Acessibilidade / Reportar erro

SOCIOLOGIA SAGRADA

Goyatá, Júlia Vilaça. 2016. Georges Bataille e Michel Leiris: a experiência do sagrado. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 166p

Nos fundos de uma livraria da rua Gay-Lussac, em Paris, reuniam-se regularmente, entre 1937 e 1939, de início aos sábados, depois às terças-feiras, às nove e meia da noite, os membros de um pequeno grupo de intelectuais, franceses em sua maioria, que ambicionava a um só tempo ampliar as fronteiras do conhecimento e agir politicamente. Nomeado Colégio de Sociologia, o que não remetia de forma alguma a qualquer tipo de ensinamento, mas queria simplesmente assinalar o estatuto igualitário de seus membros, tal grupo era animado sobretudo por Georges Bataille, Roger Caillois e, em uma medida relativa sem dúvida bastante discreta, Michel Leiris. O auditório era eclético e incluía frequentemente o escritor Pierre Klossowski, o filósofo Alexandre Kojève, o etnólogo Anatole Lewitzky e Jean Paulhan, então editor da todo- poderosa Nouvelle Revue française, entre outros; ainda participavam ocasionalmente Walter Benjamin e o escritor Julien Benda, para citar apenas alguns. “O objeto preciso da atividade considerada [pelo Colégio]”, segundo sua nota de fundação, publicada na revista Acéphale, dirigida por Bataille, “pode receber o nome de sociologia sagrada, uma vez que ele implica o estudo da existência social em todas as suas manifestações nas quais se revela a presença ativa do sagrado” (Ambrosino et al., 1995Ambrosino, Georges et al. (1995). [1937]. Note sur la fondation d’un Collège de Sociologie. Acéphale, 3/4, p. 26 (ed. fac-similar, Paris: Éditions Jean-Michel Place)., minha tradução).

Em Georges Bataille e Michel Leiris: a experiência do sagrado, produto de uma dissertação de mestrado em antropologia social orientada por Fernanda Peixoto na Universidade de São Paulo, a antropóloga Júlia Goyatá debruça-se sobre o conceito de sagrado formulado por Bataille e Leiris a partir do Colégio. Segundo a autora, lida-se com um conceito fugidio, mas ela não se furta de defini-lo: sendo fronteiriço do pensamento lógico, o sagrado buscaria “apreender uma experiência que está no limite do dizível e do inteligível; experiência que lida basicamente com uma apreensão afetiva do mundo, em contraposição a outra de cunho mais normativo” (p. 25). Não se trata de um estudo historiográfico, seja social, cultural ou das ideias, ainda que evoque ocasionalmente um certo contexto histórico; ele tampouco é sociológico; na verdade, o foco é temático, interessado em apreender justamente essa experiência do sagrado para Bataille e Leiris sem perder de vista o debate antropológico atual. A hipótese da autora é de que o sagrado consiste para ambos, ainda que de formas distintas, em um operador político; partindo daí, ela se propõe “investigar de que maneira ele reverbera nos trabalhos específicos que realizaram, quais são as temáticas privilegiadas por cada um e aquelas verdadeiramente partilhadas” (p. 28). Esse é certamente um objeto de estudo difícil, não só porque pouquíssimo conhecido no Brasil, mas sobretudo porque envolve ideias e intelectuais muito complexos e diversos em um momento particularmente crítico da história europeia. Esse motivo, que implica a ampliação do escopo do conhecimento antropológico por meio da renovação do objeto de pesquisa no âmbito brasileiro, já é suficiente para parabenizar a autora; mas ela ainda encara de frente o desafio que se propõe, redigindo um livro sucinto e preciso que inclui também uma orelha assinada por sua orientadora e um prefácio do antropólogo Emerson Giumbelli.

No primeiro capítulo, Júlia Goyatá ressalta os momentos mais significativos da relação entre Bataille e Leiris quanto à reflexão sobre o sagrado, desde que se conheceram em 1924. Nesse percurso, destaca-se uma diferença fundamental entre ambos: Bataille procurava unir a arte à política, enquanto Leiris defendia a autonomia da primeira diante da segunda, o que evidentemente não consistia em atitude menos política. Essa diferença remete à experiência do grupo surrealista, pautada no engajamento político efetivo e compreendendo também a filiação ao Partido Comunista francês. Apenas Leiris foi membro do grupo, cujo autoritarismo personificado em André Breton estimulou-o a aderir à dissidência no final dos anos 1920; em grande medida, tal experiência o tornou, em comparação a Bataille, muito cauteloso diante dos projetos políticos da década seguinte. No entanto, Bataille não buscava um posicionamento político tradicional, evidente na ideia de uma sociologia sagrada, que não se referia somente ao objeto de interesse do Colégio, mas caracterizava seu próprio instrumento de reflexão: “É nesse sentido que o Collège propõe a construção de uma perspectiva sagrada, capaz de aliar, a um só tempo, pesquisa e militância” (p. 66, grifo da autora). Não se tratava apenas de uma sociologia que estudava o sagrado, mas de uma sociologia que era ela própria orientada pelo sagrado.

Os dois capítulos restantes valem- se dessa perspectiva do sagrado como operador político para interpelar os textos que Bataille e Leiris dedicaram ao tema nos anos 1930. O primeiro deles parte de um contraste decisivo entre a teoria social de Bataille e a sociologia durkheimiana: enquanto esta fazia incidir seu foco sobre a sociedade, entendida como uma ordem moral total, aquela se interessava pelo laço social, isto é, o “aspecto comunial da união entre os seres” (p. 88), no qual se manifestaria verdadeiramente a exaltação coletiva de que fala Durkheim e cujo estudo caberia justamente à sociologia sagrada. Mas esta não se restringia a estudar tal aspecto; antes de tudo, ela visava à definição de uma nova proposta de ação política a partir desse vínculo. Não é fortuito então que Bataille se tenha apropriado da noção de sagrado de Durkheim para realizar, segundo a autora, “uma espécie de torção, ou esgarçamento máximo, do conceito” (p. 82), rejeitando-o como uma dimensão oposta à vida profana e recusando-lhe a função de estabilizador da sociedade. Uma vez que a posição de Bataille se fundamentava na crítica contundente da sociedade ocidental, ele jamais se poderia orientar por uma teoria social nomotética; em contrapartida, exatamente por ser nomotética, esta poderia ser dirigida em benefício dessa mesma crítica, desde que seus conceitos fossem subvertidos, e o mesmo era válido para qualquer regra socialmente estabelecida. É assim, por exemplo, que, em uma sociedade dirigida pelo capital e pela razão, ele privilegiava a despesa e recomendava a perda da cabeça, esta figurada pelo Acéfalo, espécie de ser mitológico criado pelo pintor e amigo André Masson que servia de frontispício a sua revista homônima. Acima de tudo, Bataille valorizava o caráter sagrado do vínculo social de certas comunidades eletivas, incluindo aí o próprio Colégio de Sociologia, pois ele lhe atribuía a capacidade política de contrapor-se à ordem moral da sociedade.

O terceiro e último capítulo volta- se por sua vez para os textos de Leiris. Ainda que este tenha ocupado uma posição absolutamente discreta no Colégio − ao longo dos quase dois anos do grupo, sua única contribuição efetiva restringiu-se à conferência “O sagrado na vida cotidiana”, pronunciada em 8 de janeiro de 19381 1 Todos os textos e documentos referentes ao Colégio foram reunidos por Denis Hollier (1995); a conferência de Leiris encontra-se nas p. 94-119. −, a noção de sagrado alimentou inequivocamente suas reflexões nesse período, sobretudo nos primeiros passos de sua obra autobiográfica e em um ensaio notável dedicado à corrida de touros, espetáculo apreciado igualmente por Bataille. A princípio, não há nada de político propriamente dito nessa conferência de Leiris empenhada em perscrutar suas memórias infantis em busca de seu sagrado pessoal, uma noção completamente inversa, portanto, à de Durkheim; todavia, a autora observa com razão que, no momento em que a arte tendia à abstração, trazer a concretude da vida cotidiana a um só tempo como objeto e instrumento de estudo assumia um caráter inegavelmente político. O próprio ato de escrever encontrou em Leiris um sentido político vinculado ao risco, sobretudo quando se tratava de apresentar publicamente e sem subterfúgios os aspectos mais indecorosos de sua vida e personalidade. Leiris tomava o toureiro como modelo dessa atitude, pois seu valor é diretamente proporcional à distância que sua perícia é capaz de estabelecer entre seu próprio corpo e o chifre do touro; nessa distância, idealmente ínfima, Leiris vislumbrava a irrupção do sagrado, isto é, o anseio pela ameaça do desastre - que, porém, não deve nunca se concretizar − no movimento perfeito. Aqui se reconhece o caráter ambíguo do sagrado, potencialmente benéfico e nefasto ao mesmo tempo, do qual falam Marcel Mauss e Henri Hubert em seu ensaio sobre o sacrifício, que, não por acaso, serve de referência para Leiris e, vale dizer, também para Bataille. Em suma, o sentido político incutido na noção de sagrado por Leiris circunscrevia-se à prática artística, enquanto Bataille investia em uma posição diretamente militante.

O livro inclui ainda algumas páginas de considerações finais, nas quais emerge uma questão crucial cujas conclusões considero, porém, discutíveis, sem que isso comprometa, é claro, a qualidade geral do trabalho. Trata-se da distância temporal entre hoje e a década de 1930; digo distância temporal e não histórica porque a autora defende, valendo-se de Giorgio Agamben, uma dupla contemporaneidade de Bataille e Leiris: eles seriam simultaneamente contemporâneos de seu próprio tempo e do nosso. Tal argumento surge a reboque da necessidade de justificar a própria existência dessa pesquisa no debate antropológico brasileiro corrente; a exemplo de tantas outras, busca-se a legitimidade dos autores consagrados − “Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour e Eduardo Viveiros de Castro” (p. 151) −, que não controlam evidentemente os usos de suas obras. Esses autores teriam orientado uma antropologia inclinada “menos [a] pensar o Outro por intermédio do Eu e mais [a] tentar uma inversão nessa proposição, pensando o Eu por intermédio do Outro, de sua linguagem, de seu aparato conceitual, de seu vocabulário, enfim, de sua perspectiva” (p. 151). Em que medida, contudo, o projeto de uma sociologia sagrada vincula-se de fato a essa orientação? Bataille e Leiris buscaram sem dúvida elaborar uma crítica da sociedade ocidental por meio dos elementos que esta mesma sociedade rejeitou, propondo assim novas perspectivas analíticas. Todavia, o vínculo entre essa postura crítica e a orientação antropológica atual descrita pela autora permanece muito vago e, sobretudo, repleto de discrepâncias, que surgem inevitavelmente quando se procura situar as ideias em sua própria espessura histórica.

A militância política na qual se empenhava Bataille dirigia-se em especial contra a ascensão do fascismo; tratava-se, contudo, de uma postura extremamente ambígua, começando pela própria ideia de uma comunidade eletiva, exemplificada pelas ordens religiosas, confrarias, sociedades secretas, partidos e exércitos, cujos membros estariam ligados por uma relação sagrada oposta ao vínculo moral das instituições oficiais; a relação sagrada seria a fonte da capacidade disruptora dessas comunidades. Mas em que consistia e até onde iria exatamente essa força de disrupção? Ora, não se pode desconsiderar que tanto o fascismo como o nazismo chegaram ao poder por meio de pequenos grupos fundados justamente no vínculo de uma comunidade de eleitos; não é preciso, porém, sair da França para dar-se conta do caráter problemático dessa proposta; basta observar que a segunda metade dos anos 1930 é o período de atividade da Cagoule, grupo fascista e anticomunista, denominado oficialmente Comitê Secreto de Ação Revolucionária, que ambicionava, mediante ações violentas, derrubar a Terceira República, governada então por uma coalizão de esquerda. Dessa maneira, a proposta de Bataille ganha um ar sombrio, reforçado pelo fato de que ele, segundo suas próprias palavras, se encontrava fascinado pela simbologia fascista. Não é possível, portanto, ler sem perturbação suas conferências do Colégio. Tal sensação não se restringe, porém, a Bataille: no texto intitulado “O vento do inverno”, Caillois faz uso da velha retórica sobre a necessidade de defender-se a sociedade de uma ameaça iminente, representada pela chegada do inverno, isto é, do fascismo; tal defesa deve ser realizada por um tipo de grupo que se assemelhe às ordens monásticas, formações paramilitares e sociedades secretas primitivas, todas elas separadas do restante da sociedade e orientadas por uma moral própria. (Aqui convém observar que se faz sentir a ausência quase completa de Caillois no livro, com exceção de algumas páginas dedicadas a esse texto no primeiro capítulo; dada sua centralidade no Colégio, maior sem dúvida que a de Leiris, valeria a pena debruçar-se sobre seus escritos, e talvez a autora possa fazê-lo em um artigo.)

Essa ambiguidade do Colégio não deixou de ser assinalada pelos contemporâneos: o próprio Leiris mostrava-se desconfortável diante da ideia de uma sociedade secreta, o que explica em grande medida sua participação discreta no grupo, e Benjamin lhes teria chamado “a atenção para um certo ‘excesso metafísico e político do incomunicável’, que poderia ‘preparar o terreno psíquico favorável ao nazismo’” (p. 72). Mas talvez a reticência mais expressiva tenha vindo de Mauss, pois muitas das ideias do Colégio remetem aos seus ensinamentos e escritos, o que não é uma surpresa, considerando que Caillois e Leiris foram seus alunos: assim, Caillois pautou-se em seu estudo sobre a sazonalidade entre os esquimós para refletir sobre a comunalidade do inverno, e Bataille valeu-se de sua análise do potlatch para pensar a noção de despesa. Mauss não levava a sério a empreitada do Colégio, para dizer o mínimo; e em certa ocasião disse a Caillois que ele havia sido vítima do irracionalismo (Fournier, 1994Fournier, Marcel. (1994). Marcel Mauss. Paris: Fayard.: 707-711).

Seguindo o crítico Maurice Nadeau, a autora não reconhece no Colégio um fascismo à francesa; na verdade, “para compreender e combater o fascismo vigente, o Collège pensava ter que usar as mesmas armas do inimigo, reconhecendo que elas eram inegavelmente poderosas” (p. 73). De fato, seria totalmente descabido identificar os membros e a proposta do Colégio como fascistas; em contrapartida, o problema tampouco consiste em rotular seu posicionamento político. O imenso valor do Colégio reside justamente em sua inelutável ambiguidade, compreensível posto que não se perde de vista a conjuntura de crise profunda na qual ele se encontrava como um peixe na água; debruçar-se sobre seus debates implica apreender no próprio escoamento do tempo os impasses então vividos, destituídos, portanto, de uma clareza completa. No intuito de salvar a sociedade ocidental, Bataille e companhia queriam deflagrar forças arcaicas irracionais que essa mesma sociedade rejeitara; a ameaça da guerra e da destruição pesava assim constantemente em seus ombros. Não se trata simplesmente de reduzir as ideias a suas constrições conjunturais, mas como esquecer por um minuto esse fardo e, sobretudo, como separar as ideias aí formuladas dessa situação? Desse modo, a sociologia sagrada do Colégio não mantém senão uma relação muito débil com o debate antropológico brasileiro atual. Em todo caso, talvez se deva levar realmente a sério a postura que a autora atribui aos autores consagrados citados acima; isso não implicaria somente pensar o Colégio de Sociologia de acordo com suas próprias categorias, consumidas pelo escoamento do tempo e disponíveis hoje apenas por meio da mediação de fontes; isso conduziria sobretudo ao afastamento do burburinho alimentado pelo debate corrente, que poderia então ser interpelado mais adiante em novos termos. O livro de Júlia Goyatá não carece desse debate; ele enfrenta um problema complexo que os sociólogos e antropólogos interessados na história de suas disciplinas terão sem dúvida grande interesse em conhecer.

NOTA

  • 1
    Todos os textos e documentos referentes ao Colégio foram reunidos por Denis Hollier (1995)Hollier, Denis (ed.). (1995). Le Collège de Sociologie. 1937-1939. Paris: Gallimard.; a conferência de Leiris encontra-se nas p. 94-119.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Ambrosino, Georges et al. (1995). [1937]. Note sur la fondation d’un Collège de Sociologie. Acéphale, 3/4, p. 26 (ed. fac-similar, Paris: Éditions Jean-Michel Place).
  • Fournier, Marcel. (1994). Marcel Mauss Paris: Fayard.
  • Hollier, Denis (ed.). (1995). Le Collège de Sociologie. 1937-1939 Paris: Gallimard.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2017
  • Aceito
    08 Jul 2017
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com