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Alva Martínez Teixeiro - O herói incómodo: utopia e pessimismo no teatro de Hilda Hilst Coruña: Biblioteca-arquivo teatral “Francisco Pillado Mayor”, 2009.

Teixeiro, Alva Martínez. - O herói incómodo: utopia e pessimismo no teatro de Hilda Hilst Coruña: Biblioteca-arquivo teatral “Francisco Pillado Mayor”, 2009.

Foi num momento de intensa produção e diversidade do teatro brasileiro que Hilda Hilst (1930-2004), até então somente poeta e posteriormente também ficcionista, sofreu seu “jorro dramático” - segundo definição de Alcir Pécora. Entre 1967 e 1969, a autora paulista escreveu suas oito peças, únicas em sua obra. Justificando-se pelo desejo de se comunicar “de forma urgente e terrível”, a escritora lançou-se em um cenário que, tendo talvez como símbolos máximos o Teatro Arena e o Oficina, e anteriormente agitado pelo Centro Popular de Cultura, impunha a noção de que a arte, nas palavras de Décio de Almeida Prado, “é sempre engajada, por ação ou omissão”.

Esses textos hilstianos, que permaneceram parcialmente inéditos até 2008 e constituem raro objeto de interesse acadêmico no país, são discutidos em O herói incómodo: utopia e pessimismo no teatro de Hilda Hilst, da espanhola Alva Martinez Teixeiro. O trabalho investiga o “proselitismo universalizante” dessa dramaturgia, desvelando a estrutura básica de composição dos textos e indicando a unidade que compõem com toda a obra hilstiana.

Pouco afeita a convencionalismos, Hilst, embora tenha cultivado a defesa da liberdade e a denúncia da opressão em todos esses escritos, fugiu, na opinião de Teixeiro, à característica mais básica do teatro que se produzia no período: o realismo. Assim, até mesmo quando o fundamento são fatos históricos - a morte de Che Guevara, em Auto da barca de Camiri; em As aves da noite, a história do padre Maximiliam Kolbe, que se ofereceu para ir à câmara de gás em Auschwitz no lugar de um prisioneiro apavorado -, “o acontecimento é aliviado da significação imediatamente histórica, graças à focagem de elementos não objectivos e factuais dos acontecimentos, puramente ficcionais”, pondera a estudiosa.

O caráter antirrealista dos textos, manifesto inclusive nas indicações cênicas, orientadoras de um espaço claustral e figurado a partir de simbologias, como as que se projetam em slides na parede, talvez guarde a chave para compreender por que as peças raramente tenham funcionado no palco. Até mesmo O verdugo, vencedor do Prêmio Anchieta em 1969, recebeu à época da montagem realizada pelo Oficina em 1973, sob direção de Rofran Fernandes, duras críticas de Sábato Magaldi, publicadas em O Estado de S. Paulo sob o autoexplicativo título “A peça é original, mas irrita em vez de emocionar” (4 de maio de 1973). Exemplar é ainda o caso de O visitante, levado à televisão pela TV Cultura em 1978, mas preterido no teatro por “Matamoros (da fantasia)”, ficção publicada em 1980 em Tu não te moves de ti, que contém o mesmo núcleo da peça, e objeto mais frequente de montagens profissionais - a mais recente, em 2007.

Teixeiro não menciona alguma possível dificuldade representada pelos textos (entre O visitante e “Matamoros (da fantasia)” talvez fosse o caso de se pensar mesmo em termos de qualidade) e, embora os defenda como “um autêntico teatro de rigor político, revolucionário e supra-histórico”, não chega a discutir esse provável insucesso da dramaturgia hilstiana no que diz respeito às montagens. Sua discussão é de fato centrada no próprio texto - e bastante interessada nos elementos que determinam a atmosfera pouco realista.

Em primeiro lugar, está a própria ausência de ação dramática, sendo os textos movidos pelas confissões das personae e pela invariável busca por lucidez em que consistem as trajetórias dos protagonistas. Nesse sentido, não haveria a aristotélica mudança na fortuna das personagens, mas um percurso em que a conscientização do protagonista vai sendo radicalizada. Em seguida, a estrutura dos discursos: a linguagem dos protagonistas é “fundamentalmente apelativa”, consistindo geralmente em falas de cunho filosófico, sem um programa revolucionário concreto e objetivo, das quais as personagens secundárias participam apenas como forma de contrapor matizes de repressão e arbitrariedade ao impulso libertador apresentado. Teixeiro ressalta ainda que as personagens hilstianas são marcadas sobretudo por sua sina: no desenvolvimento trágico dos textos, na medida em que revelam sua interioridade, aproximam-se da aporia - “não existe esperança para o conflito, que só pode acabar na expiação do herói”.

Aporia poderia então se tornar uma palavra-chave, aplicável ainda de várias outras maneiras ao teatro hilstiano, a partir do que indicam as leituras efetuadas em O herói incómodo. A mais imediata é representada pela própria genialidade desses seres de exceção que são os protagonistas. É exemplar o caso de América, em A empresa, “alguém que, através de uma compreensão particular e única, se separou dos outros”, e que justamente por causa de sua particularidade será cooptada institucionalmente com o objetivo de recrudescer a repressão. As implicações do fato representariam, ainda, intensificação da aporia. Nesses retratos de uma “estrutura comunitária [que] impõe a invalidação do homem como indivíduo”, demonstra-se, segundo a estudiosa, a “impossibilidade do pensamento e, paradoxalmente, a sua imperiosa necessidade” - ou, de acordo com a constituição trágica e para o fim que aqui interessa, a necessidade de pensamento, e sua implacável impossibilidade.

Uma terceira manifestação poderia ser uma espécie de tentativa de resposta a “Que fazer, exausto, em país bloqueado?”, a pergunta mesmo da aporia drummondiana. Pois, argumenta Alva Teixeiro, o que está em jogo nas peças de Hilda Hilst é sempre o futuro, mesmo quando se retomam episódios históricos. Embora a existência de personagens como a lúcida América seja indício de falha no sistema cujo sucesso depende da “subalternidade intelectual”, os textos retratam situações extremas, nas quais não existe possibilidade de retorno ou salvação. Daí a autora da dissertação falar no caráter contrautópico dessa dramaturgia: “São propostas literárias proféticas, simulacros do advento apocalíptico que partem de um acontecimento real para se elevarem em distopia”.

Assim, as peças, que parecem ter origem no dado histórico imediato - a repressão -, ao apresentarem esses elementos e trazerem ainda traços de religiosidade e espiritualidade, terminam por colocar em xeque questões metafísicas e ontológicas. O que se ressalta é o “clima de precariedade moral próprio do autoritarismo”, levando a espanhola a defender que o teatro de Hilda Hilst é mais moral do que político - os protagonistas são “instrumentos da conquista de uma verdade”, e o conflito básico, contido, por exemplo, no ato do padre Kolbe (nobre porque em perfeita consciência da escolha), se dá entre a virtude e a imoralidade.

Na figuração desse duelo entre o poder despótico e os seres iluminados resta, portanto, o outro, a população - em tese, a preocupação central de um programa engajado. No caso de uma obra como a de Hilda Hilst, sempre dominada pelo “sentimento de raridade”, como se lê nessa dissertação, os que não se dão conta do problema da realidade são sempre definidos - e não apenas no teatro - pela mais perfeita passividade. A questão é colocada mais em termos de uma escolha fácil, a opção pela trivialidade (ou até mesmo pela idiotia), do que propriamente como manipulação. Ou, na feliz formulação de Teixeiro, como “paralisia existencial”. E este é decerto um dos elementos fundamentais da gramática hilstiana. Na poesia, ele se manifestará, por exemplo, em Júbilo, memória, noviciado da paixão, os primeiros versos após o teatro, em que até mesmo o amado se torna símbolo da banalidade que o eu lírico, com a lucidez e a preciosidade de seu canto, procura combater. Na prosa, estará em torno de todos os protagonistas, cuja consciência radical é invariavelmente chocante e incompreendida. Nas crônicas, ele se converterá em esnobismo irônico dirigido aos próprios leitores do jornal. E, na tetralogia obscena da autora, o traço será, obviamente, exacerbado - num severo esforço para derrubar a moralidade, o poder, o dinheiro, como convém ao gênero.

Também na elucidação dessa estrutura básica caminha a relevância do trabalho de Alva Teixeiro. Ao longo de todo o texto, a autora se propõe a indicar como as oito peças guardam íntima relação com toda a obra de Hilda Hilst, chegando até mesmo a afirmar como a exigência de um “exercício hermenêutico e comparativo” se coloca na leitura desta produção. Nesse sentido, o retrato do protagonista como indivíduo incomodado com a realidade que o circunda seria um “elemento pré-dramático, pois já aparecia na poesia, sendo posteriormente recuperado e exacerbado na prosa”, e “a sua literatura mais provocadora não seria mais do que uma explicitação simplificativa de alguma coisa já inscrita na sua obra em geral”.

Esta visão de conjunto é fundamental para a leitura de uma obra que frequentemente se oferece, ainda que apenas em uma primeira leitura, como recriação de uma tese fundamental - a defesa do esforço individual pelo desejo transcendente de conhecimento -, e que constantemente remete a si própria (havendo, inclusive, poemas em que figuram personagens da prosa), revelando o empenho em se constituir como um todo absoluto em suas formulações e intenso em sua unidade. E leva a autora da dissertação a elaborar, no primeiro capítulo de seu trabalho, sob o título “A subversiva trajectória de uma megalómana”, cujo adjetivo final parece bastante acertado, um convincente perfil biográfico e literário da escritora. Mas justamente porque há essa visão unitária e porque suas formulações realizam uma boa síntese do percurso hilstiano - iniciado com os poemas “Presságio”, em 1950, e encerrado com a prosa “Estar sendo. Ter sido”, de 2000 -, seria o caso de se reverem algumas breves inconsistências. A mais imediata é creditar a retirada de Hilda Hilst de uma intensa vida na capital paulista a alguma “fobia social”. Pois sua decisão de viver em uma chácara em Campinas, no interior de São Paulo, parece ser o indício mais claro de seu desejo de se dedicar a um projeto literário. E, seja qual for a apreciação crítica que se faça de sua obra, é inegável que o projeto de fato tenha existido, como prova a própria unidade encontrada por Teixeiro em seu trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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