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UMBANDA É CONHECIMENTO: PASSOS PARA UMA ABORDAGEM EPISTÊMICA DA RELIGIÃO

Gonçalves, Brito, L. O véu do congá: sobre três aspectos do conhecimento umbandista. Rio de Janeiro: Gramma, 208

Pensar a umbanda enquanto epistemologia e não (apenas) como prática religiosa, esse é o argumento que fundamenta O véu do congá: sobre três aspectos do conhecimento umbandista. Fruto de profunda imersão etnográfica realizada em 2015 e 2016 no Centro Espiritualista de Umbanda Pai Joaquim de Angola, localizado na cidade de Goiânia, Gonçalves Brito estrutura sua argumentação em três capítulos, cada um dedicado a enfatizar um dos lados ou aspectos dessa epistemologia: a cosmovisão ou o conhecimento dito (capítulo 1), o ritual ou o conhecimento corporificado (capítulo 2) e a experiência ou o conhecimento vivido (capítulo 3). A obra também inclui prefácio (escrito por Luis Hirano, responsável pela orientação da pesquisa), “introito” e algumas “linhas conclusivas”.

Ao longo de todo o livro, mas sobretudo em suas primeiras páginas, uma interessante controvérsia é resgatada envolvendo as supostas origens (míticas e/ou históricas) da umbanda. Criticando os limites das abordagens teóricas que circunscrevem o surgimento dessa religião ao início do século passado, mais precisamente, em 1908, na cidade de Niterói, Gonçalves Brito, fundamentando-se nas elucubrações e percepções nativas a respeito desse tema, sugere que tal demarcação espaçotemporal contribui para reduzir e, em alguma medida, homogeneizar o complexo e multifacetado movimento umbandista a uma de suas formas - aquela praticada e divulgada por Zélio de Moraes e seu Caboclo das Sete Encruzilhadas -, o que inviabilizaria compreendê-lo de uma maneira mais acurada (p. 35). Sem negar a existência dessa forma específica e de sua importância para o fortalecimento do movimento umbandista, a ideia é compreender a “anunciação” de Zélio como a origem de uma umbanda em particular e não da umbanda em geral. Por outro lado, a umbanda praticada e refletida no terreiro de Pai Joaquim de Angola, conforme apresentada nesse trabalho, corresponderia justamente a um exemplo empírico do questionamento contemporâneo a essas abordagens que tendem a homogeneizar a umbanda como um todo (p. 37). Essa crítica nativa às origens, conforme encontrada em campo e explicitada por vários intelectuais umbandistas, resultará em dupla chave de leitura e compreensão da umbanda, entendida simultaneamente como um movimento religioso surgido (ou “ressurgido”) no Brasil, na virada do século XIX para o XX, e um conhecimento de origem milenar, resgatado pelos povos africanos que forçadamente desembarcaram em solo brasileiro durante o período da escravidão, mas anteriormente elaborado pelas antigas civilizações que habitavam os “continentes perdidos” da Lemúria e da Atlântida há cerca de 70 mil anos. Tal origem mítica, tratada também como histórica pelos filhos de Oxalá da Casa de Pai Joaquim, corresponderia ao nascimento do assim chamado Aumbandan, “síntese do Conhecimento Uno dos povos daqueles tempos áureos” (p. 44). A concepção do Aumbandan como a origem do que hoje conhecemos como sendo a umbanda é um dos principais elementos cosmológicos que constitui a umbanda de Pai Joaquim.

Mergulhando nessa cosmologia e nas variadas dimensões mitológicas e simbólicas envolvidas na teoria do Aumbandan, o primeiro capítulo do livro apresenta um esboço da epistemologia da umbanda de Pai Joaquim, em que se procura refletir não só a respeito do “Conhecimento Uno”, milenar e universal, caracterizado pela harmoniosa integração entre ciência, filosofia, arte e religião, mas também sobre a noção de pessoa e sua correspondente fisiologia e anatomia astral (envolvendo chacras e corpos múltiplos, distintos e, ao mesmo tempo, conectados) e os complexos conceitos físico-espirituais de “energia”, “vibração” e “frequência” (incluindo a relação de tais categorias com a ideia de orixá). Reflete-se, também, a respeito do papel central que a mediunidade - definida como a faculdade de comunicação entre os seres encarnados e desencarnados - exerce nessa cosmovisão e, finalmente, sobre o próprio espaço físico do terreiro, incluindo as imagens e os objetos ali presentes, o teto (decorado com a imagem de uma imensa abóbada celeste) e a própria planta do Centro, arquitetada para simbolizar uma arca que navega em direção ao Oriente, com o altar (congá) localizado na proa dessa “embarcação”. Em tal análise antropológica, o local físico ou, mais exatamente, o lugar será pensado como um evento, um acontecimento, e não como algo estável, fixado no espaço e no tempo, com características bem definidas.

Procurando compreender de que maneira essa epistemologia é vivenciada e performatizada no cotidiano do terreiro, Gonçalves Brito volta sua atenção, no segundo capítulo, para a descrição e interpretação dos rituais que ocorrem naquele ambiente. Inicialmente somos apresentados a uma interessante tentativa de conciliação entre duas vertentes teóricas e conceituais dos estudos do ritual - a performativa e a hermenêutica - que nos possibilita compreendê-lo enquanto ato performativo e, ao mesmo tempo, sistema de comunicação simbólica. No contexto da umbanda de Pai Joaquim, o conjunto de rituais praticados consiste na metodologia da epistemologia ali ensinada, bem como na apreensão corporificada desse conhecimento. Dito de outra forma, o ritual envolve não só em um conjunto de técnicas a transmitir, mas também, e fundamentalmente, a maneira como as pessoas aprendem, expressam e demonstram, no próprio corpo, o conhecimento aprendido. O capítulo segue com a descrição e a reflexão em torno das principais atividades rituais ocorridas na casa ao longo de uma semana - Sessão das Almas ou Sessão da Caridade (segunda-feira); Trabalho de Cura (terça-feira); Desenvolvimento Mediúnico (quarta-feira); Curso de Educação Mediúnica (quintafeira); Desobsessão (sexta-feira) -, procurando obter, por meio da narrativa, tanto o significado que as pessoas atribuem a seus gestos, movimentos e palavras (dimensão simbólica), como as sensações surgidas durante os rituais e percebidas pelos cinco sentidos (dimensão sensória).

Por fim, o capítulo que encerra o livro apresenta os fundamentos de uma “antropologia da experiência umbandista”, cujo objetivo principal é extrair da experiência pessoal - ou, mais exatamente, de sua expressão narrativa - o conhecimento vivido. Trata-se, em suma, da busca pela transmissão e compreensão de “um conhecimento que não está nos livros e que é compartilhado por meio do cotidiano de trabalho no Centro e da intuição, pelos contatos mediúnicos; em uma palavra através da experiência” (p. 142). A descrição e a exegese das experiências narradas por quatro médiuns - incluindo a fundadora da Casa de Pai Joaquim - são os instrumentos metodológicos utilizados para capturar o conhecimento vivido. Em tais narrativas percebe-se a articulação entre e presente e passado, bem como a clara tentativa de atribuir uma importância e um significado específico - surgido muitas vezes no próprio ato de narrar - a tudo aquilo que a pessoa experienciou em sua vida. Assim, a narrativa propicia à pessoa não só refletir sobre o que ela viveu, como também organizar mentalmente a própria experiência vivida (p. 171). Das estórias contadas, chama atenção algo que atravessa as quatro trajetórias pessoais e que de fato parece constituir uma das características relacionadas às experiências dos praticantes dessa religião. Trata-se do papel que o sofrimento físico e mental exerce na tomada de consciência em relação à necessidade e à responsabilidade de ser médium. O capítulo é encerrado apresentando alguns relatos da própria experiência vivenciada por Gonçalves Brito no terreiro, com destaque para os ensinamentos aprendidos nas conversas que estabelecia com os Pais Velhos e Vovós. “Uma experiência vivida formativa e transformativa, a qual envolveu sentimento, pensamento e ação e que teve uma iniciação” (p. 172), referindo-se, com isso, à sua busca pelo conhecimento umbandista que, ao mesmo tempo, contribuiu para o seu autoconhecimento.

As linhas que encerram o livro retomam os principais argumentos apresentados nos três capítulos ressaltando cada um dos três aspectos - cosmovisão, ritual e experiência - que conformam a epistemologia da umbanda de Pai Joaquim. Ao longo de toda a obra, Gonçalves Brito procura estabelecer um diálogo crítico e reflexivo não só com os autores e autoras estritamente relacionados aos estudos sobre a umbanda (incluindo aqui Roger Bastide (1989)Bastide, Roger. (1989). As religiões africanas no Brasil. 3 ed. São Paulo: Pioneira., Edison Carneiro (1991)Carneiro, Edison. (1991). Negros bantos / Religiões negras. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., Lísias Negrão (1993)Negrão. Lísias. (1993). Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social, 5/1-2, p. 113-122., Diana Brown (1985)Brown, Diana. (1985). Uma história da umbanda no Rio. Cadernos do ISER, 18, p. 9-42., Patrícia Birman (1985)Birman, Patrícia. (1985). O que é umbanda. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense., Yvonne Maggie (1991)Maggie, Yvonne. (2001). Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., Renato Ortiz (1999)Ortiz, Renato. (1999 ). A morte branca do feiticeiro negro. 2 ed. São Paulo: Brasiliense., Emerson Giumbelli (2010)Giumbelli, Emerson. (2010). Presença na recusa: a África dos pioneiros umbandistas. Esboços, 17/23, p. 107-117., entre outros), mas também com importantes referências na literatura socioantropológica que contribuíram de distintas maneiras para o entendimento de algumas das categorias e dos conceitos utilizados nesse trabalho (com destaque, por exemplo, para as reflexões deStanley Tambiah (1979)Tambiah, Stanley. (1979). A performative approach to ritual. Proceedings of the British Academy, 65, p. 113-169., Edith e Victor Turner (1985)Turner, Edith & Turner, Victor. (1985). Experience and performance: towards a new processual anthropology. In: On the edge of the bussh. Tucson: The University of Arizona Press, p. 205-226., Edward Bruner (1986)Bruner, Edward. (1986). Experience and its expressions. In: Turner, Victor & Bruner, Edward (orgs.). The anthropology of experience. Chicago: University of Illinois Press, p. 3-30., Richard Schechner (2006)Schechner, Richard. (2006). What is performance? In: Performance studies: an introduction. New York/London: Routledge, p. 28-51. e Esther Langdon (2007)Langdon, Esther. (2007). Performance e sua diversidade como paradigma analítico: a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs. Antropologia em primeira mão, 94, p. 5-26. sobre ritual, performance, experiência e narrativa). Sem dúvida, a principal originalidade dessa obra reside na proposta de uma abordagem epistêmica da religião, ampliando a reflexão em torno das dimensões filosóficas e metafísicas subjacentes às religiões de matriz africana. A crítica ao paradigma teórico da busca por origens e a percepção de que tal abordagem compromete o entendimento da multiplicidade que compõe o movimento umbandista - noção que, aliás, se apresenta como alternativa à ideia generalizante (e homogeneizante) de umbanda - também é um dos muitos aspectos positivos que constitui O véu do congá. A ideia de que “as umbandas são como a água de um mesmo rio que correm como querem, para onde querem, quando querem”, além de poética, exemplifica perfeitamente o caráter “holístico, plural, aberto e transformativo no qual as múltiplas umbandas se inserem” (p. 191). A noção de movimento tem a vantagem de incluir as diferenças epistemológicas que constituem as múltiplas umbandas sem rejeitar por completo a existência de uma unidade do conhecimento umbandista. São conceitos, técnicas, metodologias, práticas, ensinamentos, sensações e experiências compartilhadas e vivenciadas nos terreiros de umbanda que constituem um modo de conhecer, perceber e se relacionar com o mundo e todos os seus habitantes.

Referências

  • Bastide, Roger. (1989). As religiões africanas no Brasil 3 ed. São Paulo: Pioneira.
  • Birman, Patrícia. (1985). O que é umbanda São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense.
  • Brown, Diana. (1985). Uma história da umbanda no Rio. Cadernos do ISER, 18, p. 9-42.
  • Bruner, Edward. (1986). Experience and its expressions. In: Turner, Victor & Bruner, Edward (orgs.). The anthropology of experience Chicago: University of Illinois Press, p. 3-30.
  • Carneiro, Edison. (1991). Negros bantos / Religiões negras. 3 ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
  • Giumbelli, Emerson. (2010). Presença na recusa: a África dos pioneiros umbandistas. Esboços, 17/23, p. 107-117.
  • Langdon, Esther. (2007). Performance e sua diversidade como paradigma analítico: a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs. Antropologia em primeira mão, 94, p. 5-26.
  • Maggie, Yvonne. (2001). Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
  • Negrão. Lísias. (1993). Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social, 5/1-2, p. 113-122.
  • Ortiz, Renato. (1999 ). A morte branca do feiticeiro negro 2 ed. São Paulo: Brasiliense.
  • Schechner, Richard. (2006). What is performance? In: Performance studies: an introduction New York/London: Routledge, p. 28-51.
  • Tambiah, Stanley. (1979). A performative approach to ritual. Proceedings of the British Academy, 65, p. 113-169.
  • Turner, Edith & Turner, Victor. (1985). Experience and performance: towards a new processual anthropology. In: On the edge of the bussh Tucson: The University of Arizona Press, p. 205-226.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
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