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A morte em forma de poesia: comoção, indignação e reivindicação em cordéis midiatizados

Death in form of poetry: commotion, indignation and vindication in midiatized cordéis

Resumo

Este artigo reflete parte das análises que vêm sendo desenvolvidas em nossa pesquisa de doutorado, cujo enfoque se constitui a partir da existência de uma dimensão argumentativa em cordéis que fazem interface com a mídia de informação. Em uma argumentação retórica, o raciocínio lógico e a demonstração não são suficientes para garantir a eficácia da interação, pois, ao basear-se na adesão do interlocutor a uma tese, através da crença, instauram-se outros pré-requisitos que devem ser observados, como o ethos do locutor ou a sua honestidade, sinceridade, senso de justiça, seriedade e confiabilidade; o pathos ou a capacidade do locutor de emocionar seu público através da comoção, da solidariedade, da indignação e da benevolência; e o lógos ou o próprio discurso e sua racionalidade, utilizado pelo locutor para reforçar seu ponto de vista e suas representações sociodiscursivas em torno do tema tratado. Ao analisarmos cordéis cuja temática gira em torno do homicídio, pudemos encontrar esse raciocínio teórico-metodológico.

Palavras-chave:
cordel; mídia; morte

Abstract

This article makes a reflection departing from the analyzes that are being developed in my doctoral research, whose focus builds itself departing from the existence of an argumentative dimension in cordel literature, that make an interface with the information media. In a rhetorical argumentation, logical thought and demonstration aren’t enough to guarantee the efficiency of the interaction, because, while basing itself on the interlocutor adhesion to a thesis, through belief, other re-requirements are raised and need to be observed, like the speaker ethos or his honesty, sincerity, sense of justice, seriousness and reliability; the pathos or the ability of raising emotions in the public logos or the discourse itself and its rationality, using by the speaker to reinforce his point of view and his socio-discursive representations around the given theme. When we analyze cordel works whose theme is homicide, we could find this theoreticalmethodological reasoning.

Key words:
cordel; media; death

A morte enquanto fenômeno inexorável, que acomete a todos os indivíduos, pode ser observado diferentemente pela filosofia, pela medicina, pela religião, pela legislação; ela pode também ser descrita de forma sutil, eufêmica, dramática e até mesmo de forma fria, objetiva ou quase técnica por um médico legista, por exemplo. Certamente, cada um desses indivíduos teria um olhar, um foco de interesse distinto diante da morte. O religioso poderia se conformar com o destino imposto por Deus; o filósofo buscaria talvez um sentido para a existência humana, perguntando-se para onde iria o nosso espírito depois que o corpo morre; um advogado cuidaria da divisão dos bens deixados pelo(a) falecido(a), ou cuidaria da acusação ou defesa do réu, caso o morto tenha sido assassinado; já o médico faria uma autópsia para saber as causas da morte. Ao final, todos apresentariam as conclusões de suas reflexões, pautadas em indícios, provas e crenças, para convencer o outro de que as teses apresentadas são as mais bem fundamentadas, as mais verdadeiras e coerentes.

Cada qual, “vestindo a sua identidade”, iria traçando seu ponto de vista sobre o assunto com base na sinceridade e na honestidade, ou seja, virtudes que cada um implicaria em seu discurso para captar a atenção do interlocutor. Cada qual buscaria o melhor raciocínio para chegar às suas conclusões e lançaria mão (uns mais e outros menos) de emoções no intuito de aproximar o destinatário da tese proposta.

Mas o que dizer de um cordelista quando este tematiza a morte em seus folhetos? Estaria ele também, investido de uma identidade, argumentando, expondo seu ponto de vista com relação ao assunto? Mas que “tom” ganharia a fala de um poeta ao tematizar a morte? Quais sentimentos ele buscaria suscitar no seu público leitor-ouvinte? De quais raciocínios ele lançaria mão? Seria ele um questionador? Um homem de fé? Um cientista? Um humorista? Um justiceiro?

Cordel midiatizado e dimensão argumentativa

O nosso objetivo para este artigo é compreender a dimensão argumentativa existente em folhetos de cordel que se constituem na fronteira entre o domínio literário e o domínio midiático, os quais chamaremos de cordel midiatizado. Tais cordéis dialogam com as mídias de informação (TV, rádio, jornal e internet), seja apropriando-se dos conteúdos e das formas de problematizá-los, seja corroborando os pontos de vista veiculados, ou mesmo criticando a conduta das mídias diante dos temas abordados.

Ao se apropriar do discurso midiático, o poeta parece se investir também de uma identidade midiatizada que se mistura à sua identidade de poeta. Essa mistura que gera a figura do que os próprios cordelistas costumam chamar de poeta-repórter é projetada discursivamente, juntamente com outras estratégias muito utilizadas pelas mídias de informação, como as de captação pelas emoções, gerando efeitos de dramatização e espetacularização da informação.

Ajustaremos o foco da nossa reflexão para a forma como o cordelista, influenciado pelo discurso midiático, representa o óbito de pessoas que foram, em princípio, assassinadas. A nossa hipótese é de que, ao reconstruir um acontecimento midiático em torno da morte de alguém, o cordelista se posicione diante do fato, procurando persuadir o leitor/ ouvinte a aderir a esse posicionamento, por meio de um mecanismo argumentativo que gira em torno das categorias do ethos, do pathos e do lógos.

Partimos do pressuposto de que todo texto possui níveis de argumentatividade (Plantin, 2008PLANTIN, Christian (2008). “A argumentação biface”. In: LARA, Gláucia Muniz et al. Análise do discurso hoje. Rio de Janeiro: Lucerna. v.2.) e sabemos que o raciocínio lógico e a demonstração não são suficientes para persuadir o leitor/ouvinte, no caso de discursos que se baseiam na adesão do interlocutor a uma tese, através de opiniões advindas de seu universo de crenças e de valores, como é o caso dos cordéis em questão.

Ao basear-se na adesão do interlocutor a uma tese, através da crença, os cordéis midiatizados utilizam outros elementos para persuadir, como: o ethos do locutor ou a sua honestidade, sinceridade, senso de justiça, seriedade e confiabilidade; o pathos ou a capacidade do locutor de emocionar seu público através da comoção, da solidariedade, da indignação e da benevolência; e o lógos ou o próprio discurso e sua racionalidade, utilizado pelo locutor para reforçar seu ponto de vista e suas representações sociodiscursivas em torno do tema tratado.

Dessa forma, os pressupostos teóricos formulados na argumentação retórica, associados ao ponto de vista discursivo, que se baseia nos elementos de uma dada situação comunicativa, nos parecem adequados ao estudo do cordel midiatizado. Tal abordagem, segundo Amossy, consiste em analisar

os meios verbais e não verbais1 1 Inserção nossa do termo “não-verbais”, pois os recursos tidos como não-verbais, como os gestos e a entonação, não podem ser preteridos de um projeto argumentativo que se manifesta performaticamente, por exemplo. que uma instância de locução utiliza para agir sobre seus interlocutores, ao tentar fazê-los aderir a uma tese, a modificar ou reforçar as suas representações e opiniões, ou simplesmente suscitar uma reflexão sobre um problema dado.2 2 Tradução nossa de: “Les moyens verbaux qu’une instance de locution met en oeuvre pour agir sur ses allocutaires en tentant de les faire adhérer à une thèse, de modifier ou de renforcer les représentations et les opinions qu’elle leur prête, ou simplement de susciter leur réflexion sur un problème donné » (Amossy, 2006, p. 37).

Essa definição tem o mérito de perceber as relações argumentativas enquanto um lugar em que o sujeito argumentante pode apenas reforçar uma representação social, levando o destinatário a reagir diante do tema, seja através de ação ou de reflexão. Isso se justifica pelo fato de que as representações sociais “nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar esses aspectos, tomar decisões, e, eventualmente, posicionarse diante deles de forma decisiva” (Jodelet, 2001JODELET, Denise (2001). “Representações sociais: um domínio em expansão”. In: ______(org). Representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ. p. 17., p.17).

Através das representações que a sociedade constrói, as diversas instâncias de comunicação abrem caminho para processos de influência por meio de “versões da realidade encarnadas por imagens ou condensadas por palavras, umas e outras carregadas de significação”(Idem, p.21). Essas versões da realidade ou “sistemas de interpretação” regem nossa relação com o mundo e com os outros, orientando-nos e organizando as nossas condutas e as nossas interações comunicativas.

Segundo Giani David, o discurso informativo, e essa reflexão também é válida para os cordeis midiatizados, busca

inserir o outro em um determinado universo de crença, o faz com intuito de produzir um efeito reativo: aceitar ou não a avaliação proposta. O interlocutor é levado a se posicionar, a entrar em um universo de cumplicidade ou a recusá-lo. As avaliações podem se portar sobre diversos domínios: ético (o que é bom e o que é mau); estético (o que é bonito e o que é feio); hedônico (o que é agradável e o que é desagradável); e o pragmático (o que é útil e o que é inútil).(David, 2007DAVID, Giani (2007). “A emoção como elemento constitutivo do discurso de informação televisiva”. In: MACHADO, Ida L. et al. (orgs). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna. v. 1. p. 132., p. 132)

Se, do ponto de vista discursivo, um determinado universo de crença é um sistema de interpretação situado a partir de uma interação específica, que procura levar o interlocutor a se posicionar, de quais representações o poeta lançaria mão para reconstruir um acontecimento midiatizado e como essas representações nos ajudariam a perceber a manifestação discursiva do ethos, do pathos e do lógos?

A morte em forma de poesia

Para tentarmos responder a essas questões, associaremos, num primeiro momento, a escolha temática do cordelista da referência a discursos publicados/proferidos pelas mídias de informação. Em seguida, buscaremos na materialidade linguística elementos ligados ao universo de representações ao qual o poeta lança mão para construir seu projeto argumentativo.

Conforme quadro abaixo, dos 100 folhetos que compõem o nosso corpus, 32 deles versam sobre a temática da morte, sendo que 16 tratam das mortes por assassinato e 16 tratam das mortes naturais ou causadas por alguma tragédia.

Figura 1
ocorrências temáticas

Notemos que as temáticas relacionadas à morte de pessoas e a questões políticas despontaram nos folhetos selecionados, temas também muito privilegiados pelas mídias de informação. Isso porque o discurso midiático, em sua função de exercer um serviço em prol da cidadania e da democracia, costuma focalizar (ou pelo menos deveria) aquilo que se encontra oculto ou é ignorado pelas instâncias de poder. Por isso colocar na pauta a temática da corrupção, por exemplo, é de fundamental importância. No entanto, o imperativo da captação a obriga a recorrer à sedução, à dramatização da informação e isso tem levado a mídia a utilizar-se cada vez mais de estratégias para chamar a atenção do seu público, chegando muitas vezes a ceder um espaço considerável para temáticas mais dramáticas do que informativas de fato como as presentes nas tragédias, nas mortes por assassinato e nos faits divers.

Essas estratégias de captação sob forma de dramatização são muito utilizadas na temática sobre a morte e nos faits divers, tanto no cordel quanto nas mídias de informação. Ao falar do assassinato de uma pessoa, por exemplo, o cordelista costuma descrever as reações afetivas ao fato, o que é considerado também uma tarefa necessária na atividade jornalística, uma vez que todo acontecimento que se produz no espaço público concerne a todos os indivíduos e apresentar essas reações afetivas pode levá-los a se reconhecer e a aderir a esses afetos projetados, fortalecendo, assim, e mesmo gerando adesão às teses vinculadas ao discurso.

Diante disso, Giani David, ao pensar o discurso de informação televisiva, nos apresenta elementos importantes para se pensar o cordel midiatizado. A autora vai analisar a emoção ou o pathos como elemento constitutivo do discurso de informação televisiva, seja quando este busca atribuir ao discurso efeitos de realidade (referenciação), efeitos de ficção (representação) e os efeitos de patemização (dramatização). Esses três efeitos

reforçam aspectos de base desse tipo de discurso: ele se refere a um mundo real/empírico (verdade da correspondência) - representao através de seus recursos semiológicos (ficção) e se insere em um universo de crença, buscando formar opinião (doxa), afirmar, reafirmar, ou deformar crenças e princípios já estabelecidos, ou ainda, emocionar e comover seus interlocutores. (David, 2007DAVID, Giani (2007). “A emoção como elemento constitutivo do discurso de informação televisiva”. In: MACHADO, Ida L. et al. (orgs). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna. v. 1. p. 132., p.132)

Vimos que há temáticas que são mais passíveis de serem dramatizadas. Dependendo da forma como a informação é tratada, elas podem gerar inúmeras emoções com intensidades também variadas. Vimos também que a emoção é elemento constitutivo do discurso midiático. Portanto, ao citar explicitamente a mídia de informação, nosso segundo critério de seleção do corpus, o poeta estreita sua relação com o universo de representações que constitui o discurso midiático, de um modo geral.

Cerca de 81% dos folhetos apresentaram, de forma explícita, essa referência, como o cordel de J. Rodrigues, A chacina da candelária, em que o autor cita a mídia como fonte de informação: “Em seguida toda a imprensa/a tragédia anunciou” (p. 7); e mesmo o cordel de Lucas Evangelista, em que ele associa o fazer da mídia ao seu fazer de poeta, reforçando essa referência e aproximando a rapidez da mídia em narrar o acontecimento à simultaneidade do poeta que acompanha o que a mídia veicula para, em seguida, publicar seus versos: “Os rádios na mesma hora / jornal escrito e falado/a televisão mostrou/como o caso foi passado”; “Essa minha reportagem / vai todo verso rimado”(Evangelista, s.d.EVANGELISTA, Lucas (s.d.). O juiz que assassinou o vigilante em sobral. s. l. s.ed. p.1-2, p.1-2).

Em resumo, o critério temático de seleção do corpus, associado ao segundo critério de seleção, que nos reporta à referência que o poeta faz à mídia, nos indica o caminho para que possamos mapear o universo de representações sociais, em que se ancoram a construção ética do cordelista, o pathos, ou as emoções projetadas no discurso, e o lógos, ou o discurso ou os raciocínios imbricados na materialidade linguística do texto.

Vejamos como essas categorias são construídas ao longo dos folhetos em questão.

Comoção, indignação e reivindicação: os pilares da opinião do poeta diante da temática da morte por assassinato

Emediato diferencia as representações sociais das representações discursivas, pois estas, segundo o autor, funcionam no interior de situações de comunicação específicas e instituem “posições de leitura” ou “lugares de interpretação”(Emediato, 2009EMEDIATO, Wander (2009). “Representações discursivas de cidadania na mídia”. In: SILVA, Denise H. et al. (orgs). Discurso em questão: representação, gênero, identidade, discriminação. Brasília: Cânone Editorial. p. 52., p.52), próprios a cada situação.

Ao tratar da representação discursiva de cidadania na mídia, o autor afirma que tal representação evoca formas de julgamento que implicam, por sua vez, certos afetos, atitudes e posicionamentos.

A temática da corrupção na mídia, por exemplo, se vista sob a ótica da ética cidadã, permite entrever um julgamento ligado ao valor de justiça, o que projetaria no discurso a reação patêmica de indignação, já que a corrupção fere o princípio da justiça e da igualdade social. Para reverter o quadro de injustiça que gera essa indignação, o poeta costuma se posicionar, reivindicando o retorno à justiça, através da punição daqueles que infligiram o código de ética que rege as condutas das instâncias políticas, o que aproxima o cordel midiatizado do discurso jornalístico de opinião, como os editoriais e as falas de comentaristas.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos cordéis midiatizados que tematizam as mortes causadas por assassinato, uma vez que os referidos cordéis se fundam a partir de uma representação discursiva de cidadania, em que o valor da justiça é também a principal chave de leitura.

No entanto, o sentimento de indignação, diferentemente do que acontece quando estamos diante da temática da corrupção, não é projetado imediatamente no discurso, uma vez que é por meio do sentimento de comoção que o poeta “prepara o terreno” para a sua tomada de posição diante do acontecimento.

Para gerar comoção - vista aqui como emoção forte e repentina, tal como nos apresenta a acepção do termo no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa - o poeta investe i) na descrição das reações/ repercussões diante do acontecimento; ii) na descrição do acontecimento; e iii) na descrição/caracterização do(s) responsável(is) ou suposto(s) responsável(is) pelo crime.

Com relação à descrição de reações/repercussões diante do acontecimento, podemos citar uma compilação de trechos extraídos do folheto de José Soares, O assassinato de Kennedy e a vingança de Ruby (s.d., folh. 13, p. 1), tais como podemos observar nas seguintes estrofes:

Washington, La Paz e Dallas Texas e todo ocidente Toda a América Latina Sentiu convulcivamente 3 3 A grafia presente nos folhetos será mantida em todas as citações. Não utilizaremos o termo sic, pois além de querermos ser fidedignos ao texto original, o uso das aspas nos excertos extraídos dos folhetos já indica a presença do dito relatado. Cobriu-se o Brasil de luto Desde o nascente ao poente4 4 Todos os grifos utilizados nas estrofes, no decorrer do texto, são da autora do artigo. Entristeceu todo o mundo Dallanos e Texanos Chorou todo vagomestre Pertencente ao gênero Humano Enfim, o Padre no púlpito E o Papa no Vaticano Dallas fechou suas portas Sentiu profundos pesares A população em massa Sentiu desgostos fatais Houve grande reboliço Na capital de La paz O Presidente Lindon Johnson Era a Vice-Presidente Na porta do Cemitério Falou sobre o ocidente Fez um discurso perene Que soluçou muita gente

A morte de John Kennedy, em 1963, causou grande repercussão mundial, causando “desgostos fatais” e fazendo muita gente soluçar e “sentir convulsivamente” a perda do presidente, mas a morte do vigilante em Sobral, em 2005, também “causou grande desespero” (Soares, folh. 1SOARES, José (s.d.). O assassino de Kennedy e a vingança de Ruby. s.ed. s.l., p.8), deixando “pai, mãe, filha, irmão/com lágrimas no coração” (id., p.6). O poeta Raimundo Santa Helena viu suas “lágrimas grossas rolando” (folh. 7, p. 2) “cor de sangue” (id., ibid.) em seu rosto, ao versejar sobre a morte da bebê Talita, assassinada por um ladrão de banco em São Paulo, em 1983, fato que “o deixou em desespero” (id., ibid).

Ao descrever sentimentos e reações, muitas vezes de forma amplificada, o poeta convida o leitor/ouvinte a se identificar com esses sentimentos, que são também reforçados pela forma como o acontecimento é qualificado/caracterizado pelo cordelista.

No folheto, O terrível assassinato de seis empresários portugueses ou o monstro lusitano, Vidal Santos e Klévisson Viana caracterizam o assassinato dos portugueses como um “caso horripilante”(id., folh. 16, p.3); “das mortes mais comoventes” (id., p.4); “o maior latrocínio que se conhece no mundo” (id., p. 3); “não se conhece no mundo/outra trama tão medonha“ (id., p. 6). Notemos que a comoção aparece de forma explícita reforçada por outros sentimentos, como o medo e o horror, causados pelo assassinato dos portugueses.

Outros poetas seguem a mesma forma de caracterização do acontecimento, ou seja, recorrem à amplificação, como a que vemos no folheto O bárbaro crime de Daniela Perez, de Expedito Silva, em que o poeta caracteriza o assassinato da atriz como “crime mais comovente/o qual encheu de tristeza os lares de muita gente” (id., folh. 9, p.1); “a morte mais badalada/que no século aconteceu” (id., p.3). Gonçalo Ferreira, no folheto Meninos de rua e a chacina da candelária, amplifica o acontecimento de tal forma que ao final da estrofe deixa para o leitor a tarefa de encontrar o adjetivo mais adequado: “foi uma carnificina/de crueldade chocante/de brutalidade torpe,/bestial, repugnante/e outros adjetivos/acima de horripilantes” (id., folh. 10, p. 8).

Por fim, o poeta recorre à descrição/caracterização do(s) responsável(is) ou suposto(s) responsável(is) pelo crime de assassinato para reforçar o sentimento de comoção. Na maior parte dos folhetos essa caracterização é feita de forma negativa e depreciativa e se manifesta em forma de censura e reprovação ao ato de violência cometido. No folheto Isabela, a criança morta por seu pai e a madrasta, de Antônio Silva, os supostos assassinos são descritos como horrendos, audaciosos, sem coração e frios, sendo que o pai da criança, Alexandre Nardoni, é predicado como “homem de índole má” (id., folh. 8, p. 5), “assassino canalha” (id., p.6), “com seu gênio de serpente” (id., ibid.), “se tornou um homem frio/bruto que só um cavalo” id., p. 5).

As formas de predicação assumidas pelo cordelista revelam uma posição que o aproxima do fazer da mídia popular, geralmente distanciada dos padrões de racionalidade nos comentários. Antes que Alexandre Nardoni seja julgado, o poeta já o designa como “assassino canalha”, “homem frio, bruto”, etc. adotando padrões de designação desvinculados da deontologia jornalística de referência e até comuns em certa imprensa popular que enuncia no interior do senso comum mais apreciativo e vulgar. Como o povo, essa entidade de afetos figurada acusa sem saber, julga sem base jurídica e se envolve afetivamente com os fatos a ponto de “perder” a razão. O imaginário de simplificação chega aqui ao seu mais alto grau.

Guilherme Pádua, suposto assassino da atriz Daniela Perez, também não é bem afamado pelo poeta Expedito Silva, que o julga como um “garoto de má fé/um tipo aproveitador/um covarde e ambicioso/um migalha de um ator/um rapaz sem formação/um covarde sedutor” (id., folh. 9, p.2); “um mostro violento/sem compaixão ou pudor” (id., p.4). O mesmo acontece no cordel sobre o mesmo acontecimento, de Paulo de Tarso, no qual o poeta descreve Guilherme Pádua como “marginal safado” (id., folh. 3, p. 1), “um sujeito birrento” (id., p.4), “um asqueroso, um nojento” (id., ibid.).

Outros tantos exemplos poderiam ser dados, visto que os enunciados, que funcionam como desencadeadores de comoção, são abundantes nesses folhetos. Porém, avançaremos nas nossas considerações, porque a comoção parece ser apenas o efeito patêmico inicialmente projetado5 5 Se podemos, por um lado, tentar hierarquizar as emoções projetadas no discurso desses folhetos, no sentido de que uma emoção pode ser mais focalizada do que outra, tendo em vista o projeto argumentativo do enunciador e do universo de representações ao qual ele recorre, por outro lado, a dissociação de uma emoção da outra é meramente didática, pois a comoção, por exemplo, pode ser sentida concomitantemente com a indignação e vice-versa. , uma vez que o sentimento de indignação, emoção que se traduz pela revolta contra uma injustiça (Mendes, 2007MENDES, Paulo e MENDES, Simone (2007). “Uma análise discursiva das emoções em Laranja Mecânica: o estranhamento, a humilhação e a indignação”. In: MACHADO, Ida et al. (orgs). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna.), é o que de fato parece ser privilegiado pelo poeta, tendo em vista os efeitos patêmicos projetados no discurso.

Dessa forma, o esquema persuasivo, presente nesses folhetos, parece se constituir a partir das relações descritas no esquema abaixo, em que os afetos, a imagem de si e as razões estão ancorados no sistema de interpretação advindo de uma representação discursiva de cidadania:

Figura 2
esquema persuasivo

Esse esquema persuasivo gira em torno do fato de que os dezesseis folhetos em questão se ancoram no valor da justiça para sustentar o julgamento feito pelo poeta de que matar é um ato injusto6 6 Se a justiça é um valor axiologicamente positivo, podemos dizer que o seu contrário, a injustiça, é um antivalor axiologicamente negativo. , que gera, por sua vez, indignação, como efeito patêmico projetado, e a reivindicação como ideal de ação a ser realizada pelo interlocutor.

Em geral, o poeta se torna porta-voz daqueles que reivindicam justiça, por meio da punição dos culpados, como nos versos de Marcelo Soares sobre a morte do menino João Hélio: “O Brasil emocionado/Pede justiça e um ‘Basta’/a população nas ruas/bandeiras de dor arrasta/e grita com comoção/“a certeza da punição/a impunidade afasta” (Soares, folh. 15, p. 6). O clamor pela justiça também aparece em trechos do folheto O terrível assassinato de seis empresários portugueses ou o mostro lusitano, em que os autores dão como certa a punição dos culpados: “Aqui na terra os bandidos/serão todos castigados/por nossas autoridades [...]/e nas barras da justiça/como rigor serão julgados” (id., folh. 16, p. 17).

A sensação de impunidade impulsiona as reivindicações feitas pelo poeta, tal como acontece no folheto A chacina da candelária, em que Jota Rodrigues analisa a situação da impunidade com relação aos culpados pela morte de oito pessoas em frente à igreja de mesmo nome, localizada no Rio de Janeiro, doze anos após o acontecimento. O poeta demonstra a sua indignação diante da impunidade dos assassinos, tal como podemos perceber nos versos: “Nem um dos chacinadores/da brutal selvageria/foi julgado ou condenado/e todos foi inocentados/e por leis pobres e vazia” (id., folh. 5, p. 8). Diante disso, Jota Rodrigues chega até a considerar a possibilidade de vingança como solução para o caso: “O certo era uma outra chacina em/toda essa corja assassina” (id., ibid.).

Nesse folheto, o poeta se distancia da deontologia jornalística - e de suas regras de justiça - para enunciar no interior de uma comunidade de paixão/emoção, distanciando-se, também, dos padrões da racionalidade cidadã. Ao fazê-lo, o poeta busca comunhão com o senso comum de um povo figurado como suporte de emoção e de afetos não virtuosos, como o sentimento de vingança.

Embora a maior parte dos folhetos traga o valor da justiça como principal chave de leitura, isso não significa dizer que o poeta não veicule posições divergentes ou diferentes das comumente veiculadas pelas mídias de informação, assim como nos apresenta o poeta José Soares, em seu folheto A morte de Kennedy e a vingança de Ruby, ao justificar o crime cometido por Jack Leon Ruby contra o suspeito pelo assassinato de Kennedy, Lee Harvey Oswald.

Embora a “justiça feita com as próprias mãos” seja condenável do ponto de vista jurídico, em nossa sociedade, o poeta se sente a vontade para opinar de forma contrária, legitimando a ação vingativa do assassino, procurando atingir uma comunidade imaginada de seres de paixão descontrolada, capazes de se sentirem aliviados e certos de que a “justiça”7 7 As aspas no termo justiça se justificam pelo fato de não estarmos nos referindo à justiça da polis, na república, mas a justiça dos homens, a justiça mais patêmica que racional. Essa opção aproxima o cordelista da mídia popular e o distancia da mídia de referência, o que nos revela essa versatilidade do poeta com relação à forma como problematiza certos valores. fora feita ao assassino do presidente. José Soares, embora aluda ao enunciado “o crime não compensa”, chega até a corroborar a vingança como causa justificável nos versos seguintes: “É uma coisa que penso/ E sempre digo a alguém/Que matar não é negócio/É coisa que não convém/Porque ele matou Kennedy/Mataram ele também” (id., folh. 13, p.5). A morte de PC Farias também parece ter causado alívio no poeta Marcelo Soares. Apesar de o tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor de Mello, em 1992, ter sido assassinado em 1996, Marcelo Soares afirma que “iguais a PC Farias/não fazem falta a ninguém” (id., folh. 11, p.5) e cita, ainda, os versos de Olavo Billac para justificar sua tomada de posição com relação à morte de PC Farias: “quem não vive para servir/não serve para morrer” (id., p.6).

Considerações finais

Pudemos perceber que a dimensão argumentativa presente nos cordéis analisados nasce da relação que esses cordéis possuem com o discurso midiático, uma vez que, entre outras coisas, tais folhetos se apropriam do universo representacional predominante na forma como a mídia de informação problematiza as temáticas que veicula.

Ao se constituírem a partir do valor ético da justiça, predominante na representação que temos da noção de cidadania, o discurso presente no interior desses cordéis orienta os efeitos patêmicos a serem suscitados no interlocutor (comoção e indignação), bem como nos revelam o posicionamento argumentativo assumido pelo poeta, cuja dimensão afetiva se pautou, como vimos, na comoção e na indignação; e a dimensão acional se baseou na reivindicação. Pudemos perceber também, ao longo das análises, a imagem de si que o poeta construiu e projetou em seu discurso, isto é, a de poeta-repórter-cidadão, capaz de informar, de se sensibilizar, de se indignar e de reivindicar direitos diante de condutas que julga serem mal-intencionadas.

Com relação ao ethos do cordelista, parece-nos que ao tratar os fatos noticiosos, o poeta hesita entre duas atitudes enunciativas - a opinião (racional) e a apreciação (afetiva), o que ora o aproxima do universo de representações da mídia de referência, ora o aproxima do universo representacional da mídia popular.

Referências bibliográficas

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  • SOARES, José (s.d.). O assassino de Kennedy e a vingança de Ruby. s.ed. s.l.
  • 1
    Inserção nossa do termo “não-verbais”, pois os recursos tidos como não-verbais, como os gestos e a entonação, não podem ser preteridos de um projeto argumentativo que se manifesta performaticamente, por exemplo.
  • 2
    Tradução nossa de: “Les moyens verbaux qu’une instance de locution met en oeuvre pour agir sur ses allocutaires en tentant de les faire adhérer à une thèse, de modifier ou de renforcer les représentations et les opinions qu’elle leur prête, ou simplement de susciter leur réflexion sur un problème donné » (Amossy, 2006AMOSSY, Ruth (2006). L’argumentation dans le discours. 2. ed. Paris: Armand Colin., p. 37).
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    A grafia presente nos folhetos será mantida em todas as citações. Não utilizaremos o termo sic, pois além de querermos ser fidedignos ao texto original, o uso das aspas nos excertos extraídos dos folhetos já indica a presença do dito relatado.
  • 4
    Todos os grifos utilizados nas estrofes, no decorrer do texto, são da autora do artigo.
  • 5
    Se podemos, por um lado, tentar hierarquizar as emoções projetadas no discurso desses folhetos, no sentido de que uma emoção pode ser mais focalizada do que outra, tendo em vista o projeto argumentativo do enunciador e do universo de representações ao qual ele recorre, por outro lado, a dissociação de uma emoção da outra é meramente didática, pois a comoção, por exemplo, pode ser sentida concomitantemente com a indignação e vice-versa.
  • 6
    Se a justiça é um valor axiologicamente positivo, podemos dizer que o seu contrário, a injustiça, é um antivalor axiologicamente negativo.
  • 7
    As aspas no termo justiça se justificam pelo fato de não estarmos nos referindo à justiça da polis, na república, mas a justiça dos homens, a justiça mais patêmica que racional. Essa opção aproxima o cordelista da mídia popular e o distancia da mídia de referência, o que nos revela essa versatilidade do poeta com relação à forma como problematiza certos valores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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