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DO BOM USO DO SABER: CAMPESINATO E QUESTÃO AGRÁRIA NA OBRA DE MOACIR PALMEIRA

ON THE GOOD USE OF KNOWLEDGE: PEASENTRY AND THE AGRARIAN ISSUE IN MOACIR PALMEIRA’S WORK

Resumo

O artigo percorre as pesquisas sobre campesinato e questão agrária do antropólogo Moacir Palmeira para discutir como a mediação entre a assessoria sindical e a atividade acadêmica não foi de menos importância para suas formulações intelectuais sobre aqueles temas. Enquanto instâncias distintas de observação analítica e prática, essas atividades levaram Palmeira a uma compreensão mais ampla da questão agrária e dos impasses da democracia no Brasil.

Palavras-chave:
Intelectual; Política; Questão agrária; Reflexividade das ideias

Abstract

This paper examines the studies on peasantry and the agrarian issue carried out by anthropologist Moacir Palmeira to discuss how the mediation between union counseling and academia was equally important for his intellectual formulations on those topics. As distinct instances of analytical and practical observation, these activities led Palmeira to a broader understanding of the agrarian issue and the impasses of democracy in Brazil.

Keywords:
intellectual; politics; agrarian issue; reflexivity of ideas

A relação entre intelectuais e política é fonte de discussão constante nas ciências sociais. No contexto brasileiro, em particular, o tema ganha matizes próprias, em grande medida porque assentado em uma experiência social que parece atribuir proeminência à intervenção dos intelectuais na esfera pública (Bastos, 2002Bastos, Elide Rugai. (2002). Pensamento social da escola sociológica paulista. In: Miceli, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira: 1970-2002. São Paulo: Anpocs/Sumaré, p. 183-230.; Brandão, 2007Brandão, Gildo Marçal. (2007). Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec.). Nesse sentido, o lugar e a atuação dos intelectuais são reveladores dos impasses, bloqueios e possibilidades de mudança da sociedade em que se inserem (Botelho, 2005Botelho, André. (2005). O Brasil e os dias: Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: Edusc.; Martins, 1987Martins, Luciano. (1987). A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil: 1920 a 1940. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2/4, p. 65-87.). Se é verdade que, mesmo no que toca a períodos em que essa relação se mostrou mais intricada, como no Estado-Novo, visões menos disjuntivas e mais calibradas da atuação e das funções que os intelectuais se atribuíam vêm ganhando relevo (Bastos & Botelho, 2010Bastos, Elide Rugai & Botelho, André. (2010). Para uma sociologia dos intelectuais. Dados: Revista de Ciências Sociais, 53/4, p. 889-919.; Botelho & Hoelz, 2018Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2018). Macunaíma contra o Estado Novo: Mario de Andrade e a democracia. Novos Estudos Cebrap, 37/2, p. 335-357.; Ridenti et al., 2006Ridenti, Marcelo et al. (orgs.). (2006). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG.), cabe averiguar contextos menos estudados, porém não menos importantes para elucidar a relação entre trabalho intelectual e atuação pública ou, em termos mais gerais, entre academia e assessoria política.

É o que ocorre no pós-1964, período em que há importante deslocamento do lugar dos intelectuais e da visão destes sobre os grupos populares. O Golpe escancarava contradições fundamentais da sociedade brasileira e do imaginário político da esquerda e expunha o caráter autocrático de repartição do poder entre classes, intocado pelos caminhos tomados pela revolução burguesa entre nós. O momento político abria-se, assim, a uma ambiguidade: exigia-se dos intelectuais repensar as escolhas políticas feitas até então, ao mesmo tempo em que, sobretudo no momento de repressão política, formava-se uma sociedade civil diversificada. Nesse contexto, a condição de porta-vozes do povo de que se investiam os intelectuais deixa de ser vista como algo natural.

No meio intelectual de esquerda, tornou-se imperativo compreender o modo de vida dos grupos populares, muito embora o contato direto com estes setores, a “ida ao povo”, através da organização política já não fosse mais possível nos mesmos moldes (Ridenti, 2000Ridenti, Marcelo. (2000). Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record.). Conforme observa Otávio Velho (1983Velho, Otávio Guilherme. (1983). Processos sociais no Brasil pós-64: as ciências sociais. In: Sorj, Bernardo & Almeida, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense , p. 351-385.: 365), o Golpe de 1964 havia mostrado para esta geração que, “apesar de todos os protestos em favor da desalienação e da inserção na ‘realidade’, a verdade é que se tinha em boa parte vivido em um mundo político imaginário e pressuposto”. A mobilização popular passou a ser vista como parte constitutiva da autonomia e modos de vida desses grupos, e aos intelectuais caberia a partir de então rever suas intepretações e estratégias políticas (Perruso, 2009Perruso, Marco Antonio. (2009). Em busca do “novo”: intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. São Paulo: Annablume.; Perruso & Araújo, 2015Perruso, Marco Antonio & Araujo, Mônica da Silva (orgs.). (2015). Ciência e Política: memórias de intelectuais. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ .).

O forte impulso nos setores de ensino e pesquisa durante os governos militares, que tomavam como estratégica a área de ciência e tecnologia em seus planos de desenvolvimento nacional, também contribuiu para o deslocamento das representações de que se faziam os intelectuais de suas funções tradicionais de mediação. Entre outras medidas, a reforma de 1968, pondo fim ao regime de cátedras, e o aporte de recursos de instituições de pesquisa, a exemplo da Fundação Ford e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), foram medidas fundamentais para tornar a universidade um dos principais lócus de reunião da intelectualidade, estabelecendo critérios relativamente autônomos no recrutamento de professores e alunos. Para muitos dessa geração, o investimento na carreira acadêmica se tornou uma das principais alternativas à experiência frustrada em provocar mudanças substanciais na sociedade brasileira (Garcia Júnior, 2009Garcia Júnior, Afrânio. (2009). Fundamentos empíricos da razão antropológica: a criação do PPGAS e a seleção das espécies científicas. Mana, 15/2, p. 411-447.; Keinert, 2011Keinert, Fábio Cardoso. (2011). Cientistas sociais entre ciência e política (Brasil, 1968-1985). Tese de Doutorado. FFLCH/ Universidade de São Paulo.; Velho, 1983Velho, Otávio Guilherme. (1983). Processos sociais no Brasil pós-64: as ciências sociais. In: Sorj, Bernardo & Almeida, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense , p. 351-385.). O que não significou, no entanto, que a associação - de diversos modos - aos movimentos populares e até mesmo a partidos políticos tenha deixado de acontecer, mas ela passou a ser mediada de outras formas (Keinert, 2011Keinert, Fábio Cardoso. (2011). Cientistas sociais entre ciência e política (Brasil, 1968-1985). Tese de Doutorado. FFLCH/ Universidade de São Paulo.; Lahuerta, 2001Lahuerta, Milton. (2001). Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo e política no Brasil. Cadernos AEL, 8/14-15, p. 53-95.; Perruso, 2009Perruso, Marco Antonio. (2009). Em busca do “novo”: intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. São Paulo: Annablume.).

Considerando, de um lado, a crescente autonomização e fortalecimento da sociedade civil, indicada pela pujança dos movimentos populares, e, de outro, o deslocamento do lugar da intelectualidade brasileira, esse contexto parece particularmente interessante porque permite matizar perspectivas mais assentadas da sociologia dos intelectuais no Brasil: seja aquela que identifica uma “missão” histórica de que teria se investido a intelectualidade no ordenamento da sociedade (Pécaut, 1990Pécaut, Daniel. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática.), seja aquela que aponta para uma crescente autonomização do campo intelectual como condição para a instalação de uma comunidade científica resguardada da cooptação pelo Estado (Miceli, 2001Miceli, Sergio (org.). (2001). História das ciências sociais no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sumaré (vol. 1).). Conforme literatura que vem buscando problematizar essas perspectivas (Bastos & Botelho, 2010Bastos, Elide Rugai & Botelho, André. (2010). Para uma sociologia dos intelectuais. Dados: Revista de Ciências Sociais, 53/4, p. 889-919.; Botelho, 2005Botelho, André. (2005). O Brasil e os dias: Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: Edusc., 2015Botelho, André. (2015). O encontro marcado com o povo, a cada nova geração. In: Perruso, Marco Antonio & Araujo, Monica da Silva (orgs.). Ciência e Política: memórias de intelectuais. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, p. 5-13.; Brasil Jr., 2010Brasil Jr., Antonio. (2010). Intelectuais e statemakers: Oliveira Vianna, Evaristo de Moraes Filho e a ação coletiva no Brasil. Estudos Históricos, 23/46, p. 301-320.), a atribuição como porta-vozes da sociedade por parte dos intelectuais não é uniforme em diversos contextos e seu sentido é significativamente alterado ou mesmo questionado quando a sociedade civil passa a ter maior peso na dinâmica da vida social. Embora a esfera acadêmica tenha se tornado mais completa e cumprido exigências próprias de qualificação e produção científica, para grande parte dessa geração a relação com a política não foi deixada de lado, tampouco se criou uma espécie de cisão entre as duas esferas. Ao contrário, foi a própria forma de mediação entre academia e política que passou a ganhar relevo e, em grande medida, a ser disputada em seus significados e potencialidades (Botelho, 2015Botelho, André. (2015). O encontro marcado com o povo, a cada nova geração. In: Perruso, Marco Antonio & Araujo, Monica da Silva (orgs.). Ciência e Política: memórias de intelectuais. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, p. 5-13.; Bringel, 2015Bringel, Breno. (2015). Fronteiras difusas: movimentos sociais, intelectuais e construção de conhecimentos no Brasil. Perruso, Marco ANTONIO & Araújo, Monica da Silva (orgs.). Ciência e política: memórias de intelectuais. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ .; Lahuerta, 2001Lahuerta, Milton. (2001). Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo e política no Brasil. Cadernos AEL, 8/14-15, p. 53-95.; Perruso, 2009Perruso, Marco Antonio. (2009). Em busca do “novo”: intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. São Paulo: Annablume.).

A profissionalização acadêmica e o fortalecimento de associações civis e movimentos sociais, ainda que sob o jugo do regime autoritário, possibilitaram variadas formas de interseção entre a atividade política e a acadêmica. A participação em órgãos do Estado, assessoria a movimentos sociais, trabalho de base, educação popular e pesquisa-participante são formas distintas e, em alguma medida, concorrentes na mediação entre as esferas intelectual e política (Brandão, 1981Brandão, Carlos Rodrigues (org). (1981). Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense., 1984Brandão, Carlos Rodrigues (org). (1984). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense .; Landim, 1993Landim, Leilah. (1993). A invenção das ONGs: do serviço invisível à profissão impossível. Tese de Doutorado. PPGAS/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Cada uma delas traz uma concepção particular do papel do intelectual, das pesquisas e da atuação política possível dentro dos novos marcos institucionais e das mudanças sociais pós-1964. Por isso a importância de se considerar a dimensão eminentemente prática dessas atividades como um elemento “interno” às elaborações intelectuais, mediando teoria e empiria, uma vez que o esforço de interpretação da realidade social e de construção de instrumentos analíticos não se dissociava da avaliação das potencialidades e limites da organização dos movimentos com os quais interagiam.

Nesse contexto, a trajetória do antropólogo Moacir Palmeira parece particularmente interessante para pensar as relações entre academia e assessoria e o modo como, neste caso, a participação política não impediu a elaboração rigorosa de um amplo quadro interpretativo sobre a questão agrária e a democracia no Brasil. Palmeira ingressou no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) pouco depois de sua fundação, em 1968, no âmbito do Projeto “Estudo Comparado do Desenvolvimento Regional”, coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis (Garcia Júnior, 2009Garcia Júnior, Afrânio. (2009). Fundamentos empíricos da razão antropológica: a criação do PPGAS e a seleção das espécies científicas. Mana, 15/2, p. 411-447.).

Enquanto coordenador das pesquisas de campo na região Nordeste, Palmeira participava ativamente na formação dos alunos, mas ainda não havia se integrado como professor da instituição, o que ocorre somente depois de defendida a sua tese de doutoramento na Université René Descartes em 1971, na França, com o título “Latifundium et Capitalisme au Brésil: Lecture Critique d`un débat”. Nela, Palmeira propôs analisar o debate intelectual acerca dos traços feudalistas ou capitalistas das relações sociais no campo e como se produzia aporias teóricas e obstáculos empíricos ao se imiscuir com questões do campo político. Para o autor, o molde em que se desenvolvera o debate era elucidativo da própria sociedade brasileira, na qual o “campo intelectual”, ao não se autonomizar, mantinha uma relação privilegiada com o “campo ideológico”, dificultando a formação e transmissão de temas e problemas substantivos próprios (Palmeira, 1971Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1971). Latifundium et capitalisme au Brésil: lecture critique d’un débat. Tese de Doutorado. Faculté des Lettres et Sciences Humaine/Université de Paris.: VII-VIII). Daí o giro em falso do debate sobre a questão agrária no Brasil entre os anos 1940 e 1960, já que não raro os mesmos argumentos eram sustentados pelos defensores dos dois lados da contenda, alterando-se somente as conclusões gerais, conforme as posições ideológicas que desejavam sustentar (Palmeira, 1983Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1983). Os anos 60: revisão crítica de um debate [Comunicação]. Anais do Seminário Revisão Crítica da Produção Sociológica Voltada para a Agricultura. São Paulo, SP, Brasil.).

Contudo, Palmeira afirmava que a interlocução entre os campos acadêmico e político gestou argumentos importantes para a discussão sobre a questão agrária, e com grande relevância analítica. O problema não estava na relação entre os campos, mas no modo como a discussão era encaminhada (Palmeira, 1983Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1983). Os anos 60: revisão crítica de um debate [Comunicação]. Anais do Seminário Revisão Crítica da Produção Sociológica Voltada para a Agricultura. São Paulo, SP, Brasil.: 26). Era preciso produzir diálogos para promover o que havia de específico em cada um deles e não subsumir um ao outro, sob o risco de se reforçar ou criar novos obstáculos tanto à prática política quanto à atividade intelectual (Palmeira, 1983Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1983). Os anos 60: revisão crítica de um debate [Comunicação]. Anais do Seminário Revisão Crítica da Produção Sociológica Voltada para a Agricultura. São Paulo, SP, Brasil.:16). O desafio prático e analítico era perceber o que cada um desses campos, político e acadêmico, revelavam um sobre o outro e os limites que se impunham quando confluíam.

Essas críticas levaram Palmeira a propor uma “terceira posição”, com elementos de cada um dos dois lados da contenda, mas com sentidos alterados, já que pertencentes ao que denominou de “sistema de plantation” (Palmeira, 1971Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1971). Latifundium et capitalisme au Brésil: lecture critique d’un débat. Tese de Doutorado. Faculté des Lettres et Sciences Humaine/Université de Paris.: 159; ver também Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Com essa definição, o autor enfatizava como aqueles diferentes elementos estabeleciam entre si relações dinâmicas, nas quais a figura do fazendeiro era fundamental. Cabia a ele a função de mediação entre as demandas externas do mercado capitalista e as exigências internas de produção, baseadas nas relações pessoais e no arbítrio de seu poder. Espremidos entre uma lógica e outra, os proprietários se utilizavam dos recursos que tinham, sobretudo a propriedade da terra, para submeter os trabalhadores rurais aos seus desígnios. Estes, por sua vez, sem serem proprietários da terra, mas detentores de seus instrumentos de trabalho, não eram tipicamente nem camponeses nem proletários. Não reunindo características propriamente capitalistas, tampouco feudalistas, a plantation, portanto, deveria ser entendida enquanto um modo de produção específico (Palmeira, 1971Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1971). Latifundium et capitalisme au Brésil: lecture critique d’un débat. Tese de Doutorado. Faculté des Lettres et Sciences Humaine/Université de Paris.: 132).

Ao lado das pesquisas de Lygia Sigaud (1972Sigaud, Lygia Maria. (1972). A nação dos homens: um estudo regional da ideologia. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1979Sigaud, Lygia Maria. (1979). Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Duas Cidades.) acerca das representações simbólicas dos camponeses, a tese de doutoramento de Palmeira abriu uma ampla e diversificada agenda de investigação sobre as mudanças na plantation nordestina: a economia camponesa, suas estratégias de reprodução social, bem como as novas formas de dominação surgidas a partir do enfraquecimento daquelas tradicionais (Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.). A experiência acumulada de pesquisas no Nordeste serviu como uma espécie de trunfo quando, por volta de 1972, os recursos destinados ao PPGAS começaram a ficar escassos, com o fim do financiamento da Fundação Ford. Diante da crise que se instalara, um dos instrumentos utilizados por professores e alunos para a manutenção de suas pesquisas foi o de submeter projetos a diversas instituições de financiamento. Palmeira esteve à frente de uma dessas iniciativas coletivas, com o projeto “Emprego e Mudança socioeconômica no Nordeste”, cujo financiamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e, em especial, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), permitiu a continuidade das pesquisas e o desenvolvimento de formulações teóricas e empíricas fundamentais sobre o campesinato e questão agrária no Brasil (Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2016Carvalho, Lucas Correia. (2016). Crítica e conhecimento: a construção de um projeto coletivo de pesquisa. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, 18/2, p. 458-475.). Além disso, o Projeto Emprego foi importante instância de debate e formação de pesquisadores, entre os quais Afrânio Garcia, Marie-France Garcia-Parpet, José Leite Lopes, Rosilene Alvim, Beatriz Heredia, Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Logo na chegada à Zona da Mata de Pernambuco, em 1969, um fato marcaria intelectual e politicamente Sigaud e Palmeira, e posteriormente todo o grupo: um grande contingente de camponeses na porta da Justiça do Trabalho exigia o cumprimento de direitos e pressionava os fazendeiros. Nas palavras de Palmeira (2019Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2019). Moacir Gracindo Soares Palmeira (depoimento, 2009 /2012). Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Disponível em <Disponível em https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cientistas_sociais/moacir_palmeira/TranscricaoMoacirPalmeira.pdf >. Acesso em 4 abr. de 2022.
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: 84): “Foi realmente uma grande surpresa e a disposição do pessoal, os sindicalistas, que entrando em fazendas, tendo que enfrentar a capangagem, de vez em quando um sendo preso, o pessoal sendo chamado o tempo todo lá pelo Quarto Exército para dar depoimentos, fechavam sindicato, abriam sindicato, então havia uma luta muito mais intensa.”

O contato com a mobilização camponesa no interior de Pernambuco traria novas questões de pesquisa e mostrava uma nova possibilidade de engajamento político “porque em plena ditadura abria uma perspectiva de luta de massa” (Lopes, 2013Lopes, José Sérgio Leite. (2013). “Entrevista com Moacir Palmeira”. Horizontes Antropológicos, 19/39, p. 435-457.: 452). A aproximação com o sindicalismo no campo por parte de Palmeira e de modo geral do seu grupo de pesquisa fez com que José Francisco da Silva, então presidente da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), o convidasse para ocupar a função de assessor (Palmeira, 2019Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2019). Moacir Gracindo Soares Palmeira (depoimento, 2009 /2012). Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Disponível em <Disponível em https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cientistas_sociais/moacir_palmeira/TranscricaoMoacirPalmeira.pdf >. Acesso em 4 abr. de 2022.
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: 89). A passagem pela Contag deixaria impressões profundas em Palmeira sobre a autonomia organizativa dos grupos populares, levando-o a questionar qualquer pretensão de tutela intelectual sobre eles. Em sua concepção, pesquisa acadêmica e assessoria são atividades distintas, cujas práticas só fariam sentido se circunscritas em suas dinâmicas específicas (Palmeira, 2015Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2015). Entrevista com Moacir Palmeira: os trabalhadores rurais, as ciências sociais e a política. REVER: Revista de Extensão e Estudos Rurais, 4/1, p. 1-10., 2019Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2019). Moacir Gracindo Soares Palmeira (depoimento, 2009 /2012). Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Disponível em <Disponível em https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cientistas_sociais/moacir_palmeira/TranscricaoMoacirPalmeira.pdf >. Acesso em 4 abr. de 2022.
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). No que toca à atividade de assessor, ressalta que não estava fazendo trabalho de antropólogo, embora utilizasse o conhecimento da área, mas um trabalho político, sem ser propriamente partidário. Político porque crítico às formulações intelectuais vigentes, sobretudo entre os agraristas, reconhecendo ao mesmo tempo as demandas autônomas dos movimentos sociais sobre os rumos da questão agrária no país (Palmeira, 2014Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2014). Memorial do candidato. Mana , 20/2, p. 371-409.: 28).

Proponho, portanto, analisar neste trabalho as relações entre a atividade de assessoria de Moacir Palmeira na Contag, durante os anos de 1978 a 1989, e suas formulações intelectuais sobre campesinato, política e questão agrária, incluindo nesse período sua indicação como diretor de Recursos Fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre 1985 e 1986. Como faz questão de ressaltar em seus depoimentos, Palmeira se afastou durante dois anos da Universidade (1978-1980) e se recusou a dar palestras sobre assessoria em fóruns acadêmicos e a oferecer cursos sobre seu trabalho intelectual no âmbito do movimento sindical (Palmeira, 2014Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2014). Memorial do candidato. Mana , 20/2, p. 371-409.: 390-391, 2019Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2019). Moacir Gracindo Soares Palmeira (depoimento, 2009 /2012). Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Disponível em <Disponível em https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cientistas_sociais/moacir_palmeira/TranscricaoMoacirPalmeira.pdf >. Acesso em 4 abr. de 2022.
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). Contudo, como pretendo demonstrar, a originalidade e a contribuição de suas formulações para o tema da questão agrária no Brasil não são bem compreendidas sem referência à atividade de assessoria.

Nessa interseção entre ciências sociais e assessoria, uma questão em especial mereceu destaque por parte de Moacir Palmeira: a relação entre Estado e sociedade, tema, inclusive, fundamental de uma longa tradição de estudos da sociologia política, em geral, e da brasileira, em particular (Botelho, 2007Botelho, André. (2007). Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais , 50/1, p. 49-82., 2014Botelho, André. (2014). Political sociology: state-society relations. Current Sociology, 62/6, p. 868-885.). Ademais, nesse contexto dos nos 1970 e 1980, essa não era questão pacífica para os movimentos sociais rurais e, não raro, acusações como cooptação e espontaneísmo, a depender da maior ou menor adesão a mecanismos institucionais e legais, compareciam no debate público e definiam projetos políticos diversos. Veremos como, no caso de Moacir Palmeira, a atividade de assessoria ajuda a requalificar esta relação à luz do conhecimento e interpretações do autor sobre a questão agrária e campesinato.

Na primeira parte, destacaremos como os movimentos sociais auxiliaram Palmeira a qualificar as formas de engajamento e atuação política do campesinato na quebra das relações pessoais e tradicionais existentes no campo. Na segunda parte, veremos como a experiência no Incra foi decisiva para o autor captar a reconfiguração da questão agrária no Brasil, vista a partir de dentro do Estado. Desse modo, pretendemos fornecer uma visão mais ampla da maneira pela qual a atividade de assessoria teve implicações fundamentais na produção intelectual e acadêmica de Palmeira. Mais uma vez importa sublinhar, ao lado do conteúdo daquelas formulações analíticas, a forma pela qual elas se tornaram possíveis e intelectualmente relevantes. Embora, na concepção do antropólogo, as atividades de assessor e acadêmico tivessem exigências distintas e não devessem se misturar, a experiência de mediação entre as duas não era de menos importância em seus rendimentos intelectuais e políticos. Implicavam-se mutuamente a partir das especificidades que as constituíam enquanto instâncias de observação analítica e prática.

POLÍTICA E CAMPESINATO: UMA QUESTÃO DE (NÃO-)RECONHECIMENTO

Para esta primeira seção, tomaremos os principais trabalhos acadêmicos de Moacir Palmeira dedicados à relação entre campesinato e política, alguns desenvolvidos durante o período em que foi assessor da Contag entre 1978 e 1989. Estabelecemos como limite temporal a sua nomeação como diretor de Recursos Fundiários do Incra, em julho de 1985, pois, conforme demonstraremos na seção seguinte, a passagem por esse órgão representou uma experiência no interior do Estado com significativa repercussão em suas formulações analíticas acerca da questão agrária.

Já nos referimos à surpresa que a mobilização camponesa em Pernambuco causou em Moacir Palmeira e em todo o grupo de pesquisadores ao seu redor (Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Sigaud, 2008Sigaud, Lygia Maria. (2008). A collective ethnographer: fieldwork experience in the Brazilian Northeast. Social Science Information sur les Sciences Sociales, 47/1, p. 71-97.). O sindicato aparecia como um dos principais mediadores políticos, criando um novo mapa cognitivo entre os trabalhadores, no qual os “direitos” enfraqueciam, mas não necessariamente extinguiam, a dominação pessoal tradicional (Sigaud, 1979Sigaud, Lygia Maria. (1979). Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Duas Cidades.). Essas mudanças forneciam subsídios empíricos para questionar uma série de pressupostos de formulações clássicas e contemporâneas sobre a relação dos camponeses com a política, sua condição de classe e o suposto apego desse grupo ao tradicionalismo e conservadorismo (Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

De fato, o sindicato parecia ocupar um espaço político importante, sobretudo quando consideramos que a modernização agrícola e a incorporação de novas terras estavam no centro das políticas agrícola e agrária encampadas pelos governos militares, alterando substancialmente a realidade do campo. Os casos de conflitos e violência aumentaram, tornando muitas vezes inoperantes as ações na justiça, recurso privilegiado pela prática contaguiana. Novas frentes de luta surgiram à margem ou no interior da estrutura sindical, apoiadas, por exemplo, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e por oposições sindicais. No contexto urbano, reivindicações similares por maior autonomia na organização dos trabalhadores desencadearam as “Greves do ABC”, em 1978. Esses acontecimentos reverberaram no interior do sindicalismo rural e ganharam expressão no III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (CNTR), realizado em Brasília em 1979, um ano após a vinculação de Moacir Palmeira como assessor da Contag.

Ao lado de bandeiras tradicionais, como a reforma agrária e o cumprimento da legislação trabalhista, os trabalhadores reunidos em assembleias propuseram, entre outras reivindicações, a alteração da legislação sindical para enfraquecer os mecanismos de controle do Estado, a criação de uma central sindical e a necessidade de participação das bases em discussões sobre a conjuntura nacional, particularmente em relação aos problemas enfrentados pelo movimento sindical rural e urbano. O III Congresso, nesse sentido, representou uma mudança importante nos rumos das lutas camponesas. De acordo com Medeiros, “o Estado deixou de ser visto prioritariamente como mediador, aos quais se recorreria para encaminhar demandas dos trabalhadores e passou a ser colocado como um dos componentes da situação aflitiva por eles vivida” (Medeiros, 1989Medeiros, Leonilde Sérvolo de. (1989). História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase.: 117).

Era preciso enfrentar os impasses com que se defrontava o movimento e um dos meios apontados pelo III Congresso era a educação sindical. Através dela, seria possível criar, junto com os trabalhadores, um processo constante de reflexão sobre as práticas adotadas e prepará-los para ações concretas. A estrutura burocrática verticalizada do sindicalismo rural, presente tanto na relação com o Estado, permitindo ou acentuando sua tutela, quanto no interior do próprio movimento, engessando a hierarquia entre lideranças e bases, passou a ser vista como um dos maiores obstáculos para a organização autônoma de camponeses e trabalhadores rurais. Esse tema estava presente, inclusive, nos debates acadêmicos, rendendo fortes críticas ao modelo contaguiano (Ricci, 1999Ricci, Rudá. (1999). Terra de ninguém: representação sindical rural no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.)1 1 Talvez seja essa uma concepção fulcral de política que envolvia os embates da época. Era assim que, referindo-se às crescentes diferenças de estratégia para as lutas camponesas entre a Contag e a CPT, acirradas principalmente no final dos anos 1970, Moacir Palmeira declarou em depoimento que “a CPT negava a política, na época do famoso documento escrito pelo Ivo Poletto, que era um tipo de concepção que se chocava com a atividade da Contag” (Palmeira apud Ricci, 1999: 97). Ivo Polleto era assessor da CPT e o documento citado se intitula o “III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais”, que apresentava as resoluções do Congresso da Contag realizado em 1979. Neste documento, tornavam-se explícitas as críticas à estrutura hierárquica da Contag, que julgavam desatrelada da realidade do povo, priorizando a resolução de conflitos por vias legais e administrativas, e não pela ação autônoma e organizada do campesinato. . A burocracia era um perigo à espreita e criar estratégias para redefini-la de modo mais orgânico às bases, ao mesmo tempo sem se desfazer das relações com o Estado, era um desafio para a Contag.

O trabalho mimeografado, sem data, intitulado “Diferenciação social e participação política: primeiras questões” parece importante para a compreensão da posição de Palmeira nesse debate, tendo em vista que no texto é apresentada a sua interpretação sobre a relação entre campesinato, política e Estado (Palmeira, 2014Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2014). Memorial do candidato. Mana , 20/2, p. 371-409.: 384). Em contraposição a algumas das posições que direcionavam o foco quase exclusivamente para as organizações comunitárias camponesas como saída para a excessiva centralização das demandas por parte da Contag, Palmeira demonstra como a relação com a política é constitutiva do campesinato e, nesse sentido, o Estado é agente fundamental para se questionar formas de dominação tradicionais incrustadas localmente e não menos efetivas do que as modernas. Ainda que no texto esteja em primeiro plano os argumentos da tradição de estudos sobre campesinato (Shanin, 2005Shanin, Teodor. (2005). A definição de camponês: conceituações e desconceituações: o velho e o novo em uma discussão marxista. Nera, 8/7, p. 1-21.), questionando certo senso comum presente nos debates marxistas e leninistas sobre a associação entre proletarização e ação de classe, penso que nele estão assentados pressupostos analíticos importantes para a compreensão das questões postas pelo III Congresso da Contag.

O texto é introduzido chamando atenção para o tema recorrente na literatura especializada da correlação entre estratificação econômica - ricos, médios e pobres - e a participação política do campesinato. Em comum, estas análises buscavam definir o “caráter revolucionário ou não dessa ou aquela classe em virtudes intrínsecas ou taras seculares”, espécie de “substancialismo” pouco atento às condições históricas (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 1). De acordo com o autor, seria preciso quebrar no interior das formulações analíticas este substancialismo e propor uma correlação mais variável, e por isso também mais aberta às especificidades, entre condição de classe e participação política. Palmeira (1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 4), portanto, inverte o pressuposto corrente no debate e propõe investigar o condicionamento econômico pela “mediação da política (i.e., do confronto entre as classes) e da conjuntura (i.e., da disposição num determinado momento de todas as forças sociais de uma determinada formação social)”. Não à toa preferia a expressão “diferenciação social” em vez de “econômica”.

Um dos pontos importantes sobre a diferenciação do campesinato seria a compreensão da motivação de cada grupo em se engajar e “a ‘origem de classe’ podendo ou não ser decisiva” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 6). O exemplo dado pelo autor remetia à experiência no Nordeste, onde observava como a participação política estava intimamente ligada à vivência cotidiana no sindicato, e não propriamente à condição de classe, conforme assinalavam as expressões nativas “os trabalhadores da comunidade”, os “trabalhadores com questão”, “os trabalhadores cujas questões passam pelo sindicato” e “os trabalhadores que comandam o movimento sindical” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 6). Embora, para Palmeira, a questão possa parecer “tautológica”, ela permitiria identificar fatores não estritamente econômicos envolvidos na mobilização política do campesinato, já que

é combativo politicamente quem se organiza e não quem encarna não se sabe que virtudes de um determinado estrato social. E, para que determinado grupo se organize, o que é determinante não é o seu ‘ser de classe’ (ou fração de classe) mas o conjunto de contradições a que está submetido num determinado momento e […] o aparato institucional dentro do qual serão vividas essas contradições (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 7).

Para o antropólogo, essas “contradições” estariam referidas ao processo de expropriação do campesinato e ao grau de acumulação capitalista que o informa, enquanto o “aparato institucional” diria respeito aos procedimentos jurídicos e legais definidos pelo Estado para a regulação dos conflitos. Essas variáveis eram importantes porque transversais às diferenciações de classe. Esclarecia o autor que não se tratava de negar a diferenciação camponesa, mas que ela “vai aparecer não ao nível econômico imediato, ao nível da própria comunidade, mas ‘deslocada’, a um nível propriamente político” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 8-9). O autor inverte os termos da correlação, afirmando que a participação política seria um “diferenciador” a partir do qual inclusive, mas não somente, a própria estratificação econômica poderia vir a ocorrer. Através do acesso a recursos possibilitados pela ação política, certas comunidades ou grupos lograriam diferenciar-se economicamente.

Antes de prosseguirmos, cabe um adendo importante. De acordo com Palmeira, era preciso diferenciar a explicação do porquê o campesinato - ou frações dele - se engaja politicamente e a explicação dos sentidos desse engajamento. Nos dois casos, somente distintos analiticamente, a disputa era fundamental. Vide, para tomarmos um exemplo do próprio autor, os embates que envolviam os sindicatos de trabalhadores, os sindicatos patronais e o Estado sobre o enquadramento dos camponeses como “trabalhadores rurais”, sobretudo entre aqueles que se utilizavam de mão de obra assalariada, além da familiar (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].)2 2 As estratégias dos governos militares em frear o ímpeto organizativo dos trabalhadores rurais não se limitavam à repressão violenta, mas a mecanismos legais - como o enquadramento sindical - que visavam justamente explorar as clivagens de classe. Em 2 de fevereiro de 1965, o governo de Castello Branco baixou a Portaria nº 71, que estabelecia a reunião em sindicatos das diferentes categorias de trabalhadores rurais, incluindo os autônomos em regime de propriedade familiar sem empregados. Algo que se alteraria com o Decreto-Lei nº 1.166, de 15 de abril de 1971, definindo trabalhador rural como aquele que presta serviço a um empregador rural e o proprietário como aquele que recorre a terceiros para atividade em regime individual ou coletivo. Cabia, a partir de então, ao camponês decidir sua vinculação ao sindicato patronal ou de trabalhadores. . A socialização promovida pela política não teria um sentido progressista ou conservador de antemão, mas, enquanto processo de aprendizado, a disputa era constitutiva dela e não poderia ser negligenciada.

Nesse ponto da argumentação, já parece claro que o antropólogo caminha na direção de destacar e mesmo conceder autonomia relativa à dimensão política frente aos condicionantes econômicos. Se a longa tradição de estudos sobre campesinato estabelecia como essencial a relação do camponês com a cidade (Shanin, 2005Shanin, Teodor. (2005). A definição de camponês: conceituações e desconceituações: o velho e o novo em uma discussão marxista. Nera, 8/7, p. 1-21.), para Palmeira essa relação seria marcadamente de “exclusão”. Portanto, propunha tomar “não a cidade aglomeração, mas a cidade como poder externo”, o que implicava afirmar que “ser camponês não significa simplesmente viver fora da aglomeração, mas antes de mais nada viver fora da civitas, da cidade política” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 9, grifo do autor)3 3 De acordo com o linguista francês Émile Benvesniste (2006), referência utilizada por Palmeira, a categoria civitas é equivocadamente traduzida por “cidade”. Suas raízes etimológicas se encontram na palavra civis, que significa “concidadão”. Civis tem valor recíproco e não é uma designação objetiva (sou civis daquele de quem eu sou civis, antes de ser civis de uma determinada cidade). Civitas é, portanto, o conjunto de civis, remetendo à ideia de coletividade e mutualidade dos civis. No caso das palavras gregas polis (cidade/Estado) e da sua derivação polítes (cidadão), a relação é diferente do latim. O Estado, corpo abstrato e fonte da autoridade, existe por si mesmo. É polítes quem é membro da polis, quem participa dela por direito e recebe cargos e privilégios. Seu estatuto de polítes depende, portanto, desse vínculo de dependência com o Estado. No caso grego, ao contrário do latim, parte-se da instituição para qualificar o membro ou participante. .

O problema fundamental estaria, por assim dizer, na contradição dessa situação, já que “o reconhecimento do camponês pela cidade assume a forma de um não-reconhecimento, isto é a forma de uma não-cidadania do camponês” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 9). Não-reconhecimento porque a “cidade política”, incluindo o Estado, toma como “natural” relações desiguais, “pensadas equivocadamente como formas igualitárias - relações familiares e de parentesco, hierarquias de grupos de idade, relações de patronagem e compadrio” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 12). A incorporação política do campesinato à civitas permite tematizar essas relações em associação com as desigualdades típicas da sociedade de classes. Ainda que, como advertia Palmeira, as relações pessoais por parte dos grupos camponeses pudessem ser reforçadas como uma espécie de “resposta cultural” ao domínio simbólico e econômico das classes dominantes, elas, na “sua desigualdade e particularidade representam uma espécie de óbice absoluto ao desenvolvimento da concidadania” (Palmeira, 1975Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1975). Diferenciação social e participação política do campesinato: primeiras questões. [S. l.; s. n.].: 12). Ressaltava o autor que, ao contrário de algumas das críticas direcionadas à Contag, na comunidade local também se encontravam fortes obstáculos à autonomia camponesa.

Os aspectos discutidos até aqui foram recuperados pelo autor no texto “A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato” (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.), onde discute diretamente a posição da Contag e de seus críticos. Palmeira voltava a destacar as especificidades das lutas dos sindicatos dos trabalhadores rurais em relação aos do mundo urbano, já que, historicamente, para estes a oposição política mais forte foi entre a “esquerda” e o Estado, enquanto para aqueles a oposição foi entre a “esquerda” e a Igreja (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.: 44 - 45). O autor se referia aqui ao papel da Igreja na organização política dos trabalhadores rurais pré-1964 e ao movimento de retomada da direção do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais das mãos de interventores, ligados à Igreja, em 1968. Essa preponderância da Igreja, inclusive no pós-1964, fez com que o Estado fosse um agente que observava “à distância” o desenrolar dos acontecimentos no campo. Diante do que vinha acompanhando como assessor da Contag, Palmeira afirmava que a luta camponesa vinha transformando esse poder externo e distante do Estado em algo interno à própria “comunidade camponesa”. Ator fundamental nesse processo, o sindicato vinha se constituindo como um “corpo estranho” nas relações entre campesinato e Estado, já que relativizava a mediação tradicional da “lei do fazendeiro” (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.: 48)4 4 O texto de Palmeira (1983) foi apresentado no seminário “Igreja e Questão Agrária”, organizado pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades) e o Centro João XXIII, no qual se discutira, entre outros temas, o papel dos sindicatos e da Igreja na luta camponesa. Segundo resumo dos debates feito por Vanilda Paiva, José de Souza Martins atribuía a importância do trabalho da Igreja à valorização do “caráter não-contratual” das lutas dos trabalhadores, a exemplo da noção de “posse” e as implicações dela na luta pela terra. Sobre este ponto, Jorge Romano questionou Martins se esta valorização das relações não-contratuais “não contribuiria para reforçar relações tradicionais de dominação no campo e se a conquista da cidadania não estaria vinculada ao avanço das relações contratuais” (Paiva, 1985: 22). Martins respondera que, embora o sindicato tivesse enfraquecido essas relações tradicionais de dominação, ele não abarcaria todos os âmbitos da vida camponesa e, em suas palavras, “o sindicato - ao contrário da Igreja - não tem um discurso sobre as relações de família ou vizinhança” (Paiva, 1985: 23). .

Tratava-se, por certo, de um processo. Segundo Palmeira, o regime pós-1964 fez com que as lutas que vinham se desenvolvendo assumissem novas formas e estratégias, mas, ao contrário do que supunham os analistas, elas não haviam desaparecido. O autor chamava a atenção para o fato de que as lutas contemporâneas evidenciavam uma “internalização da luta de classes”, já que não tinham a mesma projeção das grandes mobilizações do período pré-1964, mas faziam da esfera da produção e do trabalho cotidiano o lugar de resistência (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.: 48). De todo modo, os dois períodos de mobilização, embora com formas distintas de atuação, guardavam entre si laços de continuidade, algo como um tipo de aprendizado coletivo “acumulável”, cujos efeitos se tornavam decisivos a longo prazo.

Esse processo de transformações operadas pelas lutas camponesas era ainda mais significativo, afirmava Palmeira, quando se observava a proeminência do Estado na formação da sociedade brasileira, não raro substituindo a iniciativa privada na economia e ocupando os vácuos deixados pela sociedade civil no âmbito político (Palmeira, 1979Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1979). Desmobilização e conflito: relações entre trabalhadores e patrões na agroindústria pernambucana. Revista de Cultura e Política, 1/1, p. 41-56.). O movimento camponês vinha demonstrando como “a presença do Estado, através de suas políticas e de suas polícias, através de suas empresas e dos efeitos não necessariamente desejados que provoca” vinha sendo deslocada e suas funções remodeladas, ainda que com certos riscos, pelos próprios trabalhadores rurais em suas lutas (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.: 51). Diante desses efeitos acumulados a longo prazo, seria possível afirmar, segundo Palmeira, que “a mobilização política do campesinato, num certo sentido, cria o campesinato”, já que o retira do anonimato político ao assumir uma identidade e elabora formas de atuação coletiva, que, bem se diga, não estavam restritas aos sindicatos, mas se estendiam àquelas promovidas pela Igreja, partidos políticos e cooperativas (Palmeira, 1985Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1985). A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do campesinato. In: Paiva, Vanilda (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola , p. 43-51.: 49). Ao se definirem enquanto camponesas, essas lutas tinham ainda o efeito de unificar as diferentes frentes de reivindicações das categorias - pequenos produtores, posseiros, assalariados - diante de adversários também variados, ganhando força no movimento coordenado e no significado comum que lhes era emprestado5 5 A unificação das diferentes lutas, porque diferentes as condições sociais de cada categoria camponesa, não era algo pacífico no interior do próprio movimento e tampouco nos debates acadêmicos. Sobre isso, vide, por exemplo, a posição de Martins (1985) acerca das especificidades dessas lutas e, por conseguinte, de suas demandas, sobretudo no caso dos posseiros da Amazônia. Bastos (1984) também levanta uma série de tensões envolvidas no que denomina como processo de nacionalização da plataforma política das Ligas Camponesas às custas das particularidades das demandas iniciais dos camponeses. .

A organização política dos movimentos rurais no contexto dos anos 1970 e 1980 crescia e se diversificava, fazendo frente às políticas dos governos militares direcionadas ao campo (Delgado, 2012Delgado, Guilherme Costa. (2012). Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora UFGRS.). Os avanços tecnológicos em produção e distribuição não diminuíram as desigualdades e a pobreza rural, mas, ao contrário, as agravaram. A “modernização conservadora” no campo - como assim foram caracterizadas essas mudanças por boa parte da literatura do período (Delgado, 2012Delgado, Guilherme Costa. (2012). Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora UFGRS.; Martins, 1985Martins, José de Souza. (1985). A militarização da questão agrária no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes .; Silva, 1982Silva, José Graziano da. (1982). A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar.) - tornou a terra fonte importante de especulação, verdadeiro centro dinâmico do capitalismo brasileiro. Os novos contornos que a questão agrária vinha assumindo ficariam mais claros para Palmeira ao ocupar um cargo na burocracia estatal.

A RECONFIGURAÇÃO DA QUESTÃO AGRÁRIA E ABERTURA DEMOCRÁTICA

No fim dos anos 1970, as greves no campo e na cidade, o surgimento de novos partidos e a anistia indicavam o enfraquecimento do regime militar e a paulatina abertura política. A despeito das controvérsias sobre a funcionalidade do Estatuo da Terra (1964), a elaboração de uma legislação sobre reforma agrária, sintonizada com os avanços recentes dos movimentos dos trabalhadores rurais e reforçada pelo IV CNTR (1984), tornava-se tarefa premente no contexto de discussões da nova Constituinte. No início do governo Sarney (1985-1990), encabeçava este esforço o Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad), a cargo do advogado Nelson Ribeiro, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), cuja presidência era ocupada pelo agrônomo José Gomes da Silva. Nas duas instituições, foram promovidas reformulações em seus cargos e diretorias para comprometê-las com os anseios dos movimentos sociais e com a elaboração da Proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Em julho de 1985, com apoio da Contag, Palmeira foi indicado para a diretoria de Recursos Fundiários do Incra. Em pouco tempo, a instituição passaria por uma série de mudanças, sendo a primeira delas a exoneração de José Gomes da Silva, em outubro de 1985, mesmo mês em que foi apresentado o PNRA, e em seu lugar foi designado Nelson Ribeiro. Em maio de 1986, Sarney nomeia presidente da entidade, sem consulta a Ribeiro, o coronel Pedro Dantas, e, em menos de um mês, ambos deixam vagos os seus cargos. Em julho do mesmo ano, diante dos obstáculos que encontrava em suas tarefas, Moacir Palmeira pede exoneração.

A experiência como um dos diretores do Incra proporcionou a Palmeira um olhar por dentro do intrincado funcionamento da máquina pública (cf. Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.). Ao contrário do tido ideal weberiano de dominação burocrática, baseada numa hierarquia de cargos e funções regidas por regras abstratas e impessoais, formava-se uma verdadeira “burocracia segmentada”, tecida por redes de relações que não respeitavam filiações político-partidárias e que tampouco estavam comprometidas com a reforma agrária. Na verdade, essas redes estavam fundadas em relações pessoais mais primordiais e envolviam sociabilidades, como as de frequentar o mesmo clube, beber juntos, jogar futebol, que, no entanto, tinham força de sobrepujar questões ideológicas (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 54). Essas relações ensejavam ainda um jogo de influência envolvendo ex-funcionários, conhecedores da burocracia e contatos internos, que prestavam serviços a grandes proprietários. No lugar de funcionários públicos com ações orientadas de acordo com as competências e especialidades dos cargos, afirmava Palmeira, existiam verdadeiros especialistas em “transmutar os interesses privados em interesses públicos - ou, pelo menos, em torná-los interesses de órgãos públicos” (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 53).

O peso dessas relações se faria ainda sentir com mais força na elaboração do PNRA. Um dos objetivos daqueles que estavam pensando o Projeto, entre os quais Palmeira, era o de neutralizar ao máximo a especulação em torno da terra. Relata Palmeira que ao tentarem atingir esse objetivo, “acertamos o coração do sistema sem nos darmos conta disso” e, complementa, “talvez a reforma agrária mais convencional tivesse provocado menos resistência do que essa que visava à especulação” (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 56). Prova sintomática disso fora a reação vinda de São Paulo, superior aos estados onde vicejavam os latifundiários tradicionais. Ficava claro que a terra tinha uma função estrutural na sociedade brasileira e que encontrava ressonância nos âmbitos privado e público.

De dentro da máquina administrativa, Palmeira ia ganhando uma visão mais complexa da burocracia e do seu papel na formação de “coalizões de interesses” - e não propriamente de uma aliança de classes -, haja vista que envolvia, num emaranhado de relações, grupos com interesses diretos e indiretos sobre a reforma agrária, e alguns entre eles sequer esposavam uma concepção ainda que ampla sobre políticas a serem adotadas na área. Desse modo, reforçava Palmeira, a “própria burocracia iria dar à questão agrária uma nova configuração e uma dimensão outra” (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 55-56). Portanto, ao lado desse peculiar funcionamento burocrático e dos interesses sobre a especulação da terra, perpassando todo o Estado, somaram-se choques crescentes entre, de um lado, partes da diretoria do Mirad e do Incra alinhadas com forças sociais comprometidas com a reforma agrária, e, de outro, aquelas mais próximas a lobistas e grupos contra a reforma. Nesse jogo complexo e truncado de interesses e poder, “a única motivação comum aos grupos que se foram formando talvez fosse a tentativa da parte de cada um deles de ter o controle da máquina burocrática” (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 60). Aos poucos a rede ia se adensando e os grupos comprometidos com a reforma agrária foram cada vez mais imobilizados.

A passagem pelo Incra faria com que Palmeira alterasse sua perspectiva sobre a questão agrária no Brasil. Até então, o antropólogo direcionava sua atenção às relações entre grandes proprietários, movimentos sociais e Estado, focando nos riscos e acertos da centralização do sindicalismo rural. A partir de agora, o Estado e a burocracia terão relevância analítica distinta em seus argumentos, como demonstrado no artigo “Modernização, Estado e Questão Agrária” (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.). O texto alia adensamento de temas de pesquisa de Palmeira e, de forma geral, do grupo de pesquisadores que reunira ao seu redor (Carvalho, 2015Carvalho, Lucas Correia. (2015). Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), e uma revisão da literatura sobre a denominada “modernização conservadora”. Nele, encontramos mais uma vez o esforço de pensar a relação entre Estado e sociedade de forma conjugada, em suas tensões e possibilidades. Concordando com a tese mais fundamental da literatura sobre modernização da agricultura, de que esta deixou intocada ou mesmo agravou certos mecanismos de exclusão e desigualdade, Palmeira ressaltava, contudo, que, não foi dada a devida atenção aos fenômenos correlatos a esse processo, que guardavam certa autonomia em sua dinâmica e consequências (Palmeira, 1994Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1994). Burocracia, política e reforma agrária. In: Medeiros, Leonilde et al. (orgs.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, p. 49-65.: 88). Compreender as implicações sociais destes fenômenos auxiliaria, assim, a escapar dos debates sobre o significado econômico da reforma agrária, deixando em segundo plano o fato de que era uma questão socialmente posta. Para o antropólogo, seriam basicamente três fenômenos importantes a serem considerados: a expropriação do campesinato, a ação do Estado e a afirmação política do campesinato aliada à virada da Igreja. Nos concentraremos a seguir nos dois últimos.

De acordo com Palmeira, era preciso apontar quem seria o principal agente da promoção da modernização do campo. Ao contrário do que afirmava a literatura econômica dedicada ao tema, não era o empresariado moderno que, por razões desconhecidas, teria migrado da cidade para o campo, mas o Estado que, ao focar no setor agropecuário, promovendo a especulação em torno da terra, abriu caminho lucrativo para o empresariado. Políticas como as de crédito subsidiado, incentivos fiscais, leilões de terras públicas, entre outras, alteraram significativamente o perfil da agricultura brasileira, tornando-a atrativa, inclusive, para setores até então com pouco ou nenhum interesse por ela, como o mercado financeiro e as grandes indústrias. Como principal efeito dessa intervenção, cargos-chave do Estado passaram a ser disputados.

Historicamente, ressaltava o autor recorrendo à tese clássica de Victor Nunes Leal (1997Leal, Victor Nunes. (1997). Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), o Estado concedia “autonomia extralegal” aos grandes proprietários para que, dessa forma, assegurassem os votos necessários no Legislativo ou, via clientelas pessoais, cargos na burocracia estatal. Não se intervinha na estrutura agrária e, por conseguinte, na condição de proprietário. Estado e coronéis formavam um sistema, cujas partes necessitavam uma da outra. Para Palmeira, era esse tipo de relação entre Estado e sociedade que vinha se modificando, de modo que, neste novo contexto, a condição de grande proprietário não estava dada, por assim dizer. O próprio Estado tinha que criar essa condição e garanti-la via políticas públicas. “Paradoxalmente [afirmava o autor], a modernização provocou um aumento do peso político dos proprietários de terras, modernos e tradicionais” (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 106, grifo do autor).

A formação de clientelas pessoais por parte dos fazendeiros continuava a ser importante, mas, a partir de então, eram mediadas por uma burocracia, por certo mais complexa e igualmente mais difícil de dominar. Como demonstrava a passagem de Palmeira pelo Incra, era preciso forjar mecanismos eficazes para que os burocratas agissem, mesmo não comprometidos diretamente com fazendeiros e empresários. Desse modo, nas palavras de Palmeira, o Estado “se torna também um dos loci e um dos agentes econômicos, ao lado de alguns dos órgãos públicos que o compõem, de alguns de seus funcionários e dos vendedores e compradores de terra convencionais, dessas transações” (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 100, grifo do autor).

Ainda que, de acordo com o autor, nas decisões do Estado a balança pendesse mais para o lado dos grupos especuladores, era preciso considerar que os movimentos camponeses vinham fortalecendo sua organização e, por conseguinte, criando certas amarras às ações estatais (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 101). Ao introduzirem na legislação destinada ao campo categorias como latifúndio, empresa rural, arrendamento e parceria, o Estado, em que pese suas ambiguidades, como no caso da aplicação do “Estatuto da Terra”, limitou a margem de arbítrio de suas decisões, “ao mesmo tempo que tornou possível a sua intervenção sem o concurso de mediadores e abriu espaço para a atuação de grupos sociais que reconheceu ou cuja existência induziu” (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 95).

O que tornava, portanto, a face agrária da sociedade brasileira uma questão? De acordo com Palmeira, ao envolver diversos agentes, dentro e fora do Estado, fortalecendo inclusive os movimentos que demandavam soluções às desigualdades e exclusão no acesso à terra, a questão agrária se tornava estrutural, atravessando de ponta a ponta a sociedade. Contudo, ela se expressava, conforme Palmeira, em dois “movimentos”, não necessariamente centrados, já que formados por “configurações de interesses” diversas. De um lado, trabalhadores rurais organizados e fortalecidos; de outro, um Estado perpassado pelos negócios com a terra e que, sem poder ignorar as demandas dos trabalhadores, não raro, se voltava contra elas. Gerava-se um “impasse”: o primeiro movimento colocava a reforma agrária na “ordem do dia”, mas o peso dos interesses agrários dentro do Estado, representado pelo segundo movimento, era suficientemente forte para inibir qualquer tentativa mais séria de realizá-la (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 106). Dessa forma, Palmeira formulava posição própria em relação ao amplo debate sobre a especulação dos negócios em torno da terra: expressando uma nova forma de dominação condizente com as mudanças no capitalismo agrário, ela não colocava o Estado de um lado e a sociedade do outro (Delgado, 2012Delgado, Guilherme Costa. (2012). Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora UFGRS.; Martins, 1985Martins, José de Souza. (1985). A militarização da questão agrária no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes .; Silva, 1982Silva, José Graziano da. (1982). A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar.). O Estado não seria um bloco monolítico, garantindo as políticas públicas que fomentavam a especulação, mas, dentro dele, diferentes grupos colidiam, ainda que com forças desiguais. O impasse a que chagara a questão agrária surgira da complexificação das funções burocráticas do Estado, conjugando-se às amarras legais, de que em parte souberam aproveitar os movimentos sociais.

A experiência como diretor do Incra deixara marcas no trabalho intelectual de Palmeira e na forma como passou a compreender a questão agrária. Assim percebemos como Estado e sociedade foram categorias de análise mobilizadas por ele de forma não-disjuntiva ao longo dos trabalhos dedicados ao campesinato e política. E mais: a atividade como assessor permitiu acompanhar de perto, no processo de lutas, as modificações na natureza daquela relação. Dessa maneira, “o impasse do Estado em administrar essa questão socialmente construída reflete também aquele da sociedade em escolher o Estado que deseja para gerir os seus próprios impasses” (Palmeira, 1989Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (1989). Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3/7, p. 87-108.: 106). A reforma agrária, questão imposta por amplas parcelas da sociedade, não estava dissociada de uma dinâmica social pouco democrática, na qual não vigorava a civitas em seu sentido pleno (ou seja, o compartilhamento do status de concidadão, base do reconhecimento da autonomia e igualdade do outro). E essa dinâmica frustrou rapidamente as perspectivas abertas pelo debate sobre a Constituinte e os caminhos da Nova República.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diálogo entre as atividades de assessoria e acadêmica foram fundamentais para as formulações de Moacir Palmeira acerca da relação entre campesinato e política, fulcro das discussões sobre questão agrária naquele momento (Garcia Júnior & Grynszpan, 2002Garcia Júnior, Afrânio & Grynszpan, Mário. (2002). Veredas da questão agrária e enigmas do grande sertão. In: Miceli, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira: 1970-2002. São Paulo: Anpocs/Sumaré , p. 311-348.). No entanto, Palmeira sempre salientou que as duas atividades se uniam e se separavam a um só tempo por preocupações intelectuais distintas: teórico-analíticas, de um lado, e práticas, de outro. Mas seria justamente a diferença entre as atividades que tornava possível o intercâmbio de questões, e não o contrário. Tal modo de conduta intelectual se torna mais significativo se levarmos em conta que os significados de categorias como organização, autonomia, tutela, representatividade, assim como campesinato, trabalhador rural, latifúndio, reforma agrária, entre outras, não eram consensuais nem na política, nem na academia. Era preciso compreender como elas operavam em cada um desses campos, inclusive como forma de se identificar quais eram os obstáculos a se enfrentar. Certo é que, para Palmeira, qualquer esforço de mediação deveria levar em conta a distinção entre elas e não a sua confluência.

Posto nesses termos, o sentido da relação entre assessoria e academia para Palmeira está muito próximo da definição de Anthony Giddens, do cientista social enquanto “comunicador” (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 335). Para o sociólogo inglês, uma das tarefas primordiais do cientista social é apresentar redes de significados pertencentes a um contexto da vida social a agentes inseridos em outros contextos. Para tanto, o pesquisador precisa elaborar conceitos de “segunda ordem”, que se utilizem da metalinguagem das ciências sociais pressupondo modalidades de conhecimento e habilidades cognitivas que os agentes empregam cotidianamente (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 335).

Essa tarefa teórica e analítica se torna ainda mais desafiadora na medida em que os atores leigos estão preocupados, sobretudo, com “a utilidade prática do ‘conhecimento’”, enquanto os cientistas sociais buscam compreender as características institucionais e as coerções estruturais que porventura distorcem ou restringem aquele conhecimento, incluindo nisso, mas não exclusivamente, as ideologias (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 395). Ao contrário da ideia de uma ruptura epistemológica ou da confluência entre o conhecimento produzido pelas ciências sociais e o senso comum, Giddens chama a atenção para o fato de que a teoria social e os cientistas sociais podem estar mais suscetíveis às reformulações vindas dos atores leigos, assim como que os próprios atores leigos podem recorrer criativamente a essas teorias em suas práticas cotidianas (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 402). Como teóricos sociais em potencial, os atores sociais são receptivos às teorias, não raro modificando-as de acordo com suas experiências e impondo aos cientistas sociais novos desafios interpretativos. Nessa dinâmica, reforça o autor, “as objeções leigas a tais ‘descobertas’ podem ter assim uma base muito sólida. A retificação não é, em absoluto, puramente característica do pensamento leigo” (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 334).

Desse modo, o conhecimento produzido pelas ciências sociais entra no curso da vida ordinária, voltando a elas já de forma modificada, num movimento cíclico ininterrupto, processo que Giddens denomina de “dupla hermenêutica” (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 335). Nos trabalhos de Moacir Palmeira, a mediação comunicativa de que nos fala Giddens parece bem marcada pela consciência de que o cientista social faz parte de uma correia de transmissão entre conhecimento comum e conhecimento científico, separando-as, contudo, por suas exigências específicas. Para Palmeira, o desafio era criar uma forma de diálogo entre as atividades que não repetisse os empecilhos que havia identificado em sua tese de doutorado. Nas palavras dele, na função de assessor “dialogando com as lideranças, dando forma a suas ideias, mas também formulando coisas na linguagem dos agraristas […], [pude] contribuir para a renovação da linguagem sindical e, de algum modo, para o arejamento da linguagem e das concepções dos agraristas” (Palmeira, 2014Palmeira, Moacir Gracindo Soares. (2014). Memorial do candidato. Mana , 20/2, p. 371-409.: 390-391).

Se ao longo deste trabalho demos maior destaque ao modo como a atividade de assessoria foi fundamental na avaliação da questão agrária na obra de Moacir Palmeira, não se trata de negar o caráter de mão dupla que define o movimento de reflexividade do qual falamos acima, mas, antes, de apontar as especificidades no modo como o autor compreendia a relação entre assessoria e academia e como ela atuou como componente interno de suas formulações intelectuais, informando questões de pesquisa e seus significados heurísticos e normativos. É importante que se diga que os textos de assessoria escritos por Palmeira ou que tinham a sua participação passavam por discussão internas à Contag antes da publicação. Era expressão de um trabalho coletivo e por isso saía sem autoria. Daí a dificuldade em investigar os caminhos desses textos, de sua elaboração até a publicação. O que não deixa de ser revelador do modo pelo qual Palmeira concebia o trabalho de assessoria e a contribuição, enquanto intelectual, que poderia dar ao movimento camponês.

Contudo, há um ponto que faz convergir as experiências acadêmica e de assessoria na obra de Palmeira: a aposta na política entendida como um campo de lutas. Não há hegemonia pré-estabelecida, caminho a ser trilhado de antemão e tampouco um ponto de chegada determinado. Todavia, essa concepção só poderia fazer sentido, e por isso se constituía enquanto luta, se houvesse de fato democracia, não no sentido restrito de certos procedimentos estatuídos, mas numa definição mais ampla de reconhecimento do poder de autodeterminação dos grupos populares. A importância dessa compreensão é ainda mais notória se considerarmos a autorrepresentação da Contag nesse processo. Segundo José Francisco da Silva (apud Medeiros & Soreano, 1984Medeiros, Leonilde Sérvolo de & Soreano, Joaquim. (1984). Reflexões sobre o sindicalismo rural brasileiro: a Contag [Comunicação]. 36ª Reunião Anual da SBPC, São Paulo, SP, Brasil.), presidente da confederação entre 1968 e 1986, “os trabalhadores vinham se transformando em cidadãos” conforme o envolvimento na luta, concepção muito próxima daquela trabalhada por Moacir em suas pesquisas.

Instado pela dinâmica dos movimentos sociais que observava de perto a refletir sobre o truncado processo de entrada dos camponeses na comunidade política, Palmeira forneceu também uma interpretação dos impasses da democracia entre nós. Em relação à reforma agrária, principal bandeira de luta dos camponeses, Palmeira destacava que não se tratava de uma reivindicação abstrata, nem um “projeto de futuro”, para cuja realização dependeria o desenvolvimento de condições propícias, mas de um “processo”, e, como tal, “envolve lutas, conquistas, recuos e assim por diante” (Carvalho & D`Incao, 1982Carvalho, Abdias Vilar de & D´Incao, Maria da Conceição (coords.). (1982). Reforma agrária: significado e viabilidade. Petrópolis: Vozes/Cedec.: 68). O avanço das medidas de reforma agrária - ainda que muitas vezes de forma paulatina, mas contumaz em seu afrontamento à política destinada ao setor durante a ditadura -, ampliaria a democracia, incorporando, na explicação do autor, “os excluídos da propriedade da terra”, aqueles que “não s[endo] reconhecidos, estão excluídos da própria comunidade política” (Carvalho & D`Incao, 1982Carvalho, Abdias Vilar de & D´Incao, Maria da Conceição (coords.). (1982). Reforma agrária: significado e viabilidade. Petrópolis: Vozes/Cedec.: 21).

Contudo, as expectativas de reconhecimento social criadas no bojo dos movimentos camponeses no decorrer das lutas ligavam-se, na análise do autor, à compreensão mais ampla das mudanças e acomodações na relação entre Estado e sociedade. Os impasses e tensões surgidos nessa relação são alguns dos temas recorrentes na sociologia política brasileira, cuja linha de continuidade e descontinuidade, formada por diferentes obras e autores, constitui uma “sequência cognitiva” com importantes rendimentos analíticos (Botelho, 2007Botelho, André. (2007). Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais , 50/1, p. 49-82.). No que toca a essa tradição de estudos, Palmeira traz uma inovação ao destacar que não se trata de mera “captura” dos recursos públicos e institucionais pelos interesses oligárquicos ou de fortalecimento destes pelos benefícios extralegais concedidos por agentes estatais, mas de uma dinâmica na qual grupos em diferentes níveis bloqueiam o processamento democrático das demandas por parte do Estado. Se se entende que a busca por reconhecimento envolve um alargamento do escopo da civitas - da coletividade e mutualidade entre os cidadãos -, contraditoriamente, destaca Palmeira, ela pode trazer a reboque novos conflitos, redefinindo não só os adversários, mas engendrando também formas de não-reconhecimento.

Conforme essa interpretação, é revelador da formação de uma questão agrária, e de modo geral da dinâmica da sociedade brasileira, que a lenta e gradual democratização tenha sido o momento de uma nova forma de blindagem do Estado às demandas crescentes dos trabalhadores rurais. Os estudos de Palmeira sobre a relação entre campesinato e política captam o sentido de um processo social mais geral da sociedade brasileira: a conquista do reconhecimento de demandas de grupos populares em certas esferas não raro é seguida ou mesmo enlaçada a formas antigas e novas de não-reconhecimento. O que não diminuiu o papel e as vitórias dos movimentos sociais rurais, mas tornam os desafios da democracia entre nós ainda maiores.

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NOTAS

  • 1
    Talvez seja essa uma concepção fulcral de política que envolvia os embates da época. Era assim que, referindo-se às crescentes diferenças de estratégia para as lutas camponesas entre a Contag e a CPT, acirradas principalmente no final dos anos 1970, Moacir Palmeira declarou em depoimento que “a CPT negava a política, na época do famoso documento escrito pelo Ivo Poletto, que era um tipo de concepção que se chocava com a atividade da Contag” (Palmeira apud Ricci, 1999Ricci, Rudá. (1999). Terra de ninguém: representação sindical rural no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.: 97). Ivo Polleto era assessor da CPT e o documento citado se intitula o “III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais”, que apresentava as resoluções do Congresso da Contag realizado em 1979. Neste documento, tornavam-se explícitas as críticas à estrutura hierárquica da Contag, que julgavam desatrelada da realidade do povo, priorizando a resolução de conflitos por vias legais e administrativas, e não pela ação autônoma e organizada do campesinato.
  • 2
    As estratégias dos governos militares em frear o ímpeto organizativo dos trabalhadores rurais não se limitavam à repressão violenta, mas a mecanismos legais - como o enquadramento sindical - que visavam justamente explorar as clivagens de classe. Em 2 de fevereiro de 1965, o governo de Castello Branco baixou a Portaria nº 71, que estabelecia a reunião em sindicatos das diferentes categorias de trabalhadores rurais, incluindo os autônomos em regime de propriedade familiar sem empregados. Algo que se alteraria com o Decreto-Lei nº 1.166, de 15 de abril de 1971, definindo trabalhador rural como aquele que presta serviço a um empregador rural e o proprietário como aquele que recorre a terceiros para atividade em regime individual ou coletivo. Cabia, a partir de então, ao camponês decidir sua vinculação ao sindicato patronal ou de trabalhadores.
  • 3
    De acordo com o linguista francês Émile Benvesniste (2006)Benveniste, Émile. (2006). Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes., referência utilizada por Palmeira, a categoria civitas é equivocadamente traduzida por “cidade”. Suas raízes etimológicas se encontram na palavra civis, que significa “concidadão”. Civis tem valor recíproco e não é uma designação objetiva (sou civis daquele de quem eu sou civis, antes de ser civis de uma determinada cidade). Civitas é, portanto, o conjunto de civis, remetendo à ideia de coletividade e mutualidade dos civis. No caso das palavras gregas polis (cidade/Estado) e da sua derivação polítes (cidadão), a relação é diferente do latim. O Estado, corpo abstrato e fonte da autoridade, existe por si mesmo. É polítes quem é membro da polis, quem participa dela por direito e recebe cargos e privilégios. Seu estatuto de polítes depende, portanto, desse vínculo de dependência com o Estado. No caso grego, ao contrário do latim, parte-se da instituição para qualificar o membro ou participante.
  • 4
    O texto de Palmeira (1983) foi apresentado no seminário “Igreja e Questão Agrária”, organizado pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades) e o Centro João XXIII, no qual se discutira, entre outros temas, o papel dos sindicatos e da Igreja na luta camponesa. Segundo resumo dos debates feito por Vanilda Paiva, José de Souza Martins atribuía a importância do trabalho da Igreja à valorização do “caráter não-contratual” das lutas dos trabalhadores, a exemplo da noção de “posse” e as implicações dela na luta pela terra. Sobre este ponto, Jorge Romano questionou Martins se esta valorização das relações não-contratuais “não contribuiria para reforçar relações tradicionais de dominação no campo e se a conquista da cidadania não estaria vinculada ao avanço das relações contratuais” (Paiva, 1985Paiva, Vanilda (org.). (1985). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola.: 22). Martins respondera que, embora o sindicato tivesse enfraquecido essas relações tradicionais de dominação, ele não abarcaria todos os âmbitos da vida camponesa e, em suas palavras, “o sindicato - ao contrário da Igreja - não tem um discurso sobre as relações de família ou vizinhança” (Paiva, 1985Paiva, Vanilda (org.). (1985). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola.: 23).
  • 5
    A unificação das diferentes lutas, porque diferentes as condições sociais de cada categoria camponesa, não era algo pacífico no interior do próprio movimento e tampouco nos debates acadêmicos. Sobre isso, vide, por exemplo, a posição de Martins (1985)Martins, José de Souza. (1985). A militarização da questão agrária no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes . acerca das especificidades dessas lutas e, por conseguinte, de suas demandas, sobretudo no caso dos posseiros da Amazônia. Bastos (1984)Bastos, Elide Rugai. (1984). As ligas camponesas. Petrópolis: Vozes. também levanta uma série de tensões envolvidas no que denomina como processo de nacionalização da plataforma política das Ligas Camponesas às custas das particularidades das demandas iniciais dos camponeses.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2019
  • Revisado
    08 Abr 2020
  • Aceito
    18 Maio 2020
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