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GABRIEL COHN E A ESCOLA PAULISTA DE SOCIOLOGIA

GABRIEL COHN AND THE SÃO PAULO SCHOOL OF SOCIOLOGY

Resumo

O artigo retoma o processo formativo de Gabriel Cohn a partir de seu vínculo com a cadeira de sociologia I da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo. Desse prisma, busca compreender a sua produção teórica inicial à luz das preocupações dos sociólogos reunidos no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho. Em especial, examinamos o artigo de Cohn na coletânea Política e revolução social, o seu mestrado e o artigo “Problemas da industrialização no século XX”. Em seu segundo momento, acentuando o processo de autonomização intelectual de Cohn, cuja marca teórica pode ser vista a partir da incorporação das temáticas frankfurtianas em seus trabalhos nos anos 1970 - como em sua livre-docência sobre Max Weber -, o artigo examina as reflexões de Cohn sobre a obra de Florestan Fernandes como um momento privilegiado da autorreflexão sobre a tradição intelectual na qual se formou.

Palavras-chave:
Gabriel Cohn; Escola Paulista de Sociologia; Florestan Fernandes; sociologia do conhecimento; pensamento político e social brasileiro

Abstract

The article explores Gabriel Cohn’s formative process, sett-

ing out from his connection to the Chair of Sociology I of the Faculty of Philosophy, Letters and Sciences of the University of São Paulo. Adopting this perspective, it seeks to understand his early theoretical production in light of the concerns of the sociologists organized at the Centre for the Sociology of Industry and Labour. In particular, it examines Cohn’s article in the collection Política e Revolução Social, his master’s degree and the article “Problemas da industrialização no século XX.” In the second part, highlighting Cohn’s growing intellectual autonomy, whose theoretical imprint can be seen in the incorporation of Frankfurtian themes in his production from the 1970s and, especially, in his book on Max Weber, the article examines Cohn’s reflections on Florestan Fernandes’s work as a key moment for the self-reflection on the intellectual tradition in which he was trained.

Keywords:
Gabriel Cohn; São Paulo school of sociology; Florestan Fernandes; sociology of knowledge; Brazilian political and social thought

UMA TRAJETÓRIA USPIANA

“Em primeiro lugar, é uma trajetória integralmente ‘uspiana’. Toda ela, desde a graduação em Ciências Sociais em 1964 e o ingresso na carreira em 1965, pela via do Cesit [...], até a condição de professor titular em Sociologia em 1985, foi feita na Universidade de São Paulo” (Cohn, 2006Cohn, Gabriel. (2006). Entrevista. In: Bastos, Élide Rugai et al. (orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: 34.: 115).

Um exame da produção e atuação científicas de Gabriel Cohn confirma o assinalado. Se é assim, torna-se lícito indagar de que modo esse vínculo com a Universidade de São Paulo (USP) impactou sua obra. Como todo problema sociológico, esse também poderia ser construído e examinado de ângulos diversos. No caso do que se segue, procuramos indicar de que maneira o pertencimento de Cohn ao quadro de professores-pesquisadores da USP refletiu, em um primeiro momento, sobre a parte inicial de sua trajetória intelectual e a forma pela qual, em um momento seguinte, a própria herança teórica da principal figura da sociologia uspiana, Florestan Fernandes, tornou-se objeto de suas reflexões.

O ingresso de Gabriel Cohn − filho de alemães emigrados devido à Segunda Guerra Mundial e nascido na parte rural do vale do Paraíba − na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP (FFCL-USP) ocorreu em 1960, uma quadra histórica repleta de significados. Do ponto de vista do recrutamento social da faculdade, sua trajetória exemplifica bem a incorporação, embora restrita, que a FFLC-USP propiciava a jovens oriundos de meios não tradicionais,1 1 Também são exemplos dessa modalidade de recrutamento Florestan Fernandes, Fernando Novais, Francisco Weffort, José Arthur Giannotti, Paul Singer, entre outros. característica que a diferenciava do tradicionalismo vigente em escolas como as de direito, engenharia e medicina (Jackson & Blanco, 2014Jackson, Luiz Carlos & Blanco, Alejandro. (2014). Sociologia no espelho: ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo: 34.: 158-159).

Já no que se refere ao plano intelectual, sua chegada à FFLC-USP ocorreu em um momento de consolidação daquilo que Antonio Candido chamou de radicalismo sociológico da faculdade (Candido, 2004Candido, Antonio. (2004). Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul.: 234). Talvez possamos ir um pouco mais longe e sugerir que, naquele período, o radicalismo sociológico estava prestes a se converter em radicalismo político. Três indicações podem ser dadas a favor dessa hipótese.

A primeira se refere à participação engajada dos professores ligados à cadeira de sociologia I na campanha em defesa do ensino público iniciada com o manifesto “Mais uma vez convocados” (1959), assim intitulado em referência ao “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (1932), ambos redigidos por Fernando de Azevedo, professor da própria FFLC-USP. Pelo íntimo contato da questão educacional tanto com a democratização política e social do país quanto com o próprio fazer científico, a campanha teve grande impacto sobre Florestan Fernandes (1977)Fernandes, Florestan. (1977). A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes. e seus alunos. O próprio Florestan publicou em meios de grande circulação diversos textos sobre o assunto (Fernandes, 1966Fernandes, Florestan. (1966). Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus/Edusp.) e participou de muitas conferências, comícios e atividades vinculadas. Sua participação também foi acompanhada pela de seus assistentes, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Foracchi e Luiz Pereira. A mobilização dos “escolanovistas” foi derrotada pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961), já sob a presidência de João Goulart (PTB).

A segunda se refere à organização, por parte de jovens professores, entre eles Cardoso e Ianni, de um hoje célebre grupo de estudos em torno das obras de Karl Marx e de pensadores marxistas que pudesse esclarecer as lições do filósofo alemão. Iniciado em 1958, o grupo foi ativo até 1964, quando foi interrompido em razão do exílio de Cardoso no Chile, devido ao golpe militar. Entre os participantes do grupo estavam José Arthur Giannotti, Fernando Novais, Ruth Cardoso, Paul Singer, Roberto Schwarz, Bento Prado Jr., Michael Löwy e outros que procuravam incorporar a perspectiva de Marx à produção acadêmica que desenvolviam. De fato, um breve exame dos textos dos nomes citados torna possível perceber o enorme impacto que essa experiência teve sobre o desenvolvimento teórico de seus trabalhos (Brito, 2019Brito, Leonardo Octavio Belinelli de. (2019). Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese de Doutorado. PPCP/Universidade de São Paulo.).

A ênfase acadêmica do grupo não exclui, embora modalize, a inserção política de seus membros. É sintomático que alguns seminaristas, como Singer e Löwy, tenham ingressado, já antes do golpe de 1964, na Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-Polop), fundada em 1961 (Mattos, 2013Mattos, Marcelo Badaró. (2013). Em busca da revolução socialista - a trajetória da Polop (1961-1967). In: Ridenti, Marcelo & Reis, Daniel Aarão (orgs.). História do marxismo no Brasil (v. 5). Campinas: Unicamp.). Cumpre também não esquecer que Cardoso (2018)Cardoso, Fernando Henrique. (2018). FHC: economista e militante, Paul Singer juntava teoria e prática. Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/fhc-paul-singer-economista-militante-e- ser-humano.shtml>. Acesso em 11 jun. 2020.
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havia sido membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre 1949 e 1954 e ainda estava próximo do círculo mais intelectualizado de seus militantes, organizado ao redor da figura de Caio Prado Jr. e da revista Brasiliense, nem que um dos ensaios mais famosos de Schwarz, “Cultura e Política, 1964-1969”, pode ser interpretado, embora não a ele reduzido, como um convite à ação dos intelectuais. Se alargarmos o círculo de então jovens professores e estudantes interessados em unir marxismo e prática política - no qual podemos incluir Eder Sader, Emir Sader, Ruy Fausto e Maurício Tragtenberg -, veremos ainda com maior nitidez a dimensão política imiscuída nos estudos de Marx feitos naquele período. Essa conexão entre formação científica e interesse político aparece na trajetória do próprio Cohn, que se juntou à Liga Socialista Independente (LSI) da qual faziam parte Löwy - amigo que, aliás, o teria influenciado na decisão escolher a graduação em ciências sociais (Cohn, 2013: 77) - e Eder Sader. Indo mais longe, pode-se dizer que essa conexão não se dava apenas pela junção de figuras aparentemente opostas como as do pesquisador e do militante em um mesmo sujeito, mas na própria internalização dessas modalidades de atuar no mundo a partir de uma certa concepção, segundo a qual a prática política exige um conhecimento de alto nível, o qual é possibilitado pela prática científica rigorosa (Brito, 2019Brito, Leonardo Octavio Belinelli de. (2019). Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese de Doutorado. PPCP/Universidade de São Paulo.). No caso que ora nos interessa, vale registrar:

Esses grupos [trotskistas, socialistas e o PCB] associavam duas coisas dificilmente conciliáveis [...]. Mas, ao mesmo tempo, se valorizava muito a formação de quadros. Na minha cabeça o que restou daquele aprendizado foi muito a exigência básica da formação de quadros para você poder fazer as grandes transformações (Cohn, 2013Cohn, Gabriel. (2013). Entrevista concedida a Leonardo Avritzer e Juarez Guimarães. In: Avritzer, Leonardo (org.). Leituras críticas sobre Gabriel Cohn. São Paulo/Belo Horizonte: Perseu Abramo/UFMG.: 81).

A terceira indicação se refere à própria organização do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), um centro de pesquisa vinculado diretamente à cadeira de sociologia I. Informado pela radicalização política do período e pelo empreendimento de seus alunos a respeito dos estudos de Marx (Sallum Júnior, 2002Sallum Júnior, Brasílio. (2002). Notas sobre o surgimento da sociologia política em São Paulo. Política & Sociedade, São Carlos, 1, p.73-86.), Florestan Fernandes, com o auxílio de Fernando Henrique Cardoso (Arruda, 1995Arruda, Maria Arminda do Nascimento. (1995). A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: Miceli, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil (v. 2). São Paulo: Idesp/Sumaré/Fapesp, p.107-231.), articulou a criação do Cesit em 1961, momento em que “aquele grupo de sociólogos paulistas recém-saídos de uma derrota política contundente - a da Campanha de Defesa da Escola Pública - armava-se para o debate público dos principais dilemas nacionais” (Romão, 2006Romão, Wagner. (2006). Sociologia e política acadêmica nos anos 1960: a experiência do CESIT. São Paulo: Humanitas.: 94). Um exemplo disso é o título, bem como o conteúdo, de Sociologia numa era de revolução social, de Florestan Fernandes (1963).

Orientados pelo projeto “Economia e Sociedade no Brasil”, os membros do Cesit procuraram compreender as principais características dos grupos e instituições sociais envolvidos no processo de modernização do país, além de buscar a inserção no debate político do período. Como esclarece o documento do projeto, havia quatro temas priorizados: a mentalidade dos empresários brasileiros, a ação do Estado no desenvolvimento brasileiro, a questão da migração da força de trabalho brasileira de origem “tradicional” em sentido urbano e os impactos desse processo, e, por fim, os “fatores societários residuais do crescimento econômico do Brasil”, tratados a partir de uma “análise sociológica comparada de comunidades bem-sucedidas na instauração da ordem social competitiva” (Fernandes, 1963Fernandes, Florestan. (1963). Sociologia numa era de revolução social. São Paulo: Companhia Editora Nacional.: 305).

Foi nesse momento de efervescência intelectual e política da FFLC-USP e, em especial, da própria cadeira de sociologia I, que Gabriel Cohn iniciou sua carreira intelectual. Graduado em 1964, próximo aos círculos militantes, vinculou-se ao Cesit via aproximação com Octavio Ianni, a quem caberia coordenar as pesquisas em torno da relação do Estado brasileiro com o desenvolvimento nacional. Essa relação acadêmica não contradizia completamente a perspectiva política do autor, pois, em comum nessas duas dimensões, havia a crítica à interpretação teórica e política oferecida pelos setores nacionalistas, compostos pelos membros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), pelos militantes do PCB e pelos teóricos alinhados com o pensamento econômico da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal).

GABRIEL COHN, ANALISTA DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

Exemplo da convergência entre as práticas intelectual e política no cenário da sociologia uspiana no período é a coletânea Política e revolução social no Brasil, organizada por Octavio Ianni com a participação de Gabriel Cohn, Francisco Weffort e Paul Singer, pesquisadores vinculados direta ou indiretamente aos líderes do Cesit. Um breve exame de sua composição confirma o esclarecimento de Ianni (1965a) na “Apresentação” do livro, na qual lemos que seus capítulos, escritos no segundo semestre de 1963 e depois revisados para publicação no período pós-golpe de 1964 (Guimarães, 2013Guimarães, Juarez. (2013). Gabriel Cohn e a tradição crítica do pensamento brasileiro. In: Avritzer, Leonardo (org.). Leituras críticas sobre Gabriel Cohn. São Paulo/Belo Horizonte: Perseu Abramo/UFMG .: 54), procuraram “interpretar as manifestações mais notáveis do processo político nacional” (Ianni, 1965aIanni, Octavio. (1965a). Apresentação. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .: 9). Enquanto ele próprio trata da relação entre desenvolvimento e política no Brasil, o artigo de Paul Singer reflete sobre as posições políticas das “classes dominantes”; por sua vez, Weffort apresenta sua primeira interpretação sobre o populismo, enquanto Cohn trata das “perspectivas da esquerda”. Vale mencionar que Luciano Martins, autor da orelha da publicação, notou que as análises constituíam à época

não só uma demonstração de vigor e independência intelectual, como, sobretudo, a promessa de uma sociologia preocupada em quebrar as molduras de um tipo de interpretação já hoje acadêmica e, por isso mesmo, incapaz de explicar de maneira mais inteligente e ampla a realidade política brasileira (Martins, 1965Martins, Luciano. (1965). Orelha. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira.).

O artigo de Cohn é exemplar da moldura pela qual a sociedade brasileira do período era pensada pela sociologia predominante no grupo liderado por Florestan Fernandes. A referência ao termo “moldura” não é casual, pois a abertura do ensaio traça as grandes linhas do processo de modernização pela qual o país passava. Uma delas, por exemplo, é a ideia de que o desenvolvimento - industrialização e autonomização, esclareça-se - do país segue um movimento de complexificação da sociedade e, ao mesmo tempo, de reforço da “unidade nacional” (cf. Cohn, 1965Cohn, Gabriel. (1965). Perspectivas da esquerda. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 129). É no bojo desse movimento que ocorreriam os ajustes de consciência e atuação dos grupos sociais, fossem eles novos ou antigos. Desenvolvimento e ajustamento são termos que remetem à dinâmica. Daí o fato de que a questão-chave daquele período pudesse ser formulada da seguinte forma: quem dirigirá esse processo em movimento?

A análise de Cohn é uma avaliação crítica do modo como a esquerda dominante no período lidava com o problema, que culminou no golpe de 1964. Ecoando a tese que se tornaria clássica sob as penas de Octavio Ianni (1975)Ianni, Octavio. (1975). O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. e Francisco Weffort (1978)Weffort, Francisco. (1978). O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra., Cohn assinala que a presença do proletariado na cena política se daria de forma dependente em relação aos interesses dos setores industriais - que, por sua vez, não seriam de esquerda, mas de centro (cf. Cohn, 1965Cohn, Gabriel. (1965). Perspectivas da esquerda. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 136); porém, a condução política da esquerda majoritária reforçaria essa condição em favor de sucesso eleitoral e influência política mais imediata (cf. Cohn, 1965: 150), em razão de uma política populista (Cohn, 1965Cohn, Gabriel. (1965). Perspectivas da esquerda. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 145).2 2 De passagem, cabe observar que o conceito de subproletariado - recentemente célebre devido às elaborações de André Singer, que o retirou de estudo de Paul Singer dos anos 1980 - encontra nesse texto de Cohn (1965, p.149) uma utilização precoce, provavelmente tributária do sentido que Florestan Fernandes (2008) dava ao termo no segundo volume de A integração do negro na sociedade de classes. Exemplos disso seriam os papéis desempenhados pelo Iseb - elaborador do “desenvolvimentismo, transformado em ideologia oficial” que “consagrava a industrialização a qualquer preço” (cf. Cohn, 1965: 149) - e pelo Partido Comunista do Brasil.

Tudo isso é, em última análise, consequência do padrão de atividade política pelo qual optaram as lideranças tradicionais da esquerda, tentando utilizar as massas populares como simples meios de pressão para obter resultados políticos imediatos, de preferência a organizá-la em termos de uma diretriz política coerente e válida a longo prazo (Cohn, 1965Cohn, Gabriel. (1965). Perspectivas da esquerda. In: Ianni, Octavio (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 157).

Essa análise de Cohn é bastante próxima daquela oferecida, por exemplo, em A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior (2014)Prado Júnior, Caio. (2014). A revolução brasileira/A questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras ., e mesmo do ensaio já mencionado de Roberto Schwarz (2008: 73)Schwarz, Roberto. (2008). Cultura e política, 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras ., no qual lemos que o Partido Comunista havia formado “uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico [...] facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno”. Na mesma linha, poderíamos, ainda, agregar exemplos das obras de Cardoso, Ianni e Wef- fort. Por essas razões, pode-se dizer que “Perspectivas da esquerda” é um ensaio que denota de modo típico, tanto em sua forma como no seu conteúdo, a natureza da oposição de intelectuais de esquerda da FFLC-USP às práticas políticas da esquerda nacionalista do período. É bastante plausível imaginar que o ensaio também traga à tona uma manifestação do período em que Cohn foi ligado à LSI, uma das agremiações que daria origem à Polop (Guimarães, 2013Guimarães, Juarez. (2013). Gabriel Cohn e a tradição crítica do pensamento brasileiro. In: Avritzer, Leonardo (org.). Leituras críticas sobre Gabriel Cohn. São Paulo/Belo Horizonte: Perseu Abramo/UFMG .: 55), mas cumpre notar que esse tipo de expressão não estava fora dos padrões admitidos na época no conjunto de sociólogos que formava o entorno de Florestan Fernandes. Se a hipótese for correta, aqui encontramos uma manifestação, singular daquele período uspiano, da conjugação entre “ciência” e “política”.

Também tipicamente uspiano é Petróleo e nacionalismo, livro originado do mestrado de Cohn (1968)Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel. finalizado no ano anterior e publicado pela Coleção Corpo e Alma do Brasil, na qual muitos dos trabalhos originados do Cesit foram lançados no mercado editorial (Arruda, 1995Arruda, Maria Arminda do Nascimento. (1995). A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: Miceli, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil (v. 2). São Paulo: Idesp/Sumaré/Fapesp, p.107-231.). Sua “tipicidade”, entretanto, se manifesta de modo diferente, porque o próprio tom do livro, mais “axiologicamente neutro”, é distinto do ensaio publicado em 1965, no qual encontramos explícitas reflexões estratégico-políticas. A variação de tom não revela qualquer veleidade do autor. Uma breve análise sobre os trabalhos dos membros do Cesit na época indica a existência de diferenças de tons entre os ensaios, “mais politizados”, e as teses, “mais científicas”. Um exemplo é o contraste de matizes entre dois trabalhos de Fernando Henrique Cardoso: o artigo “Subdesenvolvimento e sociedade de massa”, de 1962 (Cardoso, 1969Cardoso, Fernando Henrique. (1969). Subdesenvolvimento e sociedade de massa. In: Mudanças sociais na América Latina. São Paulo: Difel.), e sua tese de livre- docência, Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, de 1964 (Cardoso, 1972Cardoso, Fernando Henrique. (1972). Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel.).

A pesquisa que deu origem a Petróleo e nacionalismo foi feita sob a supervisão de Ianni, responsável, como vimos, pelas pesquisas que envolviam a ação do Estado no processo de desenvolvimento brasileiro. A seu respeito, afirma o próprio Cohn (2006: 116)Cohn, Gabriel. (2006). Entrevista. In: Bastos, Élide Rugai et al. (orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: 34.: “Meu projeto inicial, como sempre ocorre nesses casos, era mais ambicioso do que o resultado. Tratava-se de estudar a Petrobras não somente na sua criação, mas também como instituição”. Embora esse tipo de situação seja um elemento próprio da rotina da pesquisa acadêmica, frequentemente imprevisível, é preciso acrescentar que o trabalho foi escrito em conjuntura muito adversa, em razão da repressão que pairava sobre o setor universitário da época. Por esse motivo, Florestan Fernandes apressou os mestrandos ligados ao Cesit, entre os quais Cohn e Claudio Vouga, a defender o mais rapidamente possível seus trabalhos a fim de se prepararem para assumir postos de docência em caso de aposentadoria ou demissão dos professores (Romão, 2006Romão, Wagner. (2006). Sociologia e política acadêmica nos anos 1960: a experiência do CESIT. São Paulo: Humanitas.: 133). A intuição sombria de Florestan foi confirmada em abril de 1969, mês em que ele, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni foram aposentados compulsoriamente.

Menos ressaltado, porém, é o fato de que a perspectiva de Cohn em Petróleo e nacionalismo se distanciava daquela sustentada por Octavio Ianni (1965b)Ianni, Octavio. (1965b). Estado e capitalismo: estrutura social e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . em Estado e capitalismo: estrutura social e industrialização no Brasil. Não à toa,

no meu caso não se falava de marxismo, mas de “weberianismo”. Já na defesa do mestrado, Florestan [Fernandes] qualificou meu trabalho como weberiano. Eu não tinha isso em mente na época, nem teria condições para tanto. Mas ele estava certo quanto ao espírito do texto (Cohn, 2006Cohn, Gabriel. (2006). Entrevista. In: Bastos, Élide Rugai et al. (orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: 34.: 116).

Com efeito, o “weberianismo” de Cohn se revela se o compararmos ao “marxismo” de Ianni. Em Estado e capitalismo, Ianni (1965b)Ianni, Octavio. (1965b). Estado e capitalismo: estrutura social e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . frisa, no plano teórico, o papel decisivo que o aparato estatal tem na reprodução da ordem capitalista ao propiciar as condições de reprodução do lucro manejando medidas fiscais, monetárias, cambiais e investimentos. No caso brasileiro, esse imperativo lógico se teria manifestado em diversas ações, dentre as quais poderíamos destacar a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), do Banco do Nordeste do Brasil, da Petrobras, da Eletrobras, da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE), além da organização de planos econômicos como o Plano Salte, o Programa de Metas, o Plano Trienal. Além dessa ênfase teórica mais ampla, convém notar que, segundo a perspectiva defendida em Estado e capitalismo, a burguesia industrial seria a classe hegemônica nas relações de classe no país e, portanto, influenciaria o desenvolvimento segundo seus interesses.

Em Petróleo e nacionalismo, não encontramos nem a ênfase do papel de reprodutor do capitalismo atribuído ao Estado, nem a tese de que a burguesia industrial seria a classe hegemônica. No que se refere a este último assunto, Cohn assinala que a figura do empresário “pouco aparece [nos debates em torno da política do petróleo], revelando-se, no final, mais um beneficiário do que um arquiteto de uma decisão política e econômica de fundamental importância para a estruturação do capitalismo industrial no Brasil” (Cohn, 1968a, p. 185). Pode-se, é claro, formular a hipótese de que a avaliação de Cohn se refere ao caso específico da política do petróleo no país. Porém, convém lembrar que o próprio autor manifestou a ideia de que, subjacente à análise da dinâmica histórica que levou à criação da Petrobras, havia a “procura de elementos mais persistentes da articulação dos grupos sociais no Brasil moderno”, de modo que o caso singular sobre o qual se debruçou poderia servir para “fazer generalizações mais amplas, ainda quando não diretamente exploradas neste estudo” (Cohn, 1968a: 2). Desde esse ponto de vista, o autor parece mais próximo dos entendimentos de Fernando Henrique Cardoso (1972)Cardoso, Fernando Henrique. (1972). Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel. e Florestan Fernandes (2008)Fernandes, Florestan. (2008). A integração do negro na sociedade de classes (v.1 e 2). São Paulo: Globo., propostos em suas teses de livre-docência e de cátedra, respectivamente, sobre o caráter dubitativo do empresariado local

No que se refere à relação entre Estado e desenvolvimento no país, Cohn também manifestava posição divergente, embora não inteiramente incompatível, daquela que enfatizava o papel do primeiro na reprodução do lucro. Para o então jovem sociólogo, o Estado não estava separado da sociedade, mas era produto da própria trama de relações sociais. Na sua formulação,

Parte-se [...] da suposição básica de que a entrada do Estado brasileiro na área de atividades configurada pela prospecção, refino, e transporte em bruto do petróleo não deriva de uma decisão unívoca, tomada num momento dado por uma entidade monolítica (supostamente o Estado), mas é o resultado de ações de diversos grupos sociais” (Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.a: 3, grifo nosso).3 3 De modo ainda mais direto: “Desta forma, fica desde logo rejeitada a hipótese, possível de ser aventada, segundo a qual a entrada do Estado na área do petróleo resultou de uma política consciente e deliberada do setor empresarial, interessado em obter cobertura para suas atividades num setor que envolvia encargos pesados demais para ele” (Cohn, 1968: 185).

Nesse sentido, procura identificar como os grupos sociais agem no e por meio do Estado. Segundo o sociólogo, é em torno das disputas diretas e indiretas ao redor do poder que se articulam os sentidos das ações dos grupos sociais (cf. Cohn, 1968a: 5)Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel., razão pela qual, como veremos a seguir, essa contendas ocupam um lugar decisivo na explicação sociológica de Cohn a respeito do processo de criação da Petrobras.

Essa orientação visava se contrapor à concepção “externalista” do Estado compartilhada por Hélio Jaguaribe, também intérprete do processo que criou a empresa estatal brasileira de petróleo. Em O nacionalismo na atualidade brasileira, de 1958, Jaguaribe (2013)Jaguaribe, Hélio. (2013). O nacionalismo na atualidade brasileira. Brasília: Funag. interpretava a criação da empresa estatal de petróleo como uma decisão popular tomada, em certa medida, por razões arbitrárias e concretizada pelo Estado. Ou seja, haveria razões suficientes para a opção pelo monopólio estatal ou por alternativas. A própria escolha de Jaguaribe como interlocutor indica mais um traço da tipicidade desse trabalho de Cohn em relação à produção da sociologia paulista da época, que disputava a legitimidade científica, conquistada em espaços teóricos e políticos, com o grupo reunido no Iseb (Miceli, 1987Miceli, Sérgio. (1987). Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais no Brasil (1930-1964). Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 2/5. Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/publicacoes-sp-2056165036/rbcs/232-rbcs-05>. Acesso em 11 jun. 2020.
https://www.anpocs.com/index.php/publica...
).

Em contraste à perspectiva do intelectual isebiano, Gabriel Cohn argumenta que seu estudo procurou demonstrar o processo de construção da “racionalidade possível” a partir da situação concreta posta pelo desenrolar das situações políticas internas e externas. Como nota argutamente, a posição de Jaguaribe pressupunha uma oposição entre racionalidade e irracionalidade; a sua, ao contrário, é estruturada sobre um contínuo (Cohn, 1968aCohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 183). Cabe assinalarmos: bem pensada, essa observação torna possível perceber que a oposição estanque entre racionalidade e irracionalidade é abstrata, uma vez que ela não dá conta do próprio processo de construção que envolve um processo de natureza política. Pelo ângulo inverso, percebe-se que o enfoque de Cohn, ao mesmo tempo em que coloca em primeiro plano a dimensão processual da construção da racionalidade social, destaca, ao ressaltar as condições concretas sobre as quais ela ocorre, sua dimensão materialista. Essa orientação metodológica depende da própria concepção que o analista possui sobre a natureza do objeto social. Não é à toa, portanto, que Cohn assente seu estudo na noção de “processo de desenvolvimento social” tal como elaborada por Florestan Fernandes, de acordo com quem esse tipo de processo é composto por “aspectos dinâmicos das alterações da estrutura, da organização e dos mecanismos de controle de dado sistema social em certo lapso de tempo” (Fernandes apud Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 3, nota 2).

A questão da racionalidade perpassa todo o trabalho. Retenhamos apenas um dos exemplos possíveis: ela é fundamental na distinção dos padrões de ações dos tipos sociais - concebidos como mediadores de interesses sociais diversos - mobilizados pelo trabalho: o burocrata, o técnico e o político. Eles “se distinguem por “graus diferentes de incorporação e aproveitamento da racionalidade possível do sistema econômico e da ordem social emergente” (Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 4). No contínuo de racionalidade estabelecido pelo trabalho, as duas pontas são compostas pela dimensão ideológica - caso em que a ação se orienta por uma “ordem generalizadora da sociedade” - e pela dimensão técnica - caso em que a ação incide de modo parcial. Seguindo as lições de Max Weber, o autor não deixa de advertir: tais padrões, embora interdependentes, não se encontram de forma pura na realidade (cf. Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.:5).

Do ponto de vista prático, o estudo da racionalidade do processo pelo qual se decidiu dar à política de petróleo do período sua feição estatal-monopólica é levado adiante a partir da percepção da existência de dois momentos decisivos: o compreendido entre 1930 e 1938, do qual a criação do Conselho Nacional do Petróleo (CNP) é o grande fruto, e aquele compreendido entre 1945 e 1953, que encontra seu ponto culminante na criação da Petrobras. Trata-se, efetivamente, de compreender o processo político ocorrido no amplo intervalo de tempo entre 1930 e 1953.

No primeiro caso, a criação do CNP correspondia, por um lado, ao processo de modernização do aparelho estatal e, por outro, à procura da dinamização da economia a partir da tentativa de redução da dependência do país em relação à importação de petróleo - cujos volume e oscilação de preços comprometiam o propósito industrializante do governo. Para isso colaborou, é claro, a criação do Estado Novo, que, ao instalar um regime autoritário de corte burocrático, reduziu a esfera política (cf. Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 45) e permitiu a ascensão da figura do padrão técnico de ação. É no bojo desse processo político que os militares ganham proeminência ao alertar sobre o risco de corte do suprimento de petróleo com a iminência daquela que viria a ser a Segunda Guerra Mundial, à qual se somou o desejo do governo de ampliar as rodovias nacionais. Assim, a criação do CNP respondia ao problema político do suprimento de petróleo em termos de “segurança nacional”. É nessa acepção que devemos entender que a situação posta naquele contexto configurou o que Cohn designará dilema - noção tomada de Florestan Fernandes que, como veremos na próxima seção, junto com a noção de padrão, será o tema do primeiro estudo de Cohn sobre o pensamento de seu professor (Cohn, 1986aCohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.).

Não é à toa que o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, ao redefinir as condições de disputa e acesso ao poder, tenha significado um novo capítulo nas discussões acerca das questões que envolviam o petróleo. “Redefinia-se, assim, o padrão de atividade do governo central, na medida em que lhe ficavam vedados muitos, mas não todos, os recursos abertos a um governo ditatorial como o de Vargas” (Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 71, grifo nosso). Não é o caso de reconstruir a argumentação cerrada de Cohn. Interessa mais destacar a amplitude e variedade de fatores que impactaram o processo político e social que culminou na criação da Petrobras. Dentre eles, destaquemos uma certa orientação industrializadora e nacionalista do Estado, a preocupação de militares com a “segurança nacional”, a negociação com interesses externos e com os empresários locais, a existência de um grupo de técnicos estatais capacitados para viabilizar o plano, a orientação política de Getúlio Vargas, a mobilização da opinião pública e até mesmo uma oposição, representada pela União Democrática Nacional (UDN), “suficientemente flexível e desvinculada de interesses particulares no conjunto social para introduzir, em momento decisivo da dinâmica da situação, um componente reforçador das tendências manifestadas, em graus diferentes, pela opinião pública e pelo governo” (Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 184). Não seria demais perceber nessa análise de Cohn uma afinidade com a perspectiva metodológica desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1973)Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. (1973). Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores. em Dependência e desenvolvimento na América Latina, obra que pode ser encarada como uma das realizações mais importantes do “estilo de Sociologia Política que surgiu do núcleo de produção intelectual que se desenvolveu ao redor de Florestan Fernandes” (Sallum Júnior, 2002Sallum Júnior, Brasílio. (2002). Notas sobre o surgimento da sociologia política em São Paulo. Política & Sociedade, São Carlos, 1, p.73-86.: 82). Afinal, nesse livro buscava-se justamente desenvolver a ideia do “desenvolvimento como resultado da interação de grupos e classes sociais que têm um modo de relação que lhes é próprio e, portanto, interesses materiais e valores distintos, cuja oposição, conciliação ou superação dá vida ao sistema socioeconômico” (Cardoso & Faletto, 1973Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. (1973). Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 22).

Simpático à perspectiva da multicausalidade, o jovem sociólogo não receia, no entanto, destacar um aspecto que lhe parece especialmente decisivo para o desfecho da situação:

a presença, em momentos estratégicos, de agentes sociais influentes, capazes de articular os diversos aspectos do problema tal como eles se apresentam num dado momento. Por outros termos, a presença de elementos capazes de operar a síntese das posições em presença e de suscitar, por essa via, linhas de ação (Cohn, 1968Cohn, Gabriel. (1968). Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel.: 186, grifo do original).

Não há como deixar de registrar que essa observação, além de constatação sobre os fatos examinados no trabalho, parece carregar a ideia de que uma intelligentsia, com vocação pública, é um componente essencial para a democracia. Esse argumento mannheimiano aproxima-o da perspectiva então adotada por Florestan Fernandes. Se isso faz sentido, não será demasiado imaginar que se trata de uma quase subliminar advertência do autor sobre os riscos envolvidos no processo, então levado adiante pelo regime militar, de destruição dessa intelligentsia.

Ainda em 1968, a Coleção Corpo e Alma do Brasil (Difel) publicou Brasil em perspectiva, coletânea organizada por Carlos Guilherme Mota, em que diversos professores das então seções de história e ciências sociais da FFCL-USP publicaram ensaios com o objetivo de promover uma “síntese do panorama político-econômico do país, desde o seu descobrimento até os nossos dias”, conforme a orelha não assinada - provavelmente, escrita por alguém da própria editora. Nela ainda lemos que os ensaios em tela,

menos preocupados com datas, nomes e episódios do que com as causas e os efeitos dos acontecimentos estudados, podem fornecer respostas mais satisfatórias às perguntas de uma juventude [...] inquieta com o seu destino e suspeitosa de explicações que lhe vêm sendo dadas por mestres e tratados desatualizados.

Além de uma posição comercial, que procura vender seu produto como o mais atualizado, o trecho citado também indica uma nova maneira, mais moderna, de tratar os conhecimentos historiográfico e sociológico. É de interesse observar como essa advertência ecoa a feita por Caio Prado Jr. (2012: 9-10)Prado Júnior, Caio. (2012). Evolução política do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. logo no prefácio à primeira edição, em 1933, de seu Evolução política do Brasil, no qual criticava os historiadores brasileiros por se preocuparem “unicamente com a superfície dos acontecimentos”, deixando de lado “o que se passa no íntimo da nossa história, de que esses acontecimentos não são senão um reflexo exterior”. Desse ponto de vista, a coletânea organizada por Mota pode ser entendida como um pequeno episódio do processo de modernização das ciências sociais e da historiografia brasileira, talvez iniciado com Caio Prado Jr. (Iumatti, 2018Iumatti, Paulo. (2018). História, dialética e diálogo com as ciências. São Paulo: Intermeios.), para o qual os alunos de Florestan Fernandes certamente desejavam contribuir.

Sinal disso é que “Problemas da industrialização no século XX”, de Cohn, figura exemplarmente essa disposição. A partir das contribuições de autores como Roberto Simonsen, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e tantos outros (cf. Cohn, 1982Cohn, Gabriel. (1982). Problemas da industrialização no século XX. In: Mota, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel .: 286-287), o autor examina o processo de industrialização a partir dos seus três momentos mais significativos: aquele que vai do final do século XIX a 1930; o compreendido entre 1930 e 1945 e o aberto com o fim do Estado Novo, que se estendia até a data de publicação do ensaio. Por um lado, cabe notar o paralelismo entre o tema desse ensaio e aquele que foi tema de sua pesquisa de mestrado. Para pôr em relevo a sua originalidade, mais importante é destacar as diferenças entre as duas modalidades de texto e de ângulo analítico.

“Problemas da industrialização no século XX” é um texto mais breve e com escopo analítico maior - tanto no que se refere ao tempo abarcado pela análise como pela sua própria temática. Daí que nele apareça a ideia de sistema econômico em processo de transformação. Não é difícil perceber que a função teórico-metodológica da ideia de sistema, marginal em Petróleo e nacionalismo, é circunscrever o campo analítico. O que Cohn analisa nesse texto é o processo de industrialização a partir do exame das articulações e das mudanças envolvidas no seu desenrolar; por isso, ele não se confunde com a mera criação de indústrias, ato que pode não alterar o sentido do sistema econômico em que ocorre. Sistema e sentido, ideias caras à sociologia de Florestan Fernandes (1974)Fernandes, Florestan. (1974). O conceito de sistema social. In: Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional .. Há outra diferença entre esse ensaio e Petróleo e nacionalismo: se o seu mestrado tratou, por assim dizer, de um processo que se encerrou, o artigo diria respeito a um “resultado final [que] ainda não está definido” (Cohn, 1982Cohn, Gabriel. (1982). Problemas da industrialização no século XX. In: Mota, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel .: 283). Seria a esse problema que antigos professores de Cohn e seus colegas se dedicariam nos anos seguintes. Já ele próprio faria uma mudança de rota.

GABRIEL COHN E A TEORIA SOCIAL: A INTERPRETAÇÃO SOBRE FLORESTAN FERNANDES

Tendo em vista as discussões sobre a industrialização e a política brasileira, é compreensível que percebamos a tese de doutorado de Cohn, defendida em 1971Cohn, Gabriel. (1971). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional.,4 4 A tese foi orientada por Luiz Pereira em razão da aposentadoria compulsória sofrida por Ianni. sobre a questão da comunicação de massa, como uma espécie de ruptura em relação a seus estudos anteriores. Entretanto, como conta o próprio Gabriel Cohn (2006: 117)Cohn, Gabriel. (2006). Entrevista. In: Bastos, Élide Rugai et al. (orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: 34., sua disposição em estudar o assunto nasceu ainda em 1966, em uma reunião na qual Ianni reconheceu a falta de estudos sobre a relação entre cultura e comunicação de massa - assunto a que ele próprio se dedicaria em Imperialismo e cultura (Ianni, 1976Ianni, Octavio. (1976). Imperialismo e cultura. Petrópolis: Vozes.), que inclui o ensaio “A indústria cultural do imperialismo”, originalmente escrito em 1974 e debatido com o próprio Cohn (Ianni, 1976Ianni, Octavio. (1976). Imperialismo e cultura. Petrópolis: Vozes.: 9). Desse ângulo percebemos que o assunto de doutorado de Cohn guardava a preocupação que movia aquele conjunto de pesquisadores reunidos na cadeira de sociologia I: o processo complexo e contraditório que dizia respeito à modernização do país, agora remodelado pelas novas injunções da modernização capitalista, da qual a instalação de uma indústria cultural de massa foi aspecto importante. Uma reorientação analítica viria a caracterizar sua obra seguinte, resultado de sua livre-docência, defendida em 1977.

Esse tipo de mudança de orientação não costuma ocorrer de modo brusco. As incursões de Cohn na área de sociologia da comunicação começaram já em 1967 e dariam seus primeiros frutos na coletânea Comunicação e indústria cultural (Cohn, 1971Cohn, Gabriel. (1971). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional.) e nas disciplinas ministradas sobre o assunto, pioneiras no país. É a partir do exame de questões ligadas à sociologia da comunicação que Cohn se estabeleceu como um estudioso dos teóricos frankfurtianos, com os quais já havia tido contato no próprio curso de graduação na USP - Cardoso, por exemplo, ministrava aulas sobre A personalidade autoritária, de Theodor Adorno, publicado em 1950 (Musse & Klein, 2018Musse, Ricardo & Klein, Stefan. (2018). Um olhar sobre a teoria crítica no Brasil: entrevista com Gabriel Cohn. Tempo Social, São Paulo, 30/3, p. 289-300.: 290). Não resta dúvida, porém, de que Cohn se tornou uma referência ao conjugar seus conhecimentos do idioma alemão ao estudo sistemático de tais autores, levando a um novo patamar a reflexão da teoria sociológica no país (Domingues, 2011Domingues, José Maurício. (2011). Dominação e indiferença na teoria crítica de Gabriel Cohn. Dados, Rio de Janeiro, 54/3, p. 429-448.). Em suma, foi pelo estudo das análises dos frankfurtianos sobre a indústria cultural que Cohn passou a se dedicar à reflexão teórica.

Sua tese de livre-docência, Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social - a qual deveria contar com uma parte dedicada ao exame da obra de Theodor Adorno (Musse & Klein, 2018Musse, Ricardo & Klein, Stefan. (2018). Um olhar sobre a teoria crítica no Brasil: entrevista com Gabriel Cohn. Tempo Social, São Paulo, 30/3, p. 289-300.: 291) -, é ainda um estudo insuperado na bibliografia nacional a respeito de seu objeto. Nela, destaca-se não apenas a interpretação da obra weberiana à luz da sua reflexão metodológica, mas também um cuidadoso estudo do contexto intelectual, político e cultural no qual se inseriam as atividades do autor de Economia e sociedade. Por essa razão, mais do que um estudo monográfico sobre um autor clássico - modalidade comum, à época, apenas aos estudos de história da filosofia que se produzia na FFCL-USP-, essa obra de Cohn deve ser entendida como um exame aprofundado de uma cultura filosófica intimamente articulada em seu tempo e espaço: a Alemanha do final do século XIX e início do XX. Desde então, gerações de sociólogos leram Weber a partir do ângulo desenvolvido por Cohn (Ridenti, 2008Ridenti, Marcelo. (2008). Para ler Gabriel Cohn. In: Waizbort, Leopoldo (org.). A ousadia crítica - ensaios para Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue .: 33).

Estão para ser devidamente analisadas as contribuições de Cohn à divulgação de teorias sociológicas e políticas estrangeiras no país, seja como autor de trabalhos a respeito delas ou como editor da revista Lua Nova. Além de Weber e Adorno, podem ser mencionadas as obras de Niklas Luhmman, Jürgen Habermas e John Rawls (Okura & Brito, 2019Okura, Álvaro & Brito, Leonardo Octavio Belinelli de. (2019). Entrevista com o prof. Gabriel Cohn [parte II]. In: Blog Boletim Lua Nova. Disponível em: <https://boletimluanova.org/2019/03/29/secao-memoria-lua-nova-entrevista-com-o-prof-gabriel-cohn-parte-ii/>. Acesso em 11 jun. 2020.
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). O mesmo pode ser dito pelo ângulo inverso, pois Gabriel Cohn foi dos primeiros a se debruçar com a devida sistematicidade sobre a obra de Florestan Fernandes a fim de demonstrar a originalidade das reflexões de seu professor - de quem, no entanto, jamais assistiu a um curso (Botelho, Brasil Jr. & Hoelz, 2018Botelho, André.; Brasil Jr., Antonio & Hoelz, Maurício. (2018). Florestan Fernandes entre dois mundos: entrevista com Elide Rugai Bastos, Gabriel Cohn e Mariza Peirano. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, 8/1, p.15. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/sant/v8n1/2238-3875-sant-08-01-0015.pdf>. Acesso em 11 jun. 2020.
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: 20). Não cremos ser exagerado sugerir que essas reflexões de Cohn, sem constituir um programa de pesquisa sistemático, configuraram uma reflexão de larga profundidade que atingiu seu ápice em seus escritos mais recentes, aqueles nos quais formulou a ideia de “perspectiva plebeia” como chave compreensiva do pensamento de Florestan Fernandes.

Apesar de a primeira reflexão de Cohn sobre a obra de Florestan Fernandes, como informam Botelho, Brasil Jr. e Hoelz (2018: 28)Botelho, André.; Brasil Jr., Antonio & Hoelz, Maurício. (2018). Florestan Fernandes entre dois mundos: entrevista com Elide Rugai Bastos, Gabriel Cohn e Mariza Peirano. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, 8/1, p.15. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/sant/v8n1/2238-3875-sant-08-01-0015.pdf>. Acesso em 11 jun. 2020.
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, ter sido uma resenha de A integração do negro na sociedade de classes publicada em 1966 - que serviu de base para uma posterior apresentação do livro em coletânea dedicada a obras clássicas do pensamento político e social brasileiro (Cohn, 2001Cohn, Gabriel. (2001). Florestan Fernandes: a integração do negro na sociedade de classes. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 2). São Paulo: Senac., nota 1) -, pode-se sugerir que seu programa de reflexão sobre Florestan Fernandes começa com “Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.), texto logo acompanhado por “O ecletismo bem-temperado” (Cohn, 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.). No primeiro deles, a discussão é centrada nas ideias de “padrões” e “dilemas”, já presentes em seu mestrado e que se configurarão nas chaves que o analista perseguirá em seus estudos posteriores (Cohn, 2015aCohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28.).

Nele, a questão que se coloca é a de como interpretar a relação entre tais categorias e uma disposição singular de Florestan Fernandes, marcada pela vinculação entre “os temas da ciência e da cidadania” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 126) - ou seja, entre ciência e política. Se é assim, observa Cohn, pode-se já registrar que o problema básico do fazer sociológico de Fernandes é a intervenção na realidade a partir, destaque-se, do saber sociológico, o que possibilitaria imprimir certa racionalidade sobre o processo social no qual, e sobre o qual, se age. Ora, dadas as conhecidas tensões que emergem da relação entre ciência e política - imageticamente formuláveis nas ideias de “estar fora” e “dentro” do processo social, respectivamente -, não é implausível sugerir que elas se manifestem no próprio estilo tenso - de escrever, de se portar, de pensar - de Florestan. Fornecer uma interpretação sobre as raízes dessa tensão será uma das principais linhas de interpretação desenvolvidas por Cohn a respeito de Florestan.

O esforço de pensar o paralelismo da obra de Fernandes com os clássicos da sociologia aparece na comparação que o analista faz, em ambos os textos, entre a sua preocupação com a transformação social e aquela presente nas obras de Karl Marx e, na modalidade de ação racionalizadora, nas obras de Émile Durkheim, embora a sociedade brasileira se parecesse mais com a Alemanha de Max Weber, marcada por uma revolução burguesa não clássica em razão da existência de setores conservadores com vastos poderes políticos. Ou seja, a compreensão da originalidade teórica de Florestan Fernandes é captada por Cohn a partir de suas aproximações e afastamentos em relação a Marx, Durkheim e Weber (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.; 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.; 2015bCohn, Gabriel. (2015b). Florestan Fernandes: grandes problemas, grandes interlocutores. In: Cepêda, Vera Alves & Mazucato, Thiago (orgs.). Florestan Fernandes, 20 anos depois: um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições/Ufscar.). E qual seria ela? Para o intérprete, ela residiria na “unificação, na reflexão, e diversas linhas de pensamento, sobretudo as do grande pensamento clássico nas ciências sociais, no esforço da sua aplicação mais eficaz em face de tais problemas da sociedade brasileira” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 129, grifos nossos). Ou seja, a forma singular de inovação do pensamento sociológico de Florestan derivaria da sua fidelidade ao objeto sobre o qual reflete, a complexa matéria social brasileira. Ou, nos termos de Cohn, “[em Florestan Fernandes] interessa mais a ordem dos procedimentos para se dar conta da realidade do que a ordem dos conceitos na teoria internamente consistente” (Cohn, 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.: 49). Ora, o risco presente nessa orientação analítica é a adesão a um ecletismo teórico sem sólida base epistemológica - como o próprio Cohn assinalava na introdução de seu livro clássico sobre Weber, em que destaca que “grande parte daquilo que passa por ser análise marxista na Sociologia é perfeitamente compatível com o esquema weberiano, sem que isso signifique em absoluto que essas duas linhas de pensamento sejam compatíveis entre si” (Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes.: X), de modo que, “nesse caso, as posições ecléticas são insustentáveis” (Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes.: X).

Ao pôr ênfase sobre o ecletismo de Florestan, não seria demasiado imaginar que o autor buscava também fazer uma espécie de acerto de contas com o que entendia ter sido uma internalização “forçada” do marxismo na universidade nos anos 1970 (Cohn, 2006Cohn, Gabriel. (2006). Entrevista. In: Bastos, Élide Rugai et al. (orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: 34.: 118). Sabe-se que uma das grandes ofensas contidas no jargão do marxismo doutrinário é a acusação de que determinado autor/obra é “eclético”, crítica cujo fundamento último é a suposta infidelidade ao pensamento canônico marxista. Desse prisma, a análise do pensamento sociológico de Florestan feita por Cohn busca destacar que o mais relevante não é a fidelidade a uma escola, mas ao objeto.

Foi para dele dar conta que Florestan teria articulado uma orientação teórico-metodológica sustentada a partir de “três modalidades básicas de tipos que orientam a busca da explicação sociológica - o tipo ideal, o tipo médio e o tipo extremo -, associados aos três grandes mestres, Weber, Durkheim e Marx” (Cohn, 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.: 49). Vimos como essa preocupação com orientação tipológica já aparecia nas reflexões de Cohn em Petróleo e nacionalismo.

Ao mesmo tempo, a forma específica com a qual Fernandes teria operado a síntese entre tais correntes de pensamento teria sido orientada pela sua preocupação com a sociedade brasileira, como mencionado. Essa inquietação é que comporia o fundo de categorias como “padrão” e “dilemas”. Vejamos, então, como o analista caracteriza esses termos-chave.

O padrão [...] define uma maneira de organizar a sociedade, os mecanismos pelos quais se atualiza a sociedade no momento. Os dilemas têm a ver com condições geradas pela dinâmica interna de organização e que no entanto conduzem a obstáculos ou então, levando ao pé da letra o termo ‘dilema’, opções (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 141-142).

O “elemento dinâmico” entre um e outro seria o conjunto dos agentes sociais que tomariam suas ações em contextos de “oportunidades estruturais e historicamente dadas”. Uma das peculiaridades brasileiras é que tais agentes sociais, frequentemente, são frustrados em suas ações, como indicou Florestan Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes e em A revolução burguesa no Brasil. Como veremos adiante, o tripé formado por padrão-dilema-agentes sociais pode ser entendido como a base da interpretação de Cohn sobre Florestan.

Isso porque interessa a Gabriel Cohn ir além da análise da consistência teórica da obra de Florestan Fernandes. Ou, melhor dizendo, para compreendê- la, o analista indaga: qual a origem da modalização da percepção de Florestan, embutida nessas categorias-chave, sobre a sociedade brasileira? O procedimento, aliás, é o mesmo utilizado no trabalho sobre Weber, em que lemos:

Para além dos confrontos e aproximações entre o esquema weberiano e outros, interessa-me captar a presença do contexto em que a obra foi produzida no próprio interior dos seus conceitos básicos e da sua articulação, em que ele está presente sob a forma dos seus pressupostos fundamentais. No fundo o que importa é a análise imanente da obra, para mostrar como ela traz, inscrita em cada um dos seus conceitos e no conjunto deles, a marca e os limites das condições históricas e sociais concretas que orientaram sua produção (Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003). Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes., XIII).

É por meio dessa orientação, ela própria também um momento da análise, que Cohn indica que o pensamento de Florestan é marcado pela sua “condição relativamente marginal”, em parte uma imposição, em parte uma liberdade. “Quer dizer uma figura que não vinha do centro intelectual, social, econômico dessa sociedade e, ao mesmo tempo, era, entre muitas aspas, ‘provinciano’, ou seja, não veio de fora e não foi para fora, ficou aqui e exigiu isso dos outros” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 131-132). Ao estilo da sociologia do conhecimento, Cohn procura indicar como essa trajetória de Fernandes teria vínculo com a sua própria concepção do que viria a ser a sociedade moderna brasileira. É por esse prisma que interpreta a ideia de “ordem social competitiva” como uma espécie de entendimento teórico da própria trajetória de Florestan, que “venceu numa luta dura, pessoal, e na sua vida profissional sempre incentivou os seus discípulos e seus companheiros de trabalho a competir, a entrar em confronto, para que pudessem apurar as suas condições, os seus méritos pessoais” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Reginaldo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 136). O mesmo fio aparece no texto de 1987, embora modalizado a partir da ideia de que tal conceito

deriva não apenas das suas concepções metodológicas fundamentais, mas também da modalidade da sua inserção intelectual no âmbito das Ciências Sociais, quando visa dar conta de aspectos fundamentais da sociedade por um viés específico, que é o viés do sociólogo (Cohn, 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.: 50-51).

Ora, esse é o fio pelo qual a ideia de uma “perspectiva plebeia” começa a ser tecida, uma vez que intui a própria imagem de sociedade traçada por tal conceito. Ou seja, não interessa à análise de Cohn vincular, sem mais, noções teóricas e experiência individual. A ideia básica aqui parece ser a de que a compreensão da forma de pensar de Florestan pode ser desdobrada de modo a captar a sua experiência individual na sociedade, e essa, por sua vez, serve de elemento iluminador do próprio estilo de pensamento. Nos termos do autor, o ecletismo bem temperado de Florestan

deriva um pouco de uma posição que não é de qualquer um. É preciso extraordinária coragem e uma convicção muito funda do vigor, da capacidade da inteligência tenaz, para se entregar à obra de uma maneira simultaneamente tão firme e tão despojada (Cohn, 1987Cohn, Gabriel. (1987). O ecletismo bem temperado. In: D'Incao, Maria Angela (org). O saber militante - ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Unesp.: 53).

Esse traço característico da obra de Florestan Fernandes é explorado nos ensaios em que Cohn (2001Cohn, Gabriel. (2001). Florestan Fernandes: a integração do negro na sociedade de classes. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 2). São Paulo: Senac.; 1999)Cohn, Gabriel. (1999). Florestan Fernandes: a revolução burguesa no Brasil. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 1). São Paulo: Senac . introduz dois de seus principais livros: A integração do negro na sociedade de classes, de 1966, e A revolução burguesa no Brasil, de 1974. O exame das obras de Florestan é conduzido a partir de uma perspectiva dupla, na qual há, por um lado, a apresentação das categorias que as estruturam - estamento, classe, polarização, ordem social competitiva, autocracia, entre outras - e, por outro, análise do modo como essas categorias dizem respeito às experiências de Florestan como sociólogo e cidadão.

Essa orientação analítica fica meridianamente clara, por exemplo, quando Cohn observa que a forma ensaística adotada em A revolução burguesa no Brasil é sinal de “um projeto interrompido mas não abandonado”, uma espécie de objetivação formal da própria condição profissional pela qual Fernandes passava à época da finalização do escrito (Cohn, 1999Cohn, Gabriel. (1999). Florestan Fernandes: a revolução burguesa no Brasil. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 1). São Paulo: Senac .: 385). Esse vínculo entre forma e vida também ressoaria no desejo de seu autor de que A revolução burguesa no Brasil fosse uma “intervenção no debate contemporâneo” e não exatamente uma “sociologia acadêmica” (Cohn, 1999Cohn, Gabriel. (1999). Florestan Fernandes: a revolução burguesa no Brasil. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 1). São Paulo: Senac .: 385).

A mesma relação entre forma e vida aparece na análise de A integração do negro na sociedade de classes, livro marcado pela dimensão “visceral” da pesquisa envolvida na sua elaboração. Ora, essa intensidade do sociólogo paulista - “talvez a mais acabada vocação que o Brasil tenha produzido nessa área de estudos” (Cohn, 2001Cohn, Gabriel. (2001). Florestan Fernandes: a integração do negro na sociedade de classes. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 2). São Paulo: Senac.: 387) - é relacionada, ainda que de passagem, pela sua contraposição ao estilo senhorial - menos dilemático e menos padronizado - da forma de pensar de Gilberto Freyre. Vale mencionar trechos da nota:

O outro sério candidato a isso, Gilberto Freire, forma com Florestan o mais perfeito par de opostos que se possa imaginar. [...] Mas pelo contraste com a perspectiva senhorial, a expressão estética (em que as claras referências à experiência pessoal servem para caracterizar o prazer descomprometido do observador) e a escrita descontraída de Freire, por um lado, e, por outro, a perspectiva plebeia, a expressão ética (em que a experiência pessoal passa pela angústia da participação) e a escrita crispada de Florestan. [...] Está para ser feita a análise desse contraste, perfeito desafio para uma sociologia do conhecimento (Cohn, 2001Cohn, Gabriel. (2001). Florestan Fernandes: a integração do negro na sociedade de classes. In: Motta, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (v. 2). São Paulo: Senac.: 387).

É o próprio Gabriel Cohn (2005)Cohn, Gabriel. (2005). Florestan Fernandes: o radicalismo plebeu em sociologia. Estudos Avançados, São Paulo, 19/55, p. 245-250. quem perseguirá, ainda que de modo parcial, esse desafio em “Florestan Fernandes: o radicalismo plebeu em sociologia”, texto no qual formula com mais clareza teórica a ideia de uma perspectiva radical plebeia como eixo interpretativo da obra e da vida científico-política de Florestan Fernandes. É singular o caminho pelo qual o sociólogo procura adentrar a forma de pensar de seu mestre: a partir da própria análise desse em relação à condição marginal de Tiago Marques Aipobureu, um nativo bororo que, por ser socializado no mundo industrial, tornou-se marginal em sua própria cultura, sem deixar de sê-lo também na “ordem social competitiva” em que se formou.

Esse desencontro permanente, também típico da trajetória de Fernandes, encontraria nela uma forma singular de resolução, pois “longe de espelhar-se de algum modo no dilaceramento do seu personagem, Florestan parece ter encontrado neste objeto de pesquisa [...] uma advertência, um desafio e um programa de trabalho” (Cohn, 2005Cohn, Gabriel. (2005). Florestan Fernandes: o radicalismo plebeu em sociologia. Estudos Avançados, São Paulo, 19/55, p. 245-250.: 247). A singularidade da disposição pessoal e profissional de Fernandes - ou, de maneira mais precisa, “a passagem de uma visão pessoal socialmente condicionada para um programa de pesquisa” - é sintetizada por Cohn (2005: 247)Cohn, Gabriel. (2005). Florestan Fernandes: o radicalismo plebeu em sociologia. Estudos Avançados, São Paulo, 19/55, p. 245-250. como “plebeia”, ou seja, “enérgica, intransigente, sobretudo insaciável no empenho em apreender (outro dos seus termos) no pensamento e na ação tudo o que o novo mundo social lhe sonegava” (grifos do original).

Traduzindo para os termos do tripé que assinalamos, pode-se dizer que a radicalização dessa perspectiva plebeia, instauradora de um novo padrão nas ciências sociais locais, possibilitou uma relativa superação de seus dilemas. Tudo teria se passado como se, de algum modo, a própria trajetória de Florestan Fernandes condensasse sua perspectiva sobre o país.

Por outras palavras, ao contrário da forma fragmentada de A revolução burguesa no Brasil, símbolo da derrota dos agentes diante dos dilemas que enfrentavam, em Florestan a superação de seus próprios dilemas individuais lhe possibilitou - ou antes exigiu? - a construção de um aparato teórico conceitual profundo e tenso, que lhe valesse, a um só tempo, como arma metodológica e política. Aqui, pois, a contraposição entre Fernandes e Freyre reaparece com toda força (cf. Cohn, 2005Cohn, Gabriel. (2005). Florestan Fernandes: o radicalismo plebeu em sociologia. Estudos Avançados, São Paulo, 19/55, p. 245-250.: 248). Muitas dualidades - como ciência/arte, objetividade/subjetividade, tratado/ensaio, discrição/exagero, tensão/bonomia -, todas possivelmente relacionadas à outra, que fez com que a formação de Fernandes ocorresse na margem ao mesmo tempo em que a de Freyre ocorreu no centro da ordem social, poderiam ser exploradas. O analista não envereda para o desdobramento dessa comparação, embora não renuncie a sugeri-la quando destaca um elemento central na forma de pensar de Florestan: o passado como obstáculo. Em conferência realizada em 2014, na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), radicaliza essa sugestão ao frisar que, diferentemente de Freyre, para quem o passado “é um jogo de memória” (Cohn, 2015bCohn, Gabriel. (2015b). Florestan Fernandes: grandes problemas, grandes interlocutores. In: Cepêda, Vera Alves & Mazucato, Thiago (orgs.). Florestan Fernandes, 20 anos depois: um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições/Ufscar.:16), Florestan Fernandes é um sujeito que “vê o mundo, [que] vê a sociedade como problema” (Cohn, 2015bCohn, Gabriel. (2015b). Florestan Fernandes: grandes problemas, grandes interlocutores. In: Cepêda, Vera Alves & Mazucato, Thiago (orgs.). Florestan Fernandes, 20 anos depois: um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições/Ufscar.: 34).

Trata-se, pois, de uma perspectiva analítica que busca vincular “conhecimento” e “existência”, para usarmos a expressão de Mannheim (1954: 245)Mannheim, Karl. (1954). Ideologia e utopia: introdução à sociologia do conhecimento. Porto Alegre: Globo., na figura de Florestan Fernandes. Por essa razão, o exercício não se esgota na identificação de elementos centrais da forma de pensar de Florestan. Ao contrário, ele é um requisito que permite a vinculação singular entre pensamento e ação do objeto-sujeito analisado. Como o próprio autor destaca,

só há um modo [de singularizar um grande pensador], que consiste em tentar ver como esse homem pensava, de que modo ele enfrentava o seu mundo, a que questões ele se revelava especialmente sensível, como ele soube incorporar as grandes questões do seu tempo (Cohn, 2015bCohn, Gabriel. (2015b). Florestan Fernandes: grandes problemas, grandes interlocutores. In: Cepêda, Vera Alves & Mazucato, Thiago (orgs.). Florestan Fernandes, 20 anos depois: um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições/Ufscar.: 33).

Estabelece-se, assim, uma relação dialética entre o concreto e o abstrato.

Não é à toa, portanto, que o programa de análise de Cohn sobre Florestan continue com um texto cujo título é “A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes” (Cohn, 2015aCohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28.), no qual o sociólogo busca analisar o papel que as referências às margens e aos centros desempenham no pensamento sociológico de Florestan. Partindo da ideia de que esse desvendamento pode ser feito a partir da análise da ideia de “ordem social competitiva” e seu vínculo com o problema da integração do negro na sociedade de classes, Cohn visa à reconstrução do seu modo de pensar, como indica a sua preocupação em explicitar os sentido, teóricos e políticos, das categorias e termos utilizados por Florestan em sua obra.

Nesse texto, Cohn retoma a análise dos “dilemas” das classes dominadas brasileiras, tais como diagnosticados por Florestan Fernandes. Como nos demais casos, não é possível reconstruir a inteireza da argumentação cerrada do autor. Vale, no entanto, salientar como Cohn conecta a dinâmica centro/margem e o conceito de “ordem social competitiva”.

Uma ordem social entendida como constelação (e não como mera superposição de camadas) é competitiva quando é dotada de um centro que opera como uma espécie de polo, cuja ocupação é precisamente o objeto de disputas no seu interior. Para se constituir como competitiva, tal ordem precisa, pois, satisfazer dois requisitos: ter um centro bem definido e possibilitar a formação de grupos sociais voltados para a competição pelo exercício dos papéis decisivos no conjunto (Cohn, 2015aCohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28.: 22).

Uma ordem social como essa não se desenvolve plenamente quando nela persistem resquícios de uma ordem estamental, baseada na exclusividade não competitiva - razão pela qual, nota Cohn, torna-se até mesmo difícil sugerir que a ideia de estamento organiza o todo da sociedade (Cohn, 2015aCohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28.: 22). A passagem de uma modalidade de organização social a outra requer uma incorporação dos marginalizados. “Incorporação” não no sentido imediato de ascensão social, embora essa seja um de seus elementos, mas sim no que diz respeito às possibilidades de inserção em uma dinâmica que envolva o conjunto da sociedade em questão. Por isso, margem e centro “são mais propriamente manifestações da dinâmica interna do conjunto social, conglomerados vibrantes de linhas de força presas no que, na linguagem de Florestan, é um dilema sem solução cabal” (Cohn, 2015aCohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28.: 23). Trata-se, pois, de uma incorporação que envolve riscos diversos, como exemplifica o caso do bororo Tiago Marques Aipobureu.

Desse prisma, o “centro”, mais do que locus de dominação e exercício de poder, aparece como o regulador do mencionado processo de integração, ao mesmo tempo em que a “margem” não é completamente o seu avesso, pois corresponde às linhas de tensionamento dessa regulação. Em suma, antes que lugares distintos e opostos, centro e margem corresponderiam ao que Cohn (2015a: 26)Cohn, Gabriel. (2015a). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, 28, p. 11-28. designa como “lógicas de atuação”. Rompe-se, pois, a usual oposição entre “agência” e “estrutura” a partir daquilo que Fernandes designava “equilíbrio dinâmico”. No Brasil, por variadas razões, comprometeu-se essa dinâmica em razão do esvaziamento da margem de seus significados e “impulsões” ou, em outra formulação, da saturação perversa de sua socialização.

Não é à toa que esse seja um tema, em associação com a ideia de perspectiva plebeia, candente na entrevista dada por Cohn, em companhia de Elide Rugai Bastos e Mariza Peirano, a André Botelho, Antonio Brasil Jr. e Maurício Hoelz (2018)Botelho, André.; Brasil Jr., Antonio & Hoelz, Maurício. (2018). Florestan Fernandes entre dois mundos: entrevista com Elide Rugai Bastos, Gabriel Cohn e Mariza Peirano. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, 8/1, p.15. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/sant/v8n1/2238-3875-sant-08-01-0015.pdf>. Acesso em 11 jun. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/sant/v8n1/2238...
. Entremeando memória e análises, Cohn procura desenvolver sua linha de interpretação ao destacar que a aspereza de Fernandes era um “papel” de quem teve que se impor para se estabelecer - “papel”, aliás, desempenhado por outros sociólogos internacionais. A observação acaba por fornecer uma chave de reflexão produtiva para que, sem deixar de destacar a vinculação de Fernandes com o Brasil, se desprovincianizem as reflexões sobre sua obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos como a primeira parte da carreira de Gabriel Cohn foi marcada por sua inserção institucional na cadeira de sociologia I da FFCL-USP. Longe de reduzi-la a mero reflexo da dinâmica intelectual instaurada, buscamos assinalar como o autor se inseria nos contextos político e acadêmico daquele momento. Ou seja, sem deixar de lado o fato de haver coincidências entre o pensamento e o contexto mais amplo no qual ele próprio foi forjado, procuramos indicar suas singularidades nesse conjunto. Daí a relevância do expediente comparativo de que nos valemos em determinadas passagens.

No que diz respeito às reflexões de Cohn sobre Florestan Fernandes, registramos a sua preocupação em examinar, de modo profundo, as contribuições deste último para a teoria sociológica, intento levado adiante pela análise da maneira como esta é mobilizada não tanto no discurso metodológico de Florestan, mas na sua própria prática científica - do que decorreria o seu “ecletismo bem temperado”. Não seria demais sugerir que essa relativa prioridade do empírico sobre o teórico, usualmente percebida como um traço da personalidade singular de Fernandes, na verdade possui raízes na sua própria trajetória. Em outras palavras, Cohn deu um passo adiante ao perceber que essa disposição “visceral” de seu mestre, embora tenha se objetivado de modo singular - elemento que lhe interessava desvendar-, tinha raízes sociais. Foi essa interação complexa entre o social e o individual - oposição que nesse caso fica, de certa forma, relativizada pela demonstração de que o individual também tem pé no social - que perseguiu em seus estudos mais recentes. Ao divulgar e examinar a obra de Fernandes, Cohn acabou contribuindo não só para a área de estudos do pensamento social e político brasileiro, na qual as questões relativas à sociologia do conhecimento possuem destacada importância, mas, mais do que isso, tornou-se o elaborador de um exercício autorreflexivo de toda uma tradição de pensamento sociológico no país, da qual é ativo participante. Também por esse motivo, tornou-se, sem dúvida alguma, uma das grandes consciências sociológicas do país.

NOTAS

  • 1
    Também são exemplos dessa modalidade de recrutamento Florestan Fernandes, Fernando Novais, Francisco Weffort, José Arthur Giannotti, Paul Singer, entre outros.
  • 2
    De passagem, cabe observar que o conceito de subproletariado - recentemente célebre devido às elaborações de André Singer, que o retirou de estudo de Paul Singer dos anos 1980 - encontra nesse texto de Cohn (1965, p.149) uma utilização precoce, provavelmente tributária do sentido que Florestan Fernandes (2008) dava ao termo no segundo volume de A integração do negro na sociedade de classes.
  • 3
    De modo ainda mais direto: “Desta forma, fica desde logo rejeitada a hipótese, possível de ser aventada, segundo a qual a entrada do Estado na área do petróleo resultou de uma política consciente e deliberada do setor empresarial, interessado em obter cobertura para suas atividades num setor que envolvia encargos pesados demais para ele” (Cohn, 1968: 185).
  • 4
    A tese foi orientada por Luiz Pereira em razão da aposentadoria compulsória sofrida por Ianni.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2019
  • Aceito
    01 Maio 2020
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