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O que há de sociológico no crime organizado? Uma revisão do conceito1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (150412/2019-3).

What is sociological in organized crime? A review of the concept

Resumo

A ideia de crime organizado nasceu num contexto normativo para designar um problema social. Todavia, o desenvolvimento da teorização a seu respeito poucas vezes esclareceu seu problema sociológico. O objetivo deste artigo é resgatar o que o crime organizado tem a dizer sobre ação, ordem e mudança sociais. Para isso, revisa estudos que inauguram uma perspectiva inovadora de descrição ou explicação do objeto. A conclusão é de que, caso seja tratado com clareza sociológica, o crime organizado tem muito a contribuir para a teorização sociológica, pois representa um caso-limite para essas três questões basais de toda e qualquer teoria social.

Palavras-chave
Violência; proteção; teoria social; ação social; mudança social; ordem social

Abstract

The idea of organized crime was born in a normative context to designate a social problem. But the development of the theory about him rarely made clear what his sociological problem was. The purpose of this article is to rescue what organized crime has to say about social action, order and change. For this, it reviews studies that inaugurated an innovative perspective of description or explanation about the object. The conclusion is that, if treated with sociological clarity, organized crime has much to contribute to sociological theorizing, as it represents a boundary case for these three basic questions of any social theory.

Keywords
Violence; protection; social theory; social action; social change; social order

Toda teoria sociológica trata inevitavelmente de três questões: ação social, ordem social e mudança social. Por detrás delas reside uma série de pressupostos: de que as pessoas não agem de maneira completamente aleatória e tampouco sozinhas e/ou orientadas por motivos egoístas; de que, por mais instável que seja o cotidiano, algumas expectativas tácitas sobre o comportamento dos outros sempre emergem - mesmo em situações de conflito generalizado; finalmente, de que os agrupamentos sociais não permanecem sempre os mesmos - contudo, não se transformam cada um à sua maneira, tampouco de modo completamente imprevisível.

Apesar de ser tema com prolífica produção sociológica, o crime organizado é objeto surgido de um conceito normativo, que foi criado em determinado contexto para caracterizar o que era então considerado um problema social. Na evolução do conhecimento, muitas vezes o aspecto de problema sociológico acabou perdido entre as mais diversas críticas e reformulações do objeto original. Nem sempre ficou claro o que o crime organizado tinha a dizer sobre estas três questões básicas da sociologia: a ação, a ordem e a mudança.

Diante de tal imprecisão, o objetivo deste artigo é recuperar o que há de especificamente sociológico por detrás desse objeto, tendo como foco essas três problemáticas basais da disciplina. Para isso, revisamos parte da bibliografia sobre o tema, desde o surgimento da ideia de crime organizado em 1950 até hoje. Selecionamos obras influentes e que inauguraram uma nova perspectiva de descrição e/ou explicação. Em seguida examinamos seis modelos sobre o crime organizado. Nas considerações finais, sintetizamos as contribuições de cada um e o que eles têm a dizer sobre ação, ordem e mudança sociais.

Os seis modelos de crime organizado

Quando se fala em crime organizado, a imagem que vem à mente é a de uma pirâmide rigidamente hierarquizada, com regras objetivas de conduta e critérios claros que distinguem quem está dentro de quem está fora. No topo, um indivíduo todo-poderoso, espécie de capo de tutti capi, comanda com mãos de ferro um núcleo restrito de leais subordinados. Cada um deles desempenha uma tarefa diferente, no cumprimento das quais empregam um exército de criminosos que seguem suas ordens sem pestanejar. Todos obedecem a algum tipo de lei do silêncio, que os proíbe de tratar dos assuntos internos com quem não pertence ao grupo. Quem a transgride é punido com a morte. Organização que age nas sombras, ela não só monopolizaria uma miríade de negócios escusos do chamado submundo do crime - desde a venda de drogas até a prostituição, passando por apostas ilegais e agiotagem - como também estenderia seus tentáculos para o mundo da superfície, império da legalidade, com o objetivo de disseminar o vício, abalar a moral e corromper sub-repticiamente os alicerces do estado democrático de direito. Não raro estariam por detrás dessa organização indivíduos marginalizados, como imigrantes, negros, pobres e/ou de outras religiões, que não se adaptaram ao país em que vivem.

A estereotipada visão apresentada no parágrafo anterior, reproduzida em filmes, séries de televisão, quadrinhos, notícias e outros meios da cultura de massa, é a principal representação que o chamado senso comum tem acerca do crime organizado. Com raízes em um grupo específico - a máfia italiana nos Estados Unidos, por vezes conhecida como La Cosa Nostra - os contornos dessa perspectiva começaram a ser desenhados na década de 1950, durante as audiências do United States Senate Special Committee to Investigate Crime in Interstate Commerce, também conhecido como Kefauver Committee por causa de seu presidente, o senador Estes Kefauver. Ali tomou forma, segundo Kleemans (2014)Kleemans, Edward R. (2014). Theoretical perspectives on organized crime. In: Paoli, Leticia. Oxford handbook of organized crime. Oxford: Oxford University Press, 32-52., a ideia de que o que se chama de crime organizado não seria parte da sociedade nem tampouco por ela moldada, mas um problema que os estrangeiros trouxeram consigo ao migrar para os EUA. É o que o autor chama de modelo da conspiração alienígena, que foi formulado não por cientistas sociais, mas por políticos e administradores públicos.

Na década seguinte, mais precisamente em 1969, surge uma primeira revisão desse modelo. Donald Cressey (2017)Cressey, Donald. (2017). Theft of the nation: the structure and operations of organized crime in America. London: Routledge. acrescenta-lhe o aspecto burocrático ao publicar seu livro que leva o sugestivo título Theft of nation, feito sob encomenda para a Federal Task Force on Organized Crime. Com base nas delações de ex-mafiosos - e com menos foco no aspecto étnico que o Kefauver Committee - nele o autor argumenta que o crime organizado é uma forma distinta de organização das atividades ilegais, pautada pela hierarquia rígida, códigos de conduta, rituais de iniciação e existência de sanções tanto internas quanto externas - algo como a dominação burocrática weberiana (Weber, 2004Weber, Max. (2004). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Brasília: Editora UnB.). Ao contrário do modelo da conspiração alienígena, porém, no de Cressey o crime não estaria apartado da sociedade. Muito pelo contrário, o que ele faz é suprir sua demanda por bens e serviços ilegais: jogos, prostituição, drogas, entre outras mercadorias de prazeres proibidos. Muito popular entre os círculos jurídicos e policiais, essa perspectiva acerca do crime organizado é comumente chamada de modelo hierárquico ou modelo burocrático. Apesar de revisar criticamente muitos aspectos do modelo da conspiração alienígena, o modelo burocrático acabaria combinado com ele, nos seus mais diversos matizes, no que podemos chamar de modelo tradicional do crime organizado, que por muito tempo influenciou o debate público acerca do tema. Com o decorrer dos anos, diversos estudos contestariam essa concepção, seja por seu excessivo formalismo, por sua centralização exacerbada ou simplesmente porque transforma marginalizados em bodes expiatórios dos problemas sociais.

O primeiro dos ataques ao modelo tradicional vem do economista Peter Reuter (1983)Reuter, Peter. (1983). Disorganized crime: the economics of the visible hand. Cambridge, MA: The MIT press.. Incomodado com seu formalismo e excessiva centralização, o autor põe sob escrutínio, em Disorganized crime: the economics of the visible hand (1983), a hipótese de que, no chamado submundo do crime, haveria o monopólio de um grupo específico cuja mão visível determinaria os rumos da economia ilegal. Muito longe disso, segundo o ator, atividades criminalizadas como os jogos ilegais, apostas e agiotagem, as quais ele esmiúça em seu livro, estão mais sujeitas às leis de oferta e procura do que aos caprichos de um poderoso chefão. Em suma, a vitória seria da mão invisível do mercado.

A inovação da abordagem de Reuter está em deslocar o objeto de análise das formas pelas quais grupos criminosos se organizam para os mercados onde transcorrem atividades econômicas criminalizadas. Seu trabalho é, em primeiro lugar, sobre mercados ilegais, e não sobre organizações criminosas. Modulada a perspectiva para esse ângulo, o autor parte para um paralelismo entre os mercados legais e ilegais. Em ambos os atores são indivíduos racionais orientados pelo lucro. Em ambos a lei da oferta e demanda regula os preços e operações comerciais. A diferença é que, por ser objeto de sanção penal, as atividades econômicas ilegais sofrem restrições que alteram o ambiente econômico. Todo empreendedor ilegal enfrenta um mesmo conjunto de obstáculos. Uma vez que os contratos não são regulados, eles não podem recorrer ao arbítrio da justiça quando há divergência sobre os termos da troca. As obrigações recíprocas acabam por se basear puramente na reputação que alguns conquistam ao longo do tempo enquanto a ameaça constante de ser presos os leva a ter de esconder ou disfarçar suas atividades - o que dificulta a publicização do negócio e a expansão da clientela. Ao mesmo tempo, temem ser delatados pelos pares, caso sejam encarcerados. A confiança, consequentemente, se torna um atributo escasso, o que dificulta a tomada de crédito, mesmo que ela ocorra por fora das instituições financeiras legais. Enfim, devido a todo esse conjunto de pressões, a maior parte das atividades ilegais seria desempenhada por indivíduos solitários ou grupos pequenos, a maioria de vida curta, sem uma clara hierarquia. Até mesmo o uso da violência na resolução de disputas seria algo extremamente desencorajado, pois a incerteza do resultado, o risco para a reputação e o potencial de afastar os clientes tornaria seu custo muito elevado. No mundo do crime, portanto, a regra que impera seria a do quanto menor melhor.

A única exceção à regra seria a máfia ou La Cosa Nostra. Reuter, contudo, não partilha da tese de que ela seja uma organização centralizada e controladora de todas as ilegalidades. Em Nova York, contexto da análise, ela se dividia em cinco famílias, que se respeitavam mutuamente. Teriam, sim, alguma hierarquia e critérios de pertencimento, mas dentro de cada uma delas o grau de autonomia entre os níveis seria extremamente variável. Em algumas os capos, espécie de capitães, teriam grande liberdade para agir, enquanto em outras estavam mais subordinadas ao don, o chefe da família, ao qual também pagavam tributos. Entre elas, no entanto, não haveria uma que fosse superior às demais. Não existia um don Corleone.

Estar vinculado à máfia oferecia uma série de benefícios para um criminoso. Alguém que não assinasse os seus serviços - expressão usada pelo próprio autor (Reuter, 1983Reuter, Peter. (1983). Disorganized crime: the economics of the visible hand. Cambridge, MA: The MIT press.) - não estaria proibido de participar de um mercado em que ela fosse influente. Contudo, correria maior risco de ser trapaceado por alguém que o fizesse. Disorganized crime fornece múltiplos exemplos, como donos de casas de apostas - bookmakers - que evitam ligações com mafiosos, mas acabam não cobrando as dívidas de alguns apostadores ao descobrir que eles possuem conexões com a máfia.

A principal atividade do grupo, contudo, não estaria no fornecimento dessa vantagem comparativa, mas sim na arbitragem de interesses. Por causa de sua reputação, longevidade e estabilidade, membros de famílias mafiosas geralmente eram chamados para mediar conflitos entre criminosos, principalmente entre aqueles cujos negócios seriam mais afetados por situações contenciosas. Diferentemente de outras atividades ilegais, dentro desse mercado do arbítrio ela teria o monopólio; contudo, um monopólio descentralizado e de baixíssima coordenação. Os casos em que um mafioso não conheceria as ligações de um criminoso com outro mafioso são abundantes. De acordo com o livro a razão para esse baixo nível de cooperação estaria, mais uma vez, na ilegalidade. Uma atuação sistemática entre as partes exigiria um alto nível de troca de informações que, caso acontecesse, tornaria seus membros mais expostos a ser presos. Exceção que confirma a regra, o monopólio com falta de coordenação da máfia apenas mostra que, no mundo do crime, imperariam as leis da mão invisível.

Aqui denominaremos o modelo exposto por Reuter modelo do microempreendedor ilegal. Como visto, seu maior mérito reside no deslocamento do objeto de análise. De uma entidade e sua organização - o crime organizado - para uma esfera de atividades e o modo como transcorrem no cotidiano - os mercados ilegais. A crítica que pode ser feita a ele é que, como quase todo trabalho de economia que parte de um pressuposto de ação racional, ele toma os indivíduos como unidades autônomas, que existem a priori à sociedade e apenas respondem, de maneira mais eficiente possível, às condições do ambiente em que vivem. Por corolário, o sucesso ou fracasso se torna mera consequência de um diferencial de competência que não reside no posicionamento de um ator vis-à-vis os demais, mas nas habilidades que lhes seriam inatas, inalienáveis e imutáveis.

Contemporâneo de Reuter, o historiador Alan Block (1980)Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge., em seu livro East Side, West Side: organizing crime in New York 1930-1950, é outro autor que propõe uma crítica ao modelo tradicional. A janela de análise que ele escolhe é interessante porque estaria entre dois períodos importantes do mito da Cosa Nostra americana. O primeiro seria o expurgo de 1930, em que vários chefes estabelecidos foram assassinados por seus concorrentes. O segundo, as audiências do Kefauver Comitee, que viriam a desembocar na representação de um grupo extremamente hierarquizado, formado por estrangeiros sociopatas que conspirariam para corromper as bases da América. Em Organizing crime, Block argumenta, na mesma linha de Cressey, que o que se entende como crime organizado não é algo apartado da sociedade nem tampouco o produto de uma conspiração alienígena que visa sabotar. Ao contrário - e numa linha mais marxista que o outro autor -, o crime organizado é fruto da formação histórica no qual ele se desenvolve. A configuração que assume resulta do contexto e de suas relações - não necessariamente de produção econômica. Dessa maneira, o objeto deve ser compreendido não como uma entidade, mas como um conglomerado de interações entre tipos de atores, que pode ser divido em duas dimensões. Uma delas é o sistema social do crime organizado: um meio que costura extorsionista/protetores, criminoso, políticos e líderes locais num mesmo circuito de relações econômicas, tanto legais quanto ilegais, bem como em laços de clientelismo e proteção (Block, 1980Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge.: 10). Se donos de casas de apostas conseguiam se estabelecer num cenário onde o jogo era proibido, eles o faziam, em primeiro lugar, porque a proibição não acabara com a demanda. Em segundo, mas não menos importante, porque conseguem o patrocínio dos líderes políticos dos distritos locais em Nova York, que em troca levam um percentual das operações. Ao mesmo tempo, como desempenham uma atividade ilegal, estão sujeitos a ser saqueados por ladrões e concorrentes sem ter como recorrer à polícia. Por isso, contratam - ou são obrigados a contratar - indivíduos que, seja pela disposição em usar a violência ou simplesmente por sua influência, oferecem a segurança necessária. Na prática, correspondem à figura do mafioso. Block (1980: 244) prefere chamá-los de empreendedores da violência, expressão que adota em distinção aos empreendedores ilegais, categoria que engloba todos os outros criminosos que apenas exploram uma atividade econômica ilegal, como a prostituição ou apostas, mas sem recorrer ao uso da força. Os da violência, por sua vez, estavam unidos aos políticos locais - que permitiam o desenvolvimento de atividades ilegais em seus respectivos territórios - por laços de reciprocidade e até parentesco. Frequentemente eram os violentos quem lhes garantia os votos necessários durante as eleições. Nessa teia de relações - em que o empreendedor ilegal atua com o beneplácito do político local e protegido pelo empreendedor da violência, o qual é ligado também ao político local -, os criminosos não são pontos anódinos ou exteriores, mas uma engrenagem necessária ao próprio funcionamento da máquina política, de forma que a legalidade e a ilegalidade estariam intimamente entrelaçadas.

Esse sistema social, segundo o autor, seria mais ou menos estável porque não se trata de estrutura de relações entre pessoas, mas entre posições. Se um ator é preso, outro logo ocupa o seu lugar e mantém a estabilidade da estrutura. Ou então a disposição entre as partes se reconfigura, de modo a se readaptar ao novo cenário. Mesmo assim Block admite que não há como negar que o que se entende como mundo do crime é algo caótico, cheio de conflitos, disputas e sob constantes mudanças. Para dar conta da contradição entre a estabilidade do sistema e a instabilidade do cotidiano é que Block (1980: 10) cunha o conceito de mundo social, que circunscreve a segunda dimensão analítica. Aqui o autor se ocupa somente com os criminosos. Deixa de lado, portanto, atores como os políticos locais, que pertenceriam ao mundo legítimo, da legalidade. O que os habitantes do mundo social do crime faziam, segundo o autor, era explorar as oportunidades estruturadas pelo sistema social. Basicamente, eles seriam agrupados em duas coletividades distintas: os consórcios empresariais ilegais (entreprise syndicates) e os consórcios de poder (power syndicates) (Block, 1980Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge.: 244). Enquanto os empresariais, formados pelos empreendedores ilegais, seriam estruturas mais rígidas e que seguiriam um conjunto de operações rotineiras mais ou menos especializado - estruturas essas cuja forma seria aquela da atividade econômica ilegal realizada - os de poder seriam organizações extremamente informais e maleáveis, sem uma autoridade suprema e tampouco com critérios de vinculação exclusivos. Seus procedimentos cotidianos não seriam outros senão os de extorquir e intimidar. Quanto mais pessoas fossem capazes de controlar ou influenciar por meio da força, maior seria sua eficácia. Por isso sua condição social de existência dependia da existência de outras ações, das quais predavam os dividendos econômicos. É essa disposição de usar a violência, combinada com grande flexibilidade organizacional, que fazia com que os empreendedores da violência conseguissem se engajar em uma multiplicidade de atividades ilegais, em adição às suas próprias redes de relações, tecendo e remendando constantemente os laços entre os mais diversos segmentos do crime organizado, entendido na sua dualidade sistema/mundo. Na sua transitoriedade, os empreendedores da violência estariam permanentemente organizando o crime (Block, 1980Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge.: 256).

Em suma, para Block o crime organizado não é uma entidade, mas ao mesmo tempo uma estrutura e um processo. Sua tese, que aqui será denominada modelo organizando o crime, é seguida posteriormente por outros pesquisadores, como Jeffrey McLllwain (2004)McIllwain, Jeffrey Scott. (2004). Organizing crime in Chinatown race and racketeering in New York City, 1890-1910. Jefferson, MO: McFarland & Company, Inc. Publishers., que o aplica à Chinatown nova-yorkina da virada do século XIX para o XX, mas com uma combinação da epistemologia da análise de redes sociais, método sobre o qual falaremos adiante. O mérito do argumento original e suas variantes reside na abordagem mais sociológica, que foca explicitamente na interdependência dos indivíduos e os considera um produto do meio. Também se destaca por não se restringir somente a atores que habitam um imaginário submundo do crime, mostrando também as pontes que os unem àqueles que habitam a chamada superfície. A divisão analítica em duas dimensões, por sua vez, dá conta, de maneira criativa, da contradição entre estabilidade e mudança, que impregna as impressões causadas pelo objeto. E assim como Reuter, Block destaca o papel que os mafiosos, por causa da capacidade de coerção, exercem na estruturação das atividades criminosas. O autor, contudo, exagera nos contrastes. Primeiro, ao adotar um olhar muito individualista sobre os consórcios de poder. Para ele, o empreendedor violento mais eficiente seria aquele o menos comprometido possível com estruturas particulares - característica que o distinguiria dos empreendedores ilegais dos consórcios empresariais (Block, 1980Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge.: 252). Segundo, a mesma divisão entre sistema social e mundo social, inovadora por um lado, dá a sensação de que um dos lados é fonte constante de conflitos e disputas, enquanto o outro vive em harmonia perene e consensual. Não considera, como o faz Reuter, que a relação com os empreendedores da violência não seja algo necessariamente imposto aos empreendedores ilegais, mas algo demandado por eles para solucionar seus próprios conflitos, sem que sofram ameaças ou constrangimentos. Terceiro e último, não parece admitir que o sistema-mundo do crime organizado mude por sua própria dinâmica, sem ser influenciado pelas circunstâncias da formação histórica na qual se insere.

Na mesma linha econômica de Reuter, mas com uma abordagem mais sociológica, Diego Gambetta (1996)Gambetta, Diego. (1996). The Sicilian Mafia: the business of private protection. Cambridge, MA: Harvard University Press. vai analisar justamente a entidade que originou a representação de crime organizado ao ser exposta nas audiências pública do Kefauver Committee - La Cosa Nostra. A diferença do sociólogo italiano é que ele aborda a máfia em seu lugar de origem: a Sicília, no sul da Itália. Em The Sicilian Mafia: the business of private protection, Gambetta inaugura um profícuo filão na teoria sobre o crime organizado, que aqui chamaremos de modelo da proteção. Em linhas gerais, os partidários dessa linha de pesquisa analisam manifestações históricas de controle mafioso - não necessariamente da Cosa Nostra - sobre territórios e/ou setores da economia, tanto nos mercados legais quanto ilegais, mas numa conjuntura de Estados fracos, incapazes de reivindicar com eficácia o monopólio da violência e da taxação. Isso tudo acumulado num ambiente de desconfiança nas relações de troca.

Com base nessas condições, os grupos mafiosos surgem para suprir a demanda por uma mercadoria escassa: segurança. O que produzem e vendem é proteção privada. Gambetta (1996)Gambetta, Diego. (1996). The Sicilian Mafia: the business of private protection. Cambridge, MA: Harvard University Press., por exemplo, encara a manifestação italiana na máfia como uma indústria da proteção, pulverizada em múltiplas “firmas” individuais aglomeradas por uma marca, e que intermitentemente se unem num cartel. Não possuem um código moral imutável, tampouco universal, e frequentemente seus membros o distorcem para justificar as próprias ações. Por fim, o preço da mercadoria não é fixo nem estabelecido de comum acordo entre os donos das “firmas”. Ao contrário, é negociado caso a caso, conforme se desenrole a interação entre cliente e vendedor.

Um dos pontos fortes do modelo da proteção é explicar o crime organizado pela demanda de segurança. Segundo ele, é a perenidade da requisição por esse serviço que leva à formação, longevidade e durabilidade das organizações mafiosas. Em outras palavras, e ecoando Block (1980)Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge., a proteção organiza crime - e até a economia legal. Uma vez estabelecidas as firmas de proteção, elas geram as condições para a sua própria reprodução: onde todos são protegidos por alguém, um neófito sem cobertura corre o risco de ser trapaceado, ameaçado ou até morto.

O grande problema é a natureza dessa proteção, pois nesse modelo existe um grande debate acerca da essência do serviço: se os seus vendedores o impõem à força aos compradores ou se os segundos o solicitam, de livre e espontânea vontade e sem sofrer qualquer espécie de constrangimento. Afinal, a proteção é uma relação simétrica ou assimétrica? No lado dos defensores da primeira tese, temos o próprio Gambetta, além de Frederico Varese (2001)Varese, Federico. (2001). The Russian mafia: private protection in a new market economy. Oxford: Oxford University Press. e Peter Hill (2003)Hill, Peter BE. (2003). The Japanese mafia: Yakuza, law, and the state. Oxford: Oxford University Press on Demand.. Os dois últimos expandem a abordagem do sociólogo italiano para outros grupos mafiosos mundo afora - Varese trata da máfia russa, enquanto Hill descreve o funcionamento da Yakuza, a máfia japonesa. Tais autores partilham uma linha de pensamento que tende a dar uma interpretação benigna acerca da venda de segurança, pois - apesar das críticas que fazem aos seus objetos de estudo - geralmente reforçam o argumento de que são os próprios clientes que requisitam o serviço aos mafiosos. E no transcorrer da interação, a parceria acaba sendo vantajosa para ambas as partes. Do outro lado, temos pesquisadores como o italiano Raimondo Catanzaro, a também italiana Letizia Paoli e o russo Vadim Volkov, que tendem mais a enxergar a extorsão. Catanzaro (Catanzaro, 1994Catanzaro, Raimondo. (1994). Violent social regulation: organized crime in the Italian south. Social & Legal Studies, 3/2, p. 267-279.; Catanzaro & Rosenthal, 1992Catanzaro, Raimondo & Rosenthal, Raymond. (1992). Men of respect: a social history of the Sicilian Mafia. New York: Free Press.) parte da distinção de Alan Block (1980)Block, Alan A. (1980). East side, west side: organizing crime in New York, 1930-1950. London: Routledge. entre consórcios empresariais e consórcios de poder para afirmar que os mafiosos italianos são empreendedores da proteção violenta, pois criam a demanda pelo próprio serviço que oferecem. Em outras palavras, eles mantêm um nível de ameaça sempre constante em determinado mercado, seja ele ilegal ou não, de modo que os agentes econômicos se vejam obrigados a lhes pagar as taxas devidas a título de segurança. Paoli (2008)Paoli, Letizia. (2008). Mafia brotherhoods: organized crime, Italian style. Oxford: Oxford University Press., por sua vez, encara o fenômeno mais em termos políticos que econômicos. Para ela, os grupos mafiosos são organizações políticas multifuncionais, fundadas em um status pré-moderno e solidificadas em laços de fraternidade. Estão sempre prontas para usar da violência e impor seu domínio, mesmo quando não são requisitadas. Já Volkov (2016)Volkov, Vadim. (2016). Violent entrepreneurs: the use of force in the making of Russian capitalism. Ithaca: Cornell University Press. apresenta uma abordagem mais processual. Com base no novo crime organizado da Rússia pós-soviética, sua tese é de que, nos primeiros anos do capitalismo russo, o que havia era uma relação assimétrica entre um empreendedor violento e um comerciante, legal ou ilegal, que se via forçado a pagar taxas de proteção. Essa primeira etapa é denominada empreendedorismo violento: a capacidade de converter o uso da força em renda econômica. Com o tempo, o que começou como extorsão se transformou numa relação mais simétrica. O empreendedor violento viu que não podia extrair demais de seus comerciantes a ponto de os levar à falência. Não só isso, o extorsionista percebe que pode aumentar seu potencial de extração caso ajude os seus protegidos a expandir seus negócios. Destarte, passa a dirimir a concorrência de outros comerciantes e a lhe prospectar oportunidades de crescimento, de modo que os dois lados se beneficiam do acordo - tanto o agente político quanto o econômico. Volkov chama essa segunda etapa de parceria forçada (enforcement partnership).

Entre a proteção requisitada e a proteção imposta, o debate não chega a uma resolução. No final, tudo parece depender do contexto: as características do grupo mafioso, da atividade econômica sobre predação e idiossincrasias de cada situação. A sociologia brasileira oferece uma solução eficaz para o dilema no conceito de mercadorias políticas (Misse, 2011Misse, Michel. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, 19/40, p. 13-25.). Criado em paralelo ao desenvolvimento da polêmica aqui exposta, com inspirações na noção de capitalismo aventureiro de Weber (2004)Weber, Max. (2004). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Brasília: Editora UnB. e na apropriação primitiva de Marx (2016)Marx, Karl. (2016). O capital. Livro 1, v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Editora José Olympio., o conceito pode ser sumariamente definido como a apropriação de um valor-de-uso político e sua conversão num valor-de-troca econômico (Misse, 2011Misse, Michel. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, 19/40, p. 13-25.). A descrição é similar ao empreendedorismo violento de Volkov (2016)Volkov, Vadim. (2016). Violent entrepreneurs: the use of force in the making of Russian capitalism. Ithaca: Cornell University Press., mas o diferencial das mercadorias políticas é que elas variam numa escala de uso da força, de forma que há mercadorias políticas cuja troca constitui uma interação quase que simétrica, como no clientelismo, até aquela em que a violência é mais exacerbada, tal como na extorsão mediante sequestro ou ameaça de morte. À semelhança dos demais autores, porém, o que distingue o “crime organizado” do “crime comum” em Misse (2011)Misse, Michel. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, 19/40, p. 13-25. é o acesso às mercadorias políticas. Em outras palavras, em seu entendimento, a proteção também organiza o crime.

Uma quinta linha teórica acerca das características organizacionais das atividades criminosas opta por se posicionar a meio caminho entre o formalismo rígido e hierárquico do modelo tradicional e o anarquismo individualista do modelo do microempreendedor ilegal. Em vez de se construir em oposição crítica às representações do senso comum acerca da máfia, prefere adotar uma estratégia de baixo para cima, focada no estudo empírico de casos concretos, sem estabelecer deduções a priori. Não tenta fornecer a explicação última acerca do que é ou não o “crime organizado”. Em última instância, seu objetivo é repertoriar as diferentes formas pelas quais atividades criminalizadas se organizam, seu modo de funcionamento e como os atores cooperam para as desempenhar. Por utilizar todos um mesmo método - a análise de redes sociais (ARS) -, nomearemos esse filão modelo das redes criminais. Dentro dele três veios de pesquisa se destacam.

O primeiro bebe na fonte do seminal trabalho de Granovetter (1985)Granovetter, Mark. (1985). Economic action and social structure: the problem of embeddedness. American Journal of Sociology, 91/3, p. 481-510. acerca de como as relações econômicas estão embutidas em relações sociais, o chamado social embeddedness, que aqui traduziremos por acoplagem social. Analogamente, portanto, parte da mesma premissa que o modelo burocrático e o organizando o crime, segundo a qual o “crime organizado” não opera num vácuo social, mas interage com o seu ambiente. O problema é que o caráter ilegal gera uma desconfiança endêmica que, por sua vez, dificulta a cooperação, tal como exposto por Reuter (1983)Reuter, Peter. (1983). Disorganized crime: the economics of the visible hand. Cambridge, MA: The MIT press. no seu modelo do microempreendedorismo ilegal. Apesar dos obstáculos, mesmo assim ela ocorre; caso contrário não existiriam grupos criminosos.

Como essas parcerias se formam e superam o ceticismo é a questão dos partidários da acoplagem social. Basicamente, a tese que defendem é de que as relações sociais não são aleatórias. Quanto mais próximas as pessoas vivem e quanto mais afinidades possuem entre si, menor é a distância social entre elas. E quanto mais imbricadas são as trajetórias de dois ou mais indivíduos socialmente próximos um do outro, mais provável é a constituição de vínculos fortes entre eles. Por meio desses vínculos eles entram em contato com as atividades criminais e aprendem os ossos do ofício. Com a experiência adquirida, ficam menos dependentes de recursos de outros atores, de modo que se veem aptos a começar seu próprio empreendimento criminoso, para o qual atraem indivíduos do próprio contexto social no qual se inserem, que por sua vez repetem a história, num efeito bola de neve, acumulativo em si mesmo (Van de Bunt, Siegel & Zaitch, 2014Van de Bunt, Henk; Siegel, Dina & Zaitch, Damián. (2014). The social embeddedness of organized crime. In: Paoli, Leitica. The Oxford Handbook of Organized Crime. Oxford: Oxford University Press, p; 321-342.).

A segunda linha visa descrever quais são as formas do crime organizado. Seus seguidores não parecem ter o objetivo de formular uma teoria geral acerca de estrutura do fenômeno, mas sim repertoriar um catálogo de suas possíveis manifestações. No geral, os resultados encontrados contradizem o pressuposto de que o que se entende por crime organizado seja centralizado e hierarquizado. Carlo Morselli (2009a)Morselli, Carlo. (2009). Hells Angels in springtime. Trends in Organized Crime, 12/2, p. 145-158., por exemplo, analisa justamente uma organização formalmente estratificada - a gangue de motociclistas Hell’s Angels, no Quebec - e descobre que, no que tange ao tráfico de armas e drogas com o qual alguns de seus membros estavam envolvidos, as operações não seguiam a hierarquia constituída. Ao contrário, eram muito mais nuançadas e complexas, muitas vezes ocorrendo por fora da estrutura formal. Já Natarajan (2006)Natarajan, Mangai. (2006). Understanding the structure of a large heroin distribution network: a quantitative analysis of qualitative data. Journal of Quantitative Criminology, 12/2, p. 171-192., ao examinar uma rede de 294 traficantes de heroína em Nova York, conclui que eles não integravam uma organização unitária, de fronteiras claras. Antes, pareciam conectar-se uns aos outros em vínculos fracos, com pouca ou nenhuma hierarquia, mas com estratificações de centralidade e aglomeração local - características que seriam indicativas de uma organização em forma de rede. Michael Kenney (2007)Kenney, Michael. (2007). The architecture of drug trafficking: network forms of organization in the Colombian cocaine trade. Global crime, 7/3, p. 233-259. chega a conclusões similares ao investigar o tráfico internacional de cocaína a partir da Colômbia. Segundo ele, esse comércio ilegal não se estruturaria em um conjunto de cartéis fixadores de preço, mas sim num sistema social fluído em que redes sociais se reconfiguram de acordo com as oportunidades de mercado e momentos de repressão.

Mesmo que poucas, não deixa de haver evidências contrárias à organização horizontal e a favor da hierarquia. A mesma Natarajan (2000)Natarajan, Mangai. (2000). Understanding the structure of a drug trafficking organization: a conversational analysis. Crime Prevention Studies, 11, p. 273-298., em trabalho anterior, concluiu que um grupo de traficantes de cocaína apresentava uma organização corporativa, com clara divisão do trabalho e hierarquia reconhecida entre os pares. David Canter (2004)Canter, David. (2004). A partial order scalogram analysis of criminal network structures. Behaviormetrika, 21/2, p. 131-152., por sua vez, dissecou 29 grupos criminais na Inglaterra com o objetivo de explorar as variações estruturais que existiam entre o extremo da forte hierarquia com elevada diferenciação e especialização de tarefas, de um lado, e as coletividades frouxas sem organização discernível, do outro. Após usar as técnicas da análise de redes sociais para produzir os perfis desses grupos, ele concluiu que a maior ou menor especialização seria função de três fatores: tamanho, liderança e tipo de atividade. Conforme o número de membros aumenta, começa a haver diferenciação entre eles. Acima de dez ela já se acentua consideravelmente. Se há um líder que se destaca dos demais, a presença de hierarquia e subordinação é mais marcada. Atividades mais complexas como o tráfico de drogas, por exemplo, que envolve obter, distribuir, vender e lucrar com o comércio, levam a maior divisão de tarefas, especialização e coordenação entre as partes do que em gangues de hooligans que se encontram para digladiar entre si. Já Fernanda de Almeida Gallo (2014)Gallo, Fernanda de Almeida. (2014). As formas do crime organizado. Tese de Doutorado. IFCH/Universidade Estadual de Campinas., na sociologia brasileira, analisa dados da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o tráfico de drogas em 2000 para mostrar que, em sua configuração mais recente, essa atividade ilegal mesclava aspectos de hierarquia com características reticulares, num modelo híbrido, influenciado pelas tecnologias de informação e controle.

A terceira corrente no modelo de redes criminais é de um enfoque mais aplicado, em que o que se entende como crime organizado é apenas um caso das chamadas redes escuras, que congregam, entre outros, o terrorismo (Yang, Zhang & Keller, 2017Yang, Song; Zhang, Lu & Keller, Franziska B. (2017). Social network analysis: methods and examples. Los Angeles: Sage.). No geral, os estudos dessa área testam e elaboram diferentes métodos pelos quais se pode romper uma rede da maneira o mais eficaz possível. Muitos deles se baseiam em medidas de centralidade, entre as principais a centralidade de grau, que leva em conta o número de ligações de determinado ator, e a de intermediação, que mede o quanto alguém está no meio do menor caminho entre duas outras pessoas. Borgatti (2006)Borgatti, Stephen P. (2006). Identifying sets of key players in a social network. Computational & Mathematical Organization Theory, 12/1, p. 21-34., por exemplo, elabora a estratégia dos atores-chave, que considera a redundância entre as métricas, bem como o objetivo - se romper a coordenação ou dificultar a circulação - na hora de selecionar os alvos. Contudo, como seu custo computacional aumenta exponencialmente conforme o tamanho da rede, sua aplicação se torna ineficaz em redes grandes. Para essas, métodos como o ataque por modularidades (Cunha, 2017Cunha, Bruno Requião de. (2017). Estudo sobre a topologia das redes criminais. Tese de Doutorado. PPGF/Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), que separa a rede em módulos e retira as pontes entre eles, são mais eficazes porque seus algoritmos se comportam num regime de complexidade que não cresce tanto conforme o tamanho da rede. Conseguem, portanto, selecionar rapidamente um conjunto de alvos, mesmo em redes com milhares de atores, sem perder na qualidade da fragmentação.

O problema é que tais estratégias de ataque, no fim, mostram-se inúteis porque não levam em conta a capacidade de regeneração. Brinton Milward e Jorg Raab (2006)Milward, H. Brinton & Raab, Jörg. (2006). Dark networks as organizational problems: elements of a theory. International Public Management Journal, 19/3, p. 333-360., em uma revisão bibliográfica sobre o comportamento de redes escuras após tentativas de rompê-las, argumentam que elas são resilientes porque conseguem equilibrar diferenciação e integração conforme o ambiente de repressão em que se encontram. Já Easton e Karainov (2009)Easton, Stephen T. & Karaivanov, Alexander K. (2009). Understanding optimal criminal networks. Global crime, 10/1-2, p. 41-65. usam a análise de redes sociais combinada com a teoria dos jogos para testar, via simulação, como redes criminais ótimas - que maximizam custo/benefício - emergem das escolhas de agentes situados num contexto cujo grau de repressão é variável. Entre seus resultados, mostram que estratégias de disrupção que assumem tamanho e estrutura fixos não são eficazes em diminuir o nível de crime porque em resposta os agentes reconfiguram suas respectivas redes. Duijn, Kashirin e Sloot (2014)Duijn, Paul A.C.; Kashirin, Victor & Sloot, Peter M.A. (2014). The relative ineffectiveness of criminal network disruption. Scientific reports, 4, p. 1-15., por fim, aplicam diferentes estratégias de ataque a uma rede empírica de plantadores de Cannabis na Holanda. Dessa vez, levando em conta mecanismos de regeneração baseados na complementariedade de papéis: se um ator que desempenha uma determinada função é removido, seus pares procurarão outro com iguais competências para o substituir. Supreendentemente, seus resultados mostram que uma rede criminal, ao contrário do que se acredita, pode até ficar mais forte e mais densa conforme mais ataques ela sofra. Argumentam, portanto, que qualquer estratégia de combate a redes criminais é ineficaz se não for um esforço de longo prazo. Num primeiro momento, as prisões de atores-chave tornam a rede mais forte e coesa. Isso, contudo, aumenta seu nível de atividade e, consequentemente, ela fica mais exposta a ataques subsequentes.

No geral, há críticas que se aplicam às três vertentes do modelo de redes criminais. Em primeiro lugar, a ARS possui muitas teorias, algumas contraditórias entre si, cujos pressupostos não são explicitados nas análises. Em segundo, tendem a examinar imagens estáticas da rede, nas quais um recorte temporal é fundido num único momento. Os trabalhos que adotam uma perspectiva dinâmica geralmente partem de deduções e/ou simulações, seja sobre modelos matemáticos ou empíricos. Em terceiro, não há muita clareza sobre o que, afinal, é uma rede - se apenas um método ou uma forma sui generis de organização. Marcus Felson (2009)Felson, Marcus. (2009). The natural history of extended co-offending. Trends in Organized Crime, 12/2, p. 159-165. e Tom Naylor (2014)Naylor, Robin Thomas. (2014). Satanic purses: money, myth, and misinformation in the war on terror. Montréal: McGill-Queen’s Press. criticam a abordagem das redes sociais porque uma rede, enquanto objeto, inclui em última instância todos ou quase todos os habitantes do planeta. Se usada, por outro lado, como construto de uma topologia específica, é de pouco poder explicativo por causa de sua generalidade. Tanto uma hierarquia extremamente rígida quanto um aglomerado completamente horizontal podem ser representados sob a forma de uma rede. Carlo Morselli (2009b)Morselli, Carlo. (2009). Inside criminal networks. New York: Springer Science., todavia, argumenta que essa mesma maleabilidade, vista como fraqueza por uns, é o que constitui a força da abordagem. Por ter a capacidade de ser qualquer coisa, a rede não é determinada por coisa alguma. Ela pode - mas não obrigatoriamente - ser baseada em classe, localização geográfica, condição econômica ou qualquer outro critério. Se tomada em sua definição mínima de um conjunto de atores e as relações que o unem, portanto, é uma estratégia profícua para abarcar diferentes tipos de estrutura e torná-los comensuráveis. Eduardo Marques (2007)Marques, Eduardo. (2007). Os mecanismos relacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais 22/64, p. 157-61. ressalta esse poder adaptativo, ao mostrar que análise de redes não adota pressupostos fortes quanto à natureza da ação, ordem e mudança, questões basais da teoria sociológica. Metodologicamente, é apenas incompatível com uma abordagem que parte de um individualismo ontológico, em que tudo se reduz ao indivíduo.

Insatisfeito com a generalidade da abordagem da análise de redes, Marcus Felson (2003Felson, Marcus. (2003). The process of co-offending. In: Smith, Martha J. & Cornish, Derek B. Crime prevention studies, 16, p. 149-168., 2009) desenvolve a teoria do extended co-offending, modelo evolutivo que visa dar conta do modo como parcerias passageiras entre criminosos crescem, se especializam e se solidificam numa estrutura mafiosa. Traduzido livremente como co-ofensa estendida ou cooperação criminosa estendida, o conceito tenta captar e descrever a ação coletiva em atividades criminosas, seja ela passageira ou permanente, feita em grupos pequenos ou grandes, em hierarquias ou horizontalmente. Assim como a rede enquanto método, a co-ofensa estendida ultrapassa a concepção tradicional de crime organizado. Organizações criminosa passam a ser casos particulares de co-ofensa. O modelo, portanto, recorta o fenômeno nas suas manifestações raras em que alguns indivíduos desenvolvem uma cooperação continuada que, com o passar do tempo, aumenta e engloba outros atores. Segundo Felson (2009)Felson, Marcus. (2009). The natural history of extended co-offending. Trends in Organized Crime, 12/2, p. 159-165., esse processo tem uma espécie de história natural, fundada em uma transição de modos de dominação weberiana (Weber 2004Weber, Max. (2004). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Brasília: Editora UnB.). O estágio inicial é composto por aglomerados primordiais de criminosos em que a cooperação é rudimentar, passageira e instável. Eventualmente alguém emerge da massa e consegue exercer autoridade sobre os demais. Fundada inicialmente nas peculiaridades pessoais do líder - o carisma, diria Weber - essa dominação consegue instaurar alguma dominância sobre a ação dos subordinados, estimulando a cooperação. Ocasionalmente essa dominação carismática se desenvolve numa dominação patrimonial de média escala, conforme o líder seja hábil o suficiente em manter sua posição, ao mesmo tempo em que expande os seus negócios. Com o aumento e diversificação das atividades, o nível necessário de cooperação e especialização aumenta. O crime se torna mais organizado. Mais que isso, a mudança no modo de dominação transfere o fundamento da autoridade das características inalienáveis do líder para os recursos/capitais de que ele dispõe, sejam eles políticos, expressos no uso da força, econômicos, entendidos como riquezas materiais, ou sociais, traduzidos nas pessoas influentes que ele conhece e é capaz de mobilizar. Nessa transição do carisma para o patrimônio, o empreendimento criminal torna-se capaz de persistir mesmo com a morte ou prisão do chefe. Basta que alguém tome posse dos seus recursos, mantenha a legitimidade e os empregue com os mesmos fins.

Felson menciona ainda um quarto estágio, a dominação patrimonial estendida, mas nela não há mudança qualitativa, apenas quantitativa. O modelo do autor, contudo, é muito dedutivo e distante do caso empírico, de forma que corre o risco de obscurecer a vista para os aspectos que contradizem ou não se encaixam bem no que é previsto, ao mesmo tempo que seleciona e ressalta aqueles que se comportam como o esperado. Cláudio Beato e Felipe Zilli (2012)Beato, Cláudio & Luís Felipe Zilli. (2012). A estruturação de atividades criminosas. Um estudo de caso. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27/80, p. 71-88. propõem outro modelo, mais calcado em casos reais. Seu pano de fundo é o debate brasileiro no campo da segurança pública entre os reformistas e repressores sobre o que fazer no combate ao crime organizado: se o melhor é direcionar os esforços para diminuição das desigualdades sociais, e assim os níveis de violência diminuiriam, ou se não há outro jeito senão forte e contínua repressão aos desvios e associações criminosas. Para resolver o dilema, não vão analisar os méritos e defeitos de um ou outro argumento. Optam, ao contrário, por aprofundar a compreensão do fenômeno sobre o qual ambos os lados se debruçam. Nisso eles produzem uma explicação acerca da estruturação das atividades criminosas com base num estudo comparativo entre as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, do qual visam retirar mais as regularidades e semelhanças do que as diferenças. A justificativa é de que saber diagnosticar os estágios desse processo é essencial para o estabelecimento de políticas públicas eficazes de combate ao crime, que não optem pelos extremos do reformismo e da repressão. Da mesma maneira que ações ostensivas de repressão são insuficientes, aquelas apenas de cunho social também são ineficazes em áreas onde predominam o conflito armado e a dominação territorial por grupos criminosos, pois correm o risco de ser cooptadas pelo crime.

Inspirados da teoria da desorganização social (Sampson & Groves, 1989Sampson, Robert J. & Groves, W. Byron. (1989). Community structure and crime: testing social-disorganization theory. American Journal of Sociology, 94/4, p. 774-802.) complexa e não linear de Morin (2007)Morin, Edgar (2007). Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina. e no conceito de evolução, Beato e Zilli defendem a ideia de que as atividades criminosas se estruturam no caldo da concentração de desvantagens nos guetos e periferias das duas cidades, acumuladas ao longo do tempo, o que redunda em baixa eficácia coletiva. Os moradores se veem incapazes de estabelecer uma mobilização social que exerça controles sociais efetivos sobre a localidade e que sirva de instância legítima para a resolução de conflitos. Somados ao acesso precário à Justiça, esses traços fazem com que pequenas desavenças partam para uma solução violenta, que acaba por redundar em vendetas intermináveis. Esse é o cenário do primeiro estágio do processo de estruturação, em que as atividades criminosas são pautadas por lógica mais societária do que econômica, sem o controle de alguma autoridade ou cooperação mais sistemática. Muitas vezes, os conflitos se instauram por motivos banais. Essa grande competição gera uma seleção desses grupos, cujos vitoriosos conseguem estabelecer o domínio territorial. Esse é o segundo estágio. No terceiro e último, os vencedores da etapa anterior alcançam o efetivo monopólio dos mercados ilícitos nos quais atuam. Dividem suas áreas de atuação de modo a evitar conflitos que possam gerar exposição pública e ser prejudiciais para as atividades; passam a usar arma de fogo de modo mais restrito, também para não chamar uma atenção indesejada, e trocam a lógica societária por uma mais empresarial e mercadológica, segundo a qual os negócios vêm em primeiro lugar.

De todos os estágios a etapa crucial está no segundo, o da competição entre grupos criminais. Nele os autores destacam três fatores importantes: o aumento do uso das armas de fogo, a corrupção policial e a organização da massa carcerária. A nosso ver, todos, na verdade, são manifestações diversas de um mesmo fenômeno: busca por proteção. Revólveres, metralhadoras e granadas garantem que um grupo com maior potencial bélico consiga se afirmar sobre os demais e estabelecer sua reivindicação de domínio local, ao mesmo tempo que protege os empreendimentos da ação de saqueadores. A corrupção policial é a mesma compra de proteção/extorsão analisadas pelos autores dos modelos da proteção e organizando o crime. Nos casos analisados por Beato e Zilli, ela garante condições para a manutenção e expansão das atividades criminosas, uma vez que evita a repressão por agentes do Estado. Já o papel de organização da massa carcerária é um pouco mais complexo. No Brasil, muitas das diversas facções criminosas hoje existentes começaram no interior das prisões, com a finalidade de mitigar as péssimas condições do sistema carcerário brasileiro, para reivindicar seus direitos e garantir a integridade de seus membros frente às violências de terceiros, fossem esses outros presos ou elementos da própria administração penitenciária. Na consecução de tais objetivos instituíram mecanismos como a caixinha: um fundo econômico coletivo para o qual cada afiliado deve obrigatoriamente contribuir. Aqueles que não possuem recursos, quando saem da prisão se veem obrigados a prestar serviços ou praticar crimes a mando do grupo. Mesmo que muitas das facções tenham expandido suas atividades para o tráfico de drogas e roubo de carga, a atividade primordial de organizações como o Comando Vermelho (CV) ou o Primeiro Comando da Capital (PCC) foi e continua a ser a venda de proteção nas entranhas do sistema carcerário. É esse diálogo intermuros que estimula a organização das atividades criminosas fora dos limites da penitenciária de modo a gerar mais recursos para que a venda de proteção interna aos encarcerados continue a se desenvolver.

Em suma, Felson (2009)Felson, Marcus. (2009). The natural history of extended co-offending. Trends in Organized Crime, 12/2, p. 159-165. apresenta uma teoria geral da estruturação das atividades criminosas a partir de um conceito que suplanta a noção de crime organizado, destacando a importância da posse de recursos diversos para o desenrolar do processo. Já Beato e Zilli (2012), adotando uma abordagem mais empírica, destacam o papel que o conflito e a proteção, também em diferentes formatos, desempenharam na organização do crime em grandes cidades brasileiras. Em que pese as suas diferenças, ambas as perspectivas adotam uma abordagem processual, que visa dar conta de como a ação coletiva criminosa passa de um cenário primordial quase hobbesiano, de todos contra todos, rumo a uma cooperação cada vez maior e planejada. Por essa razão, agruparemos as duas num mesmo modelo, o qual chamaremos de modelo evolutivo do crime organizado. Uma crítica que pode ser feita a ambas é que, mesmo que defendam um processo não linear, o quadro de etapas que se seguem umas às outras não deixa de sugerir uma sucessão necessária entre as fases. Determinada manifestação pode até oscilar entre as fases A e B, mas depois virá, de uma maneira ou de outra, a fase C. Não abrem espaço, portanto, para a variação processual quanto às histórias e etapas da organização, que pode se dar de diferentes maneiras conforme o contexto.

Conclusão

Modelo tradicional, modelo do microempreendedorismo ilegal, modelo organizando o crime, modelo da proteção, redes criminais e modelos evolutivos. Nessa breve retrospectiva dos estudos sobre crime organizado recenseamos seis maneiras diferentes de explicar e/ou descrever o fenômeno. A história que eles nos mostram é que o objeto crime organizado ganhou esse nome a partir de uma manifestação muito particular, a máfia italiana nos EUA, e num contexto em que se estava mais preocupado em responder aos anseios normativos e políticos de seus formuladores. As teses subsequentes se constroem numa perspectiva crítica a ele, ora desconstruindo-o completamente, como o faz o microempreendedorismo ilegal, ora tentando lhe dar uma representação mais objetiva, em que os níveis de organização são matizados, como o fazem os demais. Em quase todos aparece um mesmo fator como essencial na produção do crime organizado: a proteção, seja ela sob a forma de extorsão assimétrica ou compra e venda de segurança simétrica. Alguns se preocupam com grupos, em especial o modelo da proteção. Outros consideram que o melhor é mudar o foco. De entidades, passam para atividades criminalizadas. É o que fazem o modelo organizando o crime e o microempreendedorismo ilegal. Há ainda aqueles que obliteram de vez a ideia de crime organizado em prol de uma nova definição do objeto, mais ampla, que vise englobar a miríade de formas possíveis pelas quais criminosos podem cooperar na consecução de atividades ilegais. Os modelos das redes criminais e os modelos evolutivos, em particular a variante da co-ofensa estendida, adotam essa postura. Por fim, temos aqueles que abandonam a abordagem sincrônica ou ao menos introduzem um pouco de dinâmica na análise. O modelo organizando o crime a implementa na tensão entre a permanência do sistema e a mudança do mundo social, enquanto o de redes criminais postula e testa a resiliência estrutural ilegal frente às mais diversas estratégias de ataque externo. Os evolutivos contêm a transformação já no nome. Segundo eles, o crime começa pequeno e fragmentado. Só com o passar do tempo e depois de muitas mortes, mesmo assim em raras ocasiões, é que consegue se estruturar em organizações criminosas estáveis.

No que concerne à questão da ação, os modelos aqui recenseados mostram que o crime organizado é, na verdade, um problema de ação coletiva. Um problema, contudo, de tipo específico, que emerge num contexto de desconfiança endêmica entre seus membros, que estão sob o constante risco de ser presos, visto que o Estado os joga para o campo da ilegalidade ao criminalizar a atividade que praticam. Como esses atores cooperam nesse ambiente de constante insegurança, com vistas a atingir seus objetivos ou simplesmente manter a estabilidade do cotidiano contra ingerências externas: esse é o cerne da questão.

Como, porém, essa ação coletiva, uma vez estabelecida, consegue se manter, se regular e se reproduzir, para além de seus objetivos ou condições iniciais, é algo que nos leva para a segunda problemática: a ordem social. Aqui os modelos tendem a focalizar mais a proteção enquanto principal mecanismo de construção da ordem no crime. Contudo, a par desse aspecto político, destacam também a dimensão econômica expressa na reciprocidade de interesses racionalmente perseguidos no mercado, bem como a dimensão cultural/moral, quando enfatizam o papel que a homofilia e a socialização por trajetórias de vida similares possuem na estruturação desse mundo. Isso sem esquecer as características da própria atividade na constituição da ordem: empreendimentos como tráfico de drogas geram maior especialização do que gangues de briga de torcida devido à natureza da ação coletiva.

Calcificada a ação coletiva em uma ordem social, ela não deixa de estar sujeita à mudança - incluído o próprio risco de ser rápida e completamente desmantelada, caso se conheçam seus pontos fracos. Nesta terceira problemática, a mudança social, os modelos mostram que os principais mecanismos de transformação são, por um lado, as capacidades extraordinárias de um líder carismático que, por meio delas, consegue angariar seguidores e gerar acumulação de recursos. Caso não consiga superar o problema da rotinização do carisma e transferir a legitimidade de seu domínio para outros fundamentos, o grupo se desfaz com sua morte. Caso tenha sucesso, tem-se uma dominação patrimonial capaz de ser transferida para outros, o que garante a continuidade do grupo. Estruturam-se posições que sobrevivem à morte de seus ocupantes. Vão-se os dedos, mas ficam os anéis.

Por outro lado, essa acumulação, num contexto em que o recurso à violência faz parte do cotidiano, é tudo menos pacífica. O conflito, portanto, é a principal força motriz desse tipo de acumulação; todavia, além dessa força motriz interna ao mundo do crime, outra, exterior, calcada no entorno de maior ou menor repressão estatal, também atua como mecanismo seletor de formas mais ou menos diferenciadas. Por causa dessas diferentes pressões, de dentro e de fora, o processo não é linear. Está sujeito a involuções. Ao lado da diferenciação, atuam também a rediferenciação e a desdiferenciação. Contudo, uma vez minimamente autonomizada de figuras pessoais, a ordem do mundo do crime consegue se transferir para outras pessoas.

Em suma, para a teoria da ação, da ordem e da mudança, o crime organizado é interessante porque se trata de um caso-limite, no qual todas as forças agem para que ela não ocorra. Ela, entretanto, não só ocorre, como estabelece alicerces profundos no contexto ao qual pertence, mas ainda assim extremamente maleáveis, capazes de se moldar ao entorno em que se desenvolvem. Logo, caso seja tratado menos como problema social e mais como problema científico, o crime organizado tem muito a contribuir para o desenvolvimento da teorização sociológica.

NOTA

  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (150412/2019-3).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    01 Fev 2021
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