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UMA FESTA PARA JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Frehse, Fraya. (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins.São Paulo: Com-Arte, 2018.

José de Souza Martins certamente merece uma festa, ou muitas festas! E por isso vem a calhar a publicação desse “festschrift”, nas palavras de sua organizadora, Fraya Frehse, que reuniu os trabalhos apresentados no seminário em comemoração dos 75 anos de Martins, na Universidade de São Paulo. A expressão de origem alemã indica um “escrito de festa”, que é um modo de celebrar o autor e sua obra, tornando público o reconhecimento de sua importância, de sua influência intelectual e, igualmente, dos afetos que emergem dos muitos diálogos constituídos ao longo de uma vida de pesquisa sociológica. O caminho para tanto é o de uma reflexão que assume aqui um caráter menos agônico ou adversarial que o costume entre os sociólogos, mas nem por isso meramente laudatório. Os textos ali reunidos celebram Martins pensando com ele, reconstituindo aspectos e momentos diversos de sua produção intelectual e de sua trajetória, e, ao fazê-lo, oferecem um olhar externo, que indica algumas das possibilidades de recepção de seu trabalho ao mesmo tempo em que sugere novos sentidos, alguns surpreendentes, talvez até para o próprio autor.

No conjunto, apresentam uma das trajetórias mais ricas e criativas da sociologia brasileira. Martins estudou temas distintos, tais como os conflitos no campo, a imigração, as fronteiras de povoamento ou de expansão do capitalismo, a fotografia, os sonhos, a música caipira ou linchamentos. Esse caleidoscópio aparece no livro pelas mãos de especialistas que se concentram em um ou outro dos grandes estudos de Martins para debater seus argumentos e suas possibilidades interpretativas. Como argumentam alguns autores, porém, a escolha dos temas em Martins não é fortuita, é antes produto de uma imaginação sociológica que procura surpreender os enigmas do “social” por ângulos inesperados, de modo que aquilo que parece irrelevante para muitos sociólogos é justamente o que o fascina. Assim também personagens da vida social que parecem “ínfimos” tornam-se chaves para investigar relações e processos mais amplos. Fraya Frehse argumenta que essa perspectiva é um desdobramento do modo como o “grupo da USP”, que se organizou em torno de Florestan Fernandes, articulava a compreensão de processos sociais mais amplos a partir do fragmento ou do “corte”, conferindo importância recíproca aos fenômenos e aos processos. Os trabalhos de Martins se inscrevem então em uma linhagem da qual também fazem parte, entre outros, os estudos de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni sobre a escravidão ou de Maria Sylvia Carvalho Franco sobre os homens livres na ordem escravocrata. Neles, aquilo que acontece nas “margens” da sociedade, que afeta os homens simples, aparentemente alheios aos grandes processos históricos, torna-se metodologicamente revelador das contradições e dos limites da transformação social.

Os autores do livro mostram como em Martins essa perspectiva ganha cores próprias, a partir de uma combinação teórica criativa da dialética marxista e das tradições interpretativas oriundas da fenomenologia e do interacionismo simbólico, que muito se inspira no trabalho de Henri Lefebvre, embora a ele não se restrinja. O sociólogo português José Machado Pais inventaria algumas dessas estratégias de Martins e mostra seu modo de constituir a concepção de “cotidianidade” do autor, uma realidade aparentemente insignificante, mas que conjuga rotinas e rupturas, fenômeno aparente e processos históricos - o que lhe permite acessar dimensões ocultas da vida social e o aproxima de grandes autores que também desenvolveram uma “hermenêutica da suspeita”, explorando “o hiato entre o que as pessoas fazem e o que creem fazer” (Pais, 2018, p. 167), território de um inconsciente social entretecido historicamente e que cabe à pesquisa sociológica desvendar. Martins, entretanto, não se orienta a partir de esquemas teóricos rígidos e formulados a priori, que dispensam a experiência e o conhecimento do vivido. O desvelamento é antes o ponto de chegada de um método que leva a sério o conhecimento dos homens simples e a riqueza do que “há de comum no senso comum”, o conhecimento compartilhado que torna possível a interação social e seus significados. A consciência do homem comum, quando bem situada, diz mais do que aparenta e se torna a porta de entrada para lidar com os processos históricos mais amplos. Marília Sposito (2018Sposito, Marília. (2018). Uma contribuição pioneira às relações entre sociologia e vida cotidiana. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 233-248.) mostra como essa criatividade teórica enriqueceu o marxismo de Martins, alargando a visão dos processos de produção e reprodução da vida social, com suas contradições, para além das relações de trabalho. No “cotidiano” descobre-se o que muda, o que não muda e por que não muda. Para tanto, ele combina a noção de processo com a de experiência, reintroduzindo os atores sociais e seus conhecimentos na análise, sem perder a referência às estruturas em que se inserem. E a partir daí emerge também a perspectiva crítica do autor, que se torna capaz de reconhecer em seus personagens e em suas falas as dimensões de “recusa” de relações sociais e modos de vida que lhes são impostos, de modo a rearticulá-las para descobrir virtualidades emancipatórias.

Dos sociólogos brasileiros, Martins é um dos que mais valoriza a relação com a história, tema decisivo dos artigos que compõem a primeira parte do livro. Leonilde Medeiros abre sua contribuição citando um trecho de Martins em seu A sociologia como aventura, no qual argumenta que o que dá unidade a sua obra “é a investigação da historicidade nas diferentes dimensões da vida social” (Martins apud Medeiros, 2018Medeiros, Leonilde. (2018). Singularidades do capitalismo brasileiro no mundo rural. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 21-46., p. 21). Seus vários estudos sobre a história da cidade de São Caetano, sobre a sociabilidade fabril ou sobre a imigração dão testemunho dessa abordagem. É contudo especialmente no trato com o mundo rural e agrário que a sociologia histórica de Martins alcança seus maiores frutos. Como sustentam em seus artigos Medeiros, Zander Navarro e Élide Rugai Bastos, o interesse de Martins pelo agrário não está no desenvolvimento de uma sociologia específica, mas na compreensão da sociedade brasileira mais ampla, por um caminho que rejeita o dualismo urbano - rural, característico de certas teorias da modernização e da “sociologia rural” tradicional. Em vez disso, sobressaem os entrelaçamentos, as origens rurais do capitalismo brasileiro, com a marca da presença constante da renda da terra como uma categoria central no processo de acumulação e reprodução do capital; a aliança política entre capitalistas e proprietários de terra que singulariza os processos de modernização no país e finca limites a sua democratização; as relações do campesinato com a política, permeada pela presença de instituições e mediadores sociais de extração urbana, os sociólogos incluídos. A partir desses estudos vai-se constituindo uma verdadeira “teoria da sociedade brasileira” e de seus processos de modernização, que se revelam singulares em comparação com a bibliografia internacional e, por vezes, inacabados ou superficiais. Martins compreende essa modernização como uma dialética entre “tempos históricos desencontrados”, na qual a afirmação do capitalismo não dispensa e até recria relações de produção não capitalistas com ressonâncias amplas na sociabilidade, nos conflitos sociais e nos modos de representação dos atores de suas situações ou de suas possibilidades.

Essa interpretação do Brasil ganha uma dimensão particularmente interessante nos ensaios fotográficos de Martins, que motivaram a análise de Etienne Samain (2018)Samain, Etienne. (2018). Atravessar o espelho das aparências. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins . São Paulo: Com-Arte, p. 209-228.. Seus objetos podem ser a última jornada de trabalho em uma fábrica de tecidos, a estação “terminal” de trem na cidade de Paranapiacaba ou as ruínas de uma fábrica de cerâmica. Eles aparecem como marcas do que “fora e já não era”, meditações visuais sobre a passagem do tempo e as transmutações do espaço, questões que aparecem e reaparecem nos escritos sociológicos e podem ser vistas em certa continuidade com eles, sem subtrair seu valor intrínseco. Neles Martins percebe a sobreposição de temporalidades distintas, como o trem de ferro que já foi símbolo maior do progresso e depois se torna marca de um passado que sobrevive como memória ou como ruína de uma modernidade que não sabe o que fazer com seus resíduos, com sua história. Ele capta o fugaz, o desperdício, o abandono, com um olhar crítico a respeito da violência que isso implica e de virtualidades perdidas, mas talvez não inteiramente.

Outro ponto alto do livro é a reimpressão de um ensaio de Alfredo Bosi (2018)Bosi, Alfredo. (2018).Camus na festa do Bom Jesus. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 291-304., dedicado a Martins, sobre um conto de Camus, que relata a viagem de um engenheiro francês à vila de Iguape no interior de São Paulo e as relações que ele estabelece com a população local. No conto, o estranhamento que decorre do encontro de temporalidades e perspectivas distintas, − a presença intimidante da técnica moderna e de sua racionalidade própria − vai cedendo lugar à empatia, à comunicação e, por fim, à solidariedade entre os personagens que, para Camus, é o que dá sentido à vida e que permite resistir - o que sugere uma analogia com um éthos de pesquisa sociológica que Martins pode inspirar, no qual o conhecimento das diferenças de perspectiva orienta a busca da comunicação e da solidariedade entre o pesquisador e as populações que estuda.

Com contribuições tão vastas, registro apenas uma certa timidez nos artigos em acessar dimensões mais polêmicas dos escritos de Martins, em especial seus debates mais contemporâneos sobre os movimentos sociais e a política brasileira, que exploram argumentos importantes para lidar com a conjuntura recente. Por fim, sugiro à leitora ou ao leitor que aproveite desde o início a belíssima trilha sonora, feita de modas de viola e oferecida por Ivan Villela à festa de Martins, compondo um dos capítulos do livro, que pode ser escutada por meio de um hiperlink de internet, num desses encontros entre a tradição e o moderno que tanto inspiraram a sociologia enraizada de José de Souza Martins!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bosi, Alfredo. (2018).Camus na festa do Bom Jesus. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins São Paulo: Com-Arte, p. 291-304.
  • Medeiros, Leonilde. (2018). Singularidades do capitalismo brasileiro no mundo rural. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins São Paulo: Com-Arte, p. 21-46.
  • Pais, José Machado.(2018).A interrogação sociológica: Modos de olhar e desvendar. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins São Paulo: Com-Arte, p. 157-182.ac
  • Samain, Etienne. (2018). Atravessar o espelho das aparências. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins . São Paulo: Com-Arte, p. 209-228.
  • Sposito, Marília. (2018). Uma contribuição pioneira às relações entre sociologia e vida cotidiana. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins São Paulo: Com-Arte, p. 233-248.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2019
  • Aceito
    09 Jul 2019
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