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Esboço de uma sociologia dos problemas íntimos

Outline of a sociology of intimate problems

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar uma sociologia, de inspiração pragmatista, dos problemas íntimos ou das autoinvestigações. Na primeira parte, exponho o conceito de investigação (inquiry), tal como foi tratado pela filosofia pragmatista americana. Em seguida, discuto como Luc Boltanski e Laurent Thévenot lhe conferem uma tonalidade sociológica. Em vez de fazer uma delimitação das formas elementares da investigação humana, como Dewey, eles propõem uma sociologia das investigações axiológicas dos atores. Na terceira parte, exponho como Francis Chateauraynaud, com Didier Torny, desloca a discussão em torno do acordo justo para as condições de felicidade da produção de um alerta eficaz, introduzindo na reflexão sobre a investigação a dimensão temporal. Por fim, proponho redirecionar a discussão para uma sociologia em escala individualizada, como em Bernard Lahire e Margaret Archer. Assim, pretendo propor uma sociologia dos problemas íntimos enquanto uma sociologia das autoinvestigações dos atores.

Palavras-chave
Problemas íntimos; autoinvestigação; sociologia pragmática; pragmatismo; interioridade

Abstract

The goal of this article is to present a sociology of intimate problems or of the self-inquiries. In the first part, I expose the concept of inquiry, as treated by pragmatist philosophy. Then I discuss how Luc Boltanski and Laurent Thévenot give to it a sociological facet. Instead of delimiting the elementary forms of human inquiry, as John Dewey did, they propose a sociology of the actors’ axiological inquiries. In the third part, I expose how Francis Chateauraynaud, with Didier Torny, turns the discussion from the fair agreement to the conditions of happiness of the production of an effective whistleblower. Finally, I propose to redirect the discussion towards a sociology on an individual scale, as in Bernard Lahire and Margaret Archer works. Thus, I intend to propose a sociology of intimate problems as a sociology of actors’ self-inquiry.

Keywords
Intimate problems; self-inquiry; pragmatic sociology; pragmatism; interiority

Desde a década de 1980, na França, a sociologia assumiu a tarefa de defender uma perspectiva pós-metafísica. O conceito de sociedade, que há muito se discute se está ou não teoricamente obsoleto (Ingold, 1996Ingold, Tim. (1996). Debate: the concept of society is theoretically obsolete. In: Key debates in anthropology. London: Routledge.), tem progressivamente perdido sua operacionalidade. Conceitos como consciência coletiva, que tendem a tratar o social como coisa, para lembrar o velho Durkheim, foram progressivamente dessubstancializados. É possível dizer que desde meados do século passado, sobretudo a partir da década de 1960, houve uma progressiva desreificação da noção de social. Pierre Bourdieu (1972)Bourdieu, Pierre. (1972). Esquisse d’une théorie de la pratique. Précédé de Trois études d’ethnologie kabyle. Paris: Librairie Droz., por exemplo, já em seu Esboço de uma teoria da prática, apontava para o fato de que a “estrutura estruturada” depende de uma “estrutura estruturante”. Toda a sua reflexão epistemológica consistiu, como bem mostrou Frédéric Vandenberghe (2010)Vandenberghe, Frédéric. (2010). Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: Ed. UFMG., em argumentar que o real - e, claro, o social - é relacional. Não foi muito diferente o que fez Anthony Giddens (1979Giddens, Anthony. (1979). Central problems in social theory. London: Macmillan., 2003Giddens, Anthony. (2003). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.) quando propôs uma teoria da estruturação que visava a um modo de operacionalizar a famosa síntese dialética entre ação e estrutura (cf. Alexander, 1987Alexander, Jeffrey. (1987). O novo movimento teórico. Revista Brasileira de. Ciências Sociais, 2/4 p. 5-28.; Peters, 2013Peters, Gabriel. (2013). Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28/83.).

Em outros textos (Corrêa, 2014Corrêa, Diogo Silva. (2014). Do problema do social ao social como problema: elementos para uma leitura da sociologia pragmática francesa. Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho, 1/40., 2021; Corrêa & Dias, 2016Corrêa, Diogo Silva & Dias, Rodrigo de Castro. (2016). A crítica e os momentos críticos: De la justification e a guinada pragmática na sociologia francesa. Mana, 22/1, p. 67-99.), argumentei que a sociologia pragmática francesa, tradição posterior e crítica àquela de Bourdieu e Giddens, traz uma novidade ao debate sobre o social, indo além da dessubtancialização da estrutura na agência. Há um deslocamento importante em relação àquilo que Alexander definiu, na década de 1980, como essencial do “novo movimento teórico”: em vez de problematizar a relação entre micro e macro, entre agência e estrutura, a sociologia pragmática francesa, esse novo estilo sociológico (cf. Benatouïl, 1999Bénatouïl, Thomas. (1999). Critique et pragmatique en sociologie. Quelques principes de lecture. Annales HSS, 2, p. 281-317.) desloca a discussão voltada para o problema do social (a discussão durkheimiana) para uma perspectiva que essencialmente pensa o “social como problema”. Em termos sintéticos, como resumiu Bruno Latour (2005)Latour, Bruno. (2005). Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press, 2005., o social deixa de ser o elemento explicativo das coisas, dos acordos, das ações, e se torna a resultante das situações indeterminadas e problemáticas. Ele deixa de ser o fator que explica os problemas e a resolução das situações problemáticas e torna-se a contínua variação e transformação produzida pela investigação dos atores em meio aos problemas que lhes concernem. Disso decorre outra compreensão da noção de sociedade e do mundo social: a sociedade se torna menos “coisa” e mais um fluxo movente em permanente transformação.

Ainda que essa perspectiva possa ser tratada como um notável avanço, o que permanece não tratado nessa tradição da sociologia pragmática francesa é a questão da subjetividade, do self ou do indivíduo. Na tradição clássica de Durkheim, como se sabe, há uma relação opositiva entre indivíduo e sociedade: enquanto o primeiro é o lócus da ação egoísta e autocentrada nos moldes hobbesianos, a última é a instância moral capaz de pressionar o indivíduo na direção da ação altruística. Em Bourdieu, por sua vez, o indivíduo é a própria sociedade por outros meios, havendo uma linha de continuidade entre ambos. O conceito de habitus é um operador conceitual eficaz em sua capacidade de expor os corpos como efeitos, ainda que não intencionais ou mecânicos, das estruturas sociais; já a estrutura estruturada - ou estrutura de relações objetivas - só se torna estrutura estruturante à medida que se objetiva nas coisas e nos corpos.

Se pensarmos para além desses autores clássicos, duas têm sido as posturas preponderantes na sociologia com relação ao self, ao indivíduo ou à subjetividade. De um lado, há aqueles, sobretudo de orientação pós-moderna (cf. Gubrium & Holstein, 1994Gubrium, Jaber & Holstein, James. (1994). Grounding the postmodern self. The Sociological Quarterly, 35/4, p. 685-703.), que vêm buscando desconstruir a “subjetividade”, o self ou qualquer sentimento de identidade ou de interioridade, mostrando que tudo isso não passa de uma construção (arbitrária) de jogos de linguagem, signos, disposições, relações entre significantes etc. De outro, há os que continuam a invocar um princípio metafísico segundo o qual a subjetividade ou o self encontram fundamento em uma res cogitans, um ego ou um sujeito transcendental (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.).

Diante desse cenário, qual seria a resposta da tradição da sociologia pragmática diante do self? Se essa tradição nos ensinou a tratar a sociedade como um problema, o desafio, aqui penso, é justamente tratar o self como problema, isto é, como um fluxo resultante das investigações que os indivíduos empreendem com relação a si mesmos. Em outros termos, o self não seria nem um conjunto de instintos egoísticos (Hobbes e Durkheim) nem uma encarnação das estruturas sociais (Bourdieu), mas um fluxo problemático resultante de permanentes autoinvestigações (self-inquiry). Com isso, a “sociologia dos problemas íntimos”1 1 A noção de “íntimo”, a que aqui faço referência, tem a ver com uma espécie de contraparte à noção pragmatista de público. Por isso, concebo que o íntimo, nesse caso, não tem tanto a ver com uma reflexão histórica sobre a noção de intimidade no Ocidente (como é o caso, por exemplo, do volume dois da coleção História da vida privada, organizada por George Duby e Philippe Ariès, que trata da Europa feudal e da Renascença), mas sim com a existência de um plano individual, ainda que sempre indissociável da noção de público, no sentido de John Dewey no livro The public and its problems. Portanto, público e íntimo, para mim, não são, de modo algum, instâncias ou províncias ontologicamente separadas (como no caso de Margaret Archer), nem mesmo possuem uma relação dialética ou causal de determinação (como é o caso do neo-objetivismo estruturalista de Pierre Bourdieu). Não há uma separação entre dentro e fora, indivíduo e sociedade, ator e estrutura social. Do ponto de vista de uma sociologia dos problemas íntimos, as tensões que se expressam no foro interior de pessoas ou dos indivíduos particulares exprimem e espelham tensões entre elementos, formas de vida, conceitos, ideias e valores sempre existentes no ambiente social no qual o self está inserido. (cf. Corrêa, 2015Corrêa, Diogo Silva. (2015). Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e Igreja evangélica. Tese de Doutorado em sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/École des Hautes Études en Sciences Sociales., 2020Corrêa, Diogo Silva. (2020). Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, 32/2, p. 175-204.) ou sociologia das autoinvestigações pretende levar a sério o senso de interioridade das pessoas ou simplesmente a “interioridade”, como instância pragmática mobilizada pelos atores em determinadas situações sem, no entanto, aderir a uma metafísica da subjetividade ou do self.

Com isso, objetivo ir além das explicações que reduzem o self e sua agência ao passado incorporado ou à sociedade encarnada, como na hipótese disposicionalista - seja em sua versão do habitus à la Bourdieu, seja em sua versão mais pormenorizada e minimalista do patrimônio disposicional em Bernard Lahire (2001)Lahire, Bernard. (2001). O homem plural. Petrópolis: Vozes.. Busco, entretanto, também evitar a redução do ator ao seu futuro imaginado ou planejado, como na hipótese da escolha racional (Boudon) ou das conversas interiores (Archer). Assumindo a perspectiva pragmatista segundo a qual a atividade de investigação é decorrente do encontro com uma crise, uma falha ou um desajuste, minha hipótese é que os indivíduos empreendem uma atividade autoinvestigativa porque são habitados por crises e tensões em intensidades variadas que se transformam ao longo do tempo - a própria personalidade, nesse sentido, seria constituída desse complexo de crises e tensões, e não pensada a partir de uma estrutura universal, como em Freud, ou de padrões substantivos extraídos do repertório de modelos sociais (Bourdieu) ou culturais (Boas).

Este artigo faz então uma leitura da sociologia francesa de sensibilidade pragmatista a partir da noção, inspirada na filosofia de John Dewey, de investigação. Não se trata simplesmente de uma hipótese teórica, que visa apontar para a existência de uma correlação entre sociologia pragmática e filosofia pragmatista. Meu objetivo é partir dessa hipótese para defender o que pode ser considerado uma sociologia dos problemas íntimos com base nesta questão: como pensar a própria vida humana como um processo contínuo de autoinvestigação? Que consequências se pode tirar da ideia de que a vida humana é uma investigação contínua, responsiva a crises, tensões e problemas em intensidades variadas que habitam e também se expressam na - por falta de um termo melhor - dimensão ou no foro ou na arena interior dos indivíduos? Se a personalidade for, ela própria, a resultante de múltiplas tensões, clivagens e crises, algumas das quais, em último caso, retraçáveis pelo pesquisador, como mostrei alhures (ver Corrêa, 2015Corrêa, Diogo Silva. (2015). Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e Igreja evangélica. Tese de Doutorado em sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/École des Hautes Études en Sciences Sociales., 2020Corrêa, Diogo Silva. (2020). Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, 32/2, p. 175-204.), penso ser possível dizer algo que seja ao mesmo tempo pertinente sobre as pessoas ou indivíduos pesquisados e que parta dele diretamente, considerando o self problema.

O pragmatismo e as formas elementares de investigação humana

A filosofia pragmatista tem como pressuposto, desde as reflexões fundantes de Charles S. Peirce (1877)Peirce, Charles Sanders. (1877). The fixation of belief. Popular Science Monthly, 12/1-15. expressas em A fixação da crença, a ideia segundo a qual os humanos sempre visam à fuga da dúvida e buscam alcançar o estado de crença. De modo distinto da tradição cartesiana, que trata a dúvida de forma metódica e abstrata, Peirce argumenta que ela é uma espécie de coceira, uma irritação, um estado provisório e desconfortável que nos incita à ação e à investigação. Em suas palavras,

a dúvida é um estado inquieto e insatisfeito do qual lutamos para nos libertar e passar para o estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou mudar para uma crença em qualquer outra coisa. Pelo contrário, nós nos apegamos tenazmente não apenas a acreditar, mas a acreditar apenas no que acreditamos (Peirce, 1877Peirce, Charles Sanders. (1877). The fixation of belief. Popular Science Monthly, 12/1-15.: 3).

Nessa perspectiva, o papel da investigação é fixar uma opinião, o que implica passar de um estado de dúvida e de instabilidade a um estado de crença estabelecida. A agência humana, nesse sentido, está sempre voltada para o estabelecimento de hábitos de ação bem ajustados ao mundo. Nessa mesma linha, nos diz John Dewey (1938: 137) que

quando uma situação emerge contendo uma dificuldade ou anomalia, a pessoa que nela se acha pode tomar, de um número de possibilidades, uma direção. Ela pode esquivar-se, desistindo da atividade causadora do problema, desviando-o para outra coisa. Ela pode se satisfazer em um voo imaginativo, fantasiando a si própria poderosa ou saudável ou, ainda, em posse dos meios que torne possível lidar com as dificuldades. Ou, enfim, ela pode enfrentar a situação. Nesse caso, começa-se a investigar.

Em seu opus magnum, Lógica: teoria da investigação, Dewey (1938)Dewey, John. (1938). Logic: the theory of inquiry. New York: Henry Holt. elabora uma espécie de filosofia das formas elementares da investigação humana. Ele parte do caráter experimental e sensível do conhecimento e se afasta tanto da acepção do termo lógica pensado pelo senso comum quanto da lógica formal erudita (que seria mais próxima, hoje em dia, de Gottlob Frege). A modalidade de investigação tratada por Dewey é bem clara: ele a circunscreve nas situações em que os seres humanos são confrontados com indeterminações e mobilizam suas capacidades e competências reflexivas com a finalidade de as superar. Os exemplos variam ad nauseaum e podem contemplar tanto a porta cuja maçaneta cai e insiste em não abrir e um computador que simplesmente para de funcionar, quanto um conflito oriundo de uma traição conjugal ou de dificuldades financeiras.

É na parte dedicada ao padrão da investigação que, em Lógica, Dewey formaliza o que aqui estou chamando de formas elementares da investigação humana. De acordo com o autor, essa se dá sempre na seguinte sequência. Primeiro, (1) a existência de uma situação indeterminada. A passagem para a (2) situação problemática pressupõe a presença de um primeiro diagnóstico, além de uma primeira impressão acerca dos elementos que indicam a resolução do problema. Como na medicina, um bom diagnóstico é o primeiro passo para uma possível solução - no caso, uma cura - bem-sucedida. Uma vez tornada problema, o que era indeterminação requer (3) raciocínios, hipóteses e testes na busca de uma solução viável. O organismo tenta, explora as possibilidades ao atuar sobre o problema. Nessa terceira etapa, juízos e raciocínios são testados na confrontação com o existente: uma solução potencial começa a ser confrontada pelo universo material das entidades pertinentes e, a partir daí, verifica-se quais soluções são realmente possíveis.

É o caráter responsivo do mundo que aponta e indica a validade dos juízos e raciocínios testados. A problematização indica e leva a um plano de ação. E esse plano só se torna factível e se verifica possível à medida que obtêm êxito em confronto com o estado de coisas existentes. Se esse processo é bem-sucedido no teste de resistência do real, então se pode dizer que um novo equilíbrio foi atingido, um controle foi obtido e que se chegou a uma (4) situação estável. Essa progressão, discernível apenas analiticamente, pode ser sintetizada pelo gráfico a seguir.2 2 De modo resumido, Dewey (1998: 171) aponta que a “investigação é a transformação controlada ou direta de uma situação indeterminada em uma de tal modo determinada em suas distinções e relações constitutivas que permite tornar os elementos da situação original um todo unificado”. Todo o seu esforço de pensar a investigação humana é voltado para questionar como se realiza a reflexão humana na prática, em sua espessura concreta.

Essa leitura do pragmatismo, cujos problemas serão discutidos adiante, tem o mérito de colocar e explicitar o ponto fulcral que parece estar no cerne da sociologia francesa de sensibilidade pragmatista3 3 Para os propósitos do presente texto, da constelação pragmática (Dosse, 2003), me aterei apenas na sociologia das investigações axiológicas de Luc Boltanski e Laurent Thévenot. e, mais adiante, da proposição aqui apresentada de uma sociologia das autoinvestigações. Isso, porém, só é possível ao preço de um deslocamento: em vez do estabelecimento das formas elementares da investigação humana, como em Dewey, para nós, sociólogos, trata-se de explicitar uma sociologia das investigações dos atores. O raciocínio é o mesmo; o importante, contudo, não é tanto definir analiticamente a sequência geral presente em toda investigação, mas descrever o modo como os próprios atores, em meio às indeterminações, atuam no sentido de restituir ao mundo um novo equilíbrio estável. No caso da agenda de pesquisa que aqui proponho, trata-se de analisar o trabalho reflexivo ou autoinvestigativo que os atores colocam em prática a partir das crises e tensões em intensidades variadas que os habitam. O que se mantém como leitmotiv dessa perspectiva é a ideia de que os atores, concernidos por problemas que os interpelam diretamente, permanentemente agem e investigam a fim de ajustar um curso de ação desejável a um estado de coisas dotado de um mínimo de estabilidade.

Da filosofia à sociologia: das formas elementares da investigação às investigações dos atores

Parece, a princípio, que a teoria da investigação de John Dewey, embora extensível para toda e qualquer investigação humana, tem seus exemplos centrados em situações que contemplam o indivíduo e uma indeterminação em seu ambiente físico circundante.

Além disso, Dewey nunca fez uma pesquisa empírica. Quem leva adiante esse projeto é parte da sociologia francófona de sensibilidade pragmatista, razão pela qual por meio dela creio ser possível pensar a transição de uma filosofia das formas elementares da investigação para uma sociologia das investigações. Um primeiro exemplo é a pragmática dos julgamentos ordinários de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (1991). Essa teoria nos fornece bons instrumentos para caminhar na direção de uma sociologia das investigações axiológicas dos atores. Ela nos ajuda a escapar do universo da investigação humana em abstrato para descrever o modo como os próprios atores empreendem investigações axiológicas quando confrontados com indeterminações - ou, nas palavras dos autores, “momentos críticos” - buscam convergir na direção de um acordo justo.

A sociologia das investigações axiológicas

Em De la justification, Boltanski e Thévenot (1991)Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. (1991). De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard. defendem a ideia de que o mundo social não é nem um universo redutível a relações arbitrárias e de dominação, conforme exposto pela teoria de Pierre Bourdieu, nem fundado em um único princípio de justiça universalmente válido, como pode-se derivar de teorias influenciadas por John Rawls. Embora os acordos sejam possíveis e os indivíduos possam estabelecer relações justas pautadas em princípios universalizáveis, Boltanski e Thévenot recusam-se a pensar que eles o podem fazer de modo peremptório.

Ora, ponderam os sociólogos franceses, se não há um princípio metafísico (seja ele um princípio de justiça ou de força) externo aos atores e com base no qual o analista - no caso, o sociólogo - pode explicar por que eles se acordam ou são obrigados a encerrar desacordos, é preciso atentar para o modo como os próprios atores, em situações de disputa, tecem e confeccionam acordos entre si. Em vez de uma metafísica do justo preestabelecida pelo sociólogo ou filósofo, Boltanski e Thévenot se propõem a refletir sobre as condições concretas de sua formação na ação e na situação. Em suas palavras,

a partir do momento que o pesquisador não pode se dar ao direito de assentar a validade de suas afirmações em uma exterioridade radical, o término da descrição se torna problemático. É preciso então, na descrição, se manter o mais perto possível do modo como os próprios atores estabelecem a prova na situação observada, o que conduz a estar atento à diversidade de formas de justificação (Boltanski & Thévenot, 1991Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. (1991). De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard.: 25 [tradução do autor]).

Estar atento à diversidade de formas de justificação quer dizer olhar como, na prática e em situações concretas, os atores, em meio a situações de disputa e desacordo empreendem, investigações axiológicas com o objetivo de restabelecer um acordo justo. A tarefa do sociólogo, assim, deixa de ser fazer uma metafísica do justo no lugar dos atores e torna-se apreender de que modo estes últimos mobilizam suas próprias metafísicas da justiça para fazer o social. Trata-se portanto de um gesto de delegação (cf. Corrêa, 2021Corrêa, Diogo Silva, (2021). Novos rumos da teoria social a partir de três gestos da sociologia pragmática. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], 36/105.; Salmon, 216Salmon, Gildas. (2016). On ontological delegation. In: Charbonnier, Pierre; Salmon, Gildas & Skafish, Peter (orgs.). Comparative metaphysics: ontology after anthropology. Lanham, Maryland: Rowman & Littlefield International, p. 41-60.). Do qual decorre uma mudança metodológica importante que Boltanski (1990)Boltanski, Luc. (1990). L’amour et la justice comme compétences; trois essais de sociologie de l’action. Paris: Metaillié. descreveu como a passagem de uma sociologia crítica (da dominação) (Bourdieu, 1972Bourdieu, Pierre. (1972). Esquisse d’une théorie de la pratique. Précédé de Trois études d’ethnologie kabyle. Paris: Librairie Droz.), pautada normativamente pelo ideal de igualdade de condições (Derouet, 1992Derouet, Jean-Louis. (1992). École et justice. De l’égalité des chances aux compromis locaux? Paris: Metaillié.), para uma sociologia da crítica (dos atores). Nesse sentido, trata-se de uma sociologia da capacidade crítica (Boltanski, 1999Boltanski, Luc. (1999) The sociology of critical capacity. European Journal of Social Theory, 2/3, p. 359-377.) que, em vez de arrogar para si o monopólio da crítica social, se propõe a analisar as operações críticas dos atores.

Para melhor compreender o modo como os acordos são feitos, desfeitos e refeitos, Boltanski e Thévenot partem da hipótese de que as pessoas, de tempos em tempos e no curso de sua vida cotidiana, são instadas à renegociação dos seus elos axiológicos. A partir disso, se colocam como tarefa acompanhar, seguir e descrever pessoas que, submersas em situações disputa e desacordo, buscavam convergir na direção de um consenso que consideravam justo.

Uma precaução metodológica, contudo, se fazia necessária. Afinal, quais momentos da vida social devem ser privilegiados para bem apreender essa atividade dos atores na busca por um acordo justo? Aqui a proximidade com o pragmatismo de Dewey e Peirce é bastante clara, pois são as situações indeterminadas, ou simplesmente os “momentos críticos”, quer dizer, aqueles nos quais certas entidades são avaliadas e colocadas à prova, que é preciso olhar. O raciocínio é simples. Como disse em outra ocasião Michael Pollak (1993)Pollak, Michael. (1993). Une identité blessée. Paris: Éditions Métaillié., é nas situações críticas que os elementos constitutivos de uma situação normal, antes invisíveis porque rotineiros e habituais, ou simplesmente taken for granted (Schutz) e seen but unnoticed (Garfinkel), se mostram e se tornam visíveis. É na situação em que impera a dúvida (Peirce) ou vige a indeterminação (Dewey) que os indivíduos se põem a investigar.

Apropriando-se desse raciocínio, Boltanski e Thévenot argumentam que é importante olhar para os momentos críticos exatamente porque neles os indivíduos atualizam, põem em prática e explicitam as pressuposições normativas, subentendidas e não articuladas em situações rotineiras e habituais, e assim as tornam visíveis. Ao descrever o modo como operam as competências axiológicas dos atores em momentos críticos, ao analisar as situações críticas ou de prova nas quais eles empreendem uma investigação axiológica com o objetivo de restituir ao mundo um novo consenso acerca das entidades pertinentes e de seu valor (ou grandeza) respectivo(a), Boltanski e Thévenot também observam o modo como o mundo social é feito e refeito permanentemente.

Centrados, portanto, nos momentos críticos que exigem dos atores uma atividade axiológica para a sua resolução, Boltanski e Thévenot (1991: 31) assim justificam sua opção teórica:

Essa orientação teórica que supõe capturar a ação em sua relação com a incerteza tem por consequência, no nível do método de observação, o enfoque da pesquisa nos momentos de disputa e de crítica que constituem as cenas principais dessa obra. A escolha de estudar prioritariamente esses momentos, aliás, nos parece particularmente adaptada ao estudo de uma sociedade em que a crítica ocupa um lugar central e constitui o principal instrumento de que dispõem os atores para experimentar a relação do particular e do geral, do local e do global.

Em De la justification: les economies de la grandeur (Boltanski & Thévenot, 1991Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. (1991). De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard.), portanto, eles optam, para pensar a questão do acordo nas sociedades contemporâneas, por focalizar as situações em que uma crise ocorre - seja ela interobjetiva (uma falha de computador, a luz que repentinamente se apaga, uma máquina na linha de produção que pifa etc.) ou intersubjetiva (ofensas pessoais, desacordo interpretativo, querela intelectual etc.) - e os indivíduos são obrigados a exercer um trabalho (nos termos de Dewey, uma investigação) com vistas a devolver ao mundo um novo equilíbrio axiológico. Nesse sentido, analisam como, para confeccionar um novo acordo, os indivíduos ligam princípios globais e metafísicos às situações locais e concretas. E descrevem a capacidade de que dispõem as pessoas de, com o auxílio e suporte de dispositivos e objetos, vincular metafísicas morais que gozam de legitimidade pública às situações vividas e singulares. É suposto, no modelo de economias da grandeza por Boltanski e Thévenot (1991: 183), que “para se acordar sobre o que é justo, as pessoas humanas devem, portanto, conhecer um bem comum e agir como metafísicos”; além disso, supõe-se que elas dispõem de uma competência para saber bem encarnar metafísicas, quer dizer, princípios normativos que gozam de legitimidade pública em situações particulares.4 4 Por exemplo, uma coisa é a pessoa singular que fala da morte de seu filho, outra é ela conseguir mostrar que a morte de seu filho é representativa de um problema mais geral e global, quer dizer, de uma causa coletiva: a violência urbana nas comunidades carentes cariocas. O mesmo se dá com relação à mulher que diz ter sido violentada em casa pelo marido; a importância desse evento é menos por se tratar de um caso singular e mais porque ele é representativo de uma causa coletiva que vai muito além da pessoa privada que sofre uma agressão: trata-se do problema da violência doméstica que contempla um enorme número de outras mulheres em situações semelhantes.

A partir do que mostrei, é possível dizer que Boltanski e Thévenot reproduzem a dinâmica da investigação de Dewey, mas ao preço de um duplo deslocamento. De um lado, trata-se de descrever não mais as etapas da investigação em geral, mas as investigações axiológicas dos próprios atores submetidos ao imperativo de justificação. De outro, importa a referência ao universo moral para pensar a forma como os indivíduos encerram a disputa e a discórdia.

Das investigações axiológicas às investigações de longa duração

Antigo aluno e colaborador de Luc Boltanski e fundador do Grupo de Sociologia Pragmática e Reflexiva (GSPR) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Francis Chateauraynaud é um dos autores mais destacados da segunda geração da sociologia pragmática na França. Em Experts et faussaires, obra em coautoria com Christian Bessy, ele traz uma novidade com relação ao modo como o argumento foi utilizado e desenvolvido por Boltanski e Thévenot em De la justification.

Em Experts et faussaires, Bessy e Chateauraynaud (1995)Bessy, Christian & Chateauraynaud, Francis. (1995). Experts et faussaires. Pour une sociologie de la perception. Paris: Métailié. analisaram as situações críticas nas quais os atores se empenham para restituir a facticidade do mundo. Do mesmo modo que as pessoas, sejam especialistas ou atores leigos, nem sempre estão de acordo acerca do que é ou não justo, como Boltanski e Thévenot (1991)Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. (1991). De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard. bem mostraram, o mesmo pode ocorrer com relação à realidade. Como Erving Goffman (1974)Goffman, Erving. (1974). Frame analysis: an essay on the organization of experience. Harvard: Harvard University Press. nota bem na introdução que faz de seu opus magnum Frame Analisys, há diversos momentos e situações em que as pessoas são instadas a estabelecer, de modo reflexivo, uma diferenciação entre aparência e realidade. E é por meio da análise desse tipo de situações críticas que Bessy e Chateauraynaud se dispuseram a pensar como os atores confeccionam uma economia da percepção capaz de atender às expectativas de seus respectivos sensos de realidade. Em outras palavras, eles deslocaram o problema de ordem axiológica para a questão ontológica e se propuseram a observar não como os atores, por meio de referências a valores ou grandezas universalizáveis, estabelecem acordos justo, mas como, por meio da referência à tangibilidade ou ao retorno tangível das coisas, reestabelecem a facticidade do real.

Ora, a questão é igualmente fundamentada em um problema teórico: como fazer uma sociologia que não adote nem o construtivismo clássico (e mostre que tudo é, na verdade, artificialmente construído), nem um desconstrucionismo niilista (que vise mostrar como os atores, embora pensem que certas coisas lhes são reais, na verdade nunca o são)? Se não mais se acredita que a filosofia ou a sociologia - ou qualquer que seja o saber absoluto - possa nos oferecer uma metafísica capaz de, no lugar dos atores, definir o que é real, isso não quer dizer que os próprios atores deixem de discernir, quando necessário, o que para eles é ou não real. O fim da metafísica do pesquisador, nesse caso, implica um gesto delegativo de abertura às metafísicas (ou critérios de definição de realidade) dos atores. Daí porque o papel de uma sociologia pós-metafísica é levar a sério as pretensões de realidade dos atores e bem descrever o modo como essas pretensões são realizadas, na prática e em situações concretas.

Um passo adiante foi dado pelo próprio Chateauraynaud em obra conjunta com Didier Torny (1999). Em Les sombres precurseurs, eles se voltaram para o desenvolvimento de um modelo das investigações dos atores não mais pensando as investigações axiológicas ou ontológicas referentes a acontecimentos que já ocorreram, mas para aqueles que ainda estão por ocorrer.

De modo a bem explorar essa questão, eles trouxeram à tona a figura dos denunciantes ou lançadores de alerta (whistleblowers), versão contemporânea dos antigos profetas do apocalipse. Partindo de uma reconfiguração das sensibilidades contemporâneas relativas à questão do risco, Chateauraynaud e Torny focalizaram suas pesquisas nos alertas, quer dizer, as investigações empreendidas pelos atores para atestar a facticidade daquilo que (ainda) está para acontecer:

Depois da multiplicação dos affaires, de Tchernobyl à crise da vaca louca, da contaminação da transfusão de sangue aos hormônios de crescimento ou à hepatite B, do amianto aos dejetos de dioxina, se forma um tipo de consenso sobre a necessidade de reconfiguração do controle público das novas situações de alertas sanitários [...] Se não se pode mais tudo prever, impõe-se a ideia de que se pode ser vigilante e acompanhar os processos de modo a fazer face às inevitáveis ‘surpresas’, ‘revelações’ e outros ‘elementos novos’ (Chateauraynaud & Torny, 1997: 17).

Chateauraynaud e Torny (1999: 14) buscaram, com isso, “explicitar os constrangimentos da mobilização coletiva em torno de um risco postulado ou potencial”. Em outras palavras, em Les sombres precurseurs eles se propuseram a refletir como as investigações empreendidas pelos atores permitem fazer com que, a princípio, meros anúncios delirantes ou profecias aleatórias ganhassem ou não concretude e se tornassem efetivos riscos envolvendo a saúde pública e o bem-estar da coletividade. A hipótese dos autores é de que “a descrição dos atos [ou investigações] empreendidos pelos denunciantes - ou lançadores de alerta - e pelos agentes que os avaliam (responsáveis administrativos, cientistas, redes de vigilância de epidemiologias, mídia, eleitos) torna visível os procedimentos colocados em prática para produzir um julgamento sobre a realidade do perigo e do risco” (Chateauraynaud & Torny, 1999Chateauraynaud, Francis & Torny, Didier. (1999). Les sombres precurseurs: une sociologie pragmatique de l’alerte et du risque. Paris: Éditions de EHESS.: 15).

Um deslocamento importante é operado com relação à sociologia das investigações até então praticadas, pois não se trata mais, como em Boltanski e Thévenot, de pensar as condições de felicidade de uma argumentação justa, mas sim as condições de realização de um alerta que se torna real e concreto - ou seja, o prenúncio de algo capaz de tornar tangível, no imediatamente agora, aquilo cuja realização se efetiva apenas depois. A investigação dos atores, nesse sentido, tem por escopo mostrar um imperativo de ação preventiva, mesmo se o objeto para o qual ela se volta é algo cuja ocorrência só se dará posteriormente.

Trata-se, portanto, de analisar um tipo específico de investigação das atuais sociedades de risco (cf. Beck, 2011Beck, Ulrich. (2011). Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34) e com isso explicitar o modo como ocorrem as investigações empreendidas pelas pessoas e pelos agentes encarregados de fazer do risco algo palpável, tangível, tornando o que está para acontecer no “depois” um elemento fundamental com base no qual nossa ação do “imediatamente agora” deve se pautar. Assim, trata-se igualmente de explicitar o modo de funcionamento das investigações capazes de fazer com que pessoas, imersas em rotinas embebidas de confiança pragmática, não apenas aceitem que um infortúnio está realmente por vir, como passem a agir agora em função disso.

A pesquisa dos alertas importa porque expõe uma mudança na escala temporal. Não mais resolvível em situações de curta duração, a questão tratada diz respeito a um efetivo e longo processo que envolve um continuum relativo à intensidade dos problemas e das investigações. Esse continuum refere-se à intensidade da perturbação, a partir da qual Chateauraynaud e Torny (1999)Chateauraynaud, Francis & Torny, Didier. (1999). Les sombres precurseurs: une sociologie pragmatique de l’alerte et du risque. Paris: Éditions de EHESS. elaboram um sequenciamento de fases. Ela se inicia no regime de vigilância, passa pelo alerta, por uma controvérsia técnica, pela polêmica, pelo processo, pela crise e vai, como em Dewey, até sua normalização. Os riscos tratados são justamente aqueles irredutíveis às ações de curta duração, sendo portanto dotados de uma carreira, de uma trajetória.

A questão que Chateauraynaud se colocava desde então é como forjar uma metodologia de acompanhamento da carreira ou da trajetória das crises coletivas, quer dizer, de grandes casos (affaires) ou controvérsias. Em obra posterior, intitulada Argumenter dans un champs de forces: essais de balistique sociologique (Chateauraynaud, 2011Chateauraynaud, Francis. (2011). Argumenter dans un champ de forces: essai de balistique sociologique. Paris: Editions Pétra.), ele propõe uma metodologia de acompanhamento das investigações coletivas empreendidas pelos atores quando confrontados com assuntos amplamente controversos e de difícil encerramento. Para isso se inspira na ideia de balística.

Para bem desenvolver essa ideia, a primeira questão que o autor se coloca é: por que a escolha de uma balística? Se o seu escopo é forjar uma metodologia e um jogo de linguagem que auxilie no trabalho de acompanhamento das investigações coletivas dos atores em torno de assuntos controversos, o que pode a noção de balística oferecer? Primeiro, é importante começar por sua modalidade de aparição formal. Na matemática, a balística é definida pelo

estudo do movimento de um objeto em proximidade do solo, a partir de três características: o peso do objeto, o impulso e o atrito do ar. Sob a base desses parâmetros, o movimento de um objeto submetido a um campo de gravidade uniforme (na ausência de atrito) obedece a uma trajetória parabólica (Chateauraynaud, 2011Chateauraynaud, Francis. (2011). Argumenter dans un champ de forces: essai de balistique sociologique. Paris: Editions Pétra.: 249).

Esse raciocínio pode ser transposto para a questão das crises ou causas (affaires) coletivas. Em termos formais, uma causa ou crise emerge e é lançada com certa força ou impulso. Depois de ser lançada com uma determinada intensidade, ela logo se depara com algum tipo de atrito (no caso de uma causa coletiva, isso pode significar forças e interesses contrários, pouco espaço na agenda pública, dificuldade para encontrar meios de comunicação e de expressão da causa etc.) que lhe oferece resistência. Com o tempo, pode-se observar uma trajetória instituída pela causa, a qual se torna progressivamente retraçável. A tarefa da balística sociológica, para Chateauraynaud, consiste justamente em acompanhar, na trajetória, as investigações e as transformações mais significativas, assim como os novos atores que emergem e os acontecimentos mais marcantes.

Mais do que isso, e seguindo a intuição pragmatista presente na lógica da investigação de Dewey, trata-se igualmente de delinear a atividade investigativa dos atores, seus posicionamentos e mobilizações em torno da causa, apontando, na duração, que tipo de dinâmica é imposta por essa confrontação contínua. Fato é que, com o tempo, a crise tende a se estabilizar, sendo estas algumas das possíveis razões: porque alguns dos pontos que dela emergiram foram incorporados e metabolizados pelo senso comum; porque as reivindicações dos atores foram acalentadas ou simplesmente outras preocupações e crises mais significativas tomaram o espaço da agenda; porque a dinâmica das coisas impôs o seu encerramento; porque a relações de força impuseram seu término.

A balística proposta por Chateauraynaud não é um método de formalização de transformações que parte de atores com objetivos estáveis e problemas bem definidos de antemão, nem a eles imputa intenções de fora.5 5 Dito isso, faz-se imperativo lembrar que, na prática, as trajetórias nunca fazem o formato parabólico simples. Se o valor heurístico do modelo se mantém, ainda que no real as coisas incorram em uma dinâmica de complexidade maior, é porque a balística sociológica proposta pelo autor não pretende restringir-se a um espaço euclidiano que, de fora, retraça um trajeto ou uma linha que parte de um lugar, atinge o auge da sua força e depois decresce até se encerrar. Chateauraynaud (2011: 173) chama a atenção para o fato de que utilizar a metáfora da balística implica levar em consideração os desenvolvimentos da balística militar contemporânea que “se encarna em máquinas muito mais móveis, a partir de sistemas de cálculo integrados, capazes de recalcular no curso da rota o valor dos parâmetros, de reprogramar sua trajetória, até mesmo de mudar o alvo no último momento”. Ela também não é um modo de redução da trajetória das causas ao modelo parabólico. Ao contrário, o escopo da balística é se manter permanentemente atenta aos movimentos e transformações imanentes ao próprio desenrolar do processo controverso - o que inclui as suas variações temporais, relativas aos futuros e passados móveis. As intenções e os objetivos dos atores emergem no tempo e na duração, razão pela qual é possível sustentar que “a figura da parábola fornece apenas um ponto de partida possível, interessante por sua simplicidade e sua parcimônia, e que permite elaborar modelos mais complexos que podem ser confrontados com trajetórias realmente seguidas por causas ou processos coletivos” (Chateauraynaud, 2011Chateauraynaud, Francis. (2011). Argumenter dans un champ de forces: essai de balistique sociologique. Paris: Editions Pétra.: 178).

A partir dessas ideias gerais, o professor do GSPR define sua balística sociológica como uma ferramenta que pretende “descrever, comparar e analisar as trajetórias seguidas por causas diferentes em arenas análogas ou pelas mesmas causas em enquadramentos diferentes, levando em conta a evolução de intenções ou de fins perseguidos pelos protagonistas” (Chateauraynaud, 2011Chateauraynaud, Francis. (2011). Argumenter dans un champ de forces: essai de balistique sociologique. Paris: Editions Pétra.: 174). Assim como na lógica da investigação de Dewey, sugere algumas etapas - discerníveis apenas analiticamente - próprias às investigações coletivas empreendias pelos atores: emergência, controvérsia, denúncia, mobilização política, normalização e, quando é o caso, relançamento da crise. Assim Chateauraynaud (2011: 191-192) nomeia as principais fases do modelo balístico:
  1. Processo de surgimento ou de emergência de uma causa - o caso de alertas que se tornam ao mesmo tempo um caso particular.

  2. Controvérsia científica ou confrontação de expertises das quais dependem o tipo de factualidade e a natureza das provas.

  3. Acusação, denúncia, polêmica, escândalo. Quando esses regimes se realizam, a natureza das provas muda radicalmente.

  4. Mobilização política propriamente dita, pela qual múltiplos grupos e instâncias entram em cena, em função de seus interesses e valores.

  5. Processos de normalização e de negociação de novos dispositivos (critérios de regularização para imigrantes ilegais, norma de exposição de residentes para as indústrias classificadas, modalidade de entrada e de saída do regime de intermitentes, nível de indenização para os assalariados expostos ao amianto, distância entre culturas transgênicas e não transgênicas etc.).

  6. Relançamento ou retorno: um acontecimento, a fala de um porta-voz, uma crítica, uma decisão lança os atores na controvérsia e no conflito. Como na filosofia política de Jacques Rancière, novos atores que não participaram do processo inicial podem surgir no espaço público exigindo ser levados em conta.

Com base nesse modelo, o autor lança mão de uma pragmática dos processos de transformação capaz de acompanhar as trajetórias de uma só causa, ao longo de uma ou mais crises coletivas, ou de várias causas em uma só crise, nelas apontando tudo o que resiste às variações, os pontos de bifurcação, de transformação, enfim, os acontecimentos significativos que emergem do próprio desdobramento imanente do processo controverso.

Explicitados os elementos centrais do que Chateauraynaud propõe como balística sociológica, agora convém saber de que forma é possível, inspirado nela e em toda a noção de investigação tal como foi trabalhada por Dewey e “sociologizada” pelos pragmáticos franceses contemporâneos, pensá-la em uma escala individualizada. O elemento fundamental é deslocar a noção de incerteza não mais para a esfera coletiva, mas para o plano do self e dos próprios indivíduos. Não quero com isso defender uma esfera interior, separada do exterior, nos indivíduos, mas sim dar conta do fato de que há problemas que são reconhecidos pelos agentes como aquilo que se passa no seu interior - o self sendo uma arena interior habitada por tensões e crises. Como demonstrado acima, parte da sociologia francesa abandona uma metafísica prévia, sem deixar de levar a sério as metafísicas do justo ou da realidade dos atores. Pois bem, o mesmo deve ser dito com relação ao self e à interioridade: os atores dispõem de um senso de interioridade que deve ser levado a sério, sem que isso implique a elaboração, por parte do pesquisador, de uma metafísica da subjetividade ou de um “mito da interioridade” (Bouveresse, 1986Bouveresse, Jacques. (1976). Le mythe de l’intériorité: expérience, signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris, Minuit.).

Ora, se os atores são plurais e se reconhecem habitados por tensões e problemas, a sociologia dos problemas íntimos ou das autoinvestigações deve se propor como tarefa fazer uma balística da trajetória dessas tensões e desses problemas. Não só isso, ela também deve tentar acompanhar como, diante de problemas, indeterminações e tensões, as pessoas produzem autoinvestigações com vistas à busca de novas estabilizações de si. Este sendo o objetivo do presente artigo: partir de uma reflexão teórica capaz de delinear uma agenda de pesquisa em torno do self e seus processos de transformação. Para isso, a sociologia dos problemas íntimos estipula, assim, o self, assim como a sociedade, são fluxos contínuos de estabilidades e instabilidades que variam ao longo do tempo. As autoinvestigações são, nesse sentido, uma atividade permanente, sempre pautada pelas tensões e problemas que habitam e perpassam os indivíduos. Assim como a sociologia de sensibilidade pragmatista pensa o social como problema e não o contrário, o mesmo pode ser dito com relação ao self. Aqui proponho inclusive uma inversão do título do famoso livro de John Dewey, trocando o público pelo self: em vez de “o self e seus problemas”, sugiro conceber os problemas e o self. Em suma, proponho pensar na possibilidade de se fazer uma balística sociológica dos problemas íntimos do self (cf. Corrêa, 2015Corrêa, Diogo Silva. (2015). Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e Igreja evangélica. Tese de Doutorado em sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/École des Hautes Études en Sciences Sociales., 2020Corrêa, Diogo Silva. (2020). Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, 32/2, p. 175-204.).

Isso dito, convém passarmos à questão dos indivíduos. Meu é objetivo é fazer uma mudança de escala (Revel, 1996Revel, Jacques (dir.). (1996)). Jeux d’échelles: la micro-analyse à l’expérience. Paris: EHESS/Gallimard/Seuil.; Lepetit, 1995Lepetit, Bernard.(1995). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Éditions Albin Michel.). Só é possível discutir uma sociologia dos problemas íntimos ou das autoinvestigações enfrentando a questão que visa responder a de que self tratamos; a que tipo de entidade nos referimos quando pensamos na escala individual. Para isso, primeiro, passarei por um diálogo com a obra de Bernard Lahire, que aponta para um indivíduo plural, permeado por tensões internas em razão da herança de um patrimônio disposicional incorporado e múltiplo. Em seguida, debaterei com a perspectiva de Margaret Archer, sobre as conversas internas. Ambos nos oferecem, para retomar a expressão desenvolvida por Vandenberghe (2017aVandenberghe, Frédéric. (2017a). A sociologia na escala individual [2]. Blog do Sociofilo. Disponível em: https://blogdosociofilo.com/2017/06/19/a-sociologia-na-escala-individual-2-por-frederic-vandenberghe/ Acesso em 14 set. 2020.
https://blogdosociofilo.com/2017/06/19/a...
, 2017bVandenberghe, Frédéric. (2017b). A sociologia na escala individual [1]. Blog do Sociofilo. Disponível em: https://blogdosociofilo.com/2017/06/13/a-sociologia-na-escala-individual-1-por-frederic-vandenberghe/ Acesso em 14 set. 2020.
https://blogdosociofilo.com/2017/06/13/a...
), uma “sociologia em escala individual”. Esse percurso será realizado para chegarmos a algumas das intuições fundamentais acerca do que pode ser uma sociologia (balística) dos problemas íntimos.

Das investigações coletivas às investigações em escala individualizada

Bernard Lahire: a mudança de escala e o self permeado por múltiplas crises e tensões

A sociologia de Bernard Lahire, em confrontação crítica com a perspectiva de Pierre Bourdieu, permite pensar o universo social em escala individualizada. Mais do que isso, e esse é o ponto que realmente interessa aqui, a sociologia psicológica que Lahire propõe permite mudar a escala de análise e capturar as tensões e crises que habitam os selves socializados em contextos díspares e múltiplos. Trata-se da versão disposicionalista do que, na tradição pragmatista de William James, poderíamos referir como selves compostos de uma pluralidade de subuniversos ou, na terminologia de Alfred Schutz, como selves compostos de “realidades múltiplas”.

Em Retratos sociológicos, por meio da elaboração e do estudo pormenorizado de biografias individuais, Lahire (2004)Lahire, Bernard. (2004). Retratos sociológicos. Porto Alegre: Artmed. faz uma incorporação crítica da obra de Pierre Bourdieu e nela aponta algumas falhas. A principal seria que a sociologia do ex-professor do Collège de France permanece cega “às múltiplas ocasiões de desajuste, supressão, produtoras de crise e de reflexões” (Lahire, 2004Lahire, Bernard. (2004). Retratos sociológicos. Porto Alegre: Artmed.: 81-82). Lahire afirma que Bourdieu teria privilegiado sempre os exemplos do “peixe dentro d’água”, quer dizer, as situações nas quais as disposições incorporadas se adequavam e se ajustavam de modo harmônico às estruturas objetivas. A tese do professor da ENS de Lyon, por sua vez, é de que, diante da multiplicidade de processos de socialização aos quais estão os indivíduos sujeitos na modernidade tardia, razão pela qual se pode dizer que, salvo raríssimas exceções, “sua experiência incorporada é múltipla” (Lahire, 2006Lahire, Bernard. (2006). A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed.: 36), existe uma pluralidade de disposições adquiridas que podem ser mais ou menos heterogêneas. O que Bourdieu tomava como um princípio explicativo do mundo social - o conceito de habitus, entendido como princípio unificador das práticas e de um estilo de vida - em Lahire trata-se daquilo que deve ser explicado pelo retraçamento da gênese disposicional de cada biografia individual.

Daí porque se antes, com Bourdieu, os indivíduos tinham seus gostos e estilos de vida definidos e circunscritos a partir de posições estruturais gerais e conceitos macrossociais e de longo alcance, como estrutura social e posição de classe, agora seria preciso aproximar a escala e não mais derivar o indivíduo geral da sociedade singular, mas buscar na singularidade individual os traços da experiência social. Em vez de um todo coerente, o indivíduo seria fractal ou simplesmente uma multiplicidade de fragmentos sociais.

Diante de uma heterogeneidade considerável de contextos e situações singulares pelas quais passam os atores em sociedades ocidentais da modernidade tardia, Lahire se pergunta como reter o que há de mais significativo e importante para a compreensão de uma biografia ou trajetória individual. Pois se é verdade que nas sociedades contemporâneas existe, além da divisão do trabalho e da progressiva diferenciação social, uma “multiplicidade dos espaços e princípios de socialização concorrentes” (Lahire, 2006Lahire, Bernard. (2006). A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed.: 43), como os reduzir às dimensões que são capazes de dar conta do que há de realmente pertinente? Conquanto se trate de uma questão cuja resposta deve se dar apenas à luz da empiria, Lahire estabelece, de antemão, determinadas “matrizes socializadoras” que em geral possuem um peso significativo na vida dos indivíduos no que concerne à constituição de suas disposições interiorizadas: família, escola, trabalho, práticas culturais, esportivas, religiosas e políticas, cada qual possuindo um peso diferenciado segundo a trajetória biográfica de cada vida singular.

Para os meus propósitos, contudo, importa pensar não as matrizes socializadoras, mas sobretudo - e à luz de uma leitura pragmatista - o papel que Lahire confere às situações críticas, de crise, isto é, aquelas que contribuem, na linguagem do autor, para “reorganizar o patrimônio de disposições” e nesse sentido - e apenas nesse - aquelas que podem ser consideradas “matrizes dessocializadoras ou ressocializadoras”. Na esteira dessa ideia, Lahire estabelece alguns casos típicos em que mudanças de vida têm por efeito a produção de desajustes intrasubjetivos, gerando disposições ambíguas e por vezes conflitantes.6 6 É importante que se diga: não se trata aí necessariamente de mudanças negativas, mas simplesmente coloca-se o acento nas experiências que rompem com o conjunto de expectativas rotineiro e habitual, posto que o desajuste pode ser gerado por um acontecimento em geral tido como positivo, como vencer na loteria, casar-se, mudar para um emprego melhor etc. Além disso, Lahire inclui na análise os casos em que o desajuste não está meramente restrito a uma situação específica, mas em que, a partir dela, pode engendrar um problema de forma durável. Segue a lista de alguns casos citados pelo autor:
Pode-se, a título de lembrança, esboçar uma lista - sem dúvida, não exaustiva - dos casos de retardamento, de supressão ou de desajuste que a observação do mundo social permite distinguir:
  1. as situações de contradições culturais forçadas nas quais os atores não podem fazer de outro modo senão viver com o que eles incorporaram até ali (por exemplo, o caso de um grande número de alunos obrigados a frequentar por longo tempo a escola mesmo quando essa os põe verdadeiramente em crise, o fracasso escolar e suas diversas manifestações sendo a expressão de uma tal situação de crise; ou a situação dos indígenas do México, entre os séculos XVI e XVIII, aos quais os espanhóis impunham formas culturais e ocidentais;

  2. as transplantações individuais ou coletivas mais ou menos coercitivas de um universo social a um outro (por exemplo, hospitalização de longa duração, serviço militar nacional, aprisionamento, imigração, reagrupamento, deslocamento de populações...);

  3. as rupturas biográficas ou transformações importantes nas trajetórias individuais (por exemplo, brusco declínio social ou desclassificação pelo alto, início de um relacionamento, casamento, divórcio ou separação, nascimento do primeiro bebê, aposentadoria, perda de emprego...)

  4. desajustes entre certas propriedades sociais do ator e as do ambiente social, desajustes que lembram os atores da ausência de ‘cumplicidade ontológica’ entre uma parte de suas disposições e a situação em que vivem (por exemplo, ser o único advogado negro em um grande escritório de advogados em Nova York; ocupar uma profissão socialmente considerada masculina para uma mulher e inversamente; advir de uma comunidade religiosa ou étnica e frequentar, após um casamento misto, membros de uma outra comunidade etc.);

  5. os conflitos entre hábitos (tendências) concorrentes que levam a viver constantemente em desajuste e no sentimento de culpa permanente (por exemplo, o caso das mulheres divididas entre seu papel de dona de casa e seu papel profissional; ou aquele, ao mesmo tempo próximo e muito diferente, de pais dedicados à profissão, e que vivem com consciência culpada em razão de sua ausência em casa e na educação dos filhos, mas que, inversamente, pensam em seu trabalho - que poderia ser melhor - quando dedicam momentos à família);

  6. os múltiplos pequenos desajustes (provocando com isso miniestados de crise: irritações, sentimentos doentios, cóleras, tristezas, fugas, distrações etc.) entre experiências passadas incorporadas e situações novas; essas situações não constituem necessariamente recolocações em causa profundas de socializações vividas anteriormente, mas não as confirmam jamais em sua integralidade e supõem portanto incorporações suplementares heterogêneas, mas não contradições;

  7. as adaptações mínimas sem convicção (com distância do papel) tornadas possíveis pelo fato de que o estoque de esquemas incorporados não é perfeitamente homogêneo e permite então aos atores se apoiar sobre uma parte deles para ‘suportar’ temporariamente ou duravelmente uma situação e a ela se adaptar sem sofrimento demais (sobretudo se os outros esquemas incorporados se atualizam alhures, em outros registros, em outras situações sociais) (Lahire, 2001Lahire, Bernard. (2001). O homem plural. Petrópolis: Vozes.: 83-86).

Embora não explore sistematicamente essas situações de crise que engendram uma reorientação do patrimônio disposicional, só se preocupando em as detectar e demonstrar em operação ao modo de disposições conflitantes, Lahire tem o grande mérito de apontar a questão e mencionar seu potencial ressocializador e reorientador.7 7 Em outra obra, Lahire (2006: 19) elabora outra lista não exaustiva de momentos de crise: “experiências socializadoras heterogêneas durante a infância ou a adolescência […], mudanças importantes nas condições materiais e/ou culturais de vida […], efeitos específicos e localizados com formações escolares muito especializadas […], relações ambivalentes com sua própria cultura familiar de origem ligadas às condições de ‘transmissão’ do capital cultural dos pais, influências conjugais que vêm modificar as disposições familiarmente adquiridas, relações de amizade que favorecem práticas distintas daquelas que são implementadas pelo cônjuge, uma extensão e, sobretudo, uma variedade de laços de amizade que tornam possível uma distribuição de práticas heterogêneas em função de amigos frequentados, de contextos bem delimitados do ponto de vista espacial e/ou temporal particularmente favoráveis”. E mesmo que não haja nele uma exploração do correlato da situação que se mostra, Lahire permite incluir nos problemas, por meio de sua sociologia psicológica, questões de ordem intrassubjetiva - de média e longa durações. E sugerimos que uma sociologia dos problemas íntimos ou das autoinvestigações pudesse buscar o acompanhamento temporal dessas crises e questões que ele aponta.

Outro trabalho de Lahire (2010)Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte. que nos interessa em particular é Kafka: Elementos para uma teoria da criação literária. Na aludida obra, o autor oferece uma “análise biográfica” capaz de “descobrir os problemas existenciais de Kafka” e “uma interpretação de textos”, que “revela as maneiras pelas quais os elementos deste problema são transpostos para a sua obra” (Lahire, 2010Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte.: 586). Propondo-se a “entender por que Kafka escreveu o que ele escreveu, como ele escreveu” (Lahire, 2010Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte.: 594), Lahire relaciona, de forma repetida, sua vida e obra. Ele se propõe a sintetizar e apresentar três grandes questões problemáticas que teriam se constituído ao longo da vida de Kafka: a relação com o pai, com o trabalho e a escrita, e com as mulheres. Lahire então tenta decifrar o sentidos dos textos de Kafka a partir do que chama de “problemática existencial”, ou seja, “o conjunto de elementos vinculados à posição social de um autor e que se impõem a ele como questões-chave que lhe importunam ou problemas que ele tem de enfrentar” (Lahire, 2010Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte.: 81). Seria a “problemática existencial”, no final das contas, que deveria, segundo Lahire, contar como o “princípio organizador real” (Lahire, 2010Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte.: 87) dos textos de Kafka.

Embora o trabalho de Lahire deva ser elogiado não apenas por sua erudição, mas também por sua atenção aos detalhes e às tensões e dilemas existenciais presentes na trajetória pessoal e íntima do autor tcheco, acredito que ele deva ser criticado por não ter ido até o fim na metáfora cinematográfica que ele mesmo utiliza muitas vezes ao longo do livro. Em outras palavras, tudo se passa como se Lahire, preso a uma noção de eu excessivamente psicanalítica, derivasse toda a obra de Kafka de sua problemática existencial, sem considerar as variações temporais dos principais problemas que o escritor praguense relata em seu diário, isto é, as experimentações e a sucessão de autoinvestigações que marcaram sua vida.

Em vez de uma relação sempre problemática e angustiada com a escrita, que Lahire aponta, Kafka vive alternâncias que convém apontar. Nos dias 15 e 17/12/1910, Kafka (2019Kafka, Franz. (2019). Diários, 1909-1912. São Paulo: L&PM Pocket.: 77-78) faz relatos que corroboram a hipótese lahireana: “Quase nenhuma palavra que escrevo condiz com a outra, ouço como as consoantes se esfregam metalicamente umas nas outras e as vogais, acompanhando, cantam como negros numa exposição. [Dois dias depois, ele escreve:] [...] O fato de ter abandonado e riscado tanta coisa, quase tudo o que escrevi neste ano, de qualquer modo também me atrapalha muito na escrita. Chega a formar um monte, é cinco vezes tudo o que alguma vez escrevi e, já por sua massa, atrai para si, puxando-o de sob minha pena, tudo o que escrevo”. No entanto, no dia 03/01/1912, Kafka (2019Kafka, Franz. (2019). Diários, 1909-1912. São Paulo: L&PM Pocket.: 111-112) manifesta um estado de espírito totalmente diferente: “pode-se reconhecer muito bem em mim uma concentração dirigida à escrita. Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a direção mais produtiva de meu ser, tudo afluiu para lá e deixou vazias todas as capacidades que se voltavam acima de tudo às alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.

Parece que depois de ler quase tudo que Kafka escreveu e que foi escrito sobre ele (ao menos em francês), Lahire se autorizou a produzir uma teoria de personalidade do autor de O processo a partir da qual tentou tudo explicar. As experiências socializadoras e as crises e tensões que daí derivaram são o elemento essencial que caracteriza tudo o que Kafka escreveu. Para não ficar nos problemas relativos à redução da escrita à biografia - essa não é a questão aqui -, Lahire recusa-se a perceber as variações temporais dos problemas. Não é por acaso que os elementos presentes no diário e na correspondência de Kafka são citados de maneira aleatória, nunca a partir de sua evolução temporal imanente, fazendo com que a problemática existencial seja tratada como uma substância, uma personalidade fixa por todo o sempre.

É por isso que Lahire (2010: 586) se autoriza a dizer que “as obras de Kafka são as variações incansáveis sobre os mesmos temas, ou os mesmos problemas”. E mesmo se, em seguida, ele sustenta que “isso não significa que eles [os temas e problemas] tenham permanecido completamente inalterados”, faz questão de dizer, imediatamente depois, que eles “constituem o ponto nevrálgico de uma problemática existencial cuja fundação teve início muito cedo” (Lahire, 2010Lahire, Bernard. (2010). Franz Kafka. Élements pour une théorie de la création littéraire. Paris: La Découverte.: 586). É em razão de sua perspectiva muito fechada em um disposicionalismo determinista que Lahire é incapaz de ver as mudanças das questões problemáticas vividas por Kafka, elementos que uma sociologia das autoinvestigações ou dos problemas íntimos permite visibilizar.

É sintomático o fato de que o autor nunca se refira no capítulo sobre as divisões e tensões internas de Kafka às variações temporais dos problemas, aos momentos em que há apaziguamentos, transformações, mudanças e possíveis repetições - o que, por exemplo, é totalmente perceptível se olharmos para os diários de Kafka, em que há momentos, no que diz respeito à escrita, que ele afirma estar extremamente inspirado e outros em que expressa grande dificuldade de produzir um único parágrafo. O que encontramos na obra de Lahire é a “descoberta” de uma personalidade sempre idêntica a si mesma e que, desde muito cedo, está condenada a se autorreproduzir. Em suma, em vez de seguir Kafka e seus problemas - ou melhor, os problemas e o Kafka -, Lahire toma-os tão somente como uma instância de confirmação de sua teoria disposicionalista.

Uma sociologia dos problemas íntimos ou das autoinvestigações dos autores, embora acompanhe Bernard Lahire em sua mudança de escala, se pretende muito diferente do que o autor faz. Importa menos mostrar formas de incorporação de um social heterogêneo e mais acompanhar a evolução temporal das questões problemáticas e das tensões que se manifestam no self ou no que ele chama de dimensão intrapsíquica dos indivíduos. Minha intenção, portanto, é propor a análise de tais problemas a partir do modo como os indivíduos os experimentam e expressam por meio de suas autoinvestigações - daí a importância do projeto de uma balística sociológica dos problemas íntimos.

Convém agora tratar do conceito de reflexividade e do modo como Margaret Archer, a partir dele, propõe uma sociologia em escala individual.

A reflexividade como projeto individual

Há uma pluralidade de modos de se abordar, na filosofia e na teoria social, o problema da reflexividade. Inspirado na tradição de Karl Mannheim, Bourdieu nos ensinou como, na sociologia, se pode produzir uma reflexividade de ordem epistemológica, ao propor que o pesquisador volte para si as ferramentas conceituais que ele forjou para objetivar o mundo social. Há uma segunda tradição que pode ser considerada uma espécie de reflexividade “pessoal” e que tem suas características vinculadas ao modo pelo qual o indivíduo reflete sobre o sentido da vida e o introduz na ação. Essa modalidade de ação reflexiva pode ser aproximada do conceito de identidade narrativa de Paul Ricoeur (1994)Ricoeur, Paul. (1994). Soi-même comme un autre. Paris: Les Éditions du Seuil., entendida como o meio graças ao qual se institui um campo de renegociação e reinvenção reiterado de uma trajetória biográfica. Mas há ainda um terceiro, que é o de Margaret Archer (2003, 2007Archer, Margaret. (2007). Making our way through the world: human reflexivity and social mobility. New York: Cambridge University Press.). Em Structure, agency and internal conversation, a autora elabora o conceito de conversação interior. Por meio dele, analisa como os projetos individuais são criados e ajustados às preocupações fundamentais (ultimate concerns) dos agentes, além de apontar como se dá a mediação entre as agências individuais e as permissões (enablements) ou coerções (constraints) dos sistemas culturais e das estruturas sociais.

De modo contrário às perspectivas de Bourdieu e de Giddens, que tendiam, em uma dialética entre ação e estrutura, a diluir esta última no âmbito da ação prática, Archer retoma essa distinção e pensa tanto a ação quanto a estrutura como entidades concernentes a dimensões ontológicas distintas. Ela vai de encontro à visão bourdieusiana segundo a qual as ações individuais seriam, em alguma medida, o resultado de disposições incorporadas oriundas de estruturas sociais preexistentes e de que a agência individual, por sua vez, seria a forma pela qual tais estruturas seriam atualizadas e reconfiguradas. Para a socióloga inglesa, dialetizar a estrutura e a agência seria o mesmo que colonizar a agência individual pela estrutura social, ao modo de um “neo-objetivismo” (ver Peters, 2013Peters, Gabriel. (2013). Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28/83.), produzindo o que ela chama de falácia da conflação.

Em Structure, agency and internal conversations, Archer (2003)Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press. interpõe sobre a estrutura e a agência a conversação interior, tratada enquanto a modalidade por meio da qual se faz a mediação entre as duas dimensões. Assim, ela tenta garantir a autonomia de cada região ontológica e enfatizar em que medida a deliberação reflexiva influi diretamente sobre o modo de atuação das estruturas sociais. Em suas palavras, “sublinhar a importância da deliberação reflexiva é permitir que a subjetividade pessoal filtre como agentes respondem às mesmas circunstâncias objetivas” (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.: 1).

Na concepção da socióloga inglesa, portanto, não há estrutura social atuante que não seja filtrada ou que não passe pelo crivo da deliberação reflexiva individual. À conversa interior, ela atribui três características basilares, que a garantem enquanto instância independente: “a conversa interior é (a) genuinamente interior, (b) ontologicamente subjetiva e (c) eficaz do ponto de vista causal. (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.: 16). As estruturas sociais e culturais, com isso, se relacionam não com o agente, nele imprimindo sua marca ou amoldando seus gostos e suas preferências, mas apenas com os projetos pessoais “moldando as situações de modo que elas tenham a capacidade de operar como permissões ou coerções” (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.: 132).

Fazendo eco à tradição de Charles Taylor e Paul Ricoeur, Archer entende então a deliberação reflexiva como aquilo por meio do que nos definimos enquanto agentes humanos. Em nossa vida prosaica, procuramos sempre aproximar nosso curso de ação ao que consideramos mais fundamental para as nossas vidas. As preocupações fundamentais encontram-se em três níveis, a saber, “o bem-estar físico na ordem natural, a realização performática na ordem prática e a estima de si na ordem social” (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.: 120). E é pela conversação interior que organizamos essas três ordens as quais nos apontam para o que cada um de nós considera a boa vida. Assim, pode-se dizer que é por meio da “especificação progressiva de nossos cursos de ação concretas, que envolvem a trajetória das preocupações  projetos  práticas” (Archer, 2003Archer, Margaret. (2003). Structure, agency and the internal conversations. Cambridge: Cambridge University Press.: 230), que nós fazemos o nosso caminho no mundo (“our way through the world”).

Segundo Archer somos, portanto, seres em permanente produção de deliberações reflexivas - no sentido de Dewey, somos seres em permanente autoinvestigação. Tais processos autoinvestigativos obtêm, por vezes e sempre de forma temporária e relativa a certos temas, apaziguamentos provisórios. Quando as diferentes partes do self, no curso dos diálogos interiores, obtêm um relativo consenso a propósito do curso de ação mais propício para o atendimento de alguma de nossas preocupações últimas, há uma estabilidade temporária. Tais pequenos consensos jamais se encontram ao largo das circunstâncias objetivas com as quais nossos projetos individuais são obrigados a lidar. Mas, como vimos, essas circunstâncias objetivas apenas lidam com os nossos projetos, incentivando-os ou os inibindo, mas não determinando a nossa subjetividade.

A reflexividade, nessa via, é tida como uma capacidade intrínseca da subjetividade humana. Trata-se de uma competência, como a linguagem, que potencialmente todo humano tem e é igualmente capaz de desenvolver. A todo momento a utilizamos, elaboramos projetos individuais, conferimos sentido ao que fazemos e, com isso, colocamos as coerções estruturais sob o crivo dessa capacidade.

Archer, assim como Lahire, importa porque propõe uma sociologia em escala individual. Contudo, uma sociologia das autoinvestigações tem uma contribuição para a noção de reflexividade da socióloga inglesa. Para Archer, como vimos, a reflexividade, que se expressa nas conversas interiores, é vista como a capacidade humana por meio da qual os indivíduos elaboram projetos e preocupações fundamentais e procuram a elas adequar seus respectivos cursos de ação. De modo distinto, contudo, defendo aqui a ideia de que a conversa interior é a modalidade de aparição linguística das autoinvestigações, e não a sua única forma de manifestação.

Além disso, a agenda de pesquisa proposta no presente artigo visa justamente dar mais nitidez às tensões e temáticas que pautam as conversas interiores dos agentes. Não basta simplesmente reconhecer a capacidade de refletir dos indivíduos, tomando-a como uma propriedade inata, mas é preciso fazer uma análise que situe essas conversações interiores nas crises, problemas e questões que estruturam e orientam as suas autoinvestigações. No caso de Kafka, por exemplo, é certo que os diários são expressões de conversas interiores. No entanto, importa menos dizer que ele conversa consigo mesmo e mais mapear quais são as questões em torno das quais gravitam suas conversas internas. Mais do que isso, cabe igualmente apontar a variação de tais questões no tempo, mostrando também se há novas questões que aparecem, se algumas, por certo período, se tornam menos importantes - ou mesmo adormecem - e assim por diante.

É imperativo esclarecer que, aqui, não afirmo que a reflexividade seja algo que emerge exclusivamente de tensões, crises e problemas. De modo mais modesto, concebo que ela tende a se voltar para aquilo que se coloca como problemático para o self. Sigo, dessa forma, a hipótese pragmatista no início deste artigo expressa: mesmo em tarefas simples como em uma mera autoanálise cotidiana, o indivíduo tende a voltar suas faculdades reflexivas para aquilo que experimenta, naquele momento, como problemático, anômalo, tenso, ambíguo, confuso, indeterminado etc. Minha hipótese é de que quanto maior é a intensidade do problema maior tende a ser o seu magnetismo em relação às energias atencionais e reflexivas do self (ver Corrêa & Talone, 2021Corrêa, Diogo Silva & Talone, Vittorio. (2021). O esboço de uma teoria pragmatista da reflexividade: analisando os percursos do conceito pela teoria social. Sociedade e Estado [online] 36/2, p. 407-431. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-202136020003 Acesso em 21 set. 2021.
https://doi.org/10.1590/s0102-6992-20213...
).

Isso implica tratar a conversa interior como um dos recursos de que os atores dispõem ao longo de seu processo contínuo de autoinvestigação. Se Archer, em seu trabalho sobre as conversas internas, restringe sua abordagem ao reconhecimento dessa capacidade reflexiva, aqui proponho explicitar aquilo que, no final das contas, não apenas pauta as conversas interiores, mas é a sua própria condição de possibilidade: os problemas e as tensões que habitam o indivíduo. Repito: os problemas e o self. Se partirmos da hipótese da sociologia dos problemas íntimos, segundo a qual todo indivíduo é habitado por um emaranhado de crises e tensões em intensidades variadas que se entrecruzam e evoluem ao longo do tempo, podemos afirmar que, diante desses conflitos e indeterminações, ele exerce um contínuo trabalho de autoinvestigação (e conversa consigo mesmo) - processo esse que ocorre, por vezes, com o auxílio e suporte de psicanalistas, de pastores, de amigos, da família. Se, como salientou Vandenberghe (2010)Vandenberghe, Frédéric. (2010). Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: Ed. UFMG., somos as nossas conversas interiores, é porque, antes de tudo, somos um emaranhado de problemas e tensões que evoluem e variam ao longo do tempo.

Conclusão

Uma sociologia dos problemas íntimos assume como ponto de partida o fato de que as autoinvestigações empreendidas pelos indivíduos advêm e são pautadas pelas crises e tensões que o habitam. Além disso, e este é um ponto que desenvolvi em outros trabalhos (Corrêa, 2015Corrêa, Diogo Silva. (2015). Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e Igreja evangélica. Tese de Doutorado em sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/École des Hautes Études en Sciences Sociales., 2020Corrêa, Diogo Silva. (2020). Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, 32/2, p. 175-204.), não apenas parto da ideia, mas procuro demonstrar que, assim como na balística sociológica de Chateauraynaud, algumas dessas crises e tensões são retraçáveis. Do mesmo modo que para o pragmatismo clássico a ação investigativa se dá quando os indivíduos se deparam com uma indeterminação, isso pode ser mantido para as suas autoinvestigações: as pessoas não conversam consigo mesmas nem refletem ou direcionam sua atividade investigativa para tudo, da mesma forma e ao mesmo tempo. Essa atividade de autoinvestigação, cuja reflexividade archeriana como conversa interior é uma de suas expressões, se volta para os problemas e as tensões que habitam os indivíduos e lhes concernem, quer dizer, os interpela em razão da intensidade do incômodo ou desconforto que produzem. Em poucas palavras, é porque há uma contínua dinâmica de problemas na vida de um indivíduo, e porque por vezes essa crise é experimentada como algo intolerável, que ele é permanentemente instado, em alguma medida, a refletir, a conversar consigo, a se autoinvestigar.

É com base nessa estrutura teórica que defendo a necessidade de tratar do indivíduo em meio a esse trabalho autoinvestigativo. Inspirado no que Chateauraynaud chamou de balística sociológica, termino este artigo, de cunho mais teórico, propondo uma agenda sociológica capaz de retraçar a trajetória das principais questões e das decorrentes autoinvestigações de um único self. A hipótese, cuja operacionalidade espero ter demonstrado empiricamente e de forma mais detalhada alhures,8 8 Cabe dizer que, em Corrêa (2015), fiz uma operacionalização prática da sociologia dos problemas íntimos por meio do acompanhamento da trajetória de uma única pessoa, que chamei de Charles. Com ele, que, quando conheci, era um convertido à Assembleia de Deus e se dizia ex-traficante e ex-viciado em crack, passei a ter sucessivas reuniões semanais, 58 no total, cujas conversas variavam de 20 minutos a uma hora e meia. A partir das questões que começaram a aparecer de modo recorrente, comecei a mapeá-las e a analisar tudo o que de significativo variava no tempo para ele. Como essas outras questões para além da fé não variam infinitamente, eu me pus a codificá-las. Trabalho e estudo; as relações afetivas (incluindo mulheres e família); e o tráfico e as drogas foram as temáticas que surgiram de maneira recorrente ao longo das conversas. Foi assim que eu desloquei o baricentro de minhas preocupações de uma sociologia dos problemas públicos, tal como havia sido proposta por Joseph Gusfield (1981) e seguida por seus colegas do Centro de Estudos de Movimentos Sociais em Paris, como Daniel Cefaï e Louis Quéré. Progressivamente, descobri que eu aspirava, em contraponto, a uma sociologia dos problemas íntimos. é a de que alguns dos principais problemas de um self são retraçáveis e passíveis de ser acompanhados pelo que chamo de sociologia dos problemas íntimos ou, para manter a relação com Dewey, uma sociologia das autoinvestigações.9 9 Já que a intensidade de um problema tem por corolário uma atividade investigativa, postulamos ser possível acompanhar, em um só indivíduo, o processo de experimentação de questões problemáticas e tensões, e sua evolução no tempo.

NOTAS

  • 1
    A noção de “íntimo”, a que aqui faço referência, tem a ver com uma espécie de contraparte à noção pragmatista de público. Por isso, concebo que o íntimo, nesse caso, não tem tanto a ver com uma reflexão histórica sobre a noção de intimidade no Ocidente (como é o caso, por exemplo, do volume dois da coleção História da vida privada, organizada por George Duby e Philippe Ariès, que trata da Europa feudal e da Renascença), mas sim com a existência de um plano individual, ainda que sempre indissociável da noção de público, no sentido de John Dewey no livro The public and its problems. Portanto, público e íntimo, para mim, não são, de modo algum, instâncias ou províncias ontologicamente separadas (como no caso de Margaret Archer), nem mesmo possuem uma relação dialética ou causal de determinação (como é o caso do neo-objetivismo estruturalista de Pierre Bourdieu). Não há uma separação entre dentro e fora, indivíduo e sociedade, ator e estrutura social. Do ponto de vista de uma sociologia dos problemas íntimos, as tensões que se expressam no foro interior de pessoas ou dos indivíduos particulares exprimem e espelham tensões entre elementos, formas de vida, conceitos, ideias e valores sempre existentes no ambiente social no qual o self está inserido.
  • 2
    De modo resumido, Dewey (1998: 171) aponta que a “investigação é a transformação controlada ou direta de uma situação indeterminada em uma de tal modo determinada em suas distinções e relações constitutivas que permite tornar os elementos da situação original um todo unificado”. Todo o seu esforço de pensar a investigação humana é voltado para questionar como se realiza a reflexão humana na prática, em sua espessura concreta.
  • 3
    Para os propósitos do presente texto, da constelação pragmática (Dosse, 2003Dosse, François. 2003. O império do sentido. Bauru: Edusc.), me aterei apenas na sociologia das investigações axiológicas de Luc Boltanski e Laurent Thévenot.
  • 4
    Por exemplo, uma coisa é a pessoa singular que fala da morte de seu filho, outra é ela conseguir mostrar que a morte de seu filho é representativa de um problema mais geral e global, quer dizer, de uma causa coletiva: a violência urbana nas comunidades carentes cariocas. O mesmo se dá com relação à mulher que diz ter sido violentada em casa pelo marido; a importância desse evento é menos por se tratar de um caso singular e mais porque ele é representativo de uma causa coletiva que vai muito além da pessoa privada que sofre uma agressão: trata-se do problema da violência doméstica que contempla um enorme número de outras mulheres em situações semelhantes.
  • 5
    Dito isso, faz-se imperativo lembrar que, na prática, as trajetórias nunca fazem o formato parabólico simples. Se o valor heurístico do modelo se mantém, ainda que no real as coisas incorram em uma dinâmica de complexidade maior, é porque a balística sociológica proposta pelo autor não pretende restringir-se a um espaço euclidiano que, de fora, retraça um trajeto ou uma linha que parte de um lugar, atinge o auge da sua força e depois decresce até se encerrar. Chateauraynaud (2011: 173) chama a atenção para o fato de que utilizar a metáfora da balística implica levar em consideração os desenvolvimentos da balística militar contemporânea que “se encarna em máquinas muito mais móveis, a partir de sistemas de cálculo integrados, capazes de recalcular no curso da rota o valor dos parâmetros, de reprogramar sua trajetória, até mesmo de mudar o alvo no último momento”.
  • 6
    É importante que se diga: não se trata aí necessariamente de mudanças negativas, mas simplesmente coloca-se o acento nas experiências que rompem com o conjunto de expectativas rotineiro e habitual, posto que o desajuste pode ser gerado por um acontecimento em geral tido como positivo, como vencer na loteria, casar-se, mudar para um emprego melhor etc. Além disso, Lahire inclui na análise os casos em que o desajuste não está meramente restrito a uma situação específica, mas em que, a partir dela, pode engendrar um problema de forma durável.
  • 7
    Em outra obra, Lahire (2006: 19) elabora outra lista não exaustiva de momentos de crise: “experiências socializadoras heterogêneas durante a infância ou a adolescência […], mudanças importantes nas condições materiais e/ou culturais de vida […], efeitos específicos e localizados com formações escolares muito especializadas […], relações ambivalentes com sua própria cultura familiar de origem ligadas às condições de ‘transmissão’ do capital cultural dos pais, influências conjugais que vêm modificar as disposições familiarmente adquiridas, relações de amizade que favorecem práticas distintas daquelas que são implementadas pelo cônjuge, uma extensão e, sobretudo, uma variedade de laços de amizade que tornam possível uma distribuição de práticas heterogêneas em função de amigos frequentados, de contextos bem delimitados do ponto de vista espacial e/ou temporal particularmente favoráveis”.
  • 8
    Cabe dizer que, em Corrêa (2015)Corrêa, Diogo Silva. (2015). Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e Igreja evangélica. Tese de Doutorado em sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/École des Hautes Études en Sciences Sociales., fiz uma operacionalização prática da sociologia dos problemas íntimos por meio do acompanhamento da trajetória de uma única pessoa, que chamei de Charles. Com ele, que, quando conheci, era um convertido à Assembleia de Deus e se dizia ex-traficante e ex-viciado em crack, passei a ter sucessivas reuniões semanais, 58 no total, cujas conversas variavam de 20 minutos a uma hora e meia. A partir das questões que começaram a aparecer de modo recorrente, comecei a mapeá-las e a analisar tudo o que de significativo variava no tempo para ele. Como essas outras questões para além da fé não variam infinitamente, eu me pus a codificá-las. Trabalho e estudo; as relações afetivas (incluindo mulheres e família); e o tráfico e as drogas foram as temáticas que surgiram de maneira recorrente ao longo das conversas. Foi assim que eu desloquei o baricentro de minhas preocupações de uma sociologia dos problemas públicos, tal como havia sido proposta por Joseph Gusfield (1981)Gusfield, Joseph. (1981). The culture of public problems. Drinking, driving and the symbolic order. Chicago: The University of Chicago Press. e seguida por seus colegas do Centro de Estudos de Movimentos Sociais em Paris, como Daniel Cefaï e Louis Quéré. Progressivamente, descobri que eu aspirava, em contraponto, a uma sociologia dos problemas íntimos.
  • 9
    Já que a intensidade de um problema tem por corolário uma atividade investigativa, postulamos ser possível acompanhar, em um só indivíduo, o processo de experimentação de questões problemáticas e tensões, e sua evolução no tempo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2019
  • Revisado
    15 Jul 2020
  • Aceito
    17 Set 2020
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