Poderosa, a série
A capa é de fundo preto, contra a qual se contrastam o lettering e os demais detalhes em cores cítricas, variáveis a cada volume. O preto indicia distância do leitor infantil, mas os efeitos gráficos da edição, repleto de ícones - clips que sugerem figuras autoadesivas (stickers) utilizadas na decoração dos cadernos colegiais - resguardam-na da aproximação do leitor adulto. Eles decoram e arrematam, às vezes sem nenhuma relação diretacomocontextoverbal, as aventuras de Joana Dalva, a Poderosa. Além dos ícones, bilhetes-vinhetas entremeiam manchas verbais tipografadas em corpo médio: ora são mensagens de amor escritas por um admirador secreto; ora papeizinhos em que se inscrevem as ordens de Joana, ora cartas e comunicações dos demais personagens. Cabeçalhos também remetem ao tema “escritura à mão”, repetindo o padrão das capas: o projeto gráfico contribui para conjurar a paródia de um diário de uma garota adolescente de treze para catorze anos, ao mesmo tempo em que reforça a importância da palavra escrita como reguladora dos acontecimentos. Essa escrita vai além do registro e transmissão de observações do cotidiano: as palavras de Joana, quando manifestas através da mão canhota, são capazes de alterar o rumo da narrativa ficcional que ela transcreve e da qual faz parte. A ideia é boa e possui nuances foucaultianas: quais as consequências dessa tomada de poder2 pelo adolescente sobre o discurso da ordem coletiva? Sabemos, porém, que temos aqui o enunciado não de um jovem, tampouco o de uma garota: por trás de Joana e seu diário, jaz outro autor, homem e adulto - Sérgio Klein. E agora?
Vou deixar de lado toda a produção crescente de autores em idade juvenil (há inúmeros na internet e outros tantos impressos, patrocinados pelos pais, professores ou por premiações diversas), geradores de uma literatura que não deixa de fazer certo sucesso entre seus pares; vou deter-me nesse fenômeno comum na literatura infantil e juvenil, presente na série editada pela Fundamento, em que os episódios são narrados por um adulto a partir da ótica de uma personagem jovem, tanto na linguagem e na voz em primeira pessoa, quanto nas ações e sentimentos por ela protagonizados. E vou fazê-lo de um ponto de vista a partir do qual, sem deixar de incluir o viés sociológico, pretendo abarcar também um corpo mutante, em geral esquecido pelas análises que concernem às relações entre o sujeito transitório aqui representado e os produtos culturais estéticos a ele direcionados ou relacionados - um deles, a literatura.
Joana Dalva, a garota poderosa, apresenta uma personalidade dividida entre o estigma de estar vinculada a uma heroína mística ou de permanecer a “queridinha-do-papai3. Trata-se de uma adolescente que começa envolvida com um cotidiano para lá de prosaico: a ansiedade pela menarca que não vem, a paixão pelo garoto mais bonito e popular da turma; a atração - afirmada repetidas vezes como “platônica” - pelo charmoso professor de História4; a preocupação com os sentimentos de sua melhor amiga; o despeito pela garota exibicionista e pedante da turma e os aborrecimentos causados por um irritante irmão mais novo - até aí, nada de novo no front da cultura adolescente, tal como a vemos representada nas séries de TV e filmes do gênero teen5. Seu horizonte de eventos inclui ainda o lidar com os conflitos matrimoniais de seus pais e com a senilidade de Nina, sua avó. O sonho de Joana Dalva é ser escritora, atividade em que ela se idealiza. É uma cabeleireira, Simone, quem revela o verdadeiro valor que jaz por trás de sua escritura criativa. Joana - canhota não por acaso - tem nas mãos, literalmente, o poder de mudar o mundo através da palavra. Esse poder, Joana o experimentará de várias maneiras, sempre a partir de uma motivação particular, mas que imagina benéfica aos que estão a sua volta: reacender o amor entre o pai e a mãe; rejuvenescer e melhorar o estado de saúde da avó; fazer com que Luís Gustavo, o garoto popular da turma, se interesse definitivamente por ela; vingar-se com moderação de Danyelle, a colega exibida6. Entretanto, ao tentar auxiliar aqueles que estão a sua volta, ou consertar aquilo que entende por injusto ou errado, Joana acaba por causar uma série de transtornos a serem corrigidos. No fim das contas, em todos os volumes, os conflitos parecem resolver-se de modo mais satisfatório sem a sua interferência.
A figura do adolescente “paranormal”, rescendente à Carrie, a estranha (Palma, 1976) (em suas personificações mais ameaçadoras), não é nenhuma novidade. Afinal, é fácil vincular à faixa juvenil um poder assombroso e incontrolável a partir da observação dos fenômenos comportamentais a ela inerentes. Segundo Louise Kaplan, o estágio adolescente desencadeia no ser uma explosão de energia, parte biológica, parte psíquica, causando sensações que vão da onipotência ao autoaniquilamento, assumindo feições ora eróticas/transformadoras/criativas, ora caóticas/destrutivas. Tais explosões, ao mesmo tempo em que impulsionam o jovem em direção ao novo e ao diferente7, incitam-no a acertar as contas com seu passado infante8. Além disso, a sociedade contemporânea, ao exaltar o jovem como modelo não apenas do ponto de vista estético, mas também pela facilidade e pelo modo criativo com que reelaboram a linguagem e se relacionam com as novas tecnologias, acaba por delegar-lhes certa autoridade9. Ao poder de Joana, manifesto através da escrita, é possível atribuir uma qualidade de metáfora de energia dionisíaca própria do corpo em transição e das sensações de onipotência erótico-criativa (ou caótico-destrutiva) que ele suscita. Conforme a própria personagem: “Acho que todas as garotas da minha idade são poderosas. Aliás, de todas as idades” (Klein, 2007, p. 163). Joana seria, pois, portadora de uma mensagem de encorajamento às suas coetâneas, assumindo o papel de porta-voz de uma nova revolução social, ao cooptar a ação feminina-juvenil.
Até aqui, tudo vai bem: nosso autor, ao tecer o que imagina ser uma elegia à adolescência feminina, não economiza na utilização de recursos discursivos, como o jargão contemporâneo próprio da idade, incluindo as tecladas em messengers e e-mails. Também entrelaça, aqui e ali, através da irônica voz jovem e feminina, algumas críticas aos costumes e valores da classe média contemporânea, à qual explicitamente se dirige (tanto pelo mundo ficcional apresentado, quanto pelo resultado editorial, pouco acessível às faixas de baixo poder aquisitivo10), em que os adultos -principalmente os homens - são, em sua maior parte, estereotipados até a ridicularização11. Esses elementos são transmitidos através do discurso ficcional na primeira pessoa de Joana Dalva, meio divina, meio humana, meio menina, meio moça. O que reporta à questão: como essas metades se integram no corpo/personalidade da jovem protagonista e de que forma elas atuam em seu espaço ficcional?
O adolescente superpoderoso
Se nos reportarmos aos antigos ritos de iniciação, veremos que estes não visavam à brusca interrupção do estado infantil, mas antes se cumpriam em uma série de etapas, através das quais gradativamente o jovem ia sendo preparado até mostrar-se apto a assumir o papel de homem/ mulher maduro(a). Contudo, se existia uma consciência de adolescência como fenômeno biológico inerente ao ser, não se pode falar ainda do seu reconhecimento enquanto classe: em muitos desses ritos, o jovem era isolado da comunidade do período de pubescência até a maturidade sexual, e sua reintegração era conduzida ou por uma espécie de mentor, ou pelo grupo de adultos do mesmo sexo. Não se negava a adolescência, nem se procurava eliminá-la como etapa, mas tampouco se permitia ao jovem o assumir pleno de sua sexualidade e de influir na ordem política e econômica. Durante o período de iniciação, o adolescente mergulhava em si ao mesmo tempo em que entrava em contato com sua cosmogonia, sem perturbar nem interferir no grupo social12.
A arte e a literatura vieram assumir, a partir do século XVIII, o papel de auxiliar na significação e na organização da dinâmica existencial do sujeito, por via da razão e da estética. O outrora exclusivo interesse na preparação de um novo membro pronto a reproduzir-se e prover a subsistência e a preservação da espécie foi deslocado para a formação de um indivíduo mais complexo, capaz de interagir moral e eticamente com o incipiente mundo burguês. Tal modo de conceber a relação indivíduo/sociedade ocasionou uma cisão no sujeito13, entendido pelo pensamento moderno-capitalista como um ser de cujo corpo o espírito deve se apartar, sob pena de permanecer um selvagem à mercê de pulsões primevas, puramente sensuais14; a essa compartimentação do ser não corresponderão mais os antigos rituais de iniciação, que entendiam o humano uno e integrado fisicamente ao cosmos. O mito, herança religiosa rebaixada à secular em suas novas configurações literárias e artísticas, assume conotação francamente moralista. Ameaçadora do ponto de vista da ordem social, a sensualidade corporal deve ser purificada através de um pensamento racionalista em direção a uma estética transcendente: diferente da figura de Dioniso em plena ebulição erótica de corpo e espírito, a juventude é vinculada a uma promessa de pureza apolínea, um ser a ser conformado num ideal de perfeição, em que ethos e esthesis se confundem.
Dioniso tentará retomar a guarda do corpo adolescente durante todo o século XIX, como deixarão claros o movimento romântico e as posteriores correntes simbolistas; contudo, a nova configuração já estará de tal forma implantada na cultura ocidental, que mesmo à pulsão erótica não se oferecerá outra saída que o sublime ou o êxtase místico. Até que, no século XX, duas guerras mundiais consecutivas proclamarão a morte trágica desse corpo já moribundo, varado pela falência das ideologias político-nacionalistas e sufocado pelas cada vez mais repressivas interdições parentais e pedagógico-sociais.
Após o término da segunda guerra mundial, eis que esse corpo adolescente subitamente se vê desamarrado, solto no caótico espaço coletivo como um bebê recém-nascido; desacreditados, os valores e as tradições da modernidade burguesa de nada valem aos jovens transviados que sacudirão o mundo a partir dos anos 40 até o final dos anos 60. O retorno predominante de Dioniso, presente em movimentos como o beatnick e o flower-power, culminará de forma negativa em duas atitudes setentistas principais: ora a de um alegre hedonismo alienante - como comprovam a onda disco e o culto ao corpo nas então primeiras academias de ginástica -, ora a taciturna desilusão relativa às grandes utopias coletivas, gerando reações violentas em alguns países: e temos aí o punk, o skinhead15, entre outros adeptos, não por nada, de um certo gênero de body art em que vale a agressão até os limites da escarificação e da automutilação. Mais para o final do século XX, as novas gerações preferirão fazer piada de tudo, inclusive do próprio estereótipo de juventude revolucionária e rebelde, ao mesmo tempo em que adere sem culpa à chamada indústria cultural-midiática e seus produtos “massificados”. Esses elementos, entretanto, não serão digeridos de forma passiva, como reclamam alguns teóricos, mas reciclados sob o viés da ironia corrosiva que pode ir da paródia mais sofisticada até o mais puro besteirol16, presentes em quase tudo o que é produzido pelo e para o adolescente. Nos centros urbanos, manifestações culturais juvenis como o grafitti, o street dance, o rap ou o skate - em que a figura do “mano” substitui a do romântico surfista “menino do Rio” - invadem os muros e as ruas, regurgitando todos a junkie-food com a qual foram alimentados. Tal reação aos frutos gerados pela sociedade moderna é parte compositiva do confuso panorama estético que se tenta organizar dentro do conceito de pós-modernismo, em que cada tribo faz questão de acentuar suas diferenças por meio de roupas e acessórios. Atualmente, do nerd integrado através da internet em corpo virtual - os avatares - ora em jogo lúdico com parceiros da mesma condição, ora solidário participante de comunidades atuantes e opinativas, até os cosplayers17, que preferem transfigurar a realidade e o próprio corpo em fantasia ficcional, a sociedade parece tomada por uma adolescência tão complexa e plural quanto os adultos que a geraram. Até que ponto o aparente apoderamento da tecnologia e da cultura pelo jovem adolescente (em especial no que concerne aos modelos estéticos) significaria - ou permite - a real emancipação desse sujeito e uma integração social mais crítico-participativa? Até que ponto a glorificação da juventude por parte dos adultos e a permissividade destes em relação àqueles não passam de novas tentativas de sufocar a possibilidade de um movimento dionisíaco renovador da ordem estabelecida?
Volto à poderosa Joana e ao universo apresentado até o momento em quatro volumes por seu autor. Observo o modo como ela se apresenta dentro da polaridade Apolo/Dioniso aqui esboçada: de um lado, temos o reconhecimento de uma grande pulsão, metaforizada na escrita mágica da garota; essa pulsão encontra-se, em geral, canalizada para ações construtivas e bem-intencionadas18. Contudo, apesar de “ter o mundo na mão”, como apregoa o subtítulo da série, Joana apresenta-se pouco ousada, contentando-se em solucionar conflitos sentimentais das personagens do seu círculo afetivo ou ministrar pequenos castigos e soluções paliativas conforme critérios pessoais19. No segundo episódio, ao se envolver com uma problemática social mais abrangente (a corrupção e o maltrato em um asilo de idosos), as ações da personagem se ressentem de falta de fôlego narrativo: o dom de sua escritura é interditado durante o próprio sequestro; a salvação do asilo, ainda que por conta de um texto seu, é efeito indireto de um trabalho escolar - um texto “normal” -, publicado num jornal a partir da decisão de um adulto, a professora Clarice. No terceiro, é interessante inclusive observar a discrepância entre a seriedade pedagógica com que a temática do terrorismo, tráfico e outros delitos é debatida em sala de aula, enquanto Joana, sempre ocupada em resolver problemas ao alcance de sua circunferência afetiva20, aflige-se mais pela possibilidade de ter seu segredo revelado pela caricata Matilde e sua chantagem absurda21. Tais disparidades se dão por falta de equilíbrio entre o valor potencial do poder de Joana, seus modos de aplicação e os resultados gerados, em que o primeiro parece grandioso - e desperdiçado - em relação aos dois últimos22. O “dioniso” em Joana apresenta-se, portanto, atenuado; em geral, seu poder não ultrapassa certos limites dentro da ordem estabelecida; quando isso acontece, o resultado é sempre destrutivo, beirando a catástrofe23: sua pulsão/poder se descontrola, desviando-se do eros para o caos. Desfechos e soluções reparadores serão resultantes da ação ou mediação alheia - adultos, em sua maior parte24.
À medida que o potencial dionisíaco de Joana é domesticado, cresce o movimento em direção a sua apolonização: a começar pelo vínculo nominal entre a protagonista e a santa-heroína francesa, vemos, diante de nossos olhos leitores, desenhar-se o perfil de uma adolescente idealizada, em primeiro lugar, pela mãe devota (que, nos momentos de desespero, acende velas à Santa Joana, demonstrando uma dependência simbólica extensiva à filha); em segundo, pelo pai distraído que prefere vê-la como uma menina inocente e cordata, não levando suas opiniões ou sentimentos em consideração, e diante do qual ela se comporta de modo possessivo e ciumento25; finalmente, pelo narrador, que, ao dispô-la dessa forma, procura apresentar-nos um esperançoso estereótipo de menina classe-média envolvida com conflitos típicos de sua idade, mas que saberia como tirá-los de letra. Até mesmo sua relação afetiva com Nina, a avó, acaba por reforçar sua imagem apolínea26. A concepção de adolescente idealizada (ou estereotipada?) - superleitora, portadora de consciência crítico-filosófica acima do comum27- evolui à medida que mais personagens vão tomando conhecimento do seu segredo: no terceiro, a comunidade ficcional que a rodeia irá render-lhe uma apoteótica homenagem; trata-se, porém, de uma consagração que pouco oferece em termos de oportunidade de atuação e de libertação. No quarto volume, ao lutar diretamente contra um grande traficante, é reiterada a sua impotência: seu “dioniso” se destrói ao dividir-se em dois corpos/personagens - Joana e Dalva -, para salvar um melodrama cujo desfecho apresenta uma solução apaziguadora28, em que a menina se assume como modelo ideal de adolescente - a filha, a amiga e a namorada que muitos gostariam de ter.
O mundo que se coloca ao alcance da mão de Joana é demasiado mesquinho, aquém das potencialidades ficcionais e discursivas de sua escrita canhota. Tem-se a impressão de que pernas desinchadas, conflitos matrimoniais, desempregos, perda de objetos valiosos servem apenas para desviar essa energia poderosa de algo que poderia constituir-se numa ação de alcance mais abrangente ou transformador. O autor confere à sua heroína-narradora um grande poder; mas ao mesmo tempo em que o faz, retira dela a autoridade para manipulá-lo, seja por não levar a sério sua jovem protagonista, seja por não saber como lidar com o potencial dos elementos constituintes da narrativa que ele engendrou: adolescente contemporânea, Joana tem a admiração dos demais personagens constituintes do coletivo ficcional que a rodeia; poderíamos dizer que ela é adorada como um ser maravilhoso, uma promessa de perfeição29. O irmão, o único a não valorizá-la e que parece existir somente para infernizar sua vida, não passa de uma criança traduzida como um ser sem noção, despachado dos principais eventos narrativos sempre que possível30. (Fica a questão no ar, quando nos deparamos com esse tipo de convivência fraterna já automatizada não só na literatura, mas nas demais mídias narrativas de entretenimento voltadas para adolescentes: o que justifica a aparição desse irmão mais novo, eterno antagonista da irmã mais velha, a não ser o fato de destacar ainda mais a sua esperteza, seus dons especiais, o seu comportamento ajuizado de boa menina?)
A fala da personagem, que procura impor-se crítica, didática e ao mesmo tempo divertida, revela-se um tanto histriônica e lembra a projetada por um ventríloquo: parece provir de um corpo adolescente, mas o tom de pura imitação trai o fantoche que é. Por trás da boneca, há o adulto manipulador, vigilante, que não deseja alteração na ordem estabelecida, limitando-se a denunciar, de forma inofensiva, fria e superficial, a problemática adolescente e sua circunferência social ao velho estilo pedagógico, disfarçado em uma roupagem semiótica jovem e pós-moderna31. Na sociedade de Poderosa, são os adultos, afinal de contas, os detentores do poder. E o demonstram não de forma repressora ou punitiva, mas colocando o jovem sobre um pedestal, a fim de paralisá-lo como um efebo marmóreo e impoluto.
O poder da Série de Klein sobre o jovem leitor
Poderosa é um sucesso entre seus leitores, não tenho dúvida quanto a isso: inúmeros comentários na internet o confirmam, e o empréstimo dos livros em bibliotecas - públicas ou privadas, escolares ou não, pertencentes a várias localidades - também32. O primeiro volume chegou a ser finalista do Troféu Jabuti em 2006, e seu autor já recebeu o prêmio Casa da América Latina, conferido pela Radio France Internationale, o que significa o reconhecimento por parte do sistema crítico-literário. A que se deve esse fenômeno, o qual deveríamos, a princípio, festejar? Afinal, num país onde é recorrente a distância do livro e da leitura, a aproximação espontânea de Poderosa constitui quase que um milagre e, como atestei, seduz leitores de vários nichos socioculturais.
Em primeiro lugar, a editora é uma das poucas a investir na mídia televisiva, divulgando amplamente esta e outras coleções do gênero, tanto nos canais de TV a cabo dirigidos especialmente ao público infantojuvenil, quanto durante a programação de interesse em rede aberta, cobrindo horários variados. Em segundo, é claro, há o lado divertido da história, que narra as trapalhadas da protagonista na utilização do seu poder através de um ponto de vista irônico com o qual muitos leitores - quase que exclusivamente formado por meninas na fase pubescente - devem se identificar. O olhar debochado e esperto presente nas anotações de Joana em seu diário, a metalinguagem conduzida pelo autor e reforçada pelo projeto gráfico, contudo, quebra-se diante do tom dogmático, por vezes pedante, assumido por sua voz e pela voz de outras personagens, empobrecendo o espaço ficcional. Algumas ações e eventos são burlescos e, em contraste com o discurso assumidamente normativo e pretensioso, se apresentam demasiado ingênuos ou pueris. O dom da menina, tão sedutor - quem não gostaria de poder mudar a ordem das coisas apenas escrevendo alguns bilhetes? - é ilusório: ele pouco adianta em situações realmente graves da trama, quando não as piora ainda mais, derivando em mero recurso estilístico, inábil para resolver conflitos de ordem narrativa. Por vezes, é necessário que haja a presença de um adulto para intervir e resolver, ou é através do adulto que o desejo da adolescente acaba satisfeito. É verdade que uma jovem de 14 anos não tem preparo nem maturidade para lidar com problemas de âmbito maior que sua capacidade para compreendê-los; porém, no caso de Joana, de quem se diz ser amadrinhada por uma santa-heroína e ter o mundo na mão, não há orientação nenhuma no sentido de incentivá-la a explorar seu eros de forma positiva, canalizando-o para ações compatíveis. Além disso, apesar de tamanha potência explorada de forma mínima ou equivocada, Joana não emana nenhum tipo de angústia, nenhum conflito interior, nenhuma crise. Patética e pacífica, ela se submete docilmente aos limites que lhe são impostos, contentando-se em desviar o “dioniso” do seu corpo ficcional para um discurso inofensivo, expresso através de um meio menos ameaçador - o seu diário. Em presença dos adultos e seu mundo, coloca a máscara de Apolo, projetando sonhos e desejos em direção a objetivos mais amenos; o máximo de sensualidade permitida é ganhar “um beijo de cinema” do namorado; enfeitar o corpo com piercings é considerado um ato da mais absoluta transgressão (vide a criticadíssima personagem Danyelle33). Essa imagem conformista de um corpo deserotizado pode assegurar a alguns leitores menos atentos uma leitura confortável, como também aos adultos que os vigiam; mas não agradará àqueles mais inquietos, sensíveis às próprias angústias existenciais e sociais, e que procuram na literatura a palavra que lhes falta para expressar os anseios próprios da idade, experiência libertadora que só uma obra de arte pode oferecer.
Algumas reflexões
Busquei defender aqui a necessidade de uma relação equilibrada entre o dionisíaco (corpo erótico e sensual) e o apolíneo (ideais éticos/estéticos), presentes em cada um de nós, e que entram justamente em conflito na adolescência, espaço existencial em que o corpo mutante irrompe com toda força em seu potencial de transfiguração e a partir do qual, ao mesmo tempo, se projetam sonhos, desejos amorosos e construtivos - ou impulsos violentos e destrutivos - em direção a uma convivência coletiva. Minha intenção foi contribuir com uma reflexão sobre como a literatura juvenil, majoritariamente escrita pelo adulto, pode representar (e ideologizar) o estado biopsicológico juvenil, em absoluto tranquilo e livre de percalços, mas potencialmente renovador. Assim como persevera na idealização de uma infância inocente e invariavelmente feliz, o adulto contemporâneo pode gerar - como o faz, através da série analisada - uma imagem apolínea de juventude em que tudo deve ser beleza purificada, congelada no tempo e no espaço: nela, enxergo o adolescente pós-moderno, ao qual só são permitidas inter/re/ações num nível puramente ideal e estético. E, se copiamos (e vendemos) a cultura e o estilo adolescente, se administramos nossa relação com ele no intuito de uma “aproximação”, é no sentido de vampirizar sua vitalidade com o objetivo de minimizar essa presença que nos ameaça e nos recorda da proximidade do envelhecimento e da morte.