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ANTHONY LEEDS: ANTROPOLOGIA DAS INTERAÇÕES ECOLÓGICAS E ESTUDOS URBANOS. ENTREVISTAS COM ELIZABETH LEEDS E LUIZ ANTONIO MACHADO DA SILVA

ANTHONY LEEDS: ANTHROPOLOGY OF ECOLOGICAL INTERACTIONS AND URBAN STUDIES. INTERVIEWS WITH ELIZABETH LEEDS AND L UIZ ANTONIO MACHADO DA SILVA

Resumo

Apresentam-se, juntas, as entrevistas realizadas com dois dos principais colaboradores e interlocutores de Anthony Leeds - Elizabeth Leeds e Luiz Antonio Machado da Silva. Por meio de suas próprias trajetórias e do encontro com o antropólogo, as entrevistas se complementam ao abordar a formação dos cientistas sociais nos EUA e no Brasil; a atuação das agências internacionais em favelas durante a década de 1960; o protagonismo de Leeds na conformação do trabalho de campo nas cidades brasileiras e da agenda de pesquisa da antropologia urbana na América Latina. Ressaltam, ainda, sua metodologia de trabalho de caráter coletivo e dialógico, caracterizada pela troca de experiências e pela horizontalidade das relações de trabalho e sociais, com os pares e com os moradores das favelas, bem como a atualidade da sua contribuição ao questionar visões que enfatizavam a pobreza e a vitimização dos moradores, apontando suas competências, e o isolamento da questão urbana em vez de estudá-la em suas interações e totalidade.

Palavras-chave:
Anthony Leeds; interações ecológicas; estudos urbanos; antropologia urbana; favela.

Abstract

This text presents the interviews conducted with two of Anthony Leeds’s principal collaborators and interlocutors: Elizabeth Leeds and Luiz Antonio Machado da Silva. Through their own trajectories and encounters with the anthropologist, the interviews complement each other by discussing the training of social scientists in the United States and Brazil; the work of the international agencies in favelas during the 1960s; and Leeds’s leading role in shaping fieldwork in Brazilian cities and the research agenda of urban anthropology in Latin America. They also foreground his collective and dialogical work methodology, characterized by the exchange of experiences and by the horizontality of labour and social relations with peers and with favela residents. Likewise they stress the contemporary relevance of his questioning of views that emphasize the poverty and victimhood of favela residents, pointing instead to their skills, and that focus on the isolation of the urban question, rather than studying the topic in terms of its interactions as a whole.

Keywords:
Anthony Leeds; ecological interactions; urban studies; urban Anthropology; favela

Cities We come from the cities of America with their dun drab dreariness of grey-brown houses and asphalt streets We come here from the towns of beige America with the brownstone houses and the Victorian melancholia of architecture scabby on the land […] Yes we come from the sorespots of America where people live and say “I have no own, no native town!” We come to cites in the sun in pastel calcimines gleaming in the sun. We come to brilliant cities of Brasil which do not dirty in the sun with soot and smoke and smog Cities with a feel for light and air and sun for space and colour […] The cities are the fathers of a surging life of splashes of colour and of light fresh and different in the sun where people live and say “I am a son this, my native town!” (Anthony Leeds, 1952)

O poema “Cities”, escrito em 1952, o mesmo ano em que o antropólogo Anthony Leeds concluiu, na cidade de Uruçuca, estado da Bahia, seu trabalho de campo para a tese de doutoramento, nos leva a refletir sobre o contraste de experiências e sentimentos que o deslocamento dos Estados Unidos da América do Norte para o Brasil provocou no então jovem estudante da Universidade de Columbia. Sua sensibilidade o fez contrastar a melancolia vitoriana das cidades norte-americanas, com seus tons de bege, marrom e cinza, e as brilhantes, coloridas e ensolaradas cidades brasileiras, distintas também na percepção de seus moradores quanto a pertencimento e identidade.

O contraste de experiências vividas em diferentes cidades e os sentimentos correspondentes são tema de outros textos do autor, que chegou a se referir à formação europeia de sua personalidade, sensibilidade e de seus gostos, pois, tendo nascido em Nova York em 1925, passou parte de sua infância em Viena, onde sua mãe, a tradutora e atriz Polly Leeds, foi estudar psicanálise após o falecimento de seu pai, Arthur Leeds (Leeds, 1984Leeds, Anthony. (1984). Through self ethnography to human nature. Continuous diversity as escape from categories to unity. Autobiografia não publicada, originalmente destinada à série Being an anthropologist. NAA/AL papers/series 6, sbs biographcial materials, box 33, draft autobiography.). De volta ao país natal, Anthony Leeds morou e trabalhou em uma fazenda junto com sua mãe e seu padrasto, o escultor e músico Edmund Weil. Depois desse período passado no condado de Dutchess, que abrangeu parte da infância e a adolescência, retornou a Nova York para ingressar na Universidade de Columbia, onde fez toda a sua formação, de 1947 a 1957, e participou de grupos de estudos, especialmente sobre marxismo, com colegas, entre os quais Marvin Harris, Eleanor Leacock, Marshal Sahlins, Sidney Mintz e Eric Wolf. Durante os anos de Columbia, ocorreu a primeira estada no Brasil, na Bahia, fruto de sua pesquisa de doutorado sobre a economia do cacau nesse estado, um dos diversos estudos de comunidade realizados pela parceria entre a Universidade de Columbia e o estado da Bahia, sob a liderança do então secretário de Educação e Saúde do estado, Anísio Teixeira (Sieber, 1994Sieber, Timothy. (1994). The life of Anthony Leeds. Unity in diversity. In: Leeds, Anthony. Cities, classes and the social order. Editado por R. Sanjek. New York: Cornell University Press.).

Os versos de “Cities” possivelmente evocam o que também sentiam outros jovens cientistas sociais que participaram do projeto Columbia-Bahia, sob coordenação de Charles Wagley e Thales de Azevedo. Aquele era um período, após a Segunda Guerra Mundial, em que, para a antropologia norte-americana, a América Latina merecia especial atenção, quer pelos interesses do Estado em uma política de boa vizinhança, quer pela percepção do interesse intelectual nos processos de mudança social em curso. Em particular, o Brasil foi visto como um laboratório para o estudo de diferentes problemas, sobretudo no que se refere às relações raciais, aos processos de mudança social e ao que então se percebia como resistências culturais à mudança, caso dos estudos de comunidade realizados sob orientação de Wagley (cf. Wagley, Azevedo & Costa Pinto, 1950Wagley, Charles; Azevedo, Thales & Costa Pinto, Luis de A. da. (1950). Uma pesquisa sobre a vida social no Estado da Bahia. Salvador: Museu do Estado da Bahia (Publicações do Museu do Estado da Bahia, 11).; Maio, 1997Maio, Marcos Chor. (1997). A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese de Doutorado em Ciência Política. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.; Consorte, 1999Consorte, Josildeth Gomes. (1999). Lembrando Costa Pinto: memória das ciências sociais no Brasil. In: Maio, Marcos Chor & Villas-Bôas, Glaucia (org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil. Ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto. Porto Alegre: Ed. UFRGS, p. 39-48.; Viana, 2014Viana, Rachel de Almeida. (2014). Antropologia, desenvolvimento e favelas: a atuação de Anthony Leeds na década de 1960.Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.).

Naqueles anos de 1950 ainda não era corrente o termo brasilianista, e esse tampouco se aplicaria a Anthony Leeds, defensor de abordagens comparativas e pesquisador que desenvolveu estudos sobre um amplo espectro de temas em diferentes contextos nacionais. Mais conhecido por seu papel na formação da antropologia e da sociologia urbanas no Brasil, ele realizou, contudo, trabalho de campo em diversos outros países, desenvolveu análises comparativas sobre habitações populares em diferentes sociedades da América Latina, estudou povos indígenas, emigração de trabalhadores portugueses na década de 1980, além de ter se dedicado a análises sobre teoria dos sistemas, papel da tecnologia, relações natureza e cultura e publicado textos sobre história e filosofia da ciência. E ainda que se tenha destacado como estudioso do fenômeno urbano, Leeds pesquisou diversos outros temas, tais como a economia de plantation do cacau na Bahia; a organização socioeconômica e sistemas de horticultura dos Yaruro, atual povo Pomé, na Venezuela; a economia da criação de porcos na Melanésia; a migração de trabalhadores portugueses; as funções da guerra; o comércio na Índia pré-ocupação europeia, os Chukchi da Sibéria e sua atividade como caçadores de rena. Debruçou-se, com outros cientistas sociais e intelectuais norte- americanos, sobre a teoria geral dos sistemas e questões teóricas controversas, tendo participado, por exemplo, de intensas polêmicas em torno da sociobiologia, proposta por Edward Osborne Wilson na década de 1970. Dedicou-se também às artes, sobretudo à música (cantava e tocava piano e violoncelo), à poesia e à fotografia. Ainda que seus trabalhos antropológicos sejam com alguma frequência descritos como materialistas e fortemente centrados na análise do uso de tecnologias e nas atividades econômicas de produção e consumo, o uso da poesia e da fotografia na pesquisa antropológica ocorreu em diferentes contextos, sobretudo em Portugal, e ambas foram também objeto de seus cursos. Seja no Brasil, seja nos Estados Unidos da América do Norte, todos os que com ele conviveram descrevem um intelectual de difícil classificação a partir de escolas ou estilos intelectuais; um pensador rigoroso e, sobretudo, um notável pesquisador a quem nenhum detalhe passava despercebido nas atividades de campo, além de uma liderança com capacidade de agregar e estabelecer diálogo com estudantes e outros interlocutores (Sieber, 1994Sieber, Timothy. (1994). The life of Anthony Leeds. Unity in diversity. In: Leeds, Anthony. Cities, classes and the social order. Editado por R. Sanjek. New York: Cornell University Press.; Silva, 2015Silva, Luiz Antonio Machado da. (2015). Anthony Leeds visto por um filhote ligeiramente rebelde. In: Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.; Velho, 2011Velho, Gilberto. (2011). Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento. Mana, Rio de Janeiro, 17/1, p. 161-185.).1 1 Outra característica biográfica importante foi sua participação em diversas organizações da sociedade civil, como a Massachussets Food and Agricultural Coalition (MassFAC), a Central American Information Organization (Camino), o Lebanese Emergency Comittee of Boston, o East Timor Action Committee, entre outros (Sieber, 1994; AA/AL papers/ series 6, sbs biographical files, box 33, curriculum vitae).

Qualquer tentativa de indicar unidade em meio a tão expressiva diversidade pode ser infrutífera ou simplificadora. Consideramos, contudo, que sua visão sobre a complexidade das interações humanas e entre natureza e cultura, e seu recurso a categorias espaciais e sociais, a exemplo de “localidade”, conceito que contrapôs a “comunidade”, enfatizando a inserção em uma rede mais ampla de relações, nos permitem propor as interações sociais e ecológicas, tomando o ambiente natural e humano como o núcleo central de sua agenda de pesquisa e preocupação intelectual. Mais conhecido no Brasil especialmente pela pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro e pela publicação, em colaboração com Elizabeth Leeds, de A sociologia do Brasil urbano, em 1978, Anthony Leeds, a partir deste número de Sociologia & Antropologia, poderá ser mais conhecido agora por um conjunto amplo de pesquisas que realizou e papéis que exerceu, entre eles a formação de pesquisadores no Brasil e nos Estados Unidos.

Apresentamos aqui, juntas, as entrevistas realizadas com dois de seus principais colaboradores e interlocutores - Elizabeth Leeds e Luiz Antonio Machado da Silva. Por meio de suas próprias trajetórias e do encontro com o antropólogo, eles oferecem observações e referências importantes sobre a formação dos cientistas sociais nos EUA e no Brasil; a atuação das agências internacionais em favelas durante a década de 1960; nuanças do trabalho teórico e metodológico de Anthony Leeds; a conformação do trabalho de campo nas cidades brasileiras e da agenda de pesquisa da antropologia urbana no país. Destacam, ainda, a metodologia de trabalho de caráter coletivo e dialógico do antropólogo, caracterizada pela troca de experiências e pela horizontalidade das relações de trabalho e sociais, com os pares e com os moradores das favelas.

Foi em 1965, durante seu trabalho como voluntária do Peace Corps na favela do Tuiuti, que Elizabeth Plotkin, seu nome de solteira, conheceu Anthony Leeds, com quem viria a se casar dois anos mais tarde. Cientista política, com trabalhos sobre a organização política dos moradores de favelas, política pública de emigração em Portugal, segurança pública, entre outros temas, é hoje presidente de honra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tendo também atuado na Fundação Ford de 1997 a 2003. Ainda que a entrevista tenha como foco a colaboração acadêmica com Anthony Leeds, seu depoimento traz também importantes referências sobre as motivações e as primeiras experiências no contato com as favelas e seus moradores por parte dos jovens norte-americanos que integravam os Peace Corps Volunteers. Elizabeth Leeds refere-se ao impacto do livro The ugly American2 2 Burdick, Eugene & Lederer, William. (1958). The ugly American. New York: Norton. em sua geração, e à permanente tentativa de superar o estereótipo de arrogância e etnocentrismo associado às elites intelectuais de seu país. Ressalta também o desconhecimento sobre a sociedade brasileira quando começou a atuar no Tuiuti nos programas de saúde pública, orientação que a agência norte-americana imprimiu na atuação em favelas, após experiências em áreas rurais brasileiras. Menciona a importância da liderança intelectual de Anthony Leeds e das reuniões em que os voluntários compartilhavam suas observações de campo e que constituíram, entre outros resultados, a base para os trabalhos que foram, por iniciativa do antropólogo, apresentados por um grupo de voluntários durante o 37º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Mar del Plata, Argentina, em setembro de 1966. As relações de Anthony Leeds com o Brasil e cientistas sociais brasileiros foram privilegiadas, a exemplo também da participação do antropólogo norte-americano como professor, em 1969, do recém-criado Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Referências e reflexões sobre a experiência acadêmica nos Estados Unidos da América do Norte estão, contudo, igualmente presentes. Evidencia-se na leitura a caracterização de Anthony Leeds como um cientista social com grandes preocupações teóricas e que contestava o isolamento da antropologia urbana, defendendo o ponto de vista de a questão urbana compor um sistema complexo que deveria ser estudado em suas interações e totalidade.

Nosso outro entrevistado, Luiz Antonio Machado da Silva, é autor de trabalho pioneiro de crítica à teoria da marginalidade e sobre os trabalhadores no setor informal e um dos principais cientistas sociais especializado na questão urbana no Brasil, tendo orientado na UFRJ e no Iesp/Uerj, onde continua a lecionar, diferentes gerações de antropólogos e sociólogos. Seu depoimento acentua o protagonismo de Anthony Leeds na gênese do campo de estudos urbanos na América Latina. Hoje dedicado, entre outros temas, ao estudo da violência e sua importância para a compreensão da sociabilidade entre os moradores de favelas, ressalta a atualidade da contribuição de Anthony Leeds ao superar visões que enfatizavam a pobreza e a vitimização dos moradores, apontando suas competências, sua capacidade de “dar a volta por cima”. Tendo-se definido em texto publicado na segunda edição de A sociologia do Brasil urbano (Leeds & Leeds, 2015Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. (2015). A sociologia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.) como um “filhote ligeiramente rebelde” de Anthony Leeds (Silva, 2015Silva, Luiz Antonio Machado da. (2015). Anthony Leeds visto por um filhote ligeiramente rebelde. In: Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), Machado analisa na entrevista tanto a influência que dele recebeu como sua própria experiência no início da carreira em agências como o Brasil-Estados Unidos Movimento, Desenvolvimento e Organização de Comunidade (Bemdoc) e a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco), a primeira voltada para o desenvolvimento de comunidades, e a segunda para a urbanização das favelas com a colaboração comunitária. Esclarece que, antes de iniciar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, teve a oportunidade de participar das reuniões que Anthony Leeds realizava com os voluntários do Peace Corps e dele receber como principal influência o forte estímulo à fundamentação empírica das afirmações. As principais discussões entre eles, o que também envolvia os voluntários dos Peace Corps, não se centravam na perspectiva analítica ou questões teóricas, mas nos desafios empíricos do trabalho de campo. A abordagem comparativa proposta por Leeds, integrando observações etnográficas em diferentes localidades, se aproximaria, na visão de Machado da Silva, do que Michel Agier (2011)Agier, Michel. (2011). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome. 213 p. denomina antropologia multiestruturada.

Na sequência das entrevistas, encontramos três artigos que colaboram para a abordagem mais ampla sobre a obra de Anthony Leeds. No primeiro deles - “Entre latifúndios e favelas: o Brasil urbano no pensamento de Anthony Leeds” - analisamos a contribuição do autor, considerando seus trabalhos de pesquisa no Brasil, com destaque para o estudo de favelas. Não obstante esse foco, o artigo reúne observações sobre o conjunto das pesquisas por ele realizadas no país, o que envolve sua tese de doutoramento sobre a produção de cacau na Bahia e o estudo de carreiras realizado com representantes das elites econômica e intelectual de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Salvador (Leeds, 2015Leeds, Anthony. (2015). Carreiras brasileiras e estrutura social: um estudo de caso e um modelo. In: Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociolgoia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.). Consideramos que o estudo das favelas do Rio de Janeiro permitiu um maior refinamento dos argumentos de Leeds sobre a organização social do Brasil. Mais do que localidades em que residiam pobres urbanos, as favelas foram vistas por ele como estruturas dinâmicas de circulação de pessoas e capitais, expressando as estratégias de negociação dos trabalhadores urbanos para lidar com as contradições de uma sociedade que vivia um acelerado processo de urbanização.

Conforme observamos, a obra de Anthony Leeds abrangeu distintos temas, objetos e contextos nacionais. E é da amplitude dos temas aos quais Leeds se dedicou ao longo de sua vida que a antropóloga Katherine Donahue trata em “Anthony Leeds: beyond Brazil”, demonstrando o caráter multifacetado das pesquisas por ele realizadas fora do Brasil. Tendo sido uma das alunas orientadas pelo antropólogo na Universidade de Boston na década de 1970, Donahue analisa, ao mesmo tempo, as características do pesquisador e do professor, revelando aspectos ainda pouco estudados da obra do antropólogo e que têm interesse para um conjunto de questões abordadas neste número, a exemplo de seu uso da poesia e da fotografia no trabalho de campo e nos cursos que ministrou. Com base em relatos de ex-alunos e colegas das universidades do Texas e de Boston e de consulta ao acervo sob a guarda do National Anthropological Archives, ela apresenta as fases em que se pode dividir a trajetória profissional de Anthony Leeds e os principais estudos que ele realizou até sua morte, em 1989. No artigo ressalta-se a interpelação feita pelo antropólogo a seus estudantes no sentido de que buscassem abordagens interdisciplinares para a compreensão dos problemas sociais e ambientais.

O terceiro artigo publicado - “Quanto vale uma favela” - reúne e divulga pela primeira vez notas da conferência proferida em 1968 por Anthony Leeds no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, abordando o tema dos investimentos em infraestrutura e dos capitais que circulavam nas favelas cariocas, e é comentado por Mariana Cavalcanti, professora do Departamento de Estudos Sociais e coordenadora da Pós-Graduação em Sociologia do Iesp-Uerj. Em seu comentário, Cavalcanti destaca a perspectiva inovadora de Anthony Leeds ao propor a crítica ao pensamento então hegemônico que via a favela como um problema, apontando o que essa alternativa de localidade de moradia esclarecia sobre a agência dos trabalhadores urbanos. Morar em favelas implicava um projeto de vida nas cidades diante de uma situação de profunda desigualdade; uma solução frente a custos como os de transporte e de outros cálculos que faziam seus moradores, o que poderia incluir alternativas educacionais, de lazer, de pequenos negócios, entre outras. No artigo, a vida cotidiana é apresentada, dessa forma, como ponto de partida para Leeds construir um modelo de análise que põe em relevo o papel dos pequenos investimentos e estratégias da economia cotidiana, esclarecendo como se dão os processos pelos quais favela e cidade se coproduzem. São também analisados os debates prenunciados pelo antropólogo no período e que só seriam efetivamente levados a cabo nas décadas seguintes, tais como a compreensão sobre o chamado setor informal da economia, o uso da etnografia multissituada, a produção e circulação de capital nas favelas partindo do investimento em sua infraestrutura, além da desmistificação da teoria da marginalidade e da cultura da pobreza, cuja análise crítica já se apresentava naquele momento.

A seção Registro de Pesquisa traz ainda como uma de suas principais contribuições o incentivo a novos estudos a partir da apresentação do Fundo Anthony Leeds, rico conjunto de documentação textual e iconográfica, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, referido às favelas e outras localidades de moradia de trabalhadores de baixa renda no Brasil e outros países da América Latina. A seção acopla o testemunho em forma de artigo de Licia do Prado Valladares - uma das principais sociólogas estudiosas da questão urbana e das favelas no Brasil - por ocasião da inauguração do arquivo, e a nota técnica elaborada por Ana Luce Girão e Aline Lopes de Lacerda, sobre seu processo de constituição.

Após discutir o pouco conhecimento da obra do antropólogo por parte das novas gerações de pesquisadores das ciências sociais dedicadas ao urbano no país, Valladares ressalta a contribuição de Anthony Leeds para as ciências sociais brasileiras, a partir de três pontos fundamentais: a formação de cientistas sociais que, no início do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, assistiram às aulas de Leeds no primeiro curso de antropologia urbana ministrado pela instituição; a defesa da abordagem comparativa; e a pesquisa sobre as origens e a grande heterogeneidade dos assentamentos urbanos de diversos países da América Latina. Tendo participado dos seminários de pesquisa a que fizemos referência, a autora põe em evidência a influência de Leeds em seu próprio processo de formação como socióloga, especialmente por lhe apresentar uma perspectiva latino-americana para a pesquisa sobre favelas, pela crítica à teoria da marginalidade e, sobretudo, pelo aprendizado do valor do trabalho em equipe e da troca intelectual.

Com o objetivo de promover a reflexão sobre a importância da documentação reunida e organizada pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Lacerda e Girão relatam o histórico da doação, a partir de 2007, pela cientista política Elizabeth Leeds, de material colecionado por seu marido, bem como as principais características da documentação. Na descrição observam a presença de notas e diversos registros de pesquisas realizadas por Anthony Leeds e Elizabeth Leeds em favelas e outras formas de assentamentos urbanos no Brasil e na América Latina, documentos sobre políticas habitacionais no período de 1960 a 1980 e atuação de órgãos governamentais, não governamentais e de movimentos sociais que ocorreram em favelas. Esse acervo foi organizado no âmbito da pesquisa História das favelas e da sociologia do Brasil urbano, resultado da parceria entre a Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e o Iesp/Uerj, por meio do Urbandata, com apoio da Faperj, e tem sido objeto de pesquisas e projetos de divulgação científica por nós coordenados.

No mesmo texto, abordam-se centralmente as características e a relevância do arquivo fotográfico, doado por Elizabeth Leeds em 2014 e que veio completar o acervo já constituído e organizado. As fotografias se relacionam às pesquisas realizadas por Anthony e Elizabeth Leeds em favelas, sobretudo Tuiuti e Jacarezinho, além de algumas imagens sobre cidades brasileiras e localidades de moradia popular em outros países da América Latina. Em sua apresentação, as autoras enfatizam o fato de a documentação fotográfica evidenciar a produção sistemática de registros visuais como um dos recursos utilizados pelo antropólogo em seus estudos. Reportando-se ao texto de Sieber (1984), acentuam ainda o duplo caráter da fotografia para Leeds - documental e expressivo - e as múltiplas epistemologias mobilizadas em sua obra. Seguindo a sugestão das autoras, o texto traz também algumas das fotografias do acervo. Trata-se de uma série de grande valor documental e artístico, traduzindo em imagens a riqueza das observações de Anthony Leeds e de sua abordagem ao atribuir aos moradores, com os quais interagia em suas pesquisas, a condição de sujeitos ativos na coprodução da favela e da cidade. Essa compreensão também nos levou a organizar, em 2015, durante as comemorações dos 450 anos da fundação da cidade do Rio de Janeiro a exposição O Rio que se queria negar: as favelas do Rio de Janeiro no acervo de Anthony Leeds e a publicar algumas das fotografias na segunda edição de A sociologia do Brasil urbano (Leeds & Leeds, 2015Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. (2015). A sociologia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.)

Além de ampliar o conhecimento sobre sua vasta obra e expor algumas das múltiplas perspectivas pelas quais é possível analisar o pensamento de Anthony Leeds, esse conjunto de textos apresenta-se como um convite à leitura de sua produção e também à consulta aos importantes acervos reunidos na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, no Rio de Janeiro, e no National Anthropological Archives/Smithsonian Institute, em Washington, DC. Com ele pretendemos contribuir para o conhecimento sobre a constituição do campo de estudos urbanos no Brasil e na América Latina, para uma visão mais ampla sobre a produção do antropólogo e também para a análise da formação do pensamento social norte-americano, com destaque para visões alternativas ao pensamento hegemônico naquele país, sobretudo no que se refere à crítica a teorias como as de modernização e marginalidade. A sensibilidade presente no poema “Cities”, escrito no início da carreira de Anthony Leeds, convida-nos a um exercício de imaginação no qual deslocamentos, identidades e alteridade formam a matéria- prima da construção de um pensamento social entre diferentes experiências e contextos nacionais e em também diferentes tempos históricos.

ELIZABETH LEEDS

Entrevistas a Nísia Trindade Lima em 2011, no Rio de Janeiro, e a Rachel Viana em 6 e 8 de novembro de 2017, em Boston.

Nísia Trindade Lima. Elizabeth, gostaria de começar ouvindo um pouco sobre sua história de vida, suas origens familiares e o lugar onde nasceu.

Elizabeth Leeds. Nasci em uma cidade perto de Boston, Winchester, onde meus pais também nasceram, mas fui criada no subúrbio de Boston - subúrbio no sentido americano, que são cidades coladas à cidade principal. Lá fui criada e segui minha vida sem muita aventura até os 18 anos, quando entrei na faculdade.

Meu pai, que ainda vive, era jornalista e escreveu no principal jornal de Boston durante 35 anos. Tenho memórias daquela época, das aventuras dele como jornalista. Lá era a sede dos Kennedy, então ele tinha muito trânsito entre esses personagens. Minha mãe trabalhou em casa até minha irmã, seis anos mais nova, entrar para a faculdade; então, mesmo sem formação universitária, ela foi trabalhar fora, como agente de saúde em uma área um pouco degradada de Boston, sobretudo com pessoas idosas. Embora não fossem ativistas, meus pais eram ligados ao Partido Democrata e tinham uma visão relativamente progressista. Somos judeus, mas fui criada em um ambiente não muito ortodoxo. Celebrávamos as festas religiosas, mas nada muito ritualizado. Acho que essa origem me deu uma visão de vida e valores. Em uma das primeiras conversas importantes que tive com Tony - que também veio de uma família judia bem assimilada, que já não praticava os rituais -, percebemos que certos valores e o sentido de justiça social eram um elo significativo entre nós.

N.T.L. No caso de sua família, quais eram esses valores e qual sentido era atribuído à justiça social?

E.L. Como disse, eles não eram ativistas; dizia respeito, portanto, mais ao modo de pensar e de viver. Meu pai fazia parte do sindicato dos jornalistas e tinha preocupação constante com as questões raciais e trabalhistas. Nada muito forte, mas sempre presente.

N.T.L. E como se deu sua opção pela ciência política?

E.L. Meu pai sempre falava e escrevia sobre política. Eu o acompanhei quando, nos anos 1950, ele fez uma matéria grande sobre delinquência juvenil, gangues. Fui com ele a um internato onde ele entrevistou adolescentes. Eu tinha 15 anos. Era um trabalho essencialmente jornalístico, sem abordagem acadêmica. Ele entrevistou pessoas no governo, especialistas no assunto, e foi a Nova York conhecer experiências interessantes. O trabalho dele era de campo mesmo. Recentemente, precisei pesquisar sobre o aumento da violência envolvendo adolescentes em grandes cidades dos Estados Unidos - o índice de homicídios nessa faixa está mais alto do que nos anos 1990 - e pedi a ele para ver suas matérias dos anos 1950. É impressionante como as coisas não mudam. Não sei por que escolhi ciência política; podia ter sido sociologia, porque na minha percepção daquela época antropologia tratava apenas de sociedades indígenas. Lembro-me de uma disciplina que cursei em antropologia: era só vida indígena, e nada das sociedades complexas.

N.T.L. Pouco antes de você se graduar em 1964, já havia, ainda que com pouca expressão, estudos de antropologia ligada a comunidades rurais.

E.L. Não era o meu campo. Quando me formei, a opção era fazer o mestrado ou procurar uma experiência mais exótica. O livro The ugly American,3 3 The ugly American é uma ficção política de Eugene Burdick e William Lederer sobre os fracassos do corpo diplomático americano no Sudeste Asiático; lançado em 1958, causou sensação nos círculos diplomáticos. um bestseller na época, teve um impacto grande sobre mim; aquele modelo de americano arrogante indo para fora dos Estados Unidos e fazendo besteiras...

Rachel Viana. E como você conheceu o Peace Corps?

E.L. Foi por volta de 1963. O Kennedy, que criou o Peace Corps, morreu em 1963, mas o programa era muito vivo e, pelo menos entre os alunos de faculdade da minha geração, tinha grande visibilidade. Então eu decidi tentar e me candidatei. A primeira resposta era para ir a Etiópia. Recusei, pois tinha me inscrito e queria ir para a América Latina, pensando em um país de fala espanhola (nenhum em especial, até porque não sabia nada da América hispânica); cheguei até a estudar espanhol no último semestre da faculdade. E então veio o requerimento para o Brasil, país no qual eu não tinha pensado, mas que, afinal, é América Latina. Eu não sabia nada do Brasil [risos].

N.T.L. O trabalho no Peace Corps é voluntário; como funcionava? E como foi a preparação na agência para vir para o Brasil?

E.L. Era voluntário, mas tinha um pagamento mensal mínimo para sobreviver. A preparação não ocorreu em uma universidade. Quase toda minha preparação - que envolvia língua, cultura etc. - foi feita no estado de Vermont numa instituição chamada Experiment in International Living, em que muitos grupos de Peace Corps foram treinados e em que até hoje treinam pessoas para ir para fora dos Estados Unidos. O meu grupo quase todo foi preparado para ir para o Nordeste ou para uma área rural, por um programa chamado Saúde Pública e Desenvolvimento de Comunidade. No último mês, porém, oito pessoas desse grupo foram selecionadas para substituir as voluntárias que estavam indo embora do Rio de Janeiro, mas sem ter nenhuma preparação específica para a complexidade da experiência urbana; menos ainda para o trabalho em favela. O que nos era ensinado em termos de questão social, política, estrutura social era dirigido à vida mais rural, afastada das grandes cidades.

O treinamento era dado por profissionais da saúde pública. Para grande parte dos voluntários, era voltado para a língua estrangeira, o que para mim era uma questão menor. Ocorria o dia inteiro e à noite, sempre na universidade ou em um lugar afastado, em um ambiente completamente rural, durante três meses. Passamos dois meses nesse lugar e o último mês nas Ilhas Virgens de São Tomás, a fim de ter uma experiência mais tropical.

R.V. E chegaram a discutir com vocês o que era o desenvolvimento de comunidade?

E.L. O que lembro muito bem é que davam orientações sobre como convencer um grupo com base na ideia de felt needs, isto é, era preciso fazer que as pessoas sentissem que determinado projeto era uma necessidade, e não uma imposição. Mas isso se aplicava a áreas mais rurais, não batia com a realidade e com a complexidade urbanística da favela.

N.T.L. Como teve início o trabalho de Anthony Leeds no Peace Corps?

E.L. Os grupos de treinamento da agência aconteciam em vários lugares dos Estados Unidos. No estado do Texas, onde Tony era professor, havia grupos de treinamento para o Brasil, de cujas atividades ele fazia parte. Quando ele chegou ao Rio para fazer trabalho de campo, em agosto de 1965, como ele já tinha ligação com o Peace Corps, tentou ajudar o contato nas favelas. Nós, voluntários, chegamos em janeiro de 1965, o Tony chegou em agosto. Penso que ele foi uma atração para nós por causa da nossa falta de orientação sobre a complexidade da favela, sobre o que é a questão urbana e aquela realidade com que estávamos lidando.

N.T.L. O Peace Corps contratava consultores? Ele seria um consultor?

E.L. Talvez. O encontro dele com o Peace Corps foi organizado pela administração da agência no Rio. Ele queria visitar algumas favelas, e acabou visitando Tuiuti, e nos conhecemos.

N.T.L. Então o interesse dele também era facilitar o próprio trabalho de campo via Peace Corps?

E.L. Talvez ajudar nos primeiros contatos. Quando Tony apareceu, poucos meses depois de nós, estávamos todos morando e trabalhando em várias favelas - Tuiuti, Borel, Jacarezinho, Mangueira, e algumas favelas mais afastadas. Como tinha uma casa de rapazes em outra parte do morro com quarto vago para alugar e ele queria ficar na favela, começou a morar lá. Eu em uma parte do morro, ele em outra. Também nesse mesmo período ele prestou consultoria para a USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], que estava fazendo um trabalho de desenvolvimento de comunidade em várias favelas, entre elas Nova Brasília, que hoje faz parte do Complexo do Alemão.4 4 O projeto da USAID em questão é o Bemdoc - Brasil Estados Unidos Movimento, Desenvolvimento e Organização de Comunidade. Essa consultoria nesse projeto criou certa sincronia, pois ele começou a fazer seminários com voluntários e algumas outras pessoas que participavam desse projeto, incluindo, por exemplo, Luiz Antonio Machado e outra pessoa chamada Ina Dutra, que depois se casou com um americano e foi morar nos Estados Unidos. Lembro mais do Machado porque ele continuou. O Tony fazia com certa regularidade esses seminários, que eram informais e sobre vários assuntos, para pensar a situação das favelas.

Depois, em 1966, ele organizou um grupo de voluntários que haviam trabalhado em áreas específicas para apresentar trabalhos sobre vários temas ligados às favelas no Congresso Internacional de Americanistas, que naquele ano ocorreu na Argentina. Lembro que uma pessoa do Jacarezinho abordou o funcionamento e a organização da escola de samba, outra, do Borel, falou sobre redes de água. O foco estava nas questões de estrutura social. Tony deu assim um contexto para nós trabalharmos.

N.T.L. Como ele fazia esse trabalho? Eram discussões a partir da observação de campo dele, ele recomendava a leitura de textos?

E.L. As discussões eram mais centradas na realidade de cada um. Na época ainda não havia textos a respeito, era um campo virgem.

N.T.L. Onde vocês ficaram quando chegaram?

E.L. Nos primeiros dois, três meses, eu e outra voluntária ficamos na casa de uma família em São Cristóvão, no lugar de algumas voluntárias que já moravam no morro Tuiuti. Como uma metade do programa estava voltada para a saúde pública e a outra para o desenvolvimento de comunidade - que podia ser qualquer coisa -, todos estavam ligados a algum posto de saúde. Cada região administrativa tinha um tipo de clínica que servia às favelas no entorno - um centro de saúde, mas com outro nome. Estava localizado bem em frente ao Campo de São Cristóvão. Eu trabalhava de manhã. Fizemos campanha contra tuberculose indo de casa em casa verificar se as pessoas haviam feito o teste no posto de saúde e ministrávamos vacina contra pólio, dentro da favela. O Peace Corps tinha um convênio com o governo do estado da Guanabara para atuação em campanhas de saúde, e isso esbarrava no desenvolvimento de comunidade, que no fim das contas podia ser qualquer coisa.

N.T.L. Essa “qualquer coisa”, no caso do seu grupo de voluntários, era o quê?

E.L. A voluntária que me antecedeu, por exemplo, tinha montado um pequeno posto de saúde na favela, onde na época era alta a taxa de analfabetismo. À noite, então, ocorriam aulas de alfabetização para pessoas mais idosas.

R.V. Havia sociólogos no gerenciamento da agência ou só assistentes sociais? Que profissionais faziam a supervisão? Depois alguém verificava o trabalho de vocês?

E.L. Não. Acho que, por ser o Rio, era um showcase. Quando os representantes do governo americano visitaram o Rio para ver como funcionava o Peace Corps, foram levados a uma favela. Mas a supervisão era muito fraca. De certa forma o Tony preencheu esse vácuo, o que criou muitos conflitos.

R.V. Como foi para você esse período entre janeiro de 1965, quando você chegou, até agosto, quando Tony chegou?

E.L. Chegamos quando as primeiras voluntárias ainda estavam no Rio. Deu-se um tipo de overlap: uma forma de preparação, por parte de quem estava saindo, daqueles que estavam chegando; uma transição. E quase todas elas eram enfermeiras, treinadas na área de saúde, ao passo que nós havíamos feito graduação do tipo BA, Bachelor of Arts, ou BA Generalist, uma formação generalista; então, não tínhamos preparação técnica.

N.T.L. Quando vocês começaram a namorar?

E.L. No período do Peace Corps. Nos conhecemos no Tuiuti em 1965. Namorávamos vendo a chama da refinaria de Manguinhos, em cima do morro. E ao lado da minha casa havia uma varanda pequena de onde se via a baía. Tony tinha se separado, mas não era divorciado. Ele voltou para os Estados Unidos, eu voltei três meses depois, em 1966, e nos casamos formalmente em janeiro de 1967.

N.T.L. Foi uma história de amor e também de parceria intelectual.

E.L. É, e casamos assim. Ele era professor da Universidade do Texas, onde comecei a cursar mestrado em ciência política. Voltamos ao Brasil para fazer trabalho de campo no verão americano de 1967 e 1968, e em 1969 ele foi contratado pelo Roberto [Cardoso de Oliveira] por meio de um convênio da Fundação Ford com o Museu Nacional para o ensino na área de antropologia urbana. Eu, na mesma época, continuei o trabalho de campo para o mestrado, já com bebê pequeno.

R.V. Voltando ao período da sua primeira estada no Brasil, era época do regime militar; o treinamento de vocês abordou esse contexto ditatorial?

E.L. Recentemente, tive uma conversa com David Morocco [farmacêutico voluntário do Peace Corps, mestre em antropologia] em que lembrávamos como éramos inocentes na época! Parte de nossa orientação política consistiu de reuniões no que ainda era embaixada, mas era como se não tivesse havido golpe militar e não houvesse ditadura. Uma das pessoas que falou para o nosso grupo foi o general Vernon Walters, adido militar. Ele era muito amigo do Castelo Branco, haviam sido aliados na Segunda Guerra na Europa e mantinham amizade desde então. Éramos realmente muito inocentes. E nunca sentimos repressão nem tínhamos consciência dela. Alguns colegas do grupo posterior ao meu a sentiram, porque a repressão foi piorando nos anos seguintes.

R.V. Também não se falava em anticomunismo?

E.L. Não. Eu era tão inocente... não somente quando eu era Peace Corps. Logo depois, quando comecei a pesquisar, foi que me dei conta de que a presença do Partido Comunista era muito mais forte do que eu imaginava, especialmente no Tuiuti. Quando digo que éramos inocentes é porque éramos inocentes mesmo, não estávamos conscientes da questão política, da atuação do Partido Comunista em algumas favelas. Então resolvemos tentar ajudar na associação de moradores. Mas, como disse, a nossa preparação para essa complexidade era fraquíssima, senão nula.

R.V. Então você só percebeu essa presença do Partido Comunista bem depois, quando começou sua pesquisa?

E.L. Eu tinha feito o mestrado sobre a relação política entre favela e Estado. E nos anos 1980 a ideia era fazer uma pesquisa paralela depois do regime militar. Foi então que me dei conta de que o Partido Comunista era uma presença muito mais ativa. Antes, não se falava nada.

R.V. Nem entre os moradores, na conversa com os moradores?

E.L. Não. Os Estados Unidos tinham uma certa reputação... Lembro que alguns voluntários fomos a uma festa assim que chegamos ao Brasil. A invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos tinha ocorrido nesse período e fomos atacados pelas pessoas na festa, por sermos americanos.

N.T.L. Vocês liam estudos americanos sobre desenvolvimento de comunidade?

E.L. Isso também fazia parte do treinamento. Mas era muito formal. E realmente essa literatura é muito mais ligada à questão rural, não à complexidade da questão das relações sociais ou políticas no ambiente urbano. E quando o Tony veio fazer trabalho de campo depois de já ter treinado voluntários do Peace Corps em um daqueles centros universitários nos Estados Unidos, para nós ele era, de certa forma, um professor informal.

Lembro que o tema dos principais textos não era o desenvolvimento de comunidade. Faz muitos anos, mas acho que o texto básico sobre o Brasil era aquele livro do Charles Wagley.5 5 Provavelmente Race and class in rural Brazil (Unesco, 1952). Os outros textos eram mais práticos e tratavam de saúde pública em áreas mais rurais.

N.T.L. Você lembra que tipo de mensagem sobre saúde pública se transmitia nessas áreas rurais? Que conceitos eram acionados nesse treinamento?

E.L. O treinamento era muito prático: vacinação, aplicação de injeção, instruções sobre tratamento e filtragem da água, cuidados com as crianças, curativos etc.. Não me lembro de haver textos.

N.T.L. Como era para você morar no Tuiuti? Como você viveu essa experiência no início? Foi por quanto tempo?

E.L. Um ano e meio. Como já disse, fui morar na casa onde tinha morado outro voluntário. Casa de tijolo, água fria, mas encanada. Era bem simples e completamente fora da minha experiência. Ao menos na minha percepção inocente, éramos mais ou menos aceitos pela comunidade. O único problema que tive foi o roubo de uma rede que eu trouxera de uma viagem de férias ao Nordeste.

N.T.L. Vocês tinham alguma relação com a Associação de Moradores do Tuiuti?

E.L. A associação do Tuiuti era muito fraca. Então, diferentemente de outras favelas, a relação era sempre muito difícil. A comunidade tinha dificuldades de se organizar. Havia uma igreja católica lá em cima, que tinha um padre muito influente e com a qual mantínhamos uma relação de convivência, embora sem muito contato. Não interferíamos na atividade da Igreja, mas claro que ela era um ator importante. A questão política lá, no entanto, era muito mais fraca do que em outras comunidades, o que eu só entendi depois, quando fiz minha pesquisa.

N.T.L. Quando você começou esse trabalho já era o governo Negrão de Lima [dez. 1965-mar. 1971]. Você chegou a ter contato com as políticas e o trabalho do governo Lacerda? A questão da remoção de favelas aparecia no trabalho de vocês? Vocês acompanhavam isso de alguma forma nesse momento?

E.L. Não. Em um trabalho que fiz depois, no mestrado, vi que a atuação política de Negrão era bastante marcada. As remoções ocorreram no Pasmado, em 1964, e a maioria de nós atuava nas favelas da Zona Norte. E, na época, não éramos afetados.

N.T.L. Antes de vir para o Brasil, você não tinha noção alguma do que seria uma favela no Rio de Janeiro? Nunca tinha lido nada a respeito?

E.L. Nada. Também não existia quase nada sobre a questão urbana. Talvez o livro de Carolina Maria de Jesus... mas era São Paulo, não Rio.

Já durante o trabalho de campo havia reuniões de vez em quando, mas o apoio ao trabalho e à realidade política era pequeno. Por isso as pessoas eram atraídas pelo Tony, que realmente tentava harmonizar as relações sociais e políticas da favela, e nos ajudar a refletir sobre comunidade.

Naquele momento não havia uma literatura sobre favelas. Depois, quando eu estava fazendo o mestrado, é que a área de estudos estava começando a se desenvolver, então pude fazer algumas leituras sobre outros países da América Latina. Alejandro Portes [um dos orientadores de Liz], por exemplo. Wayne Cornelius, professor e um dos meus orientadores no MIT, que havia feito um trabalho sobre migração e favelas no México. Mas a referência maior era [o arquiteto] John Turner.

R.V. E para sua pesquisa do mestrado você continuou entrevistando os mesmos moradores?

E.L. Mais especificamente os líderes de associações de moradores de favelas. Para entender qual era a estratégia deles ao lidar com o governo, com os políticos. A literatura era muito focada em clientelismo e desigualdade no nível de poder entre os atores políticos formais e esses líderes de favelas. Minha conclusão foi a de que, em suas negociações, esses líderes eram muito mais espertos do que afirmavam essas pesquisas sobre clientelismo. Porque eles entenderam o jogo político. Aprenderam, usaram e fizeram o jogo.

R.V. Como você fazia o trabalho de campo? Sempre sozinha? Com o Tony? Com outros pesquisadores?

E.L. Na maioria das vezes sozinha. Às vezes com o Tony, porque ele estava interessado em tudo. Era uma esponja!

Ele também tinha uma produção, relacionada a políticas de habitação, sobre as estratégias das pessoas para sobreviver economicamente. Ele lidava com as diversas formas de habitação das classes mais baixas nas cidades, por exemplo. Não só favela, mas casas de cômodos, cabeças de porco; tudo isso, essa ecologia urbana, lhe interessava.

R.V. E quando vocês abordavam e entrevistavam um morador, viam diferença na maneira de introduzir uma conversa?

E.L. Naquela época era bem mais fácil se entrosar na favela. Ficávamos conversando numa birosca, ou bar... Isso foi antes do mestrado, nos anos 1960. Éramos sempre muito abertos em relação ao fato de que estávamos ali fazendo uma pesquisa. Nada era escondido. E também sempre contávamos com a ajuda de alguém da favela. Não entrávamos sem antes estabelecer uma ligação. Por exemplo, entramos na favela Macedo Sobrinho, que ficava no Humaitá e foi removida, por intermédio de Josephina Albano e dos demais assistentes sociais ligados ao trabalho da Escola de Serviço Social da PUC lá desenvolvido.

No Jacarezinho contávamos com o David Morocco e mais alguns voluntários que faziam parte daquele grupo, o que, portanto, nos deu uma entrada. Não lembro bem, mas acho que o David, que era muito ligado ao samba - ele gosta de sambar e aprendeu a sambar no Jacarezinho -, nos apresentou.

R.V. Sobre os pesquisadores: como era a interação entre vocês?

E.L. Em todos os lugares onde trabalhou, Tony fazia aquelas reuniões de grupos. Acho que o ensaio do Tim Sieber [antropólogo, professor na University of Massachusetts Boston] aborda os thursday night groups. Eram reuniões informais em que as pessoas apresentavam um esboço de um trabalho. Talvez tenham acontecido em 1968, ou antes. Vários voluntários do Peace Corps participavam; o David, por exemplo, que escreveu sobre escola de samba; uma outra voluntária, Judith Hoeneck, que trabalhava no Borel...

R.V. Cada um de vocês tinha um objeto de pesquisa e fazia suas pesquisas independentemente, mas trocavam experiências. E a partir disso o Tony fazia as pesquisas dele também. É isso?

E.L. Sim, fazíamos parte dessa rede, era uma troca. Não sei se alguns desses voluntários se sentiram usados ou explorados, mas a meu ver essa dinâmica era uma maneira de primeiramente entender essa complexidade urbana a partir dos pesquisadores. E o Tony participou, deu conselhos e aprendeu.

R.V. Sim, um suporte teórico-metodológico. E falando nisso, como você percebia a presença do marxismo e a influência da filosofia marxista na vida do Tony? Na introdução de A sociologia do Brasil urbano, por exemplo, ele faz uma crítica muito interessante ao dualismo do pensamento marxista, especialmente quando se trata de pensar as complexidades.

E.L. Nos anos em Columbia, em Nova York, ele tinha o Marxist Study Group. Acho que para ele Marx era um pensador muito complexo. Tony não se enquadrava na expressão vulgar marxist, e rejeitava esse tipo de marxismo reducionista.

R.V. E quanto à teoria geral dos sistemas, chegou a influenciar você também?

E.L. Não, isso é dele! Talvez eu tenha sido influenciada até certo ponto por essa teoria nas minhas questões políticas, mas não especificamente. Tony era muito mais amplo e complexo que essa teoria nos pensamentos e trabalhos dele. Nunca fui sua aluna, mas aprendi muito com ele. Talvez a maneira de pensar o fenômeno político que eu queria estudar e a necessidade de ver as redes e todas as complexidades políticas envolvidas em uma relação estejam conectadas com essa abordagem dos sistemas.

R.V. E como funcionava a parceria entre vocês na pesquisa quantitativa?

E.L. Eu fazia entrevistas com base em um roteiro que tinha mais na cabeça, porque, se seguido rigidamente, ficaria chato. No final dá mais trabalho para organizar tudo, mas a conversa fica mais rica, flui, tem espaço para ampliação.

Para algumas questões ele usava dados quantitativos, para outras não. Embora Tony possuísse dados quantitativos sobre vários aspectos da economia da favela, eles não eram sofisticados, porque esse não era o forte dele. Eu não participava tanto do processo de interpretação e análise desses dados, pois já estava metida na minha área política.

R.V. Não falamos ainda sobre a troca intelectual com os cientistas sociais brasileiros.

E.L. Antes de eu conhecer o Tony ele tinha mais essa troca com pessoas com quem trabalhava antes dos anos 1960. Por exemplo, o artigo que virou clássico sobre carreiras (Leeds, 2015Leeds, Anthony. (2015). Carreiras brasileiras e estrutura social: um estudo de caso e um modelo. In: Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociolgoia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.) foi feito em parceria com Carolina Bori, psicóloga, pesquisadora na área de psicologia experimental. Anísio Teixeira era fundamental para ele. Thales de Azevedo, a turma da Bahia também. Durante a época do doutorado era mais o grupo de antropólogos americanos de Columbia, os alunos de Charles Wagley, que não eram brasileiros. Ele teve alguns encontros ainda nos anos 1960 com Roberto Cardoso de Oliveira, que fundou o Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional e convidou Tony para lecionar, em 1969.

R.V. E na sua pesquisa em política nas favelas, com quais intelectuais brasileiros você interagiu mais, quais foram importantes?

E.L. José Arthur Rios, que era sociólogo, advogado, relativamente revolucionário - uma vez que queria dar independência às associações de moradores -, e não veio do mundo acadêmico propriamente dito, foi para mim uma pessoa muito importante porque, como chefe da Secretaria de Serviço Social do Estado da Guanabara no governo de Carlos Lacerda, fez a ponte entre vários mundos. E tinha uma visão, mas também uma prática, que em geral os acadêmicos no Brasil não têm. Para mim, meus professores eram os líderes de favela.

R.V. O que você e Tony achavam mais interessante nas ciências sociais brasileiras?

E.L. As ciências sociais brasileiras estavam ainda na infância naquela época. Tenho que admitir que não eram uma influência para mim, assim como os cientistas sociais americanos não eram. Na realidade, o que me formou foi mesmo o campo, todo o meu interesse veio de uma experiência no campo. E eu estava argumentando contra a literatura que existia nos Estados Unidos, que afirmava serem sempre clientelísticas as relações entre líderes comunitários e políticos na América Latina. Essa era uma visão muito classista e elistista, não é? Como se essas camadas não tivessem capacidade de agir por contra própria, ser agentes de si mesmas (em inglês usamos para isso a palavra agency).

Fazer trabalho de campo era quase novidade nessa época, implicava sujar as mãos. Talvez as pesquisas sobre vida indígena fossem diferentes, pois se ia para o campo. Mas, na área urbana, faziam-se as teses, os artigos, que tinham a parte teórico-metodológica, e os dados do campo eram secundários. Isso me marcou muito, negativamente.

Nos anos 1960, muitos cientistas sociais estavam sendo treinados; durante a ditadura, a Fundação Ford apoiou fortemente a área das ciências sociais. Quando voltei para a Fundação Ford nos anos 1990, conheci várias pessoas que tinham estudado com bolsa da fundação dentro do Brasil ou fora.

R.V. Você se lembra de o Tony mencionar algum cientista social brasileiro que ele considerava importante?

E.L. Como já tinha dito, Anísio Teixeira. Outra pessoa que era um intelectual, mas baseado na vida concreta, e que teve importância no pensamento dele, era Thales de Azevedo, que ele conheceu antes de começar toda essa pesquisa urbana.

R.V. E como foi voltar ao Brasil depois da sua primeira estada?

E.L. Acho que era impossível voltar ao Brasil nos anos 1970 como pesquisador estrangeiro, muito menos continuar trabalhando com essa questão política nas favelas. Já sabíamos o que se passava no país. Estávamos no Rio em 1968 e me lembro bem das passeatas no Centro da cidade, com bombas de gás lacrimogêneo, tudo ficando muito mais repressivo. Yvonne Maggie falou - você estava naquele seminário6 6 Seminário O Rio que se queria negar: as favelas no acervo de Anthony Leeds, realizado pela Fiocruz em 22 e 23 de setembro de 2015 no Museu da República, Rio de Janeiro. - que, naquele momento político, aquele curso significava para ela um pouco de refúgio. Então, acho que naquele momento em que eu comecei a pensar em fazer tese de doutorado, o Brasil não era uma possibilidade. E Tony queria fazer algum tipo de trabalho de campo. Então consideramos Portugal uma opção interessante. Dominávamos a língua portuguesa, que era a mesma língua, ainda que com diferenças. E ele começou a desenvolver um trabalho sobre as estratégias de migrantes. Portugal, na época, era um lugar de emigração. E eu, como estava mais envolvida nas questões políticas, fiz minha tese sobre a política de emigração [para as colônias africanas] do regime salazarista. Foi um estudo muito mais seco em termos de envolvimento. Não tinha entrevista com pessoas, com comunidades, e enfocava muito mais a política pública de emigração. Embora fosse bastante complexo, para mim faltava aquela conexão emocional do trabalho de campo.

N.T.L. E como Tony via a questão urbana em suas pesquisas?

E.L. Ele nunca realmente separou o pensamento e o trabalho empírico sobre sociedades complexas. Nunca isolou a questão urbana. Isso foi fundamental. Quando foi criada, dentro da American Anthropological Association, uma seção de antropologia urbana, ele era contra que se estabelecesse uma entidade sobre questões urbanas em separado, embora tenha sido o primeiro presidente dessa sociedade.

R.V. E hoje a sociedade tem o Prêmio Anthony Leeds [Anthony Leeds Prize in Urban Anthropology].

E.L. Tem, só que esse grupo mudou de nome: era Society for Urban Anthropology, agora é Society for Urban National Transnational Anthropology (SUNTA), que não isola a questão urbana. Para ele era fundamental não separar a questão urbana, porque ela faz parte de um complexo sistema.

LUIZ ANTONIO MACHADO DA SILVA

Entrevista a Nísia Trindade Lima e Rachel Viana em 7 de maio de 2018,

no Iesp/Uerj.

Nísia Trindade Lima. Gostaríamos que você começasse falando do seu contato inicial com o professor Leeds.

Luiz Antonio Machado da Silva. Conheci o Tony num determinado momento do meu trabalho, antes do mestrado, quando eu tinha que circular por favelas para selecionar aquelas que receberiam recursos de intervenção de um órgão no qual eu trabalhava, o Bemdoc [Brasil-Estados Unidos Movimento de Desenvolvimento e Organização de Comunidade]. O Bemdoc acabou trabalhando só com duas ou três favelas, mas eu andei muito.

N.T.L. Quais eram essas favelas?

L.A.M.S. Não me recordo mais, eram muitas favelas. Lembro-me especificamente da Vila da Penha, onde fiz um survey, e também do Borel. Nessa e noutras não sei se chegou a ocorrer mesmo uma intervenção significativa. Na Vila da Penha houve. Aí eu conheci o Tony.

N.T.L. E como você chegou ao Bemdoc? Por intermédio de algum outro cientista social? Foi uma seleção?

L.A.M.S. Fui convidado. Mas convidado como entrevistador, uma coisa menor, desse tipo, por uma professora minha chamada Ana Judith Carvalho, que já morreu. Ela era da PUC. Ela tinha se formado na PUC. Tive duas professoras que haviam sido alunas da PUC na minha época: a Ana Judith e a Emília Amoedo. Com a Ana Judith eu tive um contato mais intenso, por causa do Bemdoc, mas não sei como ela foi parar lá.

N.T.L. Não teve nada a ver com o José Arthur Rios?

L.A.M.S. Nada a ver. O Otávio Velho e eu fomos monitores do José Arthur Rios. Mas só isso. Ele morreu há pouquíssimo tempo. Fiquei impressionado com a memória dele: eu o conheci nessa época, 1964, 1963; passaram-se os anos, e não tive mais nenhum contato com ele, até que o Marco Antônio Melo [antropólogo brasileiro, professor do IFCS/UFRJ] organizou o seminário Aspectos Humanos da Favela Carioca,7 7 Colóquio realizado entre os dias 19 e 21 de maio de 2010 no IFCS, uma inciativa do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro). O evento foi em comemoração ao cinquentenário da pesquisa de mesmo nome, realizada pela Sagmacs e encomendada pelo jornal O Estado de São Paulo, que a publicou em dois suplementos em abril de 1960. em que eu colaborei. Na primeira reunião preparatória, o José Arthur Rios já estava lá. Comecei a me apresentar: “Professor, eu sou…”, e quando cheguei no meio da frase ele disse “Pô, Machado, não fala assim comigo!”. Quarenta anos? Ele me viu menino! Ele era muito articulado. Ele tinha um espírito público.

N.T.L. É verdade, ele tinha. Mas você ia começar a contar do teu contato com o Tony. Em que ano aconteceu?

L.A.M.S. Deve ter sido 1968, ou 1967, por aí. Nessa época eu tinha contatos esporádicos com ele; não um contato mais sistemático. Fui para o Museu, e entre os Peace Corps, que o Tony organizava, conheci um colega que ficou muito meu amigo e morou na minha casa, Paul Silberstein. Comecei a frequentar as reuniões que o Tony fazia com os Peace Corps por causa do Paul, antes de entrar no Museu Nacional. Não eram reuniões sistemáticas, e todo mundo entrava. Vários Peace Corps participavam, embora fosse meio oscilante, e ocorriam em diferentes lugares. Não me pergunte quais, pois não lembro mais. Discutia-se o campo de trabalho das pessoas que apareciam, que não sei se eram especificamente convidadas. A frequência me parecia meio aleatória. Era muito interessante. Conversas longas, que duravam duas, três horas. As pessoas apresentavam o que estavam fazendo, e o Tony reagia, sempre com aquele papelzinho amarelo. Eu nunca acreditei que ele pudesse usar aquele negócio, mas ele usava, botava em todos os bolsos. Alguém dizia uma palavra que ele considerava interessante, e ele anotava. Nessa época Tony não morava em Copacabana, nem era casado com a Liz. Eles já namoravam, mas ele morava em Tuiuti.

R.V. A sua inserção em campo começou nesse período, 1966, 1967?

L.A.M.S. Minha inserção em campo começou exatamente em 1965, quando entrei para o Bemdoc e fiz uma pesquisa de comunidade: me chamaram na Secretaria de Economia do Estado da Guanabara para fazer uma pesquisa no Mangue, que estava em vias de ser desativado. A pesquisa durou vários meses, eu passava o dia inteiro lá, e fiz um relatório até grande, que acabou sumindo por aí, tenho uma pena danada. Uma coisa interessante é que o Bemdoc foi chamado pela Fundação Ford. E o Tony foi chamado pela Fundação Ford para fazer uma avaliação do Bemdoc, mas nessa época eu já tinha saído. Acho que até tenho essa avaliação. O Bemdoc atuava mais na área de serviço social ligado ao Peace Corps, à Embaixada Americana no Rio. Conheci o responsável para a América Latina, M. Ruybalid, quando ele veio ao Brasil fazer uma inspeção.

N.T.L. E como foi o curso do Leeds no Museu? À exceção da menção feita por Gilberto Velho (2011)Velho, Gilberto. (2011). Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento. Mana, Rio de Janeiro, 17/1, p. 161-185. em artigo que publicou na Mana, sabemos pouco sobre a experiência.

L.A.M.S. Eu não fiz o curso, embora de vez em quando fosse às aulas. Acho que eu já tinha terminado o mestrado, mas tinha sempre notícias pelo Paul Silberstein. Sei que teve muitos alunos. O Tony tinha uma capacidade notável de fazer falar. Então eram reuniões densas, em que as pessoas falavam. Ele tinha uma capacidade de agregação, de manter o conjunto das falas mais ou menos organizado em torno do grupo, que era uma coisa impressionante.

N.T.L. E no curso, Tony era crítico à ideia de uma antropologia urbana?

L.A.M.S. O curso era mais amplo do que a pesquisa que ele estava fazendo, abrangia não só favelas e envolvia uma discussão mais geral sobre ecologia urbana. Ele se considerava marxista - o que era um traço da época -, mas tinha forte inclinação para o raciocínio ecológico. Se me lembro bem, o curso era mais sobre a cidade, a partir desse ponto de vista ecológico.

N.T.L. Você acha que a ecologia urbana era uma das influências mais fortes dele?

L.A.M.S. A ecologia urbana dessa época, americana, é muito voltada para a solução de problemas públicos do ponto de vista hegemônico. O Tony, por sua vez, era bastante científico. Provavelmente isso tem a ver com sua autoimagem de marxista. Ele era muito crítico, e isso destoava da tradição ecológica.

N.T.L. Ele também era muito crítico das ideias de resistência à mudança, de cultura da pobreza, pelo menos isso aparece em A sociologia do Brasil urbano.

L.A.M.S. Esse aspecto já se relaciona com a experiência do Tony no Brasil, porque as discussões sobre mudança social eram uma espécie de prévia da discussão sobre o desenvolvimentismo, central na época. Essa ideia inicial da resistência à mudança era muito generalizada no Brasil, o Rio incluído. O Tony foi muito influenciado por esse debate.

N.T.L. Mas ao mesmo tempo ele era crítico dessa visão. Pelo menos nos estudos de favela isso fica explícito. Você acha que essa crítica tem a ver com uma posição teórica dele e também com sua vivência política nos Estados Unidos e aqui?

L.A.M.S. Acho que deve ter a ver com a tomada de posição dele nos Estados Unidos. Porque ser marxista nos Estados Unidos, naquela época, era gritar sozinho. Mesmo que, como eu já disse, no caso dele esteja mais relacionado ao materialismo do que propriamente ao marxismo. Penso que sua leitura de Marx, porque feita nos Estados Unidos, acabou filtrada pela reflexão de base ecológica.

N.T.L. O interesse dele seria criar uma teoria mais geral em que a questão das classes sociais fosse central, ainda que não as considerasse os únicos atores sociais.

R.V. Ele se refere a uma teoria do poder multiclasse. Ele via a questão da classe social de maneira bem mais complexa, que saía daquele antagonismo, aquela coisa dual do marxismo.

N.T.L. Talvez se trate de uma posição que não era antimarxista, para dizer o mínimo, mas que, simultaneamente, estabelecia relação com uma teoria da ação - esse parece ser o ponto que você, Machado, levanta no seu artigo sobre o Leeds [Silva, 2015Silva, Luiz Antonio Machado da. (2015). Anthony Leeds visto por um filhote ligeiramente rebelde. In: Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. 2 ed. Organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.].

L.A.M.S. Não sei exatamente quais foram as influências sobre o Tony naquela época. Havia um nome, porém, que equivalia a várias delas, Parsons. Ainda que, a meu ver, não exista uma influência direta dele sobre a obra do Tony.

N.T.L. Talvez você tenha razão, pois Parsons estava mesmo no debate intelectual e na agenda de discussões do período. Outro pensador da época que me parece ter tido relação com o Tony foi o Karl Polanyi, que trabalhou com ele na Universidade de Columbia. Mas também não tenho elementos para avaliar como isso pode ter-se dado em termos de formação de um quadro teórico. A Liz confirma que dos intelectuais que ele valorizava, o Polanyi era bastante central.

L.A.M.S. Eu não sabia, ele nunca mencionou isso para mim.

N.T.L. Voltando ao Museu Nacional, falamos sempre das primeiras gerações, do período inicial. Você é da primeira turma?

L.A.M.S. Da segunda.

N.T.L. Junto com Otávio e Gilberto Velho?

L.A.M.S. O Gilberto é da terceira.

N.T.L. O Gilberto era mais moço, isso mesmo. Tem ainda o Carlos Nelson Ferreira dos Santos e a Alba Zaluar.

L.A.M.S. A Alba é da minha turma, da segunda turma. A intervenção dela foi muito boa na homenagem ao Leeds. “Eu vou trazer uma dobradinha, vou fazer um jogral”, ela disse. “Eu tive que fazer seleção, mas o Machado não teve.” É verdade, porque eu fui convidado pelo Roberto Cardoso de Oliveira, não precisei fazer a seleção para ingressar no Museu. Eu conhecia mais ou menos o Roberto, ele sabia que eu era bom aluno e tal, não só pelas conversas comigo, mas por intermédio dos meus amigos que já estavam no Museu, o Otávio Velho e o Moacir Palmeira.

N.T.L. Como se dava a orientação dos estudantes nessa época? A antropologia urbana não era dominante; havia o projeto em áreas camponesas, o Projeto Nordeste, e tinha ainda a questão indígena.

L.A.M.S. No Museu tinha a pesquisa do Moacir. Mas nela tinha muita coisa urbana. O Moacir montou um tripé: era ele e o Afrânio Garcia na parte rural e o José Sérgio Leite Lopes na parte urbana. E o Moacir me chamou para ficar com o Sérgio nessa parte. O projeto era enorme, com, talvez, dez pessoas ou mais. Era desequilibrado, tinha mais gente na parte rural, mas na época era necessário. E a pesquisa foi muito importante para o Museu, gerou várias teses e deu muita visibilidade à instituição.

N.T.L. Mas isso já foi um pouco depois desse período de que estamos falando. No período de formação do Museu, a área de estudos urbanos ainda não era forte, não é?

L.A.M.S. Logo no começo, não. Eram pouquíssimos professores.

N.T.L. E como foi sua interação com o Tony?

L.A.M.S. A minha interação com ele se deu mais junto com os Peace Corps. Foi o que me marcou mais.

R.V. E você chegou a ir a campo com ele também nesse período?

L.A.M.S. Ele ia ao meu campo, nos encontrávamos lá, sem nunca combinarmos. Ele vinha sincopadamente ao Brasil, quando eu estava na Codesco [Companhia de Desenvolvimento de Comunidades]. Íamos a campo eu, Carlos Nelson, Sílvia Wanderley, Rogério Aroeira, e também uma moça, cujo nome não lembro. O nome do escritório do Carlos Nelson era Quadra, por causa dessas quatro pessoas. A gente rodava muito para escolher favelas e nas quais se podia entrar. Mesmo esquema do Bemdoc, só que muito mais sofisticado, porque no Bemdoc eu estava sozinho, enquanto na Codesco eram os quatro da companhia e eu também. Cinco cabeças para conversar.

N.T.L. Quais critérios eram usados para saber em que comunidade era possível ou valia a pena trabalhar?

L.A.M.S. Eram dois blocos de critérios vitais. Não me lembro mais dos detalhes, mas da ideia geral sim. Um bloco compreendia as condições físicas, uma vez que fosse uma forma urbanizável, e isso dependia da situação física da favela, mas não só, porque havia também a possibilidade de rearranjos físicos, abrindo área para passagem de automóveis e outros detalhes. O outro bloco era o sociopolítico. Primeiro, cabia determinar se se tratava mesmo de uma favela, se não era uma favela muito urbanizada. Porque nas favelas mais antigas não tinha sentido fazer uma intervenção desse tipo, pois seria preciso derrubar casas, e a maioria delas já era então de alvenaria, já se havia investido tamanho esforço humano nelas que seria contraproducente fazer uma intervenção. E na dimensão política era preciso entender se, internamente, se tratava de uma favela. Na época havia muitas associações de moradores, que eram uma força social muito grande. E com disputas entre elas. Às vezes eram duas associações, às vezes a mesma associação tinha uma projeção enorme. Não se permitia um planejamento participativo, que era a ideia.

Tentamos analisar e descobrir um padrão para as casas que queriam permanecer no local, mas nunca conseguimos. Pedia-se que os moradores esquematizassem uma planta. Tínhamos para uma das favelas cerca de 300 plantas feitas pelos moradores, com o desenho de como gostariam que fosse a casa depois de completada a transição. Era um trabalho imenso coordenar tudo, calcular os custos...

N.T.L. Brás de Pina foi uma favela urbanizada.

L.A.M.S. Brás de Pina e Morro União também.

N.T.L. Como Tony lidou com a questão das remoções no período da pesquisa que vocês estavam fazendo?

L.A.M.S. De modo altamente crítico. Ele tinha uma entrada muito boa, muito respeito e confiança dos políticos da favela. Para mim também não houve problema. Não sei se as remoções interferiram no trabalho reflexivo dele, não sei.

N.T.L. As remoções se tornam mais intensas um pouco depois; essas favelas da Zona Sul, da Lagoa, foram removidas principalmente em 1968, 1969.

R.V. Hoje, como você avalia a atuação das agências internacionais nesse período? Que contribuições trouxeram efetivamente para as favelas?

L.A.M.S. Tive oportunidade de lidar com as antigas assistentes sociais e, por seu intermédio, li bastante a literatura norte-americana sobre serviço social em comunidade. É um desastre a atuação desse pessoal. Não resultou em absolutamente nada de relevante. Nada. Não foi dinheiro jogado fora porque esse dinheiro era americano, foi expropriado, mas já era americano. Mas o trabalho era zero à esquerda. A Inter-American Foundation, a mesma coisa. Nada feito. Enfim, um esforço desperdiçado.

R.V. Nem para produzir conhecimento sobre favela?

L.A.M.S. Não, porque isso não depende da atividade, mas do participante, que pode ou não produzir conhecimento. Os participantes, por parte desses órgãos, eram 90% assistentes sociais. Os 10% restantes eram consultores, economistas, não decidiam nada. Agora elas são diferentes, mas naquela época as assistentes sociais não produziam conhecimento. Lembro de uma delas, porém, que era uma exceção de todas as exceções, a Ana Maria Quiroga. Ela rodou pelo mundo. Foi para a Paraíba, voltou, rodou e se apresentou na UFRJ, no Departamento de Serviço Social. Mas quando ela estava no Serviço Social, o órgão já era outra coisa.

N.T.L. Fale um pouco mais sobre a relação do Leeds com as lideranças comunitárias. Ele também estabelecia uma relação mais horizontal com elas?

L.A.M.S. Sim. Ele tinha uma excelente relação com as ideias apresentadas pela comunidade, sem interferir. Que eu saiba ele jamais disse: “Olha, eu acho que você deve...”. É outro traço dele que acho sensacional. E ao mesmo tempo tinha uma excelente relação com os órgãos na ponta da administração. Todas as pessoas lidaram com ele muito bem, e não só com respeito, mas com admiração. Ele “jogava para todas as plateias”.

Outra coisa que acho muito importante ressaltar é que o Tony estimulava muito o trabalho empírico. Ele insistia na fundamentação empírica do que era afirmado - no meu caso, que sou meio sociólogo, meio antropólogo, isso foi muito importante. Nós não discutíamos os sistemas analíticos, e sim as superações empíricas. Era uma insistência velada, porque a discussão analítica não era exatamente proibida, mas a ênfase estava nos desafios empíricos da pesquisa, do campo.

N.T.L. A etnografia nesse caso era um pouco diferente do que se costuma ver no trabalho antropológico contemporâneo. Porque na verdade se tinha um campo em vários lugares, nem tudo feito por ele, naturalmente.

L.A.M.S. Mas há um nome para isso. Michel Agier se refere a isso como antropologia multiestruturada.

N.T.L. Mas na época não era comum.

L.A.M.S. Mas ele dava muita ênfase a esse trabalho comparativo das áreas ecológicas.

N.T.L. Comparações ecológicas que só eram viáveis se pensadas numa rede de antropólogos, como, por exemplo, suas relações com os pesquisadores do Peru. E também com essa rede importante que foram os Peace Corps, mesmo seus integrantes não sendo necessariamente cientistas sociais.

L.A.M.S. Acho que não resta dúvida de que ele usou os Peace Corps. Mas usou muito bem, muito respeitosamente.

N.T.L. Não sei como você vê isso, mas, por exemplo, nos primeiros estudos sobre favelas que li - e mesmo no estudo da SAGMACS [Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais] e em um texto da Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre as sociedades urbanas no Brasil e sobre como a favela foi se tornando tema de pesquisa, publicado nos Cadernos Ceru, da USP - pobreza e favela estão associadas. O seu trabalho, Machado, e também o do Tony não têm essa abordagem. Tony não está falando de pobreza, ainda que a pobreza e situações de pobreza possam ser descritas. O que ele toma como categoria central não é a pobreza, mas a dinâmica da favela. Isso era bem novo na época, não é?

L.A.M.S. Era uma forma nova de olhar a favela, sim. E era uma maneira própria de ver as coisas. Ele não discutia pobreza, mas, antes, como as pessoas “davam a volta por cima”. E isso me aproximava dele, porque eu também via assim.

N.T.L. Uma visão alternativa à da vitimização. É um olhar que procura ver essa vida em sua intensidade. Daí a abordagem exaustiva dele, como, por exemplo, aparece nos questionários então elaborados, tentando capturar diferentes dimensões do cotidiano em conjunto. Penso que isso se relaciona muito com a metodologia dos estudos de comunidade, embora o Tony negue. O que você acha?

L.A.M.S. Isso tem a ver também com algo que atribuo aos norte-americanos em geral. O norte-americano não consegue, talvez por alguma ética religiosa, fazer algo mediano. Ele até pode fazer, mas sem querer. No trabalho acadêmico tem um sentido de responsabilidade que chega a ser doentio, tem que ser feito sempre da melhor maneira possível. Era o caso do Tony. Acho que é uma espécie de timidez virada ao contrário. Ninguém poderia, por exemplo, interpelar o Tony sem que ele tivesse uma resposta à altura. Isso é bacana, mas eu não queria para mim. Pode ser mais relaxado. Esse excesso de responsabilidade eu não acho legal, mas ele tinha. E fazia com que ele tivesse uma capacidade de trabalho árduo, porque para ser assim é preciso trabalhar o dia inteiro, dia e noite.

N.T.L. Depois da volta do Tony para os Estados Unidos, vocês mantiveram contato?

L.A.M.S. Não, só tive contato com ele aqui no Brasil.

N.T.L. E quando ele retornou ao Brasil em 1986?

L.A.M.S. Que eu me lembre, na última vez que tive contato com o Tony ele morava em Copacabana. Acho que era na rua Duvivier, fui jantar lá com ele e a Liz. Foi a última vez que estive com ele. Não lembro se foi em 1987. Mas ele não chegou a passar um ano no Brasil daquela vez, foi um período mais curto. Já o achei envelhecido. Acho que pouco depois ele morreu.

N.T.L. Ele morreu em fevereiro de 1989. E você também fala no texto, nesse da segunda edição, da importância da Liz no trabalho dele, no trabalho de favelas, no caso. Como você vê essa importância?

L.A.M.S. A Liz sempre foi uma pessoa muito reservada. Ela não é tímida, mas é reservada. Sempre foi. Meu contato com ela foi sempre por intermédio do Tony. Mas, com toda certeza, parte significativa do trabalho de campo que o Tony achava necessário para a reflexão dele foi feita pela Liz.

N.T.L. Que imagem do Tony ficou com você?

L.A.M.S. O que me impressionava no Tony era a sua inacreditável capacidade de trabalho. A cabeça dele não parava. Isso por um lado. Por outro lado, a capacidade de ser uma autoridade plenamente aceita que era aberto para discutir. Porque o Tony era “o cara”, mas ele se relacionava com as pessoas como se não fosse. Isso era sensacional, até hoje eu tento seguir. A figura do intelectual como eu gostaria de ser. Ele é uma espécie de pai intelectual dos estudos urbanos latino-americanos.

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    Outra característica biográfica importante foi sua participação em diversas organizações da sociedade civil, como a Massachussets Food and Agricultural Coalition (MassFAC), a Central American Information Organization (Camino), o Lebanese Emergency Comittee of Boston, o East Timor Action Committee, entre outros (Sieber, 1994Sieber, Timothy. (1994). The life of Anthony Leeds. Unity in diversity. In: Leeds, Anthony. Cities, classes and the social order. Editado por R. Sanjek. New York: Cornell University Press.; AA/AL papers/ series 6, sbs biographical files, box 33, curriculum vitae).
  • 2
    Burdick, Eugene & Lederer, William. (1958). The ugly American. New York: Norton.
  • 3
    The ugly American é uma ficção política de Eugene Burdick e William Lederer sobre os fracassos do corpo diplomático americano no Sudeste Asiático; lançado em 1958, causou sensação nos círculos diplomáticos.
  • 4
    O projeto da USAID em questão é o Bemdoc - Brasil Estados Unidos Movimento, Desenvolvimento e Organização de Comunidade.
  • 5
    Provavelmente Race and class in rural Brazil (Unesco, 1952).
  • 6
    Seminário O Rio que se queria negar: as favelas no acervo de Anthony Leeds, realizado pela Fiocruz em 22 e 23 de setembro de 2015 no Museu da República, Rio de Janeiro.
  • 7
    Colóquio realizado entre os dias 19 e 21 de maio de 2010 no IFCS, uma inciativa do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro). O evento foi em comemoração ao cinquentenário da pesquisa de mesmo nome, realizada pela Sagmacs e encomendada pelo jornal O Estado de São Paulo, que a publicou em dois suplementos em abril de 1960.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Wagley, Charles; Azevedo, Thales & Costa Pinto, Luis de A. da. (1950). Uma pesquisa sobre a vida social no Estado da Bahia Salvador: Museu do Estado da Bahia (Publicações do Museu do Estado da Bahia, 11).
  • NAA/AL papers/ series 6, sbs biographical files, box 33, curriculum vitae
  • NAA/AL papers/ series 6, sbs biographical files, box 33, draft autobiography
  • NAA/AL papers/ series 6, sbs biographical files, box 33, poetry

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2018
  • Aceito
    26 Ago 2018
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