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O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS: COGNIÇÃO, AMBIENTE, ACOPLAMENTOS

THE EXTENDED BODY OF BLIND PEOPLE: COGNITION, ENVIRONMENT, LINKAGES

Resumo

A maneira como diversos campos científicos entendem a cegueira fundamenta modos de atuação com pessoas cegas e o desenvolvimento de técnicas, objetos, intervenções específicas que guiam sua percepção de mundo. Neste artigo pretende-se, primeiramente, compreender os pressupostos de uma noção de cognição formulada em manuais de desenvolvimento e aprendizagem para crianças cegas e algumas de suas consequências conceituais. Em seguida, volta-se a atenção para métodos, didáticas ou mecanismos adaptativos sugeridos em tais manuais para uma pedagogia da cegueira. Chega-se, finalmente, a um conhecimento prático e um saber-fazer desenvolvido por pessoas cegas e profissionais em atendimentos de reabilitação que corroboram uma compreensão da cognição e do próprio corpo como estendidos, ao enfatizar o papel do ambiente e dos dispositivos no cotidiano de pessoas cegas.

Palavras-chave:
Cegueira; Corpo; Cognição; Práticas; Ambiente

Abstract

Modes of proceeding with blind people and the development of techniques, objects and specific interventions that guide their perception of the world are based in the way different scientific fields understand blindness. This article intends to understand the assumptions of a concept of cognition that appears in manuals about the development and learning of blind children and some of their conceptual consequences. It then focus on the methods, didactic or adaptive mechanisms suggested by these manuals for a pedagogy of blindness. Finally, it discusses the practical knowledge and know-how developed by blind people and professionals in a rehabilitation care system that corroborate an understanding of an extended body and cognition while emphasizing the role of the environment and assistive devices in everyday life of blind people.

Keywords:
Blindness; Body; Cognition; Practice; Environment

Na questão da cegueira, a relação entre teoria e prática parece se atualizar em diferentes níveis. As teorias sobre os processos de desenvolvimento cognitivo, conhecimento e aprendizagem produzidas por cientistas ou especialistas vão informar os manuais e a prática de outros profissionais. Estes, por meio de sua atuação com as pessoas cegas nos serviços de reabilitação e nas atividades escolares, constituem certo "corpo teórico-prático", que vai orientar o aprendizado e o desenvolvimento de modos de estar no mundo de pessoas cegas. E finalmente, as próprias pessoas cegas e suas formas de percepção, suas próprias habilidades, modos de ser, de fazer, de estar no mundo, com o espaço para aquilo que digerem e geram nessas interfaces. A cegueira atravessa fronteiras disciplinares e está irremediavelmente relacionada a concepções de corpo.

Considerando essa malha (Ingold, 2011Ingold, Tim. (2011). Being alive: essays on movement, knowledge and description. Nova York: Routledge.), busca-se, neste artigo, atentar para teorias que servirão de base para pedagogias e práticas educativas. A forma como se entende o corpo cego pelos diversos campos científicos envolvidos fundamenta modos de atuação com pessoas cegas e o desenvolvimento de técnicas, objetos, intervenções, pedagogias específicas que guiam sua percepção de mundo. Pretende-se, em um primeiro momento, explicitar os pressupostos de uma noção de cognição presente em manuais de desenvolvimento e aprendizagem para crianças cegas e algumas de suas consequências conceituais.

Em um segundo momento, volta-se a atenção para métodos, didáticas ou mecanismos adaptativos sugeridos em tais manuais para uma pedagogia da cegueira. As práticas propostas fazem emergir outra concepção de cognição, implícita em tais manuais, relacionada à experiência e à ação de um corpo inteiro em um ambiente. Trata-se aqui, finalmente, de um conhecimento prático e de um saber-fazer desenvolvido por pessoas cegas e profissionais nos atendimentos de reabilitação que corroboram uma compreensão da cognição e do próprio corpo como estendidos, ao enfatizar o papel do ambiente e dos dispositivos no cotidiano de pessoas cegas.

Para tanto, são analisados manuais de Estimulação Precoce e Orientação e Mobilidade produzidos pelo Ministério da Educação (MEC) e material de campo realizado no Instituto Benjamin Constant.1 1 O Imperial Instituto dos Meninos Cegos, antigo nome do Instituto Benjamim Constant, foi criado na cidade do Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II no ano de 1854 e foi a primeira escola do país destinada à educação de pessoas cegas. Atualmente é um centro de referência nacional para questões da área de deficiência visual. No material de campo encontram-se entrevistas com profissionais do Instituto, observação participante em atendimentos da área de reabilitação (mais especificamente Habilidades Básicas e Atividades da Vida Diária), material do curso de formação em técnico de Orientação e Mobilidade, de 40 horas, realizado em abril de 2012, além de entrevistas com pessoas cegas.

Múltiplas cegueiras são acionadas - nos termos de Mol (2002)Mol, Annemarie. (2002). The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press., de difícil tradução, enacted - em diferentes práticas: no diagnóstico médico oftalmológico, em artigos das ciências cognitivas e da neurociência, em manuais sobre práticas educacionais e pedagógicas para crianças cegas, em atendimentos em centros de reabilitação realizados por profissionais especializados (psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, entre outros), na vida cotidiana de pessoas cegas. O conhecimento pode ser tratado não mais como um referencial, ou como uma série de declarações sobre a realidade, mas como uma prática que interfere em outras práticas, que participa na realidade.

As definições de cognição e cegueira que entram em jogo em textos e manuais têm efeitos de realidade. A maneira como a cegueira é definida - como uma falta, como algo a ser superado, como uma forma de estar no mundo, por exemplo - faz diferença para a maneira como a própria cegueira será percebida pelas pessoas que vivem essa realidade. E não é só a realidade da cegueira que está em jogo. Muitas outras realidades estão aí envolvidas. A cegueira não vem sozinha, ela traz consigo os modos e modulações de outras definições - corpo, (a)normalidade, (d)eficiência, autonomia, visualidade, para mencionar apenas algumas.

OS MANUAIS DE DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM DE CRIANÇAS CEGAS

Quatro dos manuais analisados foram desenvolvidos no Brasil por iniciativa da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC) e um deles pela Secretaria de Educação a Distância, também do MEC. Além dos manuais, foram selecionados textos que tratam especialmente do que se convencionou chamar de programas de "estimulação precoce", "intervenção precoce" ou "estimulação essencial". De acordo com Navarro, Fontes & Fukujima (1999)Navarro, Andréa Sanchez; Fontes, Sissy Veloso & Fukujima, Marcia Maiumi. (1999). Estratégias de intervenção para habilitação de crianças deficientes visuais em instituições especializadas: estudo comparativo. Neurociências, 7/1, p. 13-21., a estimulação precoce seria uma intervenção terapêutica educacional e social utilizada por uma equipe multidisciplinar para habilitar deficientes visuais por meio da exploração de outros canais perceptivos.

A primeira questão que emerge da leitura dos manuais gira em torno da palavra remanescente que, segundo o dicionário Aurélio, significa: Resto, sobra, sobejo; o que fica de um todo depois de retirada uma parte. A aplicação sistemática desta palavra ou mesmo da expressão "resíduo visual"2 2 "O que resta. O que resta de substâncias submetidas à ação de diversos agentes", segundo o Aurélio. para indicar o uso que se faz da visão por pessoas cegas ou com baixa visão, em vez de remeter a um todo completo, a algo que se tem ou se é, nos remete ao que falta, ao que se perdeu. Ainda que o sentido visual nunca tenha estado, como no caso de cegos congênitos, o que se tem - todos os outros sentidos - é o resto, é aquilo que sobra, remetendo a uma perda irremediável do que nunca se teve. Mesmo que a parte não tenha sido retirada, esse todo não é considerado inteiro.

O incômodo com o uso recorrente da palavra "remanescente" levou a uma busca simples pela palavra nos cinco manuais de deficiência visual analisados, e ela foi encontrada 23 vezes. Como fator de comparação e analogia, procurou-se pela mesma palavra em quatro manuais, todos eles desenvolvidos também pelo MEC,3 3 Foram consultados os seguintes manuais: Série Atualidades Pedagógicas: Educação Especial - deficiência auditiva (1997); Saberes e Práticas da Inclusão - Desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos (2006); Educação infantil: saberes e práticas da inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: surdez (2006); Atendimento Educacional Especializado - pessoa com surdez (2007). sobre deficiência auditiva. Sendo esta uma deficiência também sensorial, a hipótese foi a de que a visão, o tato, o olfato, a propriocepção, seriam considerados os sentidos remanescentes do indivíduo que nasce com deficiência auditiva. Entretanto, nos quatro manuais pesquisados não foi encontrada nem uma única vez a palavra "remanescente".

Esse destaque dado à ausência, perda ou falta em pessoas cegas pode ser associado à predominância que se dá à visão na hierarquização dos sentidos. Essa preponderância, que também aparece nos artigos das ciências cognitivas (Hatwell, 2003Hatwell, Yvete. (2003). Le développement perceptivo-moteur de l'enfant aveugle. Enfance, 55, p. 88-94.), é reforçada nos manuais sobre a educação de crianças cegas e textos sobre estimulação precoce, a partir da afirmação de que 80% das informações que recebemos do ambiente nos chegam pela visão:4 4 Outros manuais ou artigos que utilizam o mesmo percentual: Brasil (2001), Figueira (2000) e Lima & Silva (2000). "a visão exerce papel fundamental no conhecimento, controle e adaptação ao meio. É sabido que a visão transmite com rapidez e precisão, antecipa e coordena os movimentos e ações e responde por 80% do relacionamento do indivíduo com o mundo" (Brasil, 2001Brasil. (2001). Programa de capacitação de recursos humanos do ensino fundamental: deficiência visual. Marilda Moraes Garcia Bruno, Maria Glória Batista da Mota em colaboração com o Instituto Benjamin Constant. Brasília: MEC/SEESP . (vol. 1, 2 e 3)). Esse pressuposto, apresentado sem problematização ou controvérsia e que poderia ser relacionado à "caixa preta" de Latour (2001)Latour, Bruno. (2001). A esperança de Pandora. São Paulo: Edusc., foi criticado por diversos autores5 5 Kastrup, Carijó & Almeida (2009), Batista & Enumo (2000), Monteiro (2009), Batista (2005), Moraes & Arendt (2011), são alguns deles. que questionam a origem de tal afirmação, já que em nenhum dos estudos em que aparece se designa a fonte ou o método de pesquisa aplicado.

Podemos encontrar nos manuais um dos pressupostos das ciências cognitivas na sua vertente cognitivista computacional - a separação entre interno e externo e o processo cognitivo como resultado de uma operação que se inicia pela transmissão de informação por meio dos canais perceptivos. No caso da cegueira, não existindo a principal via de transmissão de informação - a visão - coloca-se a necessidade de uma estimulação mediada dos outros sentidos: "para que o aprendizado seja completo e significativo é importante possibilitar a coleta de informação por meio dos sentidos remanescentes. A audição, o tato, o paladar e o olfato são importantes canais ou porta de entrada de dados e informações que serão levados ao cérebro" (Brasil, 2007Brasil. (2007). Formação continuada a distância de professores para o Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual. Brasília: SEESP, SEED, MEC.).

Um dos principais pontos que se destaca na comparação feita nos manuais entre o desenvolvimento do bebê considerado normal e o de um bebê cego é uma sobreposição do processo de desenvolvimento cognitivo humano ao processo de maturação da capacidade visual do organismo. O processo de desenvolvimento do bebê vidente é justaposto ao desenvolvimento das duas principais funções medidas para a classificação médica oftalmológica de uma pessoa como cega: a acuidade e o campo visual. A capacidade visual é que impulsionaria o movimento e o bebê cego, na ausência da visão, não teria motivação para explorar um ambiente que não pode ser visto, seu mundo ficaria restrito (Rodrigues & Macário, 2006Rodrigues, Maria Rita Campello & Macário, Nilza Magalhães. (2006). Estimulação precoce: sua contribuição no desenvolvimento motor e cognitivo da criança cega congênita nos dois primeiros anos de vida. Revista Benjamin Constant, 33. Disponível em: <http//www.ibc.gov.br/>. Acesso em 24 fev 2014.
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); teria um contato limitado com o ambiente (Brasil, 2007Brasil. (2007). Formação continuada a distância de professores para o Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual. Brasília: SEESP, SEED, MEC.); não teria o estímulo visual para despertar o interesse pelo deslocamento ou movimento (Figueira, 2000Figueira, Maria Margarete Andrade. (2000). Assistência fisioterapia à criança portadora de cegueira congênita. Revista Benjamin Constant, 17. Disponível em <http//www.ibc.gov.br/>. Acesso em 24 fev 2014.
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; Carletto, 2008Carletto, Marcia Regina Vissoto. (2008). A estimulação essencial da criança cega. Curitiba: Programa de Desenvolvimento Educacional.); não teria interesse pelo mundo exterior (Ochaita & Rosa, 1995Ochaita, Esperanza & Rosa, Alberto. (1995). Percepção, ação e conhecimento nas crianças cegas. In: Coll, César; Palacios, Jésus & Marchesi, Álvaro (orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 183-197.); seu mundo se tornaria pobre e ele se manteria ocioso e passivo diante do mundo que o cerca (Rodrigues & Macário, 2006Rodrigues, Maria Rita Campello & Macário, Nilza Magalhães. (2006). Estimulação precoce: sua contribuição no desenvolvimento motor e cognitivo da criança cega congênita nos dois primeiros anos de vida. Revista Benjamin Constant, 33. Disponível em: <http//www.ibc.gov.br/>. Acesso em 24 fev 2014.
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).

Como possível consequência do "reinado soberano da visão na hierarquia dos sentidos" (Brasil, 2007Brasil. (2007). Formação continuada a distância de professores para o Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual. Brasília: SEESP, SEED, MEC.), o predomínio do visual acaba tendo um efeito de naturalização, como se a capacidade de ver também não fosse fruto de estímulo e aprendizado. Numa aparente confusão entre inato e adquirido, a capacidade visual vai se tornando equivalente à natureza, e o seu uso, a forma natural do desenvolvimento cognitivo. Ter um desenvolvimento cognitivo considerado normal por meio do uso dos outros sentidos - ou seja, equivalente ao de pessoas que enxergam e medido de acordo com seus parâmetros - é considerado absolutamente possível sem a visão, mas apenas alcançável através de aprendizado, de cultura. Conhecer o mundo por meio dos outros sentidos, ao contrário do imediatismo e facilidade da visão, é uma habilidade a ser estimulada, ensinada e aprendida.

A justaposição da capacidade de enxergar com a habilidade de ver tem um efeito de apagamento do processo de educação da atenção aos estímulos visuais, como se apenas os outros estímulos sensoriais fossem aprendidos. Compreender o mundo pela visão já não é mais aprendizagem, mas um processo automático, natural, imediato: "tudo que as outras crianças aprendem naturalmente deve ser ensinado passo a passo, pouco a pouco, desde o nascimento, nas diferentes situações de vida, a uma criança cega" (Farias, 2004); ou ainda: "A descoberta sobre as propriedades dos objetos que a criança vidente realiza de forma automática e espontânea, ao observar e relacionar as diferenças de cores, formas, tamanhos, proporções, pesos e encaixes dos objetos, a criança com deficiência visual não faz" (Brasil, 2006Brasil. (2006). Educação infantil. Saberes e práticas da inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: deficiência visual. Elaboração de Marilda Moraes Garcia Bruno - consultora autônoma. 4. ed. Brasília: MEC/SEESP.).

Nessa oposição entre natureza e cultura, inato e adquirido, visão e cegueira, e com o apagamento do processo de aprendizagem de mundo da criança que enxerga, vai se constituindo um quadro em que o desenvolvimento de uma criança cega, ao ser comparado ao de uma criança vidente, tem a propensão "natural" de ser considerado "atrasado", "empobrecido" e tendendo à "passividade", caso não haja uma intervenção da "cultura" - estímulo, trabalho, ensino. Tudo se passa como se o interesse pelo mundo só pudesse ser despertado pela visão e o que fica apagado nesse jogo de naturalização do ver é o quanto a sociedade se organiza fundamentalmente em torno da visão - os brinquedos, as brincadeiras, os jogos, os estímulos são centrados basicamente em sua visualidade. Ao transformar em inatismo uma habilidade também aprendida - a de enxergar - transveste-se de natureza a desvantagem da deficiência.

Como lembra Wagner (2010)Wagner, Roy. (2010). A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify., se desejamos levar a invenção a sério, devemos estar preparados para abandonar muitas de nossas suposições sobre o que é real e sobre por que as pessoas agem como agem. Os vários contextos de uma cultura obtêm suas características significativas uns dos outros, por meio da participação de elementos simbólicos em mais de um contexto. Eles são inventados uns a partir dos outros, e a ideia de que alguns contextos reconhecidos em uma cultura são "básicos" ou "primários", representam o "inato" ou de que suas propriedades são de algum modo essencialmente objetivas ou reais é, para o autor, uma ilusão cultural. Wagner considera que todos os nossos procedimentos de treinamento e educação, as teorias de desenvolvimento infantil e as expectativas que despertam não são outra coisa além de máscaras para a invenção coletiva de um eu "natural"; invenção que não se limita à infância ou à educação, mas se estende a um vasto leque de controles.

Não se está colocando em questão aqui a necessidade e a validade da intervenção para uma criança que nasce cega, mas, sim, o ponto de onde se parte (visão inata, outros sentidos aprendidos) e o fim que se busca alcançar (equivalência, aproximação ou substituição de uma experiência de mundo visual). Com a reprodução sistemática de uma norma hierárquica dos sentidos que privilegia a visualidade, o que se perde é a possibilidade de compreensão de experiências outras de mundo e o caráter múltiplo da realidade.

PRÁTICAS DE DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM E SUA APROXIMAÇÃO COM UMA CONCEPÇÃO DA COGNIÇÃO INCORPORADA

Tudo que a criança vidente compreende automaticamente pela visão, a criança com deficiência visual necessita vivenciar com seu próprio corpo, de forma integrada (Brasil, 2001Brasil. (2001). Programa de capacitação de recursos humanos do ensino fundamental: deficiência visual. Marilda Moraes Garcia Bruno, Maria Glória Batista da Mota em colaboração com o Instituto Benjamin Constant. Brasília: MEC/SEESP . (vol. 1, 2 e 3)).

À ausência da visão, os outros sentidos passam a existir e a serem estimulados na criança cega. A apreensão do mundo acontece fundamentalmente pela dimensão da experimentação, que é considerada essencial para o seu desenvolvimento. Se nos manuais o aprendizado pela visão é percebido como inato, natural, imediato, a aprendizagem de quem é cego precisa de experiência, de mediação, de atribuição de significado. A falta da visão acarretaria uma "escassez de informação" que só poderia ser compensada por meio de vivências diversas e significativas. Nos manuais destaca-se a necessidade de estimular o bebê, desde os primeiros meses de vida, ao movimento, ação e exploração do ambiente. Enquanto o bebê que enxerga apreende o mundo "de fora" basicamente por suas propriedades visuais e, motivado por elas, se lança à ação, o bebê cego precisa estar em contato com o mundo com o corpo inteiro. "Para a criança com deficiência visual o contato pele-pele e o diálogo corporal são formas primárias de comunicação e interação; são fronteiras vitais para a construção do eu e do outro e motivador essencial para despertar o desejo de busca das pessoas e objetos" (Brasil, 2001Brasil. (2001). Programa de capacitação de recursos humanos do ensino fundamental: deficiência visual. Marilda Moraes Garcia Bruno, Maria Glória Batista da Mota em colaboração com o Instituto Benjamin Constant. Brasília: MEC/SEESP . (vol. 1, 2 e 3)).

A construção das noções de permanência do objeto, antecipação de movimento, sucessão e comportamento de busca também são referências para o desenvolvimento de crianças cegas, mas o caminho para alcançá-las, como não pode ser estabelecido pela visão, é relacionado a uma "vivência corporal significativa", que está vinculada à ação. No desenvolvimento de crianças cegas também se atribui um papel destacado ao ambiente que, para ser favorável, deve ser estimulante para a criança, deve incentivar o comportamento exploratório com o corpo todo, a observação através da pesquisa de suas características táteis, sonoras, cinestésicas.

A criança cega inicia suas próprias descobertas no ambiente, onde objetos e pessoas se fazem necessários e a riqueza dos estímulos auditivos e táteis seja uma constante. É da percepção e ação da criança sobre o ambiente que se forma a representação mental da realidade (Farias, 2003).

Quando se analisam as práticas propostas pelos manuais e textos que tratam do desenvolvimento cognitivo e aprendizagem de crianças cegas, a importância que se atribui à ação em um ambiente, à exploração, à variabilidade de experiências e ao movimento para incentivar seu processo de desenvolvimento, estaria mais próxima da concepção da cognição como enação [enaction], proposta por Varela, Thompson & Rosch (1993)Varela, Francisco; Thompson, Evan & Rosch, Eleanor. (1993). The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge, MA: MIT Press., como uma ação incorporada.

Varela, Thompson & Rosch (1993)Varela, Francisco; Thompson, Evan & Rosch, Eleanor. (1993). The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge, MA: MIT Press. propõem inverter a atitude representacionista tratando o saber dependente do contexto não como um artefato residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras mais sofisticadas, mas como, de fato, a essência mesma da cognição criativa. O conhecimento dependeria de um estar no mundo que é inseparável do nosso corpo, língua, ou história social - em resumo, da nossa incorporação. A concepção de cognição proposta pelos autores não seria a de recuperação de um mundo externo previamente dado (realismo), nem a de projeção de um mundo interno previamente dado (idealismo), mas a de uma ação incorporada. A cognição dependeria, então, de tipos de experiência que advêm de se ter um corpo com suas diferentes capacidades sensório-motoras. Tais capacidades, individuais, estão elas mesmas embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente.

O interessante é que o argumento de que o conhecimento de mundo se desenvolve a partir da experiência e da ação de um corpo inteiro em um ambiente, que também forma a base de uma teoria da corporeidade que entende o corpo como sujeito da cultura (Csordas, 2008Csordas, Thomas. (2008). Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Ed. UFRGS.) ou da teoria da cognição incorporada (Varela, Thompson & Rosch, 1993Varela, Francisco; Thompson, Evan & Rosch, Eleanor. (1993). The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge, MA: MIT Press.), não pressupõe, nos manuais e textos analisados, o abandono da noção de representação do cognitivismo. Por falta de input visual é que a criança cega será incentivada à exploração corporal do ambiente, para ter acesso a informações de outros tipos, outros inputs táteis, auditivos etc., a fim de integrá-los para formar uma representação mental. Mantém-se no material analisado a dicotomia entre indivíduo/interno X meio/externo. Varela, Thompson & Rosch, ou ainda outros autores que desenvolvem uma abordagem da cognição que supera a noção de representação, vinculando-a ao ambiente por meio da ação e da prática (Clark & Chalmers, 1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998). The extended mind. Analysis, 58, p. 10-23.; Ingold, 2010Ingold, Tim. (2010). Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, 33/1, p. 6-25.), não são mencionados nem uma única vez em tais manuais.

Devido à contingência da falta da visão, o aprendizado de crianças cegas ocorrerá de uma maneira aproximada à abordagem enativa [enactive], da cognição como ação incorporada. Entretanto, ocorrerá num contexto onde se pressupõe um ponto final do desenvolvimento cognitivo, dado pelo processo de aprendizagem de crianças que enxergam. Afirma-se que o processo cognitivo da criança cega precisa se desenvolver a partir da ação de um corpo em um ambiente, mas, ao mesmo tempo, se mantém a noção de que o conhecimento se dá por meio do processamento de informações de um mundo previamente dado pela mente interna de um indivíduo. O que se busca, a partir das noções de exploração, movimento, ação no ambiente, é dar oportunidade à criança que não enxerga de colher o máximo de informações possíveis, auditivas, táteis etc., para construir internamente uma representação do mundo aproximada ao máximo de como ele "realmente" é. Nos manuais e textos analisados a cognição incorporada de cegos permanece submetida ao cognitivismo de videntes, entendido como o formato mais adequado para compreender uma realidade que está lá - aquele que vai gerar uma representação mental interna dessa realidade (fundamentalmente visual).

ORGANIZAÇÃO E AMBIENTE

Viu-se nas práticas de ensino para crianças cegas recomendadas nos manuais que a falta da visão provocaria outro modo de aprendizagem, segundo o qual o corpo inteiro precisa estar implicado no processo de conhecimento. A reformulação da aprendizagem através de outros estímulos, a necessidade de desenvolvimento de técnicas corporais não visuais, desvenda, nos próprios manuais, uma concepção de cognição que se distancia do modelo cognitivista da representação. Ainda que não apareça de modo explícito, ela emerge das práticas. Ao descrever, a seguir, a partir do trabalho de campo realizado, práticas e conhecimentos de pessoas com cegueira, gostaria de reforçar uma concepção da cognição como enação, como educação da atenção, em que o ambiente está fundamentalmente implicado no processo de percepção e conhecimento do mundo.

A composição do ambiente tem uma importância fundamental no cotidiano de pessoas cegas. Dizer isto não significa que todas as pessoas cegas sejam necessariamente organizadas, mas, sim, que a organização externa, aquilo que está fora do corpo, interfere na organização interna.

Caetano, um dos entrevistados, diz que deve haver um mínimo de organização em casa, para quando for buscar alguma coisa saber onde ela está. Embora não se considere uma pessoa muito organizada, diz que muitas vezes coloca as coisas de qualquer jeito, achando que vai encontrá-las depois, mas quando procura não se lembra onde colocou. Deu o exemplo da bengala: quando chega em casa, um dia a deixa em um lugar, outro dia, em outro lugar. No dia anterior à entrevista disse que procurou uma bengala para sair e não encontrou a que queria. Quando morava com outras pessoas ainda podia perguntar "viu minha bengala por aí?", mas, agora que mora sozinho, ele mesmo tem que procurar. Acha que precisa se organizar um pouco mais, até porque não tem mais de quem reclamar "tiraram isso daqui, caramba!". Diz que às vezes cego bota a culpa nos outros e a culpa é dele mesmo. Agora vai passar a fazer assim: quando estiver em casa deixará as duas bengalas que tem sempre no mesmo lugar.

Já Dora conta que sua casa também fica bagunçada, mas diz que existem diferentes tipos de bagunça. A dela é uma bagunça organizada:

A bagunça da minha casa, ela não é ostensiva. Bagunça ostensiva é aquelas casas que você não pode se mexer, porque onde você se mexer vai derrubar coisa. Ou por bagunça ou porque as pessoas colocam mesmo muita coisa. Geralmente são as duas coisas. Me dá falta de ar aquilo, não pode abrir os braços, não pode se movimentar. Isso eu chamo de ostensivo, isso eu não gosto não. A bagunça da minha casa ela é diferente, é assim, você abre uma gaveta, ela pode estar bagunçada, o armário pode estar bagunçado. Está dentro da onde tem que estar, mas está bagunça. É uma bagunça setorial. Meu quarto você entra, você anda, pode passar o aspirador. É uma bagunça, mas é uma bagunça organizada. As minhas bagunças são desse porte.

A importância da organização do ambiente vai se tornando mais explícita em práticas cotidianas, como as estratégias para cozinhar, a forma de organizar a geladeira, o jeito de lavar a louça. Jair conta que é ele quem faz a comida em casa, mas para cozinhar tem que estar sozinho na cozinha. Se alguém quiser entrar para beber água ele pede para a pessoa esperar na porta e ele mesmo leva o copo d'água até lá. Se alguém mexe, desorganiza. Quando faz compras no mercado é ele mesmo quem arruma. Sabe tudo o que está na geladeira porque coloca tudo organizadamente. Tempera a carne, corta e divide em saquinhos. Coloca uma parte embaixo e outra parte no congelador; organiza as coisas nas prateleiras; escolhe um lado para a carne, outro para o frango, carne seca no meio. Diz que hoje em dia quem mora com ele não tira mais as coisas do lugar, porque ele pede muito. Até o chamam de chato por causa disso.

O que a princípio poderia parecer chatice, na verdade é um ponto primordial na vida de uma pessoa cega. Segundo me disse a profissional de Terapia Ocupacional (TO), a organização é fundamental para a segurança, para a proteção no dia a dia, para saber onde as coisas estão. É importante que a própria pessoa organize ou esteja junto quando alguém estiver arrumando as coisas dentro de casa, acompanhe o lugar onde colocou, diga de qual jeito prefere. Se mudar algo de posição, tem que avisar para que lugar mudou. Nesse ponto, ela conta que deficiente visual que mora sozinho consegue viver melhor do que aquele que mora com muita gente. Ele mesmo põe as suas coisas no lugar que achar melhor, organiza como quer, sabe dar o seu próprio jeito. Quando se mora com muita gente, as coisas nunca estão no lugar que estavam, ainda mais em casa onde tem criança.

Enquanto a TO discorre sobre o assunto, a reabilitanda que está junto conosco entra na conversa e diz que naquela mesma semana a pessoa que trabalha em sua casa tinha arrumado a cozinha e mudado todas as coisas de lugar, até o lugar de colocar os talheres. Contou que ela, quando entrou na cozinha, ficou arrasada; não encontrava nada, ficou nervosa e até chorou. Disse que "essas coisas 'piram', o sistema nervoso fica abalado, aí mesmo é que eu perco tudo, esbarro em tudo, quebro coisa".

Podemos entender a dramaticidade do último relato se levarmos a sério o que já dizia Bateson (1989)Bateson, Gregory. (1989). El mundo del proceso mental. In: Bateson, Gregory & Bateson, Mary Catherine (orgs.). El temor de los ángeles. Barcelona: Gedisa, p. 29-42. a respeito da separação artificial entre mente e matéria. O autor considera monstruoso tentar separar o intelecto das emoções e igualmente monstruoso querer separar a mente externa da mente interna, ou a mente do corpo. Para Bateson, o mundo mental, a mente, é um mundo de diferenças e de processamento de informações que não se limita pela pele. As vias de mensagens que estão fora da pele devem, junto com as mensagens que transportam, ser incluídas como parte de um sistema mental. O autor sugere que a flexibilidade do ambiente deve ser incluída na flexibilidade do organismo, pois a unidade mínima de sobrevivência é o organismo-em-seu-ambiente.

A mente individual é imanente, mas não só ao corpo. É imanente também às vias de mensagens que se dão fora do corpo. O autor sustenta a ideia de mente que se expande ao que é externo ao corpo; as fronteiras do "eu", para Bateson, foram equivocadamente traçadas.

Clark & Chalmers (1998)Clark, Andy & Chalmers, David. (1998). The extended mind. Analysis, 58, p. 10-23. são autores que seguem um questionamento parecido - onde é que termina a mente e o resto do mundo começa? Defendem uma resposta para essa pergunta a partir do que chamam de externalismo ativo, conceito baseado no papel ativo desempenhado pelo ambiente na condução de processos cognitivos. Os autores acreditam que o organismo humano pode se vincular a uma entidade externa, criando um sistema acoplado que pode ser visto como um sistema cognitivo. Todos os componentes desse sistema desempenham um papel causal ativo, e eles conjuntamente governam o comportamento da mesma forma que a cognição usualmente faz. Se removermos o componente externo - ou, trazendo para a questão da organização do ambiente para pessoas cegas, se mudarmos as coisas de lugar sem avisá-las -, a competência comportamental do sistema acaba. A tese que os autores defendem é a de que esse tipo de processo de acoplamento equivale a um processo cognitivo, seja ou não realizado inteiramente na cabeça. Quando Jair cozinha, os aspectos externos relevantes estão ativos, e desempenham um papel crucial no aqui e agora.

A organização da geladeira de Jair ou da cozinha da reabilitanda, com os lugares específicos para água, copo, talheres, carnes, todos esses elementos, mesmo que Jair ou a reabilitanda não estejam diretamente interagindo com eles num determinado momento, estão acoplados aos seus organismos, tendo um impacto direto neles e em seus comportamentos. Juntos, podem ser considerados sistemas acoplados, como sugerem Clark & Chalmers. Os aspectos externos de um sistema acoplado desempenham um papel não eliminável - se mantivermos a estrutura interna, mas alterarmos os aspectos externos, o comportamento pode mudar completamente.

Ver a cognição como estendida não é tomar uma decisão meramente terminológica, faz uma diferença significativa para a metodologia da investigação científica. Clark & Chalmers indicam uma expressiva consequência, moral e social, quando se leva a sério esta concepção que, para pessoas cegas, parece absolutamente pertinente: em alguns casos, interferir no ambiente de alguém pode significar o mesmo que interferir na sua pessoa.

Uma vez que a hegemonia da pele e do esqueleto seja ultrapassada, os autores sugerem que poderemos ver a nós mesmos como criaturas do mundo, criaturas que formam sistemas estendidos: acoplamentos de organismos biológicos e recursos externos.

O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS: ACOPLAMENTOS, MEDIADORES, RECURSOS

Como poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu seu próprio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos? Todos eles foram quase-sujeitos circulando no coletivo que traçavam. Ele é feito desses objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi multiplicando as coisas que ele definiu a si mesmo (Latour, 1994Latour, Bruno. (1994). Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34.: 136).

Em 1991, antes da disseminação generalizada de computadores, Internet, tablets, celulares com câmeras digitais e inúmeras outras invenções e tecnologias que redimensionam a ideia de acoplamento organismo-máquina, problematizando fronteiras como natureza e cultura, Haraway (1991)Haraway, Donna. (1991). Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. Nova York: Routledge. já escrevia sobre as tecnologias de comunicação e as biotecnologias como ferramentas cruciais no processo de remodelação de nossos corpos. Para a autora, no final do século XX já éramos todos quimeras, híbridos - teóricos e fabricados - de máquina e organismo; já éramos todos ciborgues.

Clark (2003)Clark, Andy. (2003). Natural-born cyborg: minds, technologies, and the future of human intelligence. Oxford: Oxford University Press. também defende que somos todos ciborgues, não meramente no sentido superficial de combinar carne e ferro, mas no sentido mais profundo de sermos simbióticos humano-tecnológicos: sistemas de pensamento e razão cujas mentes e corpos estão espalhados por cérebros biológicos e circuitos não-biológicos. Para o autor seres humanos são ciborgues desde o nascimento. Nos dias atuais é difícil imaginar corpos que não sejam já marcados, equipados e estendidos por dispositivos.

A proliferação de objetos híbridos que não podem ser considerados nem totalmente sociais, nem totalmente naturais, foi apontada por Latour (1994)Latour, Bruno. (1994). Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34. como efeito colateral de um paradigma que já não mais se sustenta - a separação radical entre natureza e cultura, humanos e não-humanos. A teoria do ator-rede considera a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas, todos como efeitos gerados por redes de diversos materiais, não apenas humanos. Como indica Law (1992)Law, John. (1992). Notes on the theory of actor-network: ordering, strategy and hetergeneity. Systems Practice,4/5, p. 379-393., essa teoria entende que qualquer agente pode ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos. As redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, arquiteturas - quaisquer materiais.

Law insiste que quase todas as nossas interações com outras pessoas são mediadas por objetos. Utilizando a comunicação como exemplo, o autor aponta o computador, o livro (na comunicação autor-leitor), o telefone, a carta, como alguns dos objetos mediadores que participam da interação. Para a teoria do ator-rede essas várias redes participam do social, elas o moldam. E, de forma mais fundamental, elas são necessárias para diversos tipos de relacionamentos sociais.

A intenção, neste momento, é considerar algumas hibridizações locais dos organismos com objetos e técnicas em relações cotidianas da cegueira. Apesar de existirem outros dispositivos, tão diferenciados quanto marcadores, softwares leitores de voz, gravador, óculos escuros, entre outros, focarei em um objeto específico: a bengala. É também nas interações com objetos, técnicas e recursos que (d)eficiências são criadas, atuadas, deslocadas, adaptadas, transformadas.

BENGALA: OBJETO-CORPO PERCEPTIVO

A bengala, o bastão ou a vara são objetos que serviram como auxiliares de movimento para cegos e deficientes visuais ao longo da história. No início do século XX a bengala começa a ser usada da forma como a conhecemos hoje, na cor branca, como um símbolo para alertar os outros para o fato de que aquele indivíduo é cego.6 6 As informações sobre o histórico da bengala branca estão no relatório da conferência "The cane as a mobility aid for the blind" (1972).

O desenvolvimento de um método de uso sistemático da bengala branca para locomoção é associado ao esforço do médico oftalmologista americano Richard Hoover para auxiliar veteranos da Segunda Guerra Mundial que haviam ficado cegos. O treinamento para o uso da bengala para detectar objetos e prover proteção é uma fase importante no processo de reabilitação ou na formação de uma pessoa cega.

A técnica do toque com a bengala foi desenvolvida por Hoover como um método seguro e eficiente de locomoção para os cegos. Quando executada corretamente fornece proteção contra objetos situados na calçada; transmite características da textura das superfícies em contato com sua ponta ao conduzir as vibrações para o dedo indicador, a mão e os ouvidos; alerta o usuário para mudanças verticais na superfície, tais como aclives, buracos, declives. Qualquer omissão ou desvio na execução prescrita da técnica do toque reduz a sua efetividade, pondo em risco a segurança do indivíduo.

A bengala branca é descrita não apenas como uma ferramenta ou um dispositivo que pode ser utilizado por cegos para alcançar independência, mas também como um símbolo da cegueira. Esse duplo papel - funcional e simbólico - coloca o objeto numa posição liminar e ambígua de pureza e perigo (Douglas, 1991Douglas, Mary. (1991). Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70.). Pureza porque o seu uso organiza a locomoção de cegos, a sua incorporação promove a autonomia, a liberdade de ir e vir. Perigo porque ao mesmo tempo o seu uso contamina a identidade social do indivíduo, marcando-o como cego e imediatamente acionando os estigmas e preconceitos sociais relacionados à cegueira. Nesse artigo enfatizo o caráter humano deste objeto e o processo de sua inscrição como corpo.7 7 A bengala é um objeto que possui importância central para uma reflexão sobre identidade social e o estigma relacionado à cegueira (Goffman, 1975). Nesse momento, devido ao enfoque da discussão proposta, privilegiarei os usos e articulações que se fazem com o objeto.

A introdução e as técnicas de uso da bengala longa são apresentadas para a pessoa cega nos treinamentos de Orientação e Mobilidade (OM). No caso da criança que nasce cega é indicado desde cedo o desenvolvimento de atividades conhecidas como "pré-bengala", que envolvem experiências preliminares com o objetivo de facilitar a compreensão do uso e a posterior manipulação eficiente da bengala. Dentre essas atividades encontram-se, principalmente, brinquedos de empurrar - carrinhos de boneca, bastão com rodinhas na ponta, banquinhos e cadeirinhas, raquete grande feita com bambolê, carrinho de feira, vassouras etc. -, os quais exploram posições do braço e do punho, o deslocamento com o auxílio de um objeto e a relação entre o chão, o objeto e o corpo durante o movimento.

Bateson (1998)Bateson, Gregory. (1998). Pasos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires: Lohlé-Lumen. propõe pensar a conduta de locomoção de um cego com uma bengala como um sistema cibernético, em que a bengala é a via ao longo da qual se transmitem informações de diferenças do caminho. Para o autor, a pergunta sobre o limite do "Eu" - se estaria na fronteira da pele ou situado em algum lugar no meio da bengala - não faz sentido, sendo necessário levar em conta o sistema como um todo - a rua, a bengala, a pessoa, a rua, a bengala, e assim sucessivamente.

Para alcançar o funcionamento ótimo desse sistema é preciso que a pessoa passe por um treinamento sistemático. Por meio do aprendizado de uma série de técnicas e de sua repetição com o acompanhamento de um profissional, a bengala e o corpo vão aos poucos se tornando uma mesma entidade no processo de locomoção. As técnicas da bengala longa tem a finalidade de habilitar pessoas com deficiência visual a se locomoverem com segurança, eficiência e independência, tanto em ambientes familiares como desconhecidos. A TO que acompanhei diz que alcançar a mobilidade independente e segura é o objetivo máximo dos atendimentos de OM, nem sempre possível para todas as pessoas cegas. O sucesso depende de uma série de fatores, mas o principal é se a pessoa consegue se adaptar corporalmente à bengala e incorporar as técnicas relativas ao seu uso.

O primeiro passo, a forma como se segura a bengala. Duas maneiras possíveis são utilizadas para diferentes movimentos e finalidades: (a) empunhadura de lápis: segura-se o cabo da bengala como se segura um lápis, a bengala fica em posição vertical; (b) empunhadura de toque: o cabo da bengala é apoiado sobre a palma da mão, o dedo indicador se estende sobre o corpo da bengala. Os dedos polegar, médio, anular e mínimo se fecham contornando o punho da bengala.

Com a bengala em lápis, a pessoa deve erguer a ponta da bengala a poucos centímetros do solo, realizando esporadicamente alguns toques no chão para verificar a distância entre o solo e a ponta da bengala. É utilizada, por exemplo, para medir a altura de degraus ao subir escadas, ou checar a altura de um meio-fio.

A técnica da varredura proporciona à pessoa uma exploração imediata e completa do solo na área próxima ao corpo. Desliza-se a ponta da bengala à frente, verticalmente, e retorna-se até a linha dos pés descrevendo semicírculos. A TO diz que quando o reabilitando tem muito medo de cair em buracos na rua, por exemplo, ela logo ensina a técnica da varredura para que ele possa detectar o buraco e se sentir mais seguro.

A principal técnica para a locomoção com a bengala, e que vai garantir maior segurança no caminhar, é a técnica do toque, originalmente desenvolvida por Hoover. O objetivo desta técnica é permitir que a pessoa cega detecte diferenças de níveis e objetos que se encontram no plano do solo à linha da cintura, em ambientes internos e externos, familiares ou desconhecidos. Durante este procedimento, segura-se a bengala com a empunhadura de toque: o dedo indicador apoiado no corpo da bengala, como se ela fosse a sua extensão, a mão inclinada à frente da linha média e afastada do corpo, e o dorso da mão voltado para fora. O movimento da bengala é determinado pela ação do punho, não se deve mexer o braço. Desta maneira, o toque será feito no solo com uma amplitude de aproximadamente cinco centímetros além de cada ombro. Ao deslocar a bengala de um lado para o outro, a ponta da bengala deve ficar rente ao solo.

Um dos pontos mais difíceis desta técnica, ao mesmo tempo fundamental para sua correta execução, é a coordenação pé-bengala (ou toque-passada). Ao caminhar, a pessoa deve sempre deslocar a bengala para o lado oposto do pé que está em movimento. Deve estabelecer um ritmo, sincronizando o toque da bengala no solo com a passada do pé do lado oposto à bengala. A coordenação pé-bengala é a única garantia de que o chão está sendo pré-rastreado antes de a pessoa pisar, o que previne o esbarrão com algum objeto ou a queda em um buraco. Quando precisar ter mais informações sobre o solo à frente, a pessoa deve fazer a técnica da varredura.

A TO diz que no começo é muito difícil a coordenação entre pé e bengala, exigindo extrema concentração e muitas correções. Aos poucos, com a repetição e a prática, a técnica começa a fluir. Aprender a utilizar a bengala é uma readaptação fisiológica. Não se costumava andar o tempo inteiro com um objeto nas mãos. A bengala interfere em tudo - na tomada de direção, na postura, no posicionamento. Muda o ponto de equilíbrio.

A bengala, um quase-objeto mudo que, no entanto, articula muitas coisas. Sobre ela se diz que torna-se um prolongamento do corpo, do braço, do dedo. É ela que diz que há espaço e que ali se pode andar, que o caminho à frente está livre. Renata conta que andar com ela dá a segurança de que, "antes de você esbarrar, a bengala vai 'ver' o obstáculo". Camila diz que se alguém levanta a bengala de um deficiente visual na rua é a mesma coisa que colocar, de repente, uma venda nos olhos de quem enxerga. É uma interrupção que interfere diretamente no coletivo híbrido corpo-bengala-caminho, interrompendo a percepção. A reação imediata, segundo Camila, é de não se saber mais onde está, a pessoa fica perdida, o que pode provocar nervosismo e instabilidade. A bengala, no caminhar do cego, faz parte do seu espaço corporal, é como se fosse uma extensão da pele ou do órgão perceptivo do tato. Interferir numa bengala em pleno uso, na comparação de Camila, é cortar uma experiência sensorial e perceptiva que estava em andamento.

Para Latour (1994)Latour, Bruno. (1994). Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34., o humano só pode ser captado e preservado se devolvermos a ele esta outra metade de si mesmo - a parte das coisas. Deveríamos falar em morfismo. São suas alianças e suas trocas como um todo que definem o antropos. Camila, quando chega a um local onde vai ficar por algum tempo, fecha a bengala e escolhe um lugar para colocá-la, sempre à mão. Se está conversando e alguém muda a sua bengala de lugar sem avisá-la, quando coloca a mão para procurar e ela não está lá, fica inquieta. Pede ajuda para encontrar, começa a procurar em todos os lugares. Antes os amigos riam, diziam para se acalmar, comentavam que parecia que ela entrava em pânico. Ela explicava "gente, não é pânico, é que se eu não estiver com ela na minha mão eu não saio daqui. Eu vou para onde sem bengala, vocês podem me dizer? Se vocês me largarem aqui, eu sem bengala, saio por aí dando cabeçada". Acostumou-se a andar com a bengala, a estar com ela na mão e hoje em dia sem ela não sai do lugar, até na cadeira da dentista fica com a bengala dobrada na mão.

O processo de incorporação da bengala é resultado do treinamento, mas Camila acha que não é só isso. A bengala se tornou parte inseparável de si a partir da experiência de andar sozinha e descobrir que com ela poderia ir a qualquer lugar, trouxe liberdade e sem ela não vive: "Deus me livre" - comenta. A bengala já a livrou diversas vezes de cair em buraco. Antes de começar a usá-la tinha horror de descer qualquer degrau, mesmo que tivesse só 2 cm. Hoje em dia vai com a bengala - "ela 'vê' para mim a altura do degrau" - e desce direitinho, diz que não tem mais dificuldade nenhuma.

A bengala, em uma metáfora perceptiva, é comparada ao prolongamento do braço e das mãos, ao sentido do tato - as oscilações, interrupções e variações do caminho são transmitidas pela ponta e pelo cabo da bengala às mãos do cego e, através dela, é como se o seu tato se estendesse ao chão.8 8 De acordo com Bach-y-Rita (2002), uma pessoa cega quando usa uma bengala experimenta a estimulação na ponta da bengala, em vez de em sua mão, onde o estímulo tátil é recebido. Mas a bengala também recebe, nessa articulação antropomórfica, habilidades "visuais" privadas ao indivíduo que a manipula - ela "vê" o obstáculo, "vê" a altura do degrau. Para que se chegue até lá, para que esse híbrido corpo-bengala adquira tais capacidades, é preciso passar por um processo de treinamento físico, de incorporação, no qual é fundamental aprender técnicas e segui-las, desenvolver uma habilidade. Mas é necessário, ainda, desenvolver uma relação de confiança corpo-dispositivo: descobrir, pela prática e pela experiência pessoal, que essa hibridização pode ser útil. Como lembra Vandenberghe, o ser humano é feito daquilo que ele inventa: são os óculos, os marca-passos, os computadores, as bengalas que fazem o homo sapiens: "Jamais fomos humanos" (Vandenberghe, 2010Vandenberghe, Frédéric. (2010). Jamais fomos humanos. Liinc em Revista, 6/2, p. 214-234.: 220).

Nem todos os acoplamentos são bem-sucedidos, nem todas as experiências são de libertação. Pedro acha que a bengala tem um problema: ela não ouve nem fala. Diz que no Instituto Benjamin Constant se exalta muito a bengala, mas a pessoa pode bater o rosto em um orelhão, mesmo com a bengala na mão, situação já vivenciada por ele. Se a pessoa vem andando batendo a bengala na parte baixa do chão, ela vai detectar o espigão do orelhão, mas a altura do rosto bate direto na cúpula. Experiência comum a muitos cegos, o orelhão tornou-se um dos principais inimigos da mobilidade independente e segura. Outra coisa que incomoda Pedro em relação à bengala é estar sempre com uma das mãos ocupada.

Outro pesquisado deu o seguinte depoimento sobre o seu processo de incorporação à bengala: "quando comecei a usar a bengala achei que todos os meus problemas estavam resolvidos. Até que um dia, caminhando por uma rua, pisei numa poça d'água. Aí descobri que a bengala não resolve todos os nossos problemas - ela não 'enxerga' a água".

Winance (2006)Winance, Myrian. (2006). Trying out the wheelchair: the mutual shaping of people and devices through adjustment. Science, Technology & Human Values, 31/1, jan., p. 52-72. indica que o processo de ajuste da pessoa com um dispositivo é ambivalente - é um movimento duplo de abertura e fechamento do mundo de uma pessoa. O ajuste produz uma materialidade comum que, ao mesmo tempo, é o que capacita e descapacita, permite e proíbe. No caso de pessoas cegas, a incorporação da bengala em sua materialidade viva faculta independência na locomoção, mas também impede a livre movimentação dos dois braços e das mãos. Outros efeitos físicos resultantes da incorporação da bengala relatados pelos pesquisados são a modificação da postura, dores no punho ou nos ombros, além do efeito de estigmatização social que o uso do objeto carrega. É pela experimentação e pela prática, a partir de um processo de treinamento sistemático, que se descobre as capacidades perceptivas e as limitações desse novo híbrido locomotivo.

SUBSTITUTOS SENSORIAIS OU SUPLANTAÇÃO PERCEPTIVA?

Se o uso da bengala é percebido como uma extensão do corpo e, mais fundamentalmente, de capacidades sensoriais - tátil e visual - alguns dispositivos vêm sendo criados especificamente com esse fim. Um dos mais célebres foi desenvolvido no final dos anos 1960 pelo neurocientista americano Paul Bach-y-Rita (1972)Bach-y-Rita, Paul. (1972). Brain mechanisms in sensory substitution. Nova York: Academic Press.: uma prótese perceptiva conhecida como sistema de substituição tátil-visual (TVSS). O TVSS transforma estímulos visuais em estímulos elétricos com o auxílio de uma matriz de estimulação tátil. Segundo Kastrup (2013)Kastrup, Virginia (2013). "Será que os cegos sonham?": o caso das imagens táteis distais. Psicologia em Estudo, 8/3, p. 431-440., o dispositivo é composto por quatro elementos: 1) uma câmera que capta o sinal visual; 2) um computador; 3) um conversor que transforma a energia luminosa em sinais elétricos; e 4) uma matriz de estimulação elétrica ou mecânica sobre a pele. Em um primeiro momento, a câmara se encontra fixa, imóvel. Nessas condições o usuário do dispositivo adquire somente habilidades muito limitadas de discriminação do estímulo recebido. Quando é dada a ele a oportunidade de segurar a câmara e manipulá-la, realizando diversos movimentos, ele se torna capaz de perceber o objeto com o dispositivo. Depois de um período de treinamento com o TVSS o usuário passa a não ter mais a experiência de uma imagem tátil em sua pele, mas atribui diretamente a causa dos estímulos a um objeto distante. Conforme indica Kastrup, os padrões estimulados na pele formarão imagens que são percebidas no exterior, na frente do percebedor, como uma espécie de visão. Ao aprender a usar o dispositivo, o sujeito passa a ver uma imagem na sua frente, o que a autora chama de uma imagem tátil distal.

As experiências com esse dispositivo vão constituir, posteriormente, um forte questionamento ao modelo computacional de cognição, ao demonstrar que a percepção é indissociável da ação. Lenay (2006)Lenay, Charles. (2006). Enaction, externalisme et suppléance perceptive. Intellectica, 43, p. 27-52. propõe uma concepção enativa [enactive] da percepção espacial, tanto para a localização quanto para o reconhecimento de formas. Para o autor, os dispositivos incialmente chamados de substitutos sensoriais são sistemas de acoplamento sensório-motor que modificam o próprio corpo, definindo os repertórios de ação e sensação acessíveis ao sujeito. Defende uma concepção de percepção espacial que não é nem externalista, nem internalista, uma vez que o espaço perceptivo e seus conteúdos são constituídos no acoplamento entre o organismo vivo e seu meio.

Auvray & Myin (2009)Auvray, Malika & Myin, Erik. (2009). Perception with compensatory devices: from sensory substitution to sensoriomotor extension. Cognitive Science, 33, p. 1036-1058. argumentam que a necessidade da ação para a percepção com o dispositivo de Bach-y-Rita e com outros dispositivos de substituição sensorial desenvolvidos posteriormente revela que o acesso à informação visual através de estímulos táteis não é imediato. Perceber por meio desses dispositivos não corresponde a uma transferência passiva de informações de uma modalidade sensória a outra, mas requer aprendizado perceptual-motor. Os autores rejeitam a suposição de que a percepção após a substituição sensória seja equivalente a uma percepção que ocorre em uma modalidade já existente (tato para visão, ou audição para visão). Ao invés disso, defendem que os dispositivos de substituição sensorial (SSD) na verdade transformam e estendem nossas capacidades perceptivas. Congruentes com uma visão mais ampla de que a cognição pode ser aprimorada por meio de dispositivos externos (por exemplo, Clark, 2003Clark, Andy. (2003). Natural-born cyborg: minds, technologies, and the future of human intelligence. Oxford: Oxford University Press.), propõem que em vez de substitutos sensoriais, tais dispositivos sejam chamados de extensão, suplantação ou transformação sensorial.

A crescente ativação do córtex visual de usuários cegos treinados no uso de SSDs pode sugerir que a percepção com o dispositivo se torna visual. Entretanto, como apontam Auvray & Myin, essa visão implica a suposição de que as mesmas regiões anatômicas de cegos e de videntes desempenham a mesma função, ou seja, que o córtex visual necessariamente sustenta uma função visual. Estudos da neurociência demonstram que o córtex visual de cegos é acionado no desempenho de atividades de estimulação tátil, como a leitura do Braille, o que originará uma experiência tátil (Cattaneo & Vecchi, 2011Cattaneo, Zaira & Vecchi, Tomaso. (2011). Blind vision: the neuroscience of visual impairment. Cambridge, MA: MIT Press.). Auvray & Myin colocam que a experiência associada com dispositivos visuo-táteis de substituição sensorial, por outro lado, não pode ser considerada exclusivamente tátil porque os conteúdos espaciais dessa experiência têm características que são típicas da experiência visual - os objetos percebidos são sentidos pelos usuários do dispositivo como estando localizados à distância, tal como na experiência visual e ao contrário da experiência tátil.

A interpretação de Auvray & Myin (2009)Auvray, Malika & Myin, Erik. (2009). Perception with compensatory devices: from sensory substitution to sensoriomotor extension. Cognitive Science, 33, p. 1036-1058. sobre o uso dos SSDs se baseia na ideia de adição, aumento ou extensão das nossas capacidades perceptivas. Os SSDs devem ser vistos como ferramentas que estendem a percepção para modalidades inteiramente novas. Acreditam que o caminho da novidade tem estado ausente ou sido insuficientemente desenvolvido pelas interpretações existentes. Os autores propõem que os SSDs pertencem à categoria chamada por Clark (2003)Clark, Andy. (2003). Natural-born cyborg: minds, technologies, and the future of human intelligence. Oxford: Oxford University Press. de "ferramentas que ampliam a mente" [mind-enhancing tools], onde entrariam computadores ou mesmo cadernos de anotação. Tais ferramentas, e a cognição proporcionada por elas, não podem ser reduzidas a algo que já estivesse disponível antes de seu uso. Da mesma forma, SSDs proporcionam novas maneiras de interagir com o ambiente que não podem ser reduzidas à percepção em uma das modalidades sensoriais tradicionais. Como aponta Clark (2003)Clark, Andy. (2003). Natural-born cyborg: minds, technologies, and the future of human intelligence. Oxford: Oxford University Press., uma ferramenta que aprendemos a utilizar de uma maneira fluida se torna transparente. A transparência se refere ao fato de que, depois de um ciclo de treinamento com a nova ferramenta, os usuários passam a se sentir imersos na atividade que a ferramenta permite, em vez de permanecerem conscientes de estarem manipulando a própria ferramenta. Nesse sentido podemos também pensar a bengala como um instrumento que expande não somente a mente ou a percepção, mas o próprio corpo, incluindo suas capacidades cognitivas e perceptivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aparece nos manuais de educação para crianças cegas a necessidade de desenvolver formas de seguir o que os outros fazem não baseadas em modelos visuais de repetição. Sendo esta última a forma mais comum de imitação, a ponto de ser descrita como automática ou natural, no desenvolvimento de crianças cegas o aspecto da mediação se torna mais proeminente, assim como no processo de reabilitação de uma pessoa que fica cega. O que ocorre é a criação de formas de imitação que não passam pela visão, mas que são tão mediadas quanto as visuais. O aprendizado pelo corpo adquire, então, um papel fundamental para pessoas cegas, que precisam entender os gestos, os movimentos, as funções dos objetos, por meio de ações práticas, da realização e repetição de atos corporais.

A reformulação da aprendizagem via outros estímulos, a necessidade de desenvolvimento de outras técnicas corporais, não visuais, vai ao encontro, nos próprios manuais, de uma concepção de cognição que se distancia do modelo cognitivista da representação e se aproxima da enação [enaction], da cognição incorporada, da educação da atenção.

Entretanto, permanece um contraste nos manuais e textos de educação analisados, que pode ser entendido como a manutenção da concepção de cognição via a abordagem do cognitivismo clássico no caso de videntes, e a adoção, nas direções de práticas de ensino e desenvolvimento de cegos, de uma concepção da cognição incorporada, fruto da ação orientada de um organismo em um ambiente. O paradoxo que surge daí é a manutenção de duas concepções de cognição - uma explícita em pressupostos, a outra implícita em práticas - contraditórias entre si e que parecem ancoradas em mecanismos de naturalização do ver e de culturalização da cegueira.

Outro ponto paradoxal do discurso sobre a cegueira formulado nos manuais de educação é uma aparente resignação à ideia de uma normalidade como meta ou parâmetro, que acaba por reinstituir relações de poder entre corpos eficientes e deficientes. É essa normalização que fornece a proporção da autonomia e da independência, medida que determinados corpos, por mais treinados que estejam para se aproximar dela, estão fadados a nunca atingir - ou pelo menos não pela maneira "natural" de que nos fala Foucault (2002)Foucault, Michel. (2002). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal., quer dizer, da norma.

Como lembra Wagner (2010)Wagner, Roy. (2010). A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify., todo empreendimento humano de comunicação, toda comunidade, toda "cultura", encontra-se atada a um arcabouço relacional de contextos convencionais. O autor considera que a comunicação só é possível mediante o compartilhamento de associações derivadas de certos contextos convencionais por aqueles que desejam se comunicar. Para que um ator possa testar e estender as regras por meio da construção de um mundo de situações e particularidades às quais elas se aplicam, para que possa "fazer as coisas do seu próprio jeito", ele precisa ao menos conhecer o contexto convencionalizado. Para Wagner, os significados convencionais, coletivos, do homem e de sua socialização, são aspectos implícitos ou explícitos da ação humana e, portanto, da própria invenção.

Em vez de uma normatização como fim, seria interessante se o aparato cognitivo de manuais e programas de estimulação precoce pudessem ser entendidos e postos em funcionamento como espécies de ferramentas para a mediação e tradução do universo de videntes para quem não enxerga; uma maneira de traduzir contextos convencionalizados para que a própria invenção se desenvolva. Como sugere Wagner, a invenção só pode resultar em expressões efetivas e dotadas de significado quando sujeita às orientações da convenção.

Com o que foi apresentado a respeito da suplantação perceptiva e de mecanismos de ampliação da mente, pode-se entender a bengala como um veículo que permite uma nova forma de locomoção pelo mundo para pessoas cegas. Quando se torna transparente o usuário para de pensar na coordenação pé-bengala ou na empunhadura. Quando o movimento se torna fluido a bengala se torna membro, se torna corpo; o próprio chão ou os obstáculos passam a ser percebidos diretamente - a altura do degrau, o caminho livre ou obstruído.

Clark & Prinz (2004)Clark, Andy & Prinz, Jesse. (2004). Putting concepts to work: some thoughts for the twentyfirst century. Mind & Language, 19/1, p. 57-69. colocam que qualquer conhecimento que nos diga como as coisas se parecem pode potencialmente ser usado para conduzir a ação. As informações perceptivas fornecidas pela bengala carregam disposições motoras. Entender a bengala como corpo estendido de cegos é uma possibilidade de apresentá-la partindo dos usos que são feitos dela.

Com uma análise da literatura feminista, Haraway (1991)Haraway, Donna. (1991). Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. Nova York: Routledge. identifica uma transformação liminar presente no movimento de se reconhecer como ser plenamente implicado no mundo, sem necessidade de privilegiar um retorno à inteireza. Para tanto, ela considera mulheres e outros ciborgues do tempo-presente, que recusam os recursos ideológicos da vitimização de modo a ter uma vida real. Esses ciborgues da vida real, por meio da incorporação de bengalas, marcadores, softwares leitores de tela, ou quaisquer outros recursos ou acoplamentos criativamente desenvolvidos em práticas cotidianas, nas relações que se estabelece em um ambiente, estão ativamente reescrevendo os textos de seus corpos e sociedades.

NOTAS

  • 1
    O Imperial Instituto dos Meninos Cegos, antigo nome do Instituto Benjamim Constant, foi criado na cidade do Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II no ano de 1854 e foi a primeira escola do país destinada à educação de pessoas cegas. Atualmente é um centro de referência nacional para questões da área de deficiência visual.
  • 2
    "O que resta. O que resta de substâncias submetidas à ação de diversos agentes", segundo o Aurélio.
  • 3
    Foram consultados os seguintes manuais: Série Atualidades Pedagógicas: Educação Especial - deficiência auditiva (1997); Saberes e Práticas da Inclusão - Desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos (2006); Educação infantil: saberes e práticas da inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: surdez (2006); Atendimento Educacional Especializado - pessoa com surdez (2007).
  • 4
    Outros manuais ou artigos que utilizam o mesmo percentual: Brasil (2001), Figueira (2000)Figueira, Maria Margarete Andrade. (2000). Assistência fisioterapia à criança portadora de cegueira congênita. Revista Benjamin Constant, 17. Disponível em <http//www.ibc.gov.br/>. Acesso em 24 fev 2014.
    http//www.ibc.gov.br/...
    e Lima & Silva (2000)Lima, Francisco José; Lima, Rosangela A. Ferreira & Silva, José Aparecido. (2000). A preeminência da visão: crença, filosofia, ciência e o cego. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 52/2, p. 51-61..
  • 5
    Kastrup, Carijó & Almeida (2009)Kastrup, Virginia; Carijó, Felipe H. & Almeida, Maria Clara. (2009). A abordagem da enação no campo da deficiência visual. Informática na Educação: Teoria e Prática, 12/2, p.114-122., Batista & Enumo (2000)Batista, Cecilia Guarnieri & Enumo, Sonia Regina Fiorim. (2000). Desenvolvimento humano e impedimentos de origem orgânica: o caso da deficiência visual. In: Novo, Helerina A. & Menandro, Maria Cristina S. (orgs.). Olhares diversos: estudando o desenvolvimento humano. Vitória: Ed. UFES, p. 157-174., Monteiro (2009)Monteiro, Lucia Maria Filgueiras da Silva. (2009). O corpo como agente da cognição de crianças cegas: uma questão de experiência. Tese de doutorado. PPGP/ Universidade Federal do Rio de Janeiro., Batista (2005)Batista, Cecilia Guarnieri. (2005). Formação de conceitos em crianças cegas: questões teóricas e implicações educacionais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21/1, p. 7-15., Moraes & Arendt (2011)Moraes, Márcia & Arendt, Ronald. (2011). Aqui eu sou cego, lá eu sou vidente: modos de ordenar eficiência e deficiência visual. Cadernos do CRH, 24, p. 109-120., são alguns deles.
  • 6
    As informações sobre o histórico da bengala branca estão no relatório da conferência "The cane as a mobility aid for the blind" (1972).
  • 7
    A bengala é um objeto que possui importância central para uma reflexão sobre identidade social e o estigma relacionado à cegueira (Goffman, 1975Goffman, Erving. (1975). Estigma. Rio de Janeiro: Zahar.). Nesse momento, devido ao enfoque da discussão proposta, privilegiarei os usos e articulações que se fazem com o objeto.
  • 8
    De acordo com Bach-y-Rita (2002)Bach-y-Rita, Paul. (2002). Sensory substitution and qualia. In: Noë, Alva & Thompson, Evan (orgs.). Vision and mind. Cambridge, MA: MIT Press, p. 497-514., uma pessoa cega quando usa uma bengala experimenta a estimulação na ponta da bengala, em vez de em sua mão, onde o estímulo tátil é recebido.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2014
  • Aceito
    11 Nov 2014
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