, a forma de o Brasil se integrar ao capitalismo mundial seria muito particular. Na verdade, seria a escravidão que forneceria os braços para a lavoura que, segundo David Ricardo e as crenças da época, nos garantiria um lugar na divisão internacional do trabalho. Por mais paradoxal que possa parecer, seria uma instituição bárbara como a escravidão que nos abriria o caminho para a civilização. Verdadeira personificação de tal situação é o personagem do cunhado Cotrim em Memórias póstumas de Brás Cubas, que "abriga na sua pessoa um comerciante respeitável e um contrabandista flagelador de africanos" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 181). Os resquícios coloniais não podiam ser facilmente associados ao atraso, ao passo que o novo, relacionado com a nação independente, não seria necessariamente moderno. Na verdade, o lugar que nos cabia na divisão internacional do trabalho, reforçaria aspectos vindos da colônia. Em outras palavras, se criaria uma situação propícia ao que Schwarz (1990)Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras. chama de "desenvolvimento moderno do atraso".

Mesmo assim, o lugar do Brasil no capitalismo internacional estabeleceria uma posição privilegiada para a compreensão desse modo de produção no seu conjunto. Aqui, Schwarz retoma as sugestões de O capital no capítulo sobre "A teoria moderna da colonização", em que Marx nota que o grande mérito de E. G. Wakefield não teria sido "ter descoberto algo novo sobre as colônias, mas ter descoberto nas colônias a verdade sobre as condições capitalistas da metrópole" (Marx, 1982: 256): a escravidão sans phrase do Novo Mundo revelando o que seria realmente o trabalho livre, forma de escravidão disfarçada que prevalecia na metrópole. Como já indicara a literatura russa, as normas e os progressos burgueses seriam levados, num novo ambiente, a realizar papéis deslocados e opostos ao que afirmavam em seu contexto original, indicando seus aspectos mais grotescos e ridículos.16 16 Segundo Lukács, falando da Rússia, "num país pouco evoluído, onde os inconvenientes e os conflitos não puderam atingir um desenvolvimento completo na civilização da época, 'improvisadamente' surgem obras de arte que revelam com sua maior intensidade os problemas atuais àquela época, descobrindo com poder criador mesmo os mais vertiginosos abismos que revelam um conjunto, até então incompleto, e nunca mais atingido, dos problemas morais e ideais daquela época" (Lukács, 1965: 145). O desencontro entre ideias e lugar estimularia, portanto, tanto resultados cômicos como uma perspectiva crítica. Num outro registro, se entenderia por que Machado de Assis seria um "mestre na periferia do capitalismo".

Exemplo de como Schwarz entende o lugar do universalismo e do localismo no chamado cânone literário é um ensaio recente, "Leituras em competição". Nele, parte da recepção mais recente de Machado no centro capitalista, em que finalmente passa a ser reconhecido como um dos grandes romancistas da literatura universal, o que traz, entretanto, a contrapartida do "desaparecimento da particularidade histórica" (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. (2012). Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras.: 22) que alimentou a sua obra. O crítico serve-se, em especial, de uma crônica pouco conhecida do escritor, "O punhal de Martinha", que retoma o tema clássico narrado por Tito Lívio do suicídio de Lucrécia, motivado pelo ultraje de Sexto Tarquínio. Reelabora-o, com base numa notícia de jornal, no ambiente baiano da cidade de Cachoeira, onde Martinha, de fato, fura João Limeira em razão de suas importunações. Nesse jogo, a brasileira, que se vinga com as próprias mãos, ou melhor, punhal, aparentemente leva vantagem sobre a romana, que recorre a pai e a marido para consumar a desforra. A narração, em prosa clássica pastichada, é feita por um literato do Rio de Janeiro que, no final da crônica, proclama: "Mas não falemos mais em Martinha", isto é, do Brasil, o que, a essa altura, já se tornou uma impossibilidade. Em outras palavras, o lugar do universalismo e do localismo é desafiado, seja na sua referência histórica, assim como geográfica e mesmo literária. Há um denominador cultural comum que possibilita aproximar Lucrécia e Martinha, sendo sugerido que a romana não está necessariamente situada em posição privilegiada diante da brasileira. Mais importante, Martinha torna possível dessacralizar Lucrécia, o que abre caminho para uma visão crítica em relação ao universalismo e ao localismo. Em outras palavras, da periferia se pode questionar o que é tomado como pressuposto no centro.

No entanto, os críticos de Schwarz voltam suas baterias, desde a década de 1970, não tanto contra sua interpretação da literatura, mas para a discussão que faz quanto ao papel do liberalismo no Brasil oitocentista. Em termos gerais, defendem que o argumento não faz sentido, já que se certas ideias, no caso liberais, não fossem funcionais, ou melhor, adequadas ao Brasil, não haveria como persistirem. Afirmam, em especial, que o liberalismo não é incompatível com a escravidão, como provariam os escritos de alguns de seus principais representantes, como John Locke, Adam Smith, Jean Baptiste Say.

Nessa linha, tanto Carlos Nelson Coutinho (1976Coutinho, Carlos Nelson. (1976). Cultura brasileira: um intimismo deslocado, à sombra do poder. Cadernos de Debate, 1, p. 65-67.; 1990)Coutinho, Carlos Nelson. (1990). Cultura e sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros. como Alfredo Bosi (1992)Bosi, Alfredo. (1992). Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras., sugerem que entre as ideias e o lugar apareceriam, como uma espécie de filtro, os interesses das classes presentes na sociedade. Mais especificamente, interesses de classe fariam com que certas ideias se tornassem funcionais ou adequadas a determinadas sociedades. Os dois autores também coincidem ao buscarem relacionar a tese das "ideias fora do lugar" a um determinado contexto histórico.

Coutinho argumenta que o desencontro entre ideias e ambiente social tenderia a desaparecer, quando com a abolição da escravidão e a industrialização o Brasil se torna efetivamente capitalista: "as ideias importadas vão cada vez mais 'entrando em seu lugar'" (Coutinho, 1990Coutinho, Carlos Nelson. (1990). Cultura e sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros.: 41). A partir daí, a estrutura de classes da sociedade brasileira se tornaria, de maneira geral, análoga à estrutura de classe de outras sociedades capitalistas. Consequentemente, as contradições ideológicas brasileiras se aproximariam das contradições ideológicas da cultura universal.

Bosi, por sua vez, identifica a análise de Schwarz a respeito das tensões presentes no liberalismo brasileiro com o final do Império, período de crise em que Machado produziu parte considerável de sua obra e em que setores da classe dominante se identificariam com a norma liberal moderna ao mesmo tempo que procurariam racionalizar o uso do trabalho escravo.17 17 Afirma Bosi: "O tipo de mentalidade que Machado de Assis ironiza - e autoironiza enquanto narrador - é o de parte da classe dominante que, ainda nos últimos anos do regime imperial, sustentou in abstracto a norma liberal moderna, ao mesmo tempo que racionaliza o uso do trabalho escravo, seu maior suporte econômico e político. Nesse contexto, o liberalismo clássico alardeado, é visto de fora, um despropósito, mas nem por isso deixa de ter consequências para o cotidiano da burguesia nacional. Esta é, em síntese, a hipótese que Roberto Schwarz propôs e testou com felicidade em seu estudo sobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas" (Bosi, 1992: 397). No entanto, em sentido diverso, ao longo da maior parte do século XIX, a combinação entre escravidão e liberalismo faria sentido para a parcela mais considerável dos grandes proprietários rurais brasileiros: "uma proposta moderna e democrática é que teria sido [...] uma ideia extemporânea" (Bosi, 1992Bosi, Alfredo. (1992). Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras.: 202). Já na Independência, o liberalismo, diferente do que teria ocorrido na Inglaterra e na França, não teria se identificado com interesses de classe em conflito, mas com as reivindicações dos colonos que se chocavam com os projetos recolonizadores da metrópole. Em resumo, comércio livre poderia muito bem conviver com trabalho escravo. Em termos mais amplos, onde prevaleceu um sistema de plantation voltado para a produção agroexportadora, como nas Antilhas, no velho Sul dos EUA e no Brasil, o liberalismo teria se combinado com a escravidão.

Ao responder a Bosi, Schwarz (1999)Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras. admite que o argumento de que interesses de classe funcionariam como filtro entre ideias e lugar representa um avanço intelectual, indicando que o segundo elemento da sua fórmula não é inteiramente passivo. Por outro lado, defende que o sentimento de despropósito indicado pela tese das "ideias fora do lugar" não desaparece. Mais sério, ao se enfatizar a dimensão local, como sugerem Coutinho e Bosi, se poderia perder de vista a referência ao capitalismo internacional, na qual o trabalho escravo não deixa de ser uma anomalia, mesmo que funcional.

Mas entre as críticas a Schwarz, a de maior repercussão foi ironicamente a de uma de suas maiores influências, Carvalho Franco. A autora de Homens livres na ordem escravocrata destaca na tese das "ideias fora do lugar" uma suposta relação de exterioridade entre as primeiras, originárias do centro, e a periferia capitalista. A fonte de tal postura proviria da teoria da dependência, que entenderia a relação entre as antigas metrópoles e as colônias, os polos centrais e periféricos do capitalismo, como de oposição e mesmo de incompatibilidade, prevalecendo neles até modos de produção distintos. A partir daí, se entenderia a relação entre o centro e a periferia capitalista como de casualidade; o que seria produzido na primeira situação se refletiria na segunda, inclusive no plano ideológico. A socióloga defende, em contraste, que centro e periferia fariam parte do mesmo modo de produção, independente de favorecerem momentos diversos no processo de produção e reprodução do capital. No mais importante, contudo, se equivaleriam, já que carregariam "o conteúdo essencial - o lucro - que percorre todas as determinações" (Carvalho Franco, 1976Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1976). As ideias estão no lugar. Cadernos de Debate, 1, p. 61-64.: 621) do capitalismo.18 18 Já em O moderno e suas diferenças, defendera: "a constatação permanecerá insatisfatória e conduzirá a erro, se dela se passar à noção de que isto se reporta a dois tipos diferentes de sociedade, em oposição: uma escravista e tradicional e outra capitalista e moderna" (Carvalho Franco, 1970: 118-119). Ou seja, sugere que o contraste entre centro e periferia capitalista mantém a visão dualista presente na formulação a respeito das sociedades tradicional e moderna.

Ao vincular a tese das "ideias fora do lugar" à teoria da dependência e caracterizar tal tipo de análise como dualista, fica mais claro o que inspira a crítica de Carvalho Franco. Seu alvo principal é, na verdade, Fernando Henrique Cardoso, um dos principais nomes da teoria da dependência e outra importante influência de Schwarz.

Por outro lado, como vimos, os dois ex-assistentes de Florestan Fernandes na cadeira de Sociologia I da USP coincidem, em termos mais profundos, ao destacarem a presença de contradições na sociedade brasileira.19 19 Também é sugestivo como trabalham com fenômenos aparentemente marginais, como o os homens livres pobres do Vale do Paraíba e a escravidão do Rio Grande do Sul, mas que acreditam serem capazes de iluminar a totalidade da experiência da sociedade escravista brasileira. No entanto, diferenças importantes aparecem na maneira como entendem essas contradições. Enquanto Cardoso destaca as tensões, que podem abrir caminho para a mudança, Carvalho Franco ressalta nelas os ajustes e as possibilidades de conservação.

Tais diferenças de ênfase já se faziam sentir nas teses de doutorado dos dois sociólogos, o que, naturalmente, tinha igualmente relação com os objetos aos quais se dedicaram.20 20 O título original da tese de Cardoso, que foi publicada como Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, era Formação e desintegração da sociedade de castas. O negro na ordem escravocrata do Rio Grande do Sul. O título da tese de Carvalho Franco, que foi publicada como Homens livres na ordem escravocrata, era Homens livres na antiga civilização do café. Assim, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, ao mesmo tempo em que assinala que a escravidão no Rio Grande do Sul, assim como, de maneira mais geral, a escravidão moderna, objetivaria "a realização de lucros no mercado" (Cardoso, 1977: 270), defende que, no momento de sua crise, se evidenciaria que "as relações de produção a partir das quais se visava intensificar a produção capitalista mercantil, impediram o pleno desenvolvimento do capitalismo" (Cardoso, 1977: 275), abrindo caminho para a superação dessas relações. Em sentido oposto, Homens livres na ordem escravocrata esclarece que

o conceito inclusivo tomado por referência neste trabalho é o de capitalismo por mais imprecisa que esteja, ainda, sua figura no sistema colonial. Apesar disso, essa abordagem permite acentuar a peculiaridade das relações de dominação e de produção definidas no Brasil e afastar a ideia de que teria se implantado aqui, um sistema essencialmente diferente do núcleo europeu, com a reatualizarão de formas pregressas de organização social (Carvalho Franco, 1983Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1983). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós Livraria Editora.: 14-15).

Isto é, apesar dos dois sociólogos coincidentemente chamarem a atenção para aspectos contraditórios dos fenômenos que estudam, Cardoso destaca o choque que ocorre entre capitalismo e escravidão, ao passo que Carvalho Franco enfatiza como o capitalismo se articula com o que é comumente considerado como tradicional.21 21 Essas avaliações não deixam de ter implicações políticas. Dessa maneira, já em Dependência e desenvolvimento na América Latina, Cardoso e Faletto afirmaram que a persistência ou não dos regimes autoritários que se instalaram durante a década de 1960 na América Latina, seria função da ação dos diferentes atores políticos, dependendo "tanto dos seus êxitos econômicos e do sucesso que tiverem na sua reconstrução social, como do caráter, do tipo de ação e do êxito de movimentos de oposição" (Cardoso & Faletto, 1988: 160). De maneira sugestiva, há quem destaque a continuidade entre a análise sociológica a respeito do capitalismo dependente e associado e a presidência de Cardoso. Ver, especialmente, Fiori (2001). Carvalho Franco, em contraste, assumiu, depois da redemocratização, uma atitude muito crítica diante dos novos governos, especialmente os de Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva.

ACOMODAÇÕES E CONTRADIÇÕES

Schwarz, ao lidar com as tensões brasileiras, também oscila na explicação, ora chamando a atenção para a acomodação, ora para as contradições presentes em nossa sociedade e história. Tem inclusive consciência de operar nos dois planos: "dizíamos que em Iaiá Garcia as relações entre paternalismo e interesses materiais se normalizam, o que torna mais uno o livro e é sinal de maturidade. Contudo, noutros momentos deste estudo insistimos na importância que tinha em nossa vida ideológica a citada contradição, que dadas as circunstâncias, era de caráter por assim dizer insolúvel". Mais para a frente, tenta resolver a tensão: "talvez seja possível dizer que havia contradição, mas que ela não expressou um antagonismo entre classes, ou antes que expressam duas formas de um mesmo poder, que aos poucos e sempre conforme a sua conveniência passava de uma para outra, sem que a dissolução dos vínculos tradicionais tivesse caráter subversivo" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 120). Ou seja, defende que, no contexto do Brasil escravista, devido à ausência de uma sociedade de classes e dos conflitos que a caracterizam, a acomodação prevaleceria diante das contradições.

Mesmo no argumento das "ideias fora do lugar", que evidentemente destaca o aspecto contraditório de nossa realidade social, há uma dimensão de acomodação. Em especial, a avaliação de que o liberalismo se transformaria no Brasil numa "ideologia de segundo grau", que corresponderia ao horizonte mental dos homens livres, acentua mais o aspecto da acomodação na relação entre referências vindas do centro e a periferia capitalista. Chega, assim, a identificar o liberalismo transformado no Brasil em ideologia de segundo grau a um ornamento utilizado pelos homens livres, o que não criaria problemas significativos para a ordem social existente.

Por outro lado, na análise que Schwarz realiza de obras literárias particulares o aspecto contraditório costuma ser decisivo. Nota, por exemplo, ao falar dos primeiros romances brasileiros que "a nossa imaginação fixara-se numa forma cujos pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se alterados" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 29). Nos romances urbanos de José de Alencar, em particular, se evidenciaria como forma literária e matéria ideológica não chegam a se combinar de maneira adequada. Ou melhor, haveria desencontro entre o molde europeu e a cor local. Dessa maneira, em livros como Senhora, o tradicional choque entre o sentimento e o dinheiro, do qual se nutre o realismo europeu, se resolveria, ou melhor, não se resolveria no meio paternalista brasileiro. Nessa referência, valores burgueses não se chocariam com o paternalismo, mas se combinariam, acriticamente, de forma análoga ao que ocorreria com o liberalismo transformado em ideologia de segundo grau no Brasil. Por outro lado, em termos literários, "estes pontos fracos são, justamente, fortes numa outra perspectiva" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 31), já que indicariam o desencontro com o qual Machado teria sabido bem lidar, ao transformá-lo em problema para seus romances.

Na direção oposta, em que o foco não estava tanto no molde europeu, os primeiros românticos brasileiros tomaram como seu principal objetivo incorporar a cor local. Nessa orientação, muitos deles deram ênfase à natureza americana e a seu habitante original, o índio. Solução, em alguma medida, similar seria a dos naturalistas, contemporâneos de Machado, que prestaram atenção especialmente às classes inferiores e a regiões afastadas, identificando-as com a verdadeira nação. Mas nesses casos, o meio brasileiro seria incorporado acriticamente e de maneira externa nas obras literárias.

Ainda outro tipo de literatura aparecida no Império seria "uma pequena tradição [...] cômica, despretensiosa, mas de irreverência notável" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 223), de difícil classificação seguindo os parâmetros da literatura ocidental e que se identificaria com as obras de um Martins Pena e de um Manuel Antônio de Almeida. Mesmo que, diferente dos românticos, não tivessem a pretensão de estabelecerem a literatura brasileira, teriam sido capazes de internalizar, de maneira mais profunda, em seus trabalhos certas condições da sociedade a partir da qual suas obras surgiram. Como indicara Candido, em estudo sobre Memórias de um sargento de milícias, a dinâmica do livro se daria com base na "dialética da ordem e da desordem" (Candido, 1993Candido, Antonio. (1993). Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia.: 36), o que corresponderia à própria situação dos homens livres pobres nele retratados que, para além do ambiente rural, tratado por Carvalho Franco, também se moveriam entre esses dois polos no Rio de Janeiro do "tempo do rei".22 22 Significativamente, Schwarz caracteriza "Dialética da malandragem", de Candido, que foi originalmente publicado em 1970 na Revista do IEB, como "o primeiro estudo literário propriamente dialético" (Schwarz, 1999: 129) feito no Brasil. Tal dialética da ordem e da desordem serviria, dessa maneira, tanto para organizar os dados da realidade social como os dados do romance; sendo tanto social como literária. Em outras palavras, ela funcionaria como um princípio mediador que tornaria possível a junção entre sociedade e romance, isto é, corresponderia à forma.

Também os primeiros romances de Machado assumem o ponto de vista do homem livre pobre que, de fato, o escritor tinha sido. A postura deles seria, porém, conformista, não indo além do paternalismo. No máximo, se desejaria reformá-lo, tornando-o menos despótico, o que é, no fundo, uma impossibilidade. Na verdade, o não questionamento do arbítrio paternalista correspondia à própria situação dos dependentes, que tinham que se submeter aos caprichos dos senhores.

Schwarz nota que significativamente os personagens dos romances da primeira fase de Machado seriam vistos principalmente como "pais", "filhos", "maridos" e "mulheres", independente das ocupações às quais se dedicavam para além do âmbito doméstico. Os próprios romances como que não ultrapassariam os limites da família, apenas o último dessa fase, Iaiá Garcia, atingindo a dimensão mais alargada da parentela.23 23 A análise a respeito de Iaiá Garcia é particularmente interessante, ao apontar que nesse romance aparecem os limites da visão do primeiro Machado a respeito do paternalismo. Isto é, a avaliação é de desencanto, mas ainda incapaz de ser verdadeiramente crítica diante do paternalismo. Dessa maneira, nos romances machadianos da primeira fase: "o paternalismo está presente em toda parte e de várias maneiras" funcionando mesmo como "mola profunda do enredo e da organização formal" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 119).

Não deixa de ser revelador que quando Machado escreve seus primeiros romances já se afastou do liberalismo da sua juventude, o que, nota Schwarz, o poupa de ilusões, mas também afasta de sua visada o mundo contemporâneo. Mesmo assim, o crítico destaca que "a tensão entre o paternalismo e o sentimento burguês não é somente conflito interior às personagens. Muitas vezes, ela é também hesitação técnica e ideológica do narrador" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 127). É esse contraste entre paternalismo e sentimento burguês que faz com que já em Iaiá Garcia o arbítrio, ainda que mal desenvolvido, seja o princípio formal do romance. Ou, em termos mais fortes, é a tensão entre a dependência pessoal e o igualitarismo burguês que torna o próprio capricho dos senhores visível.

De maneira complementar, Schwarz nota que a importância atribuída por Machado ao arbítrio contrasta com os romances do realismo europeu, que dão grande peso à ação deliberada de seus protagonistas, podendo ser quase caricaturizados como "'grandes projetos de um moço'" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 140). Na orientação do romancista brasileiro, por seu turno, tem lugar de destaque o inconsciente, que começava a ser valorizado na sua época. Ainda mais importante, chega a colocar em questão os próprios pressupostos da ordem social e da obra literária, como procurarão fazer posteriormente alguns escritores identificados com as vanguardas artísticas.24 24 Diz Adorno sobre Samuel Beckett: "Em razão de ter se tornado absoluto o feitiço da realidade externa sobre seus súditos e suas reações, a obra de arte só pode se opor a esse feitiço sendo assimilada a ele. […] Esse mundo de imagens desgastadas, avariadas, é a marca negativa do mundo administrado. Nesse ponto Beckett é realista" (Adorno, 1997: 31). É indicado, dessa maneira, que a permanente tensão entre as normas burguesas, com as quais Brás não deixa de se identificar, e o meio paternalista, que não consegue superar, é esteticamente um dos pontos mais interessantes das Memórias. Em contraste com a o indivíduo decidido presente, por exemplo, nos romances de Balzac, há no personagem central desse romance de Machado um sentimento de permanente conflito interior, que coloca em questão seus pressupostos ideológicos.

A descontinuidade seria a outra face do capricho, não sendo possível aos personagens, numa situação de dependência pessoal, assumir uma trajetória coerente. Ela não seria própria só dos homens livres pobres, submetidos ao arbítrio, mas também dos senhores, que o realizariam. A partir daí, se destaca, mais uma vez de maneira decisiva, o contraste entre centro e periferia capitalista: "na relação entre ricos e dependentes, diversamente do exemplo clássico, a classe totalizante é a primeira".25 25 O que não quer dizer que os senhores tinham mais consciência do que os dependentes de como funcionava a totalidade da sociedade escravista brasileira. Na verdade, podiam se movimentar (objetiva e subjetivamente) muito mais livremente entre o arbítrio pessoal e a norma burguesa, o que possibilitaria revelar melhor o que era a totalidade dessa sociedade. O problema da "consciência possível" é decisivo em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. No livro, Cardoso argumenta que tanto senhores como escravos eram incapazes de apreender a totalidade da sociedade rio-grandense. Portanto, "só depois de virar casaca Machado abarcaria o conjunto desse processo" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades.: 149).

Seria precisamente isso que ocorreria nas Memórias. Nesse romance, que marca o início da segunda fase de Machado, o narrador passa a ser o senhor. A partir daí, o autor evidenciaria a "desfaçatez de classe" desse grupo social e deixaria de ter esperanças de reformá-lo. Tratar-se-ia, portanto, de "um livro escrito contra o seu pseudo-autor" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 78).

Tal realização, ironicamente, daria um novo sentido à busca de românticos e naturalistas pela incorporação da cor local. Machado, em contraste com seus predecessores e contemporâneos, criaria uma espécie de "pitoresco moral", ligado à própria estrutura da sociedade brasileira. Essa internalização das condições sociais na obra literária corresponderia verdadeiramente ao "sentimento íntimo de nacionalidade", que proclamara como crítico ser o objetivo que o escritor brasileiro deveria perseguir.26 26 Como é defendido no artigo: "o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço" (Machado de Assis, 1997: 804). Em outras palavras, a realização do autor de Memórias se relacionaria, sobretudo, em dar expressão literária à experiência pela qual o Brasil passava desde a Independência, em que, como vimos, a nova ordem política, amparada no liberalismo, convivera com a manutenção da estrutura socioeconômica herdada da colônia. É possível, portanto, afirmar que o romance na última fase do escritor toma forma própria, em confronto com a matéria brasileira, e que, portanto, no limite, as ideias deixam de estar fora do lugar. Em termos fortes, se poderia recorrer a uma metáfora da economia e se falar até de um caso bem-sucedido de substituição cultural de importações.27 27 Inspiro-me aqui em Brandão (2007), que toma o termo "substituição cultural de importações" de Sérgio Miceli (1979). Mas enquanto o segundo autor ressalta os aspectos "infraestruturais" de tal processo, como formação de público leitor, mercado editorial etc., o primeiro enfatiza sua dimensão, por assim dizer, "superestrutural", em termos da destilação de estilos, teorias, conceitos etc.

Numa referência mais especificamente formal, o segredo das Memórias estaria na volubilidade do narrador, que se relacionaria com a própria descontinuidade que caracterizaria a situação de boa parte dos grupos sociais do Brasil oitocentista.28 28 Haveria, contudo, diferentes significados para o narrador volúvel que, de acordo com Schwarz, "é técnica literária, é sinal de futilidade humana, é indício de especificidade histórica, e é uma representação em ato do movimento da consciência, cujos repentes vão compondo o mundo vasto, mas sempre interior" (Schwarz, 1990: 183, ênfase do autor). Ligada à sua perspectiva materialista, ao crítico interessa especialmente como a instabilidade vertiginosa de juízo de Brás Cubas expressaria a desfaçatez de classe do proprietário brasileiro. Por outro lado, ao se acentuar a descontinuidade, como que se apagaria de vista a estrutura social. Para além das aparências, tanto senhores como homens livres pobres no Brasil se moveriam entre o que parecia ser mais esclarecido no seu século, a norma burguesa, como entre as práticas da dominação pessoal associadas à escravidão. É significativo como a norma burguesa está presente em tal volubilidade, mesmo que de modo negativo. Ela seria tão real quanto o arbítrio pessoal, para o qual chamaria a atenção. A volubilidade carregaria, além do mais, toques de desrespeito com a complementar satisfação própria, que alimentam e esclarecem, em tom brechtiano, o inadmissível e a afronta tão próprios ao narrador das Memórias.

Em termos literários, é interessante como Machado, segundo ele mesmo confessou, retirou o procedimento da volubilidade do narrador de Lawrence Sterne, isto é, de um romancista do século XVIII.29 29 Mesmo assim, como indica Alfonso Bernardelli, já Tristan Shandy pode, no limite, ser tomado como um trabalho "vanguardista": "Sterne mostra a extrema maleabilidade e expansibilidade do modelo formal chamado 'romance', a sua essencial vocação mimética do real em todos os seus aspectos objetivos e subjetivos". Assim, na sua "atitude onívora" anteciparia, de certa maneira, "a dissolução pós-naturalista ou até pós-moderna da 'estrutura' do romance oitocentista" (Bernardelli, 2002: 368). Melhor, num momento em que a literatura buscava a objetividade em escritores tão diferentes como Flaubert, Zola e Henry James, o romancista brasileiro iria aparentemente contra a sua época, ressaltando o peso do subjetivo em seus romances da fase madura. Tal desenvolvimento literário, de acordo com boa parte da crítica marxista, refletiria o próprio desfecho da Revolução de 1848, quando, segundo a interpretação de O 18 Brumário, o heroísmo burguês, que contra a aristocracia produzira a Revolução de 1789, diante do desafio representado pelo proletariado, cederia definitivamente lugar ao prosaico.30 30 Afirma Marx: "uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots, seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás da mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política" (Marx, 1986: 18). Por outro lado, essa volubilidade corresponderia às condições da sociedade escravista brasileira, especialmente no que se refere aos senhores.

Ou seja, as técnicas narrativas utilizadas nas Memórias também serviriam à caracterização de um tipo social específico, ligado à realidade social do Brasil, preocupação que se relacionaria com o projeto realista. Por outro lado, "a nota de provocação, os apelos ao leitor" produziriam "uma situação compatível àquela ocasionada pelo... objetivismo flaubertiano" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 173). Talvez ainda mais significativo, Schwarz sugere a existência de uma espécie de volubilidade objetiva: "seria enganoso falar em subjetivismo, pois [...] a volubilidade é de todos" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 190) ou, ao menos, dos que não eram escravos. Portanto, as Memórias seriam uma obra realista, mesmo que fizesse uso de soluções literárias antirrealistas. O contraste maior seria com o naturalismo, com o qual, de alguma maneira, Machado poderia ser aproximado devido ao detalhe das suas descrições. Mas enquanto a explicação na escola literária do final do século XIX teria base física, cientificista, nos romances de nosso autor a perspectiva seria social.

Também os personagens de Memórias, assim como já ocorria com Iaiá Garcia, corresponderiam à estrutura da sociedade brasileira, em que se combinariam o elemento burguês com o colonial. A escravidão seria central, apesar de raramente estar explicitada. Da mesma forma que em Homens livres na ordem escravocrata, o trabalho servil seria como uma presença ausente; tem papel decisivo nas relações entre senhores e dependentes, apesar de ser raro que escravos apareçam diretamente nos romances de Machado.31 31 Como ocorre com Prudêncio, que fora escravo de Brás quando este ainda era menino, que chegara a montá-lo como uma besta. Já adultos, os dois personagens voltam a se encontrar, mas é o liberto que trata um outro negro como montaria, indicando a degradação promovida pela escravidão.

Mesmo assim, Schwarz não deixa de chamar a atenção para certos defeitos de composição das Memórias. Destaca, em particular, um certo contraste entre a malícia do narrador e o comportamento mais limitado dos personagens, que podem dar a sensação de serem meros títeres. No entanto, sustenta que em certas obras as limitações, mais do que do autor, são "impossibilidades objetivas, cujo fundamento é social" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 161), correspondendo a impasses históricos.32 32 Como apontou Adorno: "as inconsistências técnicas de um compositor com a apreensão superior da forma de Richard Wagner indicam a impossibilidade social do que ele queria atingir: uma obra de arte que forneceria à sociedade burguesa uma unidade de culto" (Adorno, 1999: 12). No caso, a sociedade escravista criaria sérias limitações ao desenvolvimento da personalidade de dependentes e de proprietários, indicando, se não diretamente uma dialética do senhor e do escravo, ao menos a deformação dos homens livres.

UM NOVO LUGAR PARA AS IDEIAS?

Há atualmente alguma dificuldade diante de trabalhos como o de Schwarz, parte de seus pressupostos parecendo, de certa maneira, "fora do lugar". Em especial, vigora um certo senso comum que nega a oposição entre centro e periferia capitalista. No que se refere às ideias, é questionado, em particular, o que se enxerga como a hierarquização e a subordinação entre as culturas que seria subjacente a tal perspectiva, lembrando-se, por exemplo, que se desenvolveram, tanto na Europa como na América Latina, certas linguagens políticas e se utilizou o repertório intelectual disponível nas diferentes situações. Apesar das variadas perspectivas teóricas por trás de tais formulações, pode-se perceber nelas uma espécie de sensibilidade, para não falar em ideologia, que é expressão das condições atuais, da chamada globalização. Em termos gerais, se acentuam especialmente as semelhanças da vida intelectual latino-americana com a europeia e a norte-americana. Em termos mais específicos, esse senso comum reage contra a influência de linhas interpretativas anteriores, inspiradas principalmente no estruturalismo cepalino e num certo marxismo latino-americano, que ressaltavam justamente as diferenças entre o centro e a periferia capitalista. Essas avaliações não deixam de ser influenciadas pelo clima da época, marcado, sobretudo, pelo que se chamou de crise das "grandes narrativas" e pelo fim do "socialismo real".

Mas já em 1971 - portanto, quando As ideias fora do lugar ainda não tinha sido publicada - Silviano Santiago escreveu "O entre-lugar do discurso latino-americano".33 33 Assim como Schwarz, o autor do ensaio estava no exterior quando o escreveu, no caso nos EUA. No entanto, ele só foi publicado no Brasil em 1978, em Uma literatura nos trópicos, ou seja, um ano depois de Ao vencedor as batatas. Apoiado no então recente pós-estruturalismo de autores como Jacques Derrida, Michel Foucault e Roland Barthes e reivindicando a antropofagia de Oswald de Andrade, o crítico literário rejeita noções de cópia, fonte ou influência. Particularmente importante para seu argumento é o conceito derrideano de "descentramento", que questiona os próprios pressupostos do estruturalismo.34 34 Afirma Derrida: "este centro tinha a função não só de organizar a estrutura - não se pode pensar numa estrutura desorganizada - mas, sobretudo, de fazer com que o princípio de organização da estrutura limitasse o que poderíamos chamar do jogo da estrutura" (Derrida, 1967: 409). De acordo com Derrida, sem a referência a um centro, nos seus diferentes sentidos, "tudo se torna discurso" (Derrida, 1967Derrida, Jaques. (1967). De la grammatologie. Paris: Éditions Minuit.: 411), aumentando quase ilimitadamente as possibilidades para a escrita.

Nessa orientação, Santiago enxerga "um provável processo de inversão de valores" (Santiago, 1978Santiago, Silviano. (1978). Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.: 11) entre "bárbaros" e "civilizados". Valoriza, em especial, o hibridismo latino-americano. A noção de "entre-lugar" chega a antecipar formulações de outros autores marcados pelo pós-estruturalismo, como "lugar intervalar (E. Glissant), tercer espacio (A. Moreiras), espaço intersticial (H. K. Bhabha), the thirdspace (revista Chora), in-between (Walter Mignolo e S. Gruzinski), caminho do meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt) ou de fronteira (Ana Pizarro e S. Pesavento)" (Hanciau, 2005Hanciau, Nubia. (2005). O entre lugar. In: Figueiredo, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora/Niterói: Ed. UFJF/EdUFF, p. 215-241.). Seríamos uma nova sociedade de mestiços, que poria em questão conceitos de unidade e de pureza, de base racial, linguística e religiosa. Nesse caso, na valorização da mestiçagem, o crítico se insere numa verdadeira linhagem latino-americana, que inclui Oswald de Andrade, mas também o mexicano José Vasconcelos e outro brasileiro, Gilberto Freyre, significativamente autores cujas formulações tiveram importantes implicações ideológicas. Num outro sentido, e não por acaso, aqui gêneros como o pastiche, a paródia, a digressão, também seriam frequentes. O conto de Borges, "Pierre Menard, autor del Quijote" seria a melhor metáfora para a situação do escritor latino-americano, que está "entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue" (Santiago, 1978Santiago, Silviano. (1978). Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.: 23). Haveria mesmo uma certa vantagem para o escritor da cultura dominada, que poderia recorrer a dois níveis dos signos, como que brincando com escritos produzidos em outros contextos e subvertendo seus significados originais.

Outro a valorizar a antropofagia oswaldiana, pouco depois de Santiago, foi Haroldo de Campos.35 35 Schwarz caracteriza a postura de Oswald de Andrade como uma espécie de "ufanismo crítico", segundo a qual, o Brasil pré-burguês seria capaz de assimilar as vantagens do progresso, ao mesmo tempo em que anunciaria um mundo pós-burguês. A discussão a respeito da antropofagia remete, por sua vez, à polêmica do crítico com os tropicalistas. Ambos os movimentos artísticos justaporiam o arcaico e o moderno, que caracterizaria o Brasil, o que poderia dar resultados estéticos interessantes, mas não especialmente críticos, além de no tropicalismo se agregar elementos da indústria cultural. O tema escapa, contudo, ao escopo do artigo. Ver Schwarz (1992; 2012). Também muitas das referências pós-estruturalistas dos dois autores são as mesmas, além de sugerirem uma imagem borgeana da literatura latino-americana, constituída por insaciáveis devoradores de livros. O poeta concretista reivindica, além do mais, o barroco como "uma possível 'razão antropofágica' desconstrutora do logocentrismo que herdamos do Ocidente" (Campos, 1981Campos, Haroldo. (1981). Da razão antropofágica. Revista Colóquio/Letras, 62, jul., p. 10-25.: 17). Assim, seu alvo principal é o mestre de Schwarz, Candido, que identifica com um nacionalismo ontológico, que buscaria um logos nacional pontual, e seria contraposto a um nacionalismo modal, que valorizaria o dialógico da diferença. Mais especificamente, Formação da literatura brasileira, numa visão organicista de nossa cultura, reproduziria o projeto romântico de independência literária e deixaria de fora o barroco de seu esquema interpretativo por motivos sociológicos (ausência de produção impressa e de público).36 36 Campos esquece, todavia, que Candido se coloca confessadamente "no ângulo dos nossos primeiros românticos e dos críticos estrangeiros" (Candido, 1993: 25), até porque foram eles que estabeleceram o projeto de uma "literatura empenhada" que estuda. Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos e os demais barrocos, em contraste, não tinham consciência, nem podiam ter, de fazerem uma "literatura brasileira" distinta da portuguesa. Numa outra referência, mais preocupada com a produção artística, os autores do barroco ibero-americano formariam, dos dois lados do Atlântico, uma sofisticada república das letras.

Elias Palti, em contraste com Santiago e Campos, visa diretamente a Schwarz, ou melhor, à tese das "ideias fora do lugar". Apesar de não se identificar diretamente com o pós-estruturalsimo, concorda com a crítica às noções de "modelo" e "cópia", em que estaria implícita a avaliação que formulações vindas da periferia seriam inferiores às elaborações originais, realizadas no centro. Concepções vagas como "centro" ou "Europa" sugeriam apenas que nelas as ideias estariam adequadamente relacionadas com o ambiente social, ao passo que haveria um desencontro permanente entre os dois elementos na "periferia" ou na "América Latina". A tese das "ideias fora do lugar" se vincularia a uma perspectiva tradicional de história das ideias, que entenderia as ideias na América Latina com referência, sobretudo, às mudanças pelas quais elas passariam ao se transferirem para esse novo ambiente. Em termos mais fortes, se partiria da presunção de que os pensadores latino-americanos não teriam realizado grandes contribuições à "teoria", o que faria com que se procurasse examinar como suas obras teriam se desviado de um suposto padrão, que se imaginaria encontrar na Europa. O autor relaciona, em especial, essa história das ideias a Leopoldo Zea, que já na sua tese clássica, El positivismo y la circunstancia mexicana (1943), pensara a vida intelectual do subcontinente em termos de "modelos" e "desvios". Ou seja, o pressuposto desse tipo de formulação seria a "consistência" e "racionalidade" dos modelos, que funcionariam como o que o autor chama de tipos ideais, a partir dos quais se avaliaria o que seria considerado como desvio.37 37 Afirma Palti: "A historiografia das ideias na América Latina se encontraria desde sua origem organizada em torno da busca e da definição das 'distorções' produzidas pelo translado à região de ideias liberais que, supostamente, seriam incompatíveis com a cultura e tradições herdadas" (Palti, 2007: 288-289).

No entanto, os pressupostos linguísticos dessa história das ideias seriam bastante pobres. No caso específico da tese das "ideias fora do lugar", o problema principal estaria em entender as "ideias" meramente como "representação" da realidade: "no marco de nossa discussão o ponto crítico é que as 'ideias' (como proposições ou statements) são verdadeiras ou falsas (representações corretas ou erradas da realidade), mas nunca estão 'fora do lugar', apenas seus enunciados estão" (Palti, 2007Palti, Elias. (2007). El tiempo de la política. Buenos Aires: Siglo XXI.: 294). Na verdade, a própria oposição entre "ideias" e "realidade" seria questionável, já que a "realidade" só poderia ser concebida a partir de "ideias". Para corrigir esse tipo de armadilha, seria preciso, servindo-se das diferentes contribuições da Escola de Cambridge de J. G. A. Pocock e Quentin Skinner e da história dos conceitos de Reinhart Koselleck, passar de uma historia das ideias para uma historia intelectual, que não se preocupasse mais com a correspondência ou não dos conceitos empregados na América Latina a um suposto modelo europeu, mas como as diversas linguagens elaboram e reelaboram seus termos.

Em outras palavras, não faria sentido pensar em centro e periferia. Concepções como essas seriam relativas, além das situações que recebem esses nomes também conterem seus centros e periferias. Além do mais, países que seriam centrais em determinados aspectos não o seriam necessariamente em outros, como ocorreu com os EUA que, durante um bom tempo, apesar de sua posição de domínio econômico, não tinha papel comparável do ponto de vista cultural. Nessa referência, Palti avalia que se deve renunciar à pretensão de se elaborar algo como uma história intelectual latino-americana específica. Em termos opostos, o tipo de problema de Schwarz deveria ser mesmo generalizado: "o processo de assimilação é sempre conflituoso devido à presença, no interior de cada cultura, de uma pluralidade de agentes e modos antagônicos de apropriação" (Palti, 2007Palti, Elias. (2007). El tiempo de la política. Buenos Aires: Siglo XXI.: 303).

Como não poderia deixar de ser, há pontos em comum entre as abordagens mais em voga atualmente quando tratam da vida intelectual latino-americana. O mais importante deles é o questionamento da oposição entre centro e periferia capitalista e uma aversão ao que é identificado como modelos essencialistas. Como resultado, sugere-se que anteriormente se teria pensado em termos de certa inferioridade da periferia, que estaria condenada à cópia. Nessa referência, Schwarz chega a criticar formulações como as de Santiago e Campos no sentido de enxergarem uma espécie de inversão da relação entre os dois polos do capitalismo.38 38 De maneira similar à sua avaliação a respeito de Oswald de Andrade, considera: "de atrasados passaríamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a superiores (aquela mesma superioridade, aliás, que esta análise visa suprimir), isto porque os países que vivem na humilhação da cópia explícita e inevitável estão mais preparados que a metrópole para abrir mão das ilusões da origem primeira (ainda que a lebre tenha sido levantada lá e não aqui). Sobretudo, o problema da cultura reflexa deixaria de ser particularmente nosso e, de certo ângulo, em lugar da almejada europeização ou americanização da América Latina, assistiríamos à latino-americanização das culturas centrais" (Schwarz, 1989: 35-36).

Por outro lado, não deixam de ocorrer aproximações não evidentes entre nosso autor e seus críticos. Em termos mais fortes, seu argumento também sugere, como os pós-estruturalistas, uma espécie de "vantagem do atraso", em que certas possibilidades estariam abertas para o escritor da periferia e não para o do centro. Mas enquanto Santiago e Campos localizam tais possibilidades no recurso artístico de se lançar mão de diferentes signos e, caso se deseje, desestabilizá-los, o marxista identifica a questão no "desenvolvimento desigual e combinado" do capitalismo, que indica também valer para as ideias.39 39 Nessa referência, Machado seria "um mestre na periferia", o que afasta a interpretação de Schwarz dos pressupostos da tradicional história das ideias latino-americana discutida por Palti, de acordo com os quais, na região não se produziriam grandes obras.

Igualmente na questão da "cópia" há possíveis aproximações entre o crítico marxista e os críticos pós-estruturalistas. No que se refere a essa noção, Schwarz, ao tratar da análise de Candido a respeito de como O cortiço, de Aluísio Azevedo, reaproveita elementos de L'Assommoir e de outros romances de Zola, nota: "há também a possibilidade de a cópia (no sentido de obra segunda, por oposição à obra primeira) resultar superior, o que relativiza a noção de original, retirando-lhe a dignidade mítica e abalando o preconceito - básico para o complexo de inferioridade colonial - embutido nessas noções" (Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.: 25). No fundo, todavia, o argumento do crítico marxista não é tão diferente das suas considerações sobre a aclimatação do romance no Brasil, tratando-se também, nesse caso, de avaliar como uma forma, com pressupostos europeus, é reelaborada em outras condições. O novo, no caso, está especialmente em analisar uma obra brasileira "copiada" de outra, europeia.

Em termos mais profundos, nos seus últimos trabalhos Schwarz tem repensado o contraste entre centro e periferia capitalista. Sugere mesmo uma espécie de "brasilianização" do mundo. No entanto, não vê o problema pelo ângulo de uma suposta aproximação dos países periféricos aos centrais, como, para além dos críticos pós-estruturalistas, tem sido cada vez mais comum assinalar, devido especialmente à crescente importância da China na economia mundial. Em contraste, o que percebe é, em chave pessimista, uma espécie de universalização de nossa má formação: "durante muito tempo tendemos a ver a inorganicidade, e a hipótese de sua superação, como um destino particular do Brasil. Agora ela e o naufrágio da hipótese superadora aparecem como o destino da maior parte da humanidade contemporânea, não sendo, nesse sentido, uma experiência secundária" (Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.: 58). Aparentemente, o crítico literário, ao ressaltar a proximidade entre periferia e centro capitalista, também se aproximaria da crítica de Carvalho Franco referente à inexistência de oposição entre sociedades tradicional e moderna.40 40 A autora de Homens livres na ordem escravocrata também não compartilha das ilusões desenvolvimentistas dos participantes do Seminário de O capital apontadas mais recentemente pelo autor de Ao vencedor as batatas. Em compensação, ressalta o especial interesse, num momento como o atual, de uma sociedade como a brasileira, de antemão mal formada, o que retoma, ainda em termos de contraste, o argumento que nas ex-colônias se pode encontrar a verdade das ex-metrópoles.

Em outras palavras, as trocas desiguais, a começar pelas econômicas, não cessariam com a chamada globalização. Portanto, não se deveriam subestimar as diferenças entre o que algum dia foi apelidado de centro e periferia capitalista. Atitude que, na verdade, não é inocente politicamente. Para o que nos interessa aqui, a nova sensibilidade, consciente ou inconscientemente, perde de vista a especificidade da vida ideológica latino-americana, tendendo a pensar em termos de um "Ocidente" indiferenciado. Na verdade, muito do mais interessante em trabalhos como o de Schwarz, foi lidar com a particularidade da América Latina, ligada ao capitalismo internacional, mas detentora de uma história própria. O crítico pôde, em especial, indicar as tensões entre uma forma europeia, como o romance, e a matéria local brasileira. A partir daí, foi possível também indicar que a realização representada pelos romances maduros de Machado estava relacionada a um processo mais amplo, de formação da literatura brasileira. Em compensação, as possibilidades de investigação se empobrecem quando se imagina que se pode recorrer, sem maiores problemas, a qualquer ideia, independente do lugar de onde ela provém, o que, no limite, sugere que elas se encontrariam num ambiente a parte, uma espécie de mundo das ideias.

Exemplo das potencialidades de uma pesquisa desse tipo para uma outra área de investigação é oferecida pelo estudo de Rodrigo Naves sobre as artes plásticas brasileiras. A partir da análise de obras de Debret, Guignard, Volpi, Segall e Amílcar de Castro, avalia que a "dificuldade de forma de fato perpassa boa parte da melhor arte brasileira". Em termos específicos, assinala que "a relutância em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e conflituosa com o mundo, leva-os a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter prospectivo de parcela considerável da arte moderna". Mesmo assim, ressalta: "esse recolhimento [...] não livra os trabalhos da realidade. Ao contrário, essas estruturas frágeis se deixam envolver de maneira complexa e inesperada" (Naves, 1996Naves, Rodrigo. (1996). A forma difícil. São Paulo: Ática.: 21). Em outros termos, a tensão entre forma europeia e matéria local brasileira não é exclusiva à literatura.

No próprio campo de atuação de Schwarz, não é preciso muita perspicácia para perceber o quanto o ambicioso projeto de Franco Moretti de retomar a perspectiva da literatura mundial, originalmente sugerida por Goethe, deve ao crítico brasileiro (como, por sinal, admite).41 41 Moretti diz que a inspiração original de seu projeto vem da observação de Frederic Jameson, realizada ao prefaciar um trabalho de crítica literária japonesa, segundo a qual, a "matéria-prima da experiência social japonesa e os padrões abstratos formais da construção literária ocidental não podem sempre ser soldados" (Moretti, 2000: 58). Assinala que percebeu depois como Schwarz chegou, por sua própria via, ao mesmo problema. Isso, por sua vez, teria sugerido ao italiano uma investigação mais ampla, por assim dizer, com uma dimensão mundial. Assim, o que chama, humoristicamente, de "lei da evolução literária", proclama: "nas culturas que pertencem à periferia do sistema literário (o que equivale a quase todas as culturas, dentro e fora da Europa) o romance moderno não aparece como um desenvolvimento autônomo, mas como um compromisso entre uma influência formal ocidental (normalmente francesa ou inglesa) e a matéria local" (Moretti, 2000: 58). É verdade que o crítico italiano reelabora depois sua "lei", defendendo que da relação binária entre forma e conteúdo se passaria para uma espécie de triângulo dialético, entre forma estrangeira, matéria local e forma local. A partir daí e de maneira bastante sugestiva, defende que seria necessário pensar a literatura mundial como um sistema mundial de variações, já que as realidades locais e as influências estrangeiras mudam praticamente de caso para caso.42 42 Outra autora a trabalhar com uma perspectiva de literatura mundial é Pascale Casanova (2004). Apoiada especialmente em Fernand Braudel e Pierre Bourdieu, pensa numa república mundial de letras, onde escritores situados na periferia buscariam a legitimação cultural de um centro, identificado com nações com maior capital literário, como a França e a Inglaterra.

Numa outra orientação e de maneira interessada, vale destacar especialmente como Schwarz desenvolveu sua formulação utilizando instrumentos tomados emprestados das ciências sociais. Talvez fosse o momento de fazer o movimento inverso, com as ciências sociais passando a fazer uso de ferramentas que foram usadas originalmente pela crítica literária. Até porque provavelmente o mais importante que nosso autor aprendeu com seus mestres foi bem utilizar formulações originalmente elaborados fora do Brasil para entender as particularidades constitutivas de nossa formação social.

NOTAS

  • 1
    Agradeço a leitura atenta e os comentários críticos de um parecerista anônimo, de Rubens Ricupero e de André Botelho, e a possibilidade de discutir versões anteriores do trabalho na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade de Campinas (UNICAMP). Não é preciso dizer que as imperfeições do trabalho são de minha inteira responsabilidade.
  • 2
    Tradição contraditória, tanto em razão de que as formulações dos autores que a constituem frequentemente se chocam entre si, como devido à sua visada dialética. Sobre a relação de Schwarz com uma certa crítica literária marxista, ver Almeida (2007)Almeida, Jorge de (2007). Pressupostos, salvo engano, dos pressupostos, salvo engano In: Cevasco, Maria Elisa & Ohata, Milton (orgs.). (2007). Um crítico na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 44-53.. Sobre o "Seminário do Capital", ver Rodrigues (2012)Rodrigues, Lidiane Soares. (2012). A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e "um seminário" (1958-1978). Tese de doutorado. Departamento de História/Universidade de São Paulo. e Schwarz (1999)Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras..
  • 3
    Esclarece Schwarz: "a junção de romance e sociedade se faz através da forma. Esta é entendida como um princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos" (Schwarz, 1989Schwarz, Roberto. (1989). Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras.: 141). Sobre a forma em Schwarz, ver Waizbort (2007)Waizbort, Leopoldo. (2007). A passagem do três ao um. São Paulo: Cosac Naif..
  • 4
    O presente trabalho se concentra em dois livros do crítico sobre Machado, Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, devido à evidente unidade entre eles e por serem a realização mais acabada de seu projeto de pesquisa. Por outro lado, como aponta John Gledson, entre os dois livros não deixam de haver "genuínas mudanças de ênfase, que brotam de suas fontes" (Gledson, 2006Gledson, John. (2006). Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras.: 270), em particular, em razão de que na obra de 1977 se estuda o processo que leva às Memórias póstumas de Brás Cubas, ao passo que na obra de 1990 se analisa o próprio romance. Consequentemente, o primeiro livro é mais diacrônico e o segundo mais sincrônico.
  • 5
    Candido confessa, no Prefácio de seu livro, a "falha" de não ter incluído o Machado romântico, mas a justifica devido à unidade subjacente à obra do escritor.
  • 6
    Paulo Arantes (1997)Arantes, Paulo. (1997). Sentido da formação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. destaca, por sua vez, o grande número de livros importantes sobre o Brasil com a palavra "formação" no título: Formação do Brasil contemporâneo (1942), Formação econômica do Brasil (1958), Formação da literatura brasileira (1959), Formação política do Brasil (1967). Além disso, nota como outros trabalhos relevantes recorrem à palavra no subtítulo: Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1933), Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958). Finalmente, percebe que um título como Raízes do Brasil (1936) aponta para o parentesco com o problema.
  • 7
    Por conta disso, o elemento normativo em Formação da literatura brasileira é menos acentuado, apesar de não inteiramente ausente.
  • 8
    Possibilidade, de certo modo, já indicada pelo jovem Lukács, quando considera que, no momento em que se passa a ter forma, haveria "a conciliação do exterior e do interior" (Lukács, 1974Lukács, Georg. (1974). L' ame et les formes. Paris: Gallimard.: 21).
  • 9
    Schwarz, em entrevista, confessa: "Na verdade, o que possibilitou fazer 'As ideias fora do lugar' foi a combinação de Fernando Henrique e Maria Sylvia" (Schwarz, 2008Schwarz, Roberto. (2008). Ao vencedor as batatas 30 anos: crítica da cultura e processo social. Entrevista concedida a André Botelho e Lilia Schwarcz. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 67, p. 147-194.: 149).
  • 10
    É de se assinalar que a autora de Homens livres na ordem escravocrata não participou do Seminário de O capital. Não por acaso, é possível perceber diferenças entre sua análise e a dos outros integrantes da cadeira de Sociologia I da USP. Mais especificamente, Carvalho Franco radicaliza a "interpretação do Brasil" originalmente elaborada por Caio Prado Jr. e desenvolvida pelo marxismo uspiano, que entende a colonização do Brasil no quadro da formação do capitalismo mundial, avaliando nossa formação social como capitalista desde o início da sua história registrada. De maneira complementar, se é comum a Florestan Fernandes e a seus assistentes o questionamento da oposição entre o moderno e o arcaico, Carvalho Franco ressalta, ainda mais, a imbricação entre os dois elementos. Dando sequência a seu projeto de pesquisa, na sua tese de livre docência, O moderno e suas diferenças, reconstrói como a sociologia da modernização, inspirada na leitura equivocada de Weber por Parsons, estabeleceria uma oposição rígida e abstrata entre o que chama de sociedades tradicional e moderna. Ambas seriam supostamente entendidas como tipos ideais, mas apenas no sentido generalizador e, consequentemente, classificatório do conceito, que o afastaria da preocupação original do seu criador com os aspectos genético-históricos presentes nos diferentes fenômenos sociais. Assim, a oposição entre sociedades tradicional e moderna reatualizaria a dualidade imaginada por Tonnies e, incorporada por Weber, entre comunidade e sociedade que, por sua vez, teria sua origem no contraste ressaltado pelo antropólogo envolucionista Lewis Morgan entre societas e civitas. Sobre as diferenças mais amplas de Carvalho Franco com a cadeira de Sociologia I, ver Botelho (2012)Botelho, André. (2012). Teoria e história na sociologia política brasileira: a crítica de Maria Sylvia Carvalho Franco. Anais do 36º Encontro Nacional da ANPOCS, GT Pensamento Social Brasileiro, Águas de Lindóia, SP, 21-25 de outubro. e Cazes (2013)Cazes, Pedro. (2013). A sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: pessoalização, capitalismo e processo social. Dissertação de mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro..
  • 11
    Waizbort aponta para o andamento lukacsiano do livro: "composto de três capítulos, o primeiro destaca os pressupostos históricos e ideológicos, armando a situação para a interpretação literária que vem a seguir; o segundo trata dos precedentes, a importação do romance como forma e sua figuração por Alencar; o terceiro, por fim, trata de Machado, o verdadeiro objeto anunciado, a forma que se quer entender" (Waizbort, 2002: 120).
  • 12
    A publicação do artigo antes do livro sobre Machado se explica, em parte, pela intenção de se fazer um ajuste de contas com a esquerda hegemônica no Brasil antes do golpe de 1964, aliada ao populismo e identificada com o projeto nacional-desenvolvimentista. Nessa motivação, diversos trabalhos críticos a essa orientação foram publicados depois do golpe. Além de tudo, há uma certa continuidade na crítica dessa esquerda nacionalista às "ideias importadas" e um argumento anterior, mais marcadamente conservador.
  • 13
    No próprio ensaio em questão sugere: "partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideias estavam fora do centro, em relação ao seu uso europeu" (Schwarz, 1992Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 24). Já em "Nacional por subtração", afirma: "brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experiência tem sido um dado formador de nossa reflexão crítica desde os tempos da Independência" (Schwarz, 1989Schwarz, Roberto. (1989). Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras.: 29). Ainda em "Discutindo com Alfredo Bosi", rebate: "a mencionada convicção da excentricidade e do deslocamento local das ideias modernas não é uma invenção dos historiadores do século XX, cuja supressão nos pudesse devolver uma visão mais exata das coisas. Pelo contrário, sem prejuízo do caráter ideológico, aquele sentimento de despropósito é justamente o fenômeno que se deveria explicar em sua necessidade histórica, pois foi uma presença notória no Brasil oitocentista" (Schwarz. 1999Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.: 82). Por fim, mais recentemente, esclarece: "o mal entendido principal nasceu do próprio título. Este último teve sorte, pois se tornou conhecido, mas também atrapalhou bastante, pois fixou a discussão num falso problema, ou no problema que o ensaio procurava superar" (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. (2012). Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras.: 65).
  • 14
    Brandão, na sua busca das principais famílias intelectuais brasileiras, parte da oposição sugerida por Oliveira Vianna (1939)Oliveira Vianna, Francisco José. (1939). O idealismo da Constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional., entre idealismo orgânico e idealismo utópico ou constitucional, procurando neutralizar a carga normativa presente na formulação original, o que é indicado pela não utilização do adjetivo "utópico" na referência à segunda linhagem.
  • 15
    Em Um mestre na periferia do capitalismo já não se fala mais em "ideias fora do lugar", mas numa "ambivalência ideológica das elites brasileiras" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 41). No entanto, a contradição é basicamente a mesma: nossas elites desejariam ser parte do Ocidente burguês, sem prejuízo de se beneficiar de um dos últimos sistemas escravocratas do mesmo Ocidente.
  • 16
    Segundo Lukács, falando da Rússia, "num país pouco evoluído, onde os inconvenientes e os conflitos não puderam atingir um desenvolvimento completo na civilização da época, 'improvisadamente' surgem obras de arte que revelam com sua maior intensidade os problemas atuais àquela época, descobrindo com poder criador mesmo os mais vertiginosos abismos que revelam um conjunto, até então incompleto, e nunca mais atingido, dos problemas morais e ideais daquela época" (Lukács, 1965Lukács, Georg. (1965). Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 145).
  • 17
    Afirma Bosi: "O tipo de mentalidade que Machado de Assis ironiza - e autoironiza enquanto narrador - é o de parte da classe dominante que, ainda nos últimos anos do regime imperial, sustentou in abstracto a norma liberal moderna, ao mesmo tempo que racionaliza o uso do trabalho escravo, seu maior suporte econômico e político. Nesse contexto, o liberalismo clássico alardeado, é visto de fora, um despropósito, mas nem por isso deixa de ter consequências para o cotidiano da burguesia nacional. Esta é, em síntese, a hipótese que Roberto Schwarz propôs e testou com felicidade em seu estudo sobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas" (Bosi, 1992Bosi, Alfredo. (1992). Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras.: 397).
  • 18
    Já em O moderno e suas diferenças, defendera: "a constatação permanecerá insatisfatória e conduzirá a erro, se dela se passar à noção de que isto se reporta a dois tipos diferentes de sociedade, em oposição: uma escravista e tradicional e outra capitalista e moderna" (Carvalho Franco, 1970Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1970). O moderno e suas diferenças. Tese de livre docência. Departamento de Ciências Sociais/Universidade de São Paulo.: 118-119). Ou seja, sugere que o contraste entre centro e periferia capitalista mantém a visão dualista presente na formulação a respeito das sociedades tradicional e moderna.
  • 19
    Também é sugestivo como trabalham com fenômenos aparentemente marginais, como o os homens livres pobres do Vale do Paraíba e a escravidão do Rio Grande do Sul, mas que acreditam serem capazes de iluminar a totalidade da experiência da sociedade escravista brasileira.
  • 20
    O título original da tese de Cardoso, que foi publicada como Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, era Formação e desintegração da sociedade de castas. O negro na ordem escravocrata do Rio Grande do Sul. O título da tese de Carvalho Franco, que foi publicada como Homens livres na ordem escravocrata, era Homens livres na antiga civilização do café.
  • 21
    Essas avaliações não deixam de ter implicações políticas. Dessa maneira, já em Dependência e desenvolvimento na América Latina, Cardoso e Faletto afirmaram que a persistência ou não dos regimes autoritários que se instalaram durante a década de 1960 na América Latina, seria função da ação dos diferentes atores políticos, dependendo "tanto dos seus êxitos econômicos e do sucesso que tiverem na sua reconstrução social, como do caráter, do tipo de ação e do êxito de movimentos de oposição" (Cardoso & Faletto, 1988Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. (1988). Dependencia y desarrollo en América Latina. Mexico, D. F.: Siglo XXI.: 160). De maneira sugestiva, há quem destaque a continuidade entre a análise sociológica a respeito do capitalismo dependente e associado e a presidência de Cardoso. Ver, especialmente, Fiori (2001)Fiori, José Luís. (2001). 60 lições dos 90. Rio de Janeiro: Record.. Carvalho Franco, em contraste, assumiu, depois da redemocratização, uma atitude muito crítica diante dos novos governos, especialmente os de Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva.
  • 22
    Significativamente, Schwarz caracteriza "Dialética da malandragem", de Candido, que foi originalmente publicado em 1970 na Revista do IEB, como "o primeiro estudo literário propriamente dialético" (Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.: 129) feito no Brasil.
  • 23
    A análise a respeito de Iaiá Garcia é particularmente interessante, ao apontar que nesse romance aparecem os limites da visão do primeiro Machado a respeito do paternalismo. Isto é, a avaliação é de desencanto, mas ainda incapaz de ser verdadeiramente crítica diante do paternalismo.
  • 24
    Diz Adorno sobre Samuel Beckett: "Em razão de ter se tornado absoluto o feitiço da realidade externa sobre seus súditos e suas reações, a obra de arte só pode se opor a esse feitiço sendo assimilada a ele. […] Esse mundo de imagens desgastadas, avariadas, é a marca negativa do mundo administrado. Nesse ponto Beckett é realista" (Adorno, 1997Adorno, Theodor. (1997). Aesthetic theory. Minneapolis: University of Minnesota Press.: 31).
  • 25
    O que não quer dizer que os senhores tinham mais consciência do que os dependentes de como funcionava a totalidade da sociedade escravista brasileira. Na verdade, podiam se movimentar (objetiva e subjetivamente) muito mais livremente entre o arbítrio pessoal e a norma burguesa, o que possibilitaria revelar melhor o que era a totalidade dessa sociedade. O problema da "consciência possível" é decisivo em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. No livro, Cardoso argumenta que tanto senhores como escravos eram incapazes de apreender a totalidade da sociedade rio-grandense.
  • 26
    Como é defendido no artigo: "o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço" (Machado de Assis, 1997Machado de Assis. (1997). Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 804).
  • 27
    Inspiro-me aqui em Brandão (2007)Brandão, Gildo Marçal. (2007). Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: HUCITEC., que toma o termo "substituição cultural de importações" de Sérgio Miceli (1979). Mas enquanto o segundo autor ressalta os aspectos "infraestruturais" de tal processo, como formação de público leitor, mercado editorial etc., o primeiro enfatiza sua dimensão, por assim dizer, "superestrutural", em termos da destilação de estilos, teorias, conceitos etc.
  • 28
    Haveria, contudo, diferentes significados para o narrador volúvel que, de acordo com Schwarz, "é técnica literária, é sinal de futilidade humana, é indício de especificidade histórica, e é uma representação em ato do movimento da consciência, cujos repentes vão compondo o mundo vasto, mas sempre interior" (Schwarz, 1990Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 183, ênfase do autor). Ligada à sua perspectiva materialista, ao crítico interessa especialmente como a instabilidade vertiginosa de juízo de Brás Cubas expressaria a desfaçatez de classe do proprietário brasileiro.
  • 29
    Mesmo assim, como indica Alfonso Bernardelli, já Tristan Shandy pode, no limite, ser tomado como um trabalho "vanguardista": "Sterne mostra a extrema maleabilidade e expansibilidade do modelo formal chamado 'romance', a sua essencial vocação mimética do real em todos os seus aspectos objetivos e subjetivos". Assim, na sua "atitude onívora" anteciparia, de certa maneira, "a dissolução pós-naturalista ou até pós-moderna da 'estrutura' do romance oitocentista" (Bernardelli, 2002Bernardelli, Alfonso. (2002). L'incontro con la realtà. In: Moretti, Franco. (org.). Il romanzo - le forme. vol. II. Turim: Giulio Einaudi Editore, p. 342-381.: 368).
  • 30
    Afirma Marx: "uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots, seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás da mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política" (Marx, 1986Marx, Karl. (1986). O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 18).
  • 31
    Como ocorre com Prudêncio, que fora escravo de Brás quando este ainda era menino, que chegara a montá-lo como uma besta. Já adultos, os dois personagens voltam a se encontrar, mas é o liberto que trata um outro negro como montaria, indicando a degradação promovida pela escravidão.
  • 32
    Como apontou Adorno: "as inconsistências técnicas de um compositor com a apreensão superior da forma de Richard Wagner indicam a impossibilidade social do que ele queria atingir: uma obra de arte que forneceria à sociedade burguesa uma unidade de culto" (Adorno, 1999Adorno, Theodor. (1999). Sound figures. Stanford: Stanford University Press.: 12).
  • 33
    Assim como Schwarz, o autor do ensaio estava no exterior quando o escreveu, no caso nos EUA. No entanto, ele só foi publicado no Brasil em 1978, em Uma literatura nos trópicos, ou seja, um ano depois de Ao vencedor as batatas.
  • 34
    Afirma Derrida: "este centro tinha a função não só de organizar a estrutura - não se pode pensar numa estrutura desorganizada - mas, sobretudo, de fazer com que o princípio de organização da estrutura limitasse o que poderíamos chamar do jogo da estrutura" (Derrida, 1967Derrida, Jaques. (1967). De la grammatologie. Paris: Éditions Minuit.: 409).
  • 35
    Schwarz caracteriza a postura de Oswald de Andrade como uma espécie de "ufanismo crítico", segundo a qual, o Brasil pré-burguês seria capaz de assimilar as vantagens do progresso, ao mesmo tempo em que anunciaria um mundo pós-burguês. A discussão a respeito da antropofagia remete, por sua vez, à polêmica do crítico com os tropicalistas. Ambos os movimentos artísticos justaporiam o arcaico e o moderno, que caracterizaria o Brasil, o que poderia dar resultados estéticos interessantes, mas não especialmente críticos, além de no tropicalismo se agregar elementos da indústria cultural. O tema escapa, contudo, ao escopo do artigo. Ver Schwarz (1992; 2012)Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra..
  • 36
    Campos esquece, todavia, que Candido se coloca confessadamente "no ângulo dos nossos primeiros românticos e dos críticos estrangeiros" (Candido, 1993Candido, Antonio. (1993). Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia.: 25), até porque foram eles que estabeleceram o projeto de uma "literatura empenhada" que estuda. Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos e os demais barrocos, em contraste, não tinham consciência, nem podiam ter, de fazerem uma "literatura brasileira" distinta da portuguesa.
  • 37
    Afirma Palti: "A historiografia das ideias na América Latina se encontraria desde sua origem organizada em torno da busca e da definição das 'distorções' produzidas pelo translado à região de ideias liberais que, supostamente, seriam incompatíveis com a cultura e tradições herdadas" (Palti, 2007Palti, Elias. (2007). El tiempo de la política. Buenos Aires: Siglo XXI.: 288-289).
  • 38
    De maneira similar à sua avaliação a respeito de Oswald de Andrade, considera: "de atrasados passaríamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a superiores (aquela mesma superioridade, aliás, que esta análise visa suprimir), isto porque os países que vivem na humilhação da cópia explícita e inevitável estão mais preparados que a metrópole para abrir mão das ilusões da origem primeira (ainda que a lebre tenha sido levantada lá e não aqui). Sobretudo, o problema da cultura reflexa deixaria de ser particularmente nosso e, de certo ângulo, em lugar da almejada europeização ou americanização da América Latina, assistiríamos à latino-americanização das culturas centrais" (Schwarz, 1989Schwarz, Roberto. (1989). Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras.: 35-36).
  • 39
    Nessa referência, Machado seria "um mestre na periferia", o que afasta a interpretação de Schwarz dos pressupostos da tradicional história das ideias latino-americana discutida por Palti, de acordo com os quais, na região não se produziriam grandes obras.
  • 40
    A autora de Homens livres na ordem escravocrata também não compartilha das ilusões desenvolvimentistas dos participantes do Seminário de O capital apontadas mais recentemente pelo autor de Ao vencedor as batatas.
  • 41
    Moretti diz que a inspiração original de seu projeto vem da observação de Frederic Jameson, realizada ao prefaciar um trabalho de crítica literária japonesa, segundo a qual, a "matéria-prima da experiência social japonesa e os padrões abstratos formais da construção literária ocidental não podem sempre ser soldados" (Moretti, 2000Moretti, Franco. (2000). Conjuctotes on world literature. New Left Review, 1, p. 54-68.: 58). Assinala que percebeu depois como Schwarz chegou, por sua própria via, ao mesmo problema. Isso, por sua vez, teria sugerido ao italiano uma investigação mais ampla, por assim dizer, com uma dimensão mundial.
  • 42
    Outra autora a trabalhar com uma perspectiva de literatura mundial é Pascale Casanova (2004)Casanova, Pascale. (2004). The world republic of letters. Cambridge: Harvard University Press.. Apoiada especialmente em Fernand Braudel e Pierre Bourdieu, pensa numa república mundial de letras, onde escritores situados na periferia buscariam a legitimação cultural de um centro, identificado com nações com maior capital literário, como a França e a Inglaterra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Adorno, Theodor. (1999). Sound figures Stanford: Stanford University Press.
  • Adorno, Theodor. (1997). Aesthetic theory Minneapolis: University of Minnesota Press.
  • Almeida, Jorge de (2007). Pressupostos, salvo engano, dos pressupostos, salvo engano In: Cevasco, Maria Elisa & Ohata, Milton (orgs.). (2007). Um crítico na periferia do capitalismo São Paulo: Companhia das Letras, p. 44-53.
  • Arantes, Paulo. (1997). Sentido da formação Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Arantes, Paulo. (1992). Sentimento de dialética Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Bernardelli, Alfonso. (2002). L'incontro con la realtà. In: Moretti, Franco. (org.). Il romanzo - le forme vol. II. Turim: Giulio Einaudi Editore, p. 342-381.
  • Bosi, Alfredo. (1992). Dialética da colonização São Paulo: Companhia das Letras.
  • Botelho, André. (2012). Teoria e história na sociologia política brasileira: a crítica de Maria Sylvia Carvalho Franco. Anais do 36º Encontro Nacional da ANPOCS, GT Pensamento Social Brasileiro, Águas de Lindóia, SP, 21-25 de outubro.
  • Brandão, Gildo Marçal. (2007). Linhagens do pensamento político brasileiro São Paulo: HUCITEC.
  • Campos, Haroldo. (1981). Da razão antropofágica. Revista Colóquio/Letras, 62, jul., p. 10-25.
  • Candido, Antonio. (1993). Formação da literatura brasileira Belo Horizonte: Itatiaia.
  • Candido, Antonio. (1993). O discurso e a cidade São Paulo: Duas Cidades.
  • Cardoso, Fernando Henrique. (1997). Capitalismo e escravidão no Brasil meridional Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. (1988). Dependencia y desarrollo en América Latina Mexico, D. F.: Siglo XXI.
  • Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1983). Homens livres na ordem escravocrata São Paulo: Kairós Livraria Editora.
  • Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1976). As ideias estão no lugar. Cadernos de Debate, 1, p. 61-64.
  • Carvalho Franco, Maria Sylvia. (1970). O moderno e suas diferenças Tese de livre docência. Departamento de Ciências Sociais/Universidade de São Paulo.
  • Casanova, Pascale. (2004). The world republic of letters Cambridge: Harvard University Press.
  • Cazes, Pedro. (2013). A sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: pessoalização, capitalismo e processo social Dissertação de mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • Coutinho, Carlos Nelson. (1990). Cultura e sociedade no Brasil Belo Horizonte: Oficina de Livros.
  • Coutinho, Carlos Nelson. (1976). Cultura brasileira: um intimismo deslocado, à sombra do poder. Cadernos de Debate, 1, p. 65-67.
  • Derrida, Jaques. (1967). De la grammatologie Paris: Éditions Minuit.
  • Fiori, José Luís. (2001). 60 lições dos 90 Rio de Janeiro: Record.
  • Gledson, John. (2006). Por um novo Machado de Assis São Paulo: Companhia das Letras.
  • Hanciau, Nubia. (2005). O entre lugar. In: Figueiredo, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura Juiz de Fora/Niterói: Ed. UFJF/EdUFF, p. 215-241.
  • Lukács, Georg. (1974). L' ame et les formes Paris: Gallimard.
  • Lukács, Georg. (1965). Ensaios sobre literatura Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Machado de Assis. (1997). Obras completas Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
  • Marx, Karl. (1986). O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Marx, Karl. (1986). O capital vol. I. São Paulo: Abril Cultural.
  • Moretti, Franco. (2000). Conjuctotes on world literature. New Left Review, 1, p. 54-68.
  • Naves, Rodrigo. (1996). A forma difícil São Paulo: Ática.
  • Oliveira Vianna, Francisco José. (1939). O idealismo da Constituição São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • Palti, Elias. (2007). El tiempo de la política Buenos Aires: Siglo XXI.
  • Ricupero, Bernardo. (2008). Da formação à forma. Ainda "as ideias fora do lugar". Lua Nova, 73, p. 59-69.
  • Rodrigues, Lidiane Soares. (2012). A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e "um seminário" (1958-1978) Tese de doutorado. Departamento de História/Universidade de São Paulo.
  • Santiago, Silviano. (1978). Uma literatura nos trópicos São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • Schwarz, Roberto. (2012). Martinha versus Lucrécia São Paulo: Companhia das Letras.
  • Schwarz, Roberto. (2008). Ao vencedor as batatas 30 anos: crítica da cultura e processo social. Entrevista concedida a André Botelho e Lilia Schwarcz. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 67, p. 147-194.
  • Schwarz, Roberto. (2001-2002). Entrevista com Roberto Schwarz, por Eva Corredor. Literatura e Sociedade, 2, p. 14-39.
  • Schwarz, Roberto. (1999). Sequências brasileiras São Paulo: Companhia das Letras.
  • Schwarz, Roberto. (1992). O pai de família Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Schwarz, Roberto. (1992). Ao vencedor as batatas São Paulo: Duas Cidades.
  • Schwarz, Roberto. (1990). Um mestre na periferia do capitalismo São Paulo: Companhia das Letras.
  • Schwarz, Roberto. (1989). Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras.
  • Waizbort, Leopoldo. (2007). A passagem do três ao um São Paulo: Cosac Naif.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2013
  • Aceito
    17 Jun 2013
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com