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A TEOLOGIA ECONÔMICA DOS MERCADOS DESENRAIZADOS

Deutschmann, Cristoph. . (2019). Disembedded markets: economic theology and global capitalism . Londres: Routledge, 158p.

A obra do sociólogo alemão Christoph Deutschmann é voltada para a sociologia econômica, do trabalho e das organizações. Neste livro, ele apresenta uma interessante aproximação entre a sociologia econômica e a sociologia da religião, a partir da ideia de que o capitalismo como sistema social ocupou o lugar que antes era relegado, segundo Durkheim (2003Durkheim, Émile. (2003). As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes.), à religião, isto é, não sendo apenas um subsistema econômico, mas sim a autorrepresentação simbólica da unidade social.

Grande parte do livro é utilizado para caracterizar os mercados capitalistas. Deutschmann critica na obra de Karl Polanyi a ambiguidade entre a crítica histórica e antropológica ao mito do homo economicus da economia neoclássica e a aceitação dessa mesma concepção como uma descrição realista da ação econômica na sociedade capitalista, apesar de frisar os impactos devastadores da mercantilização da terra, do trabalho e do dinheiro na vida social. Deutschmann retém, da análise polanyiana, as consequências destrutivas do desenraizamento dos mercados e a visão do liberalismo econômico como um “credo militante”, que busca realizar as suas próprias profecias. Mas, ao mesmo tempo, critica a ideia de que o mercado autorregulado seria dissociado da sociedade, apontando o arcabouço institucional da sua instauração.

Ao contrário da visão do mercado como um subsistema técnico e não social, que, segundo Deutschmann, contaminou até mesmo os sociólogos críticos ao mainstream liberal, como Polanyi e Habermas, o mercado capitalista é definido como um sistema social baseado na institucionalização da propriedade privada, do dinheiro e da troca de mercadorias como normas impositivas e legitimadas. Deutschmann distingue nos processos de desenraizamento dos mercados capitalistas uma dimensão territorial (ruptura das bases locais da troca pela crescente integração dos mercados internacionais), uma dimensão social (eliminação de formas não mercantis de atividade e aglutinação de populações ao mercado), material (mercantilização de produtos, fatores de produção e dos próprios meios de troca) e temporal (generalização do crédito como gestão de expectativas sob uma concepção linear e unidirecional do tempo). Cada dimensão apresenta seus próprios paradoxos, contradições e antagonismos sociais associados aos mercados capitalistas.

A origem da visão do mercado autorregulado como processo naturalístico, que se desenvolve espontaneamente ao ser “liberado” do intervencionismo estatal, é rastreada ao iluminismo escocês. A sociedade que Adam Smith (2013Smith, Adam. (2013). A mão invisível. São Paulo: Companhia das Letras.) observava tinha uma estrutura de classes semiaristocrática, na qual a burguesia capitalista ocupava a posição de uma classe média ascendente, em uma sociedade comercial em expansão. Além disso, Smith preocupava-se não só com os benefícios coletivos não intencionais gerados pelos egoísmos racionais, mas ia além, refletindo sobre a origem e importância dos “sentimentos morais”, que, de certa maneira, são os requisitos da troca livre entre iguais, desenrolada no mercado idealizado. Dessa maneira, a crença na “mão invisível” foi desenraizada do seu contexto originário, convertida em credo militante.

Retomando os argumentos de Luhmann sobre a epistemologia das ciências sociais, Deutschmann afirma que, para um ator posicionado dentro de um sistema social, é impossível observá-lo, pois isso exigiria uma inteligência maior que a totalidade das operações realizadas pelo conjunto de atores sociais posicionados no próprio sistema. São possíveis, apenas, as observações de segunda ordem, que se referem às próprias interpretações e representações do sistema social, feitas pelos atores que nele operam cotidianamente. Por isso, Deutschmann considera que a totalidade social capitalista é essencialmente opaca, apesar de atividades cotidianas carecerem da produção de interpretações sobre esse mesmo sistema, incognoscível em sua totalidade. Nesse sentido, o capitalismo, enquanto sistema social, não pode ser observado diretamente, sendo objeto apenas de observações de segunda ordem, entre as quais se destaca o discurso econômico.

Nas sociedades tradicionais, a religião foi a representação simbólica da coletividade, expressando a unidade social e o pertencimento. Com o processo de modernização social, a religião tradicional é cada vez mais relegada a uma esfera especializada e restritiva pelo processo de diferenciação funcional, tornando-se, enfim, uma questão individual. A opacidade do capitalismo se assemelharia à opacidade de Deus nas religiões tradicionais. Segundo Deutschmann, os mercados autorregulados assumem, dessa maneira, uma função análoga à da divindade nas religiões tradicionais: é impossível observá-los diretamente, e “a teoria econômica reconstrói a realidade opaca dos mercados de uma maneira que os apresenta como coerentes, racionais e legítimos” (Deutschmann, 2019Deutschmann, Christoph. (2019). Disembedded markets: economic theology and global capitalism. Londres: Routledge.: 144).

Dessa maneira, embora o capitalismo como sistema social, e não apenas subsistema econômico, tenha se tornado o elo básico da totalidade social, isso não significa que a economia tenha se transformado na principal ciência social, de um ponto de vista epistemológico, apesar de, na prática, o discurso econômico ter a sua posição de proeminência na tomada e na justificativa de decisões institucionais, adquirindo uma hegemonia moral e política. A questão, para Deutschmann, como anteriormente fora a religião para Weber e Durkheim, não é a verdade factual do discurso econômico, e sim as suas repercussões na ação social.

Como representação da unidade do sistema social, que é impossível observar na prática, mas precisa ser rotineiramente interpretada nas atividades sociais, a teoria econômica hegemônica tornou-se uma teologia moderna: uma racionalização e sistematização das crenças e rituais que pautam as práticas sociais, uma representação que funciona como legitimadora da ordem dominante, apresentando os processos socioeconômicos contraditórios, conflituosos e fragmentários como um conjunto harmonioso e racional, da mesma maneira que, tradicionalmente, as teologias interpretavam um mundo considerado injusto, cruel e desordenado como uma harmonia cósmica dirigida por Deus. A teodiceia, dessa maneira, também está presente no pensamento econômico dominante, tal como nas tradicionais doutrinas teológicas.

A existência de ortodoxias e de heterodoxias no pensamento econômico e a crença ortodoxa em entidades não empíricas, como a mão invisível - com sentido de uma sociodiceia -, parecem reforçar essa ideia de uma teologia econômica. Da mesma forma, se o pensamento econômico assume a função e a estrutura de um discurso teológico, o empreendedorismo apresenta-se fortemente imbuído pelo carisma, pelos mitos e pelo dever moral. Trata-se, no entanto, de um minimalismo moral que não reforça a solidariedade a nível local, como as religiões tradicionais, mas contém um impulso universalista muito maior do que qualquer religião anterior.

O impulso para o enriquecimento e progresso material substituem a busca por salvação, fazendo do mercado capitalista o exemplo mais acabado de religião intramundana e universalista; o capitalismo tornou-se uma religião mundial, com sentido histórico universalista, como Weber (1997Weber, Max. (1997). Sociología de la religión. Bogotá: Fondo de Cultura Económica.) interpretara o cristianismo, o islamismo e o budismo. Inovar e prosperar deixam der ser algo desejado por suas consequências positivas para o indivíduo que persegue esses objetivos, e se tornam um imperativo moral, valorizado por si mesmo, enquanto a mobilidade social de baixo para cima é interpretada como expressão das qualidades morais superiores daquele que enriquece.

Os mercados capitalistas não se tornam, dessa maneira, apenas desenraizados, como na análise de Michael Polanyi (2000Polanyi, Karl. (2000). A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Tradução Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus.), pois é a sociedade que agora se encontra enraizada e imersa no sistema social capitalista. Aqui, a crítica atinge também Habermas (1980Habermas, Jürgen. (1980). A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), que, assim como Polanyi, afirmava que o subsistema econômico se caracteriza como um reino de ação instrumental e técnica, quase naturalístico, preservando, no fundo, a imagem neoclássica de uma economia capitalista autorregulada e guiada apenas pela racionalidade técnica. Tampouco a caracterização clássica de Marx (1978Marx, Karl. (1978). Contribuição à crítica da economia política. In: Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).), do capitalismo como uma “base material” da sociedade burguesa, é plenamente adequada para analisar aquilo que se tornou o capitalismo global de nossa época. No entanto, a análise de Deutschmann retoma temas e conceitos marxistas centrais, além da óbvia afinidade entre o “fetichismo de mercadoria” e o “capitalismo-religião”, entre os quais o mais-valor (ou mais-valia), reconstruído em articulação à “destruição criativa” teorizada por Schumpeter (1961Schumpeter, Joseph A. (1961). O processo da destruição criadora. In: Schumpeter, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, p. 104-110.).

Deutschmann entende como essencial ao capitalismo não só o controle sobre produtos do trabalho por meio do dinheiro, mas também o controle daquilo que pode ser produzido. Instituições como o trabalho assalariado e o crédito são, assim, definidas como mercantilização e controle das potencialidades produtivas, as quais abarcam igualmente as capacidades criativas humanas, sendo, por isso, a inovação um fator central para o crescimento capitalista. Crescimento capitalista baseado apenas nos cortes de despesas, rebaixamento dos salários, aumento da jornada e intensidade do trabalho e outras formas de extração de renda em favor dos capitalistas é possível, porém se sustenta sobre alicerces frágeis e instáveis, não garantindo um desenvolvimento econômico robusto, apesar de provavelmente assegurar o enriquecimento das classes proprietárias mais poderosas.

No entanto, a criatividade precisa de um ambiente de liberdade pessoal e apoio social para prosperar, o que é constantemente solapado pela própria dinâmica capitalista de mercantilização de todas as atividades e produtos sociais, gerando alienação do trabalho e do lazer e bloqueando efetivamente as esperanças de mobilidade social ascendente por membros dos estratos baixos e médios da população. O processo de destruição criativa necessário ao desenvolvimento econômico, portanto, ameaça seus próprios alicerces, isto é, a pluralidade institucional. Da mesma forma que a maioria das atividades sociais não mercantis depende de apoio financeiro, ou seja, da mediação de um dos principais mecanismos de funcionamento dos mercados capitalistas e, portanto, do crescimento econômico, a própria dinâmica de mercantilização que proporciona os meios de financiamento das atividades não mercantis as ameaça. Desse mesmo modo, a crescente desigualdade social, resultante das dinâmicas de mercado cada vez mais autoafirmadas e impositivas, torna cada vez menos realistas e factíveis as aspirações de mobilidade social ascendente, que movem o empreendedorismo. O minimalismo moral capitalista, junto com o enrijecimento da estrutura de classes capitalista, arruína e desestabiliza os seus próprios alicerces.

O livro apresenta uma discussão instigante, reunindo argumentos da teoria sociológica e da sociologia econômica empírica. Ainda assim, a conexão entre capitalismo e religião e, sobretudo, a natureza teológica do discurso econômico, poderiam ser desenvolvidos em maior profundidade, por exemplo, com análises concretas de como essas funções religiosas são desempenhadas no capitalismo contemporâneo. Nada impede, porém, que outros pesquisadores abordem este problema.

REFERÊNCIAS

  • Deutschmann, Christoph. (2019). Disembedded markets: economic theology and global capitalism. Londres: Routledge.
  • Polanyi, Karl. (2000). A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Tradução Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus.
  • Durkheim, Émile. (2003). As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes.
  • Schumpeter, Joseph A. (1961). O processo da destruição criadora. In: Schumpeter, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, p. 104-110.
  • Smith, Adam. (2013). A mão invisível. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Weber, Max. (1997). Sociología de la religión. Bogotá: Fondo de Cultura Económica.
  • Habermas, Jürgen. (1980). A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
  • Marx, Karl. (1978). Contribuição à crítica da economia política. In: Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
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