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Peças da memória desfalcada pelo Golpe de 64

Medeiros, Leonilde S. (org.). (2018).

Ditadura, conflito e repressão no campo: a resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro: Consequência, 672p.

O que ocorre quando uma sociedade convive com sequelas políticas causadas pela existência de arquivos interditados e pela fraca divulgação pública de seu conteúdo, quando eles enfim foram abertos? Lançado no mesmo mês em que o porta-voz de um revisionismo histórico canhestro com relação ao golpe de 64 foi eleito presidente da República, o livro Ditadura, conflito e repressão do campo: a resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro é referência obrigatória para compreender não só a extensão da violência que se abateu sobre as lutas camponesas nos 20 anos de ditadura que se seguiram, como entender melhor a relação dessa ruptura institucional - provocada por grupo de empresários e militares - com a questão agrária brasileira. Não é um livro fácil, pois detalha fatos violentos e injustos impostos a uma população que, na época e ainda hoje, segue vulnerável nas regiões rurais do Brasil e nas periferias de seus grandes centros urbanos.

O livro é organizado por Leonilde Servolo de Medeiros, referência na literatura sobre movimentos sociais do campo e é resultado do projeto de pesquisa “Conflitos e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”, por ela coordenado de março de 2014 a fevereiro de 2016, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) no contexto da constituição da Comissão Camponesa da Verdade, que subsidiou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Como resultado desse processo, a obra traz informações inéditas, colhidas em arquivos até então proibidos, sendo fruto de um amplo trabalho de campo desenvolvido pela equipe, que conseguiu garimpar personagens e eventos violentos do pós-64, até então ignorados. Como o golpe de 2016 e o governo Bolsonaro explicitam o quanto o limitado escopo da CNV incomodou os quartéis, torna-se mais pertinente dar publicidade a essas pesquisas, produto direto dessa iniciativa e que contribuem para detalhar melhor o contexto de arbitrariedade e despojo sofrido por populações humildes perpetrados pelos agentes da repressão e seus aliados.

O aprimoramento da teoria da história abriu novos lugares de pesquisa até então desprezados, assim como reformulou as perguntas feitas pelos historiadores, “em função dos combates do presente e do futuro” (Pollak, 1989Pollak, Michael. (1989). Memória, esquecimento e silêncio. Estudos históricos, 2/3, p. 3-15.). Os 15 autores, que incluem pesquisadores experientes da UFF, UFRJ e UERJ, e mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) se nutrem das fontes de Edward Palmer Thompson e Walter Benjamin, instrumentalizadas pela história oral e consulta a documentos inéditos, assim como aos materiais depositados no acervo do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo, sediado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. São, portanto, artigos com densidades distintas, mas, em seu conjunto, revelam peças importantes para a memória desfalcada pelo golpe de 64, contribuindo para o descortinar da extensão e da profundidade dos conflitos fundiários no atual estado do Rio de Janeiro. O ponto de partida de todos os capítulos é a dissertação, ainda não publicada em livro, de Mario Grynszpan (1987)Grynspan, Mario. (1987). Mobilização camponesa e competição política no Estado do Rio de Janeiro: 1950-1964. 2v. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., que segue sendo referência obrigatória sobre o tema.

Essas lutas eram protagonizadas por posseiros ameaçados de despejos de terras que ocupavam há décadas em todo o interior do Rio de Janeiro, ou que se haviam instalado nas imediações das colônias agrícolas implantadas por Getúlio Vargas, em terras predominantemente públicas, mas objeto da cobiça de grileiros ou mesmo empresas, como no caso da América Fabril, em Magé, e da Fábrica Nacional de Motores (FMN), em Duque de Caxias.

O livro traz prefácio assinado por Afrânio Garcia Jr. e três anexos, incluindo uma lista de camponeses e apoiadores presos, assassinados e desaparecidos entre 1946 e 1988. Um trecho do prefácio explicita bem o incômodo que a obra traz:

Um mínimo de familiaridade com os relatos que se seguem provocaria no leitor um certo estupor, frente a uma questão bem simples e corriqueira: como é que fatos ocorridos na beira da cidade do Rio de Janeiro, local que concentra meios de comunicação de vasta amplitude de longa data [...] são ignorados por partes significativas das camadas mais cultas e escolarizadas da população? (Garcia, 2018Garcia Jr., Afrânio. (2018). Prefácio. In: Medeiros, Leonilde S. (org.). Ditadura, conflito e repressão no campo: a resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Consequência.: 23).

Na apresentação, Medeiros explica que a pesquisa em si é fruto da demanda sintomática dos herdeiros dos movimentos camponeses abortados pela ditadura empresarial-militar no Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, ocorrido em agosto de 2012. Esse pedido foi feito, portanto, na primeira reedição em cinco décadas do célebre I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, realizado em Belo Horizonte em 1961, que havia consolidado a palavra de ordem: “Reforma agrária na lei ou na marra!”

Em seu capítulo de abertura, Leonilde Medeiros contextualiza historicamente os conflitos fundiários do ex-Distrito Federal e do estado fluminense, apresentando-os como um “ângulo privilegiado para a reflexão sobre as relações entre rural e urbano”. Isso porque o foco nos conflitos rurais ocorridos no Rio de Janeiro, estado cuja representação hegemônica desconsidera seus sertões, é o que o torna tão essencial para a compreensão do significado do golpe de 64 para a sociedade brasileira como um todo. A maioria dos conflitos relatados no livro se iniciaram nas décadas de 1940 e 1950, ou seja, quando o que hoje conhecemos como região metropolitana do Rio de Janeiro era o Distrito Federal e, portanto, centro nevrálgico do país. Logo, o que ocorria nessa região tinha repercussão nacional, até porque as elites políticas regionais concentravam-se na então capital, assim como os principais meios de comunicação e suas sucursais. O Rio de Janeiro era uma caixa de ressonância; portanto, o aumento crescente dos conflitos e despejo de camponeses, assim como surgimento de ocupações de terra - como as ocorridas em Imbé, na região em Campos de Goytacazes, e em Cachoeira de Macacu, na área disputada com o ex-senador Jerônimo Coimbra Bueno (UDN) -, ocupava as manchetes dos jornais e tinha alto grau de impacto nas elites de todo o país, que concentravam poder econômico e político e se viam ameaçadas pelas reformas de base defendidas pelo presidente João Goulart, em especial a agrária. Na época, os principais demandantes dessa reforma, os trabalhadores do campo estavam se iniciando na organização formal de seus interesses por intermédio de sindicatos, legalizados a partir da aprovação do Estatuto do Trabalhador Rurais em março de 1963, ou seja, um ano antes do golpe.

O livro também agrega em seus vários capítulos uma teorização oriunda dos estudos rurais feitos no país, como o capítulo de Aline Bengoff Maia, sobre conflitos ocorridos na Fazenda São Lourenço, em Xerém, em torno da Fábrica Nacional de Motores, ao citar uma contribuição de Maria Nazareth Wanderley (1997)Wanderley, Maria de Nazareth B. (1997). O lugar dos rurais: o meio rural no Brasil moderno. XXI Encontro Anual da Anpocs. que descortina uma das razões do ostracismo imposto às lutas no campo. Seu argumento é que isso ocorre porque o meio rural é medido pela “ótica do desenvolvimento”, o que o confunde com o atraso e o faz perder “consistência histórica e social”, sendo desqualificado como objeto de estudo, visto que tenderia a deixar de existir sob a influência do progresso vindo da cidade (Wanderley apud Maia, 2018: 94). Por ser deixadas de lado, Maia conclui que as lutas camponesas “passaram a constituir uma dimensão silenciada da luta de classes que acompanha os processos de urbanização”. Nesse sentido, seu capítulo, assim como os demais contribuem para reenquadrar a memória dessa região, descortinando como o avanço da malha urbana foi tributário da herança de monopólio fundiário, fraudes e grilagens que é estruturante da formação social brasileira, com seus consequentes e deletérios impactos sociais e políticos.

A partir de uma diversidade de fontes consultadas pela equipe de pesquisadores, a obra demonstra como esse processo de acumulação, baseado no controle territorial, se fortaleceu agudamente nos governos militares, enquanto emudecia a experiência de grupos de trabalhadores rurais que vinham protagonizando lutas em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Trajano de Moraes, Magé, Cachoeiras de Macacu e Campos de Goyatazes, mediados tanto por políticos, militantes do PCB, da Igreja, como de sindicatos de trabalhadores urbanos como os ferroviários e os empregados da FNM. Ao procurar construir a genealogia desses conflitos os artigos revelam os diversos atores em disputa e seus interesses, não se resumindo aos tradicionais latifundiários, mas incluindo atores vinculados à especulação imobiliária, à indústria do turismo e mesmo a empresas estatais, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Quando o foco é a Baixada Fluminense, que até hoje sofre a ação violenta de diversos tipos de milícias, alguns desses capítulos, como o de Gabriel Souza Bastos dedicado à história da Sociedade de Lavradores e Posseiros de Pedra Lisa, conseguem trazer elementos importantes para se compreender que reestruturação societal e de memória acabou se fixando nessas regiões durante a ditadura empresarial-militar, visto que, por exemplo, as lideranças dessa associação, central na organização dos posseiros da região, sobretudo Nova Iguaçu, tiveram seus lotes de terra e bens apropriados pelos chamados “entrega-listas”, que os denunciavam para os agentes de repressão.

Elisabeth Linhares, autora de dois capítulos, descreve a vitória de posseiros em Trajano de Morais, uma das menos de 200 áreas desapropriadas nos 20 anos da ditadura empresarial-militar, mas também a violência promovida em Valença pela Embrapa, fundada em 1973. Ignorando os direitos de morada e cultivo que lhes era devido, expulsou famílias que viviam como parceiros de uma fazenda do Ministério da Agricultura há décadas - mesquinhez que contrasta com a generosidade licenciosa com que a ditadura brindou os grandes fazendeiros com incentivos fiscais e financiamentos a juros subsidiados até que a inflação e a crise da dívida externa acabassem com a farra.

O capítulo de Ricardo Braga lança luz sobre o longo conflito da Fazenda São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu, no início dos anos 1960, e que se desenrolou durante toda a década de 1970, até ser definitivamente destinada aos trabalhadores no início dos anos 1980, já no ocaso do regime. Centrada também nessa região, Fabrício Teló aborda uma tentativa frustrada de organização de uma guerrilha até então desconhecida, liderada por um padre.

Os capítulos de Iby Montenegro de Silva e o de Anagesse de Carvalho Feitosa apresentam eventos associados à região onde houve mais conflitos fundiários durante a década de 1970: o litoral sul fluminense, mais precisamente a região de Paraty e Angra dos Reis, quando a abertura da BR-101 expôs a grileiros e ao turismo uma população até então isolada das grandes metrópoles da região.

Além de fatos desconhecidos pelos pesquisadores da área, todo o trabalho, que focaliza o momento em que a questão agrária era o epicentro da crise política que gestou o golpe de 64, tem uma contribuição fundamental para reconstruir essa memória soterrada, restituindo a seu lugar não só peças-chave, como também a compreensão da cicatriz histórica provocada pelos 20 anos de ditadura, cujos efeitos seguem até o presente.

Referências

  • Benjamin, Walter. (1986). Sobre o conceito de história. In: Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política 2 ed. São Paulo: Brasiliense.
  • Thompson, Edward Palmer. (1998). Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional São Paulo: Companhia das Letras.
  • Garcia Jr., Afrânio. (2018). Prefácio. In: Medeiros, Leonilde S. (org.). Ditadura, conflito e repressão no campo: a resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Consequência.
  • Grynspan, Mario. (1987). Mobilização camponesa e competição política no Estado do Rio de Janeiro: 1950-1964 2v. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • Pollak, Michael. (1989). Memória, esquecimento e silêncio. Estudos históricos, 2/3, p. 3-15.
  • Wanderley, Maria de Nazareth B. (1997). O lugar dos rurais: o meio rural no Brasil moderno. XXI Encontro Anual da Anpocs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2020
  • Aceito
    14 Jan 2021
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