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A Babel suspeita de Nelson de Oliveira

The suspect Babel, by Nelson de Oliveira

Resumo

As fotomontagens realizadas pela artista plástica Tereza Yamashita, inseridas na antologia Babel Babilônia, de Nelson de Oliveira, publicada em 2007, sugerem a presença de um enredo iconográfico que, concomitantemente aos dispositivos paratextuais e ao conjunto das narrativas aqui presentes, vêm apoiar uma reflexão acerca da crise de valores que atravessa nossa sociedade. Estas criam um efeito de redundância que, para além de assegurar a legibilidade discursiva, aponta para a emergência de uma voz autoral compromissada que nos leva a nos interrogar sobre as funções e os limites das relações semântico-pragmáticas existentes entre texto, imagem, intertexto e arquitexto.

Palavras-chave:
ideologia; redundância; subversão; ruínas; Nelson de Oliveira; Tereza Yamashita

Abstract

The photomontages made by artist Teresa Yamashita included in the anthology Babel Babilônia from brazilian writer Nelson de Oliveira published in 2007, suggests the presence of a pictorial story concomitantly that, with also the paratextuals devices and all narratives, requires for a reflection on the crisis values that runs through our society. They create an effect of redundancy that, in addiction to ensuring the readability speech, pointed of an authorial voice that committed us to ask ourselves about the functions and limits of semantic-pragmatic relations between text, image, intertext and architext.

Key words:
redundancy; subversion; ruins; Nelson de Oliveira; Tereza Yamashita

Publicada em 2007, a antologia Babel Babilônia, de Nelson de Oliveira, compõe-se de 22 narrativas cuja heterogeneidade tende a relativizar os elementos estruturais dos textos presentes. As situações narrativas expostas nesta novela1 1 É o próprio Nelson de Oliveira que utiliza este termo para designar as narrativas de Babel Babilônia. Ao falar acerca do emprego da internet no seu processo de escrita, ele afirma no blog “Bule”: “A internet facilitou enormemente a publicação. (...) Eu mesmo tentei escrever uma novela diretamente na rede, abusando dos links, mas, ao perceber que dava muito trabalho, em pouco tempo já estava de volta ao papel. Babel Babilônia é essa novela.” Entrevista concedida em 03/02/2010. Disponível no site: http://o-bule.blogspot.com/2010/02/os- colunistas-do-bule-entrevistam.html (consultado em 25/05/2010). A utilização deste termo explica-se, igualmente, pelo caráter não estanque destes textos. Trataremos desta questão na última parte de nosso trabalho quando analisarmos os procedimentos de subversão do gênero contístico no conjunto da obra Babel Babilônia. têm como pano de fundo as consequências nefastas do processo desenfreado de urbanização, ocasionado pelo avanço da polis moderna. Eixo temático central, esta questão será, igualmente, sugerida pelo conjunto dos dispositivos paratextuais que participam da elaboração e da implementação do contrato de leitura e de estratégias pragmáticoargumentativas da antologia: títulos, sumário, posfácio e uma série de fotomontagens realizadas pela escritora e artista plástica Tereza Yamashita.

Um mundo em ruínas

Dispostas simetricamente ao longo da antologia, essas fotografias criam um efeito de redundância responsável pela emergência de um enredo iconográfico cuja leitura programática aponta para uma reflexão acerca da crise de valores que atravessa nossa sociedade. À imagem das narrativas de que se compõe a antologia, as fotografias encenam o terrível confronto entre civilização e natureza do qual sobressai a imagem de um espaço e um tempo em ruínas. Ora, se todo ato comunicativo se realiza a partir de redundâncias sintagmáticas ou semânticas que asseguram a coesão, a compreensão e desambiguização do texto, em Babel Babilônia tais efeitos associam-se à necessidade de legibilidade discursiva.

Quatro fotografias situadas no final e no início do texto abrem e fecham a antologia tematizando a primazia da natureza e sua indestrutibilidade. As duas primeiras atuam como moldura narrativa e reproduzem a imagem de uma árvore frondosa cujo aspecto mágico é reforçado por um jogo de luminosidade constrastiva (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis., p. 1 e 168). Estas são precedidas e seguidas por outras duas, cuja montagem retoma o tema já exposto, mas a partir de uma estrutura metonímica (id., p. 4 e 164). A artista plástica vale-se aqui do procedimento da redundância para instaurar um sistema de eco e encenar o trágico combate entre civilização e natureza. As fotografias apresentam a imagem do tronco de uma árvore centenária ao redor da qual são expostos elementos fragmentados oriundos do universo urbano: pedaços de um gradil, formas vagas do muro de uma casa em ruínas, janelas de um edíficio. Marcados por um processo de degradação, obtido pelo efeito de superposição, os objetos expostos são desprovidos de sua função e do prestígio iniciais. Próximos da figura do lixo, eles surgem no enredo fotográfico como emblemas de uma civilização moribunda à deriva. Se sua presença fragmentada aponta para as possíveis lógicas de exclusão subjacentes à nossa sociedade urbana, suas formas residuais, abandonadas, mas recicladas artisticamente, conferemlhes um estatuto de alteridade pontual, expondo-os em topos daquilo que constituíram para a nossa sociedade que os rejeitou (Durante, 2004DURANTE, Daniel Castillo (2004). Les dépouilles de l’altérité. Montréal: XYZ éditeur., p. 1467).


Em seu estado de fragmentação, o elemento residual vem testumunhar a fragilidade humana, sobretudo ao se justapor ao tronco centenário da árvore, que, por seu aspecto colossal, induz uma leitura épica compensatória acerca da supremacia da natureza sobre as ruínas da civilização. (Lacroix, 2007LACROIX, Sophie (2007). Ce qui nous disent les ruines. Paris: L’Harmattan., p. 68). Esta leitura será corroborada pela reprodução quase idêntica da fotografia inicial, à qual é acrescentada a imagem do autor (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis., p. 164). Sua principal função é de introduzir o posfácio no qual são explicitados o percurso literário e a biobibliografia de Nelson de Oliveira (2007, p. 165). Ora, o que poderia ser visto como um simples elemento anedótico, ganha, no conjunto da novela, nova significação, sobretudo se levarmos em conta a leitura programática proposta no posfácio, através, nomeadamente, de uma apresentação e divisão temático-cronológica do conjunto da produção literária do autor (id., p. 166). A fotomontagem impõe-nos a presença virtual da voz autoral que, enquanto autoridade narrativa, vem assegurar a transmissão da informação veiculada semanticamente, redundante às cinco fotografias que se intercalam às narrativas. Estas constituem variações do tema já desenvolvido, suas funções reduzindo-se a um simples suplemento informativo, sobretudo as que enquadram o início e o fim da novela. Ambas desempenham um papel fulcral para o estabelecimento do protocolo de leitura, já não tanto em função do enredo fotográfico, mas antes em relação ao conjunto dos textos, a partir, nomeadamente, das funções de incipit e de explicit.

A primeira é uma composição realizada a partir de uma superposição que apresenta uma imagem composta de uma série de árvores enfileiradas dispostas em diagonal (id., p. 10-11). A perspectiva obtida conduz o olhar do espectador, estrutural e tematicamente, para dentro do espaço iconográfico. Indissociável de sua função semântico-pragmática, ela suscita o interesse do receptor e assinala-lhe a entrada no espaço diegético. Elaborada à maneira de uma natureza morta, a fotografia retoma a temática bélica do tema da guerra entre civilização e natureza graças ao ambiente mortuário sugerido pelos jogos de luzes contrastantes e ofuscantes. Esta questão transparece, igualmente, na encenação da montagem que reproduz a imagem de um conjunto de árvores cuja disposição sugere a formação de uma coluna de tropa em marcha ou estanque. O paradoxo da fotografia repousa justamente na sugestão desta supensão temporal, à qual se contrapõe o movimento efetuado e sugerido por um elemento perturbador situado na parte esquerda inferior da imagem. Trata-se de um objeto não identificável, mas cuja forma lembra a de um tapume ou de qualquer outro elemento utilizado na vedação de um espaço aberto. Esta questão constituirá o tema central do primeiro conto da antologia, intitulado “Olho mágico: cidade dos sonhos”, que relata o esfalecimento do universo aprazível e natural de uma pequena cidade do interior ameaçada pelo avanço do processo de urbanização.


Oposta diametralmente à imagem-incipit, a fotografia situada após o posfácio desempenha as funções de explicit assinalando o fim da leitura (id., p. 167). Entre as duas, no entanto, observa-se uma concordância discursiva que o processo de circularidade e redundância vem sublinhar. Do combate inicialmente proposto, passamos a um estado de bonança sugerido pela presença de uma série de elementos aprazíveis: folhas evoaçantes, claridade amena em contraluz, janela/porta ao fundo das quais se observam, ao longe, formas vagas de uma árvore. Trata-se da última peripécia do enredo iconográfico que se encerra na página seguinte, sob a forma de um périplo iniciático, com a aparição mágica da árvore frondosa há pouco assinalada.

Quanto às três útimas fotomontagens intercaladas à narrativa, elas participam ativamente dos efeitos de redundância, em particular, pela retomada da articulação temática proposta no sumário (Anunciação, Inferno, Redenção) a partir de um movimento catabático e anabático. A primeira apresenta o espetáculo desolador de um universo em ruínas, de onde se destaca uma série de elementos degradados vítimas da alteração, da mutação e da mutilação imposta pelo processo de urbanização aludido na imagem (id., p. 40-1). Por seu aspecto informe, tais objetos sugerem um retorno a um estado amorfo do universo caótico onde se conjugam o inacabado e o decomposto, o fim e o início dos tempos. O deslocamento catabático será reforçado na segunda fotomontagem graças à presença de duas janelas vazadas cujo estado de decomposição permite um deslocamento do olhar em direção a um espaço verticalizado interno, desconhecido e tenebroso (id., p. 90-1). Esta passagem tornar-se-á efetiva na terceira e última fotografia. Sua composiçao mergulha o espectador num ambiente de confinamento (id., p. 138-9).

Diversos elementos dispostos de maneira desordenada compõem o primeiro plano desta fotomontagem: galhos retorcidos, folhas ressecadas espalhadas pelo solo, um tronco ou raiz desenterrada diabólica. À sua direita, ou encaixada nesta, observa-se uma janela cuja forma ogival confere um caráter sagrado ao ambiente natural aqui representado. Para além da temática da conjunção entre pagão e sagrado, explicitamente anunciada no posfácio da antologia, o objeto ogival abre a possibilidade de percurso anabático subjacente à problemática do tema da anunciação (mensagem de alegria e liberação) e dos relatos bíblicos de restauração cíclica, aos quais podemos associar a novela de Nelson de Oliveira.


A retomada do mito babélico em Babel Babilônia inscreve o texto numa tradição literária que desde o início da modernidade tende a metaforizar a cidade enquanto emblema do caos e da fragmentação originados pelo avanço do progresso científico, dos mecanismos de urbanização e dos meios de produção. Do mito arcaico, são privilegiadas, na novela, as noções de disjunção e desagregação que circunstanciadas no contexto pós-moderno atuam como fenômenos de uma crise social, ideológica e estética (Gomes, 1999GOMES, Renato Cordeiro (1999). “A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema”. Ipotesi: revista de estudos literários. Juiz de Fora. v. 3, n. 2, jul-dez. p. 19-30., p. 24 ).

Visões escatológicas, oráculos proféticos e sonhos premonitórios pontuam os relatos de Babel Babilônia, que se organizam mediante uma dinâmica salvífica. Das primeiras advertências acerca dos perigos gerados pelo fenômeno do crescimento urbano (“Olho mágico: cidade dos sonhos”, “Beatriz”, “Corrida de elevador”), passamos à encenação de suas consequências: o aumento da criminalidade, (”Retaliação”), a perda dos valores humanos (“Sabor artificial”), a exacerbação dos processos de exclusão social. Estes culminam num projeto de reelaboração das estruturas sociais proposto pela voz autoral que o rito purificador do último texto vem exemplificar (“Babel Babilônia”). A organização temática da novela aponta para a presença de um percurso iniciático que, apoiado no processo de transformações encarnado por cada um dos textos, vem afetar o leitor pelas “provas” às quais ele é submetido no processo de leitura: provas que ele deve ultrapassar para atingir o conhecimento e penetrar no universo da ação; provas que atestam o fim de seu périplo e o êxito perante objetivos preliminares preestabelecidos pela lógica e modalidades textuais deste relato edificante.

Em “Olho mágico: cidade dos sonhos” um narrador intradiegético relata as consequências nefastas da construção de um edifício numa cidade pequena do interior paulista. Ao espaço idílico preservado do interior do país, opõe-se um universo caótico urbano marcado pela desproporção, pelo excesso e pela fragmentação.

Falo de São Paulo, paraíso e pesadelo. Falo dos bairros sujos de São Paulo, das ruas violentas de São Paulo, do céu esfumaçado de São Paulo. Pra ele e pra ela é como se falasse da cidade futura, da invasão do lixo e da miséria, de viadutos rachados e vagabundos de outro planeta tentando contato via rádio de pilha - estática, grupo de pagode, as putas da General Osório sintonizadas na altas do dólar. (...) Falo da cidade que se aproxima erguendo altas colunas de poeira, fazendo chover óleo diesel, monóxido de carbono e ácido clorídico nas plantações de soja e cana-de-açúcar. (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis., p. 12)

Se a lógica da permanente construção/desconstrução aproxima o texto dos relatos apocalítpticos, seu tom de predicação inscreve-o na tradição dos textos parabólicos: parábola, fábula e exempla.

Tese e subversão

Parte integrante da inventio clássica, a figura do exemplum designa, como seu nome indica, um exemplo fornecido ao público com o objetivo de persuadi-lo, por indução ou analogia. Os exempla tomam frequentemente a forma de uma comparação ou de uma alusão histórica, a partir da qual o orador tira conclusões relativas ao presente. A brevidade de sua forma, o aspecto anedótico de sua história, a univocidade semântica de seu programa textual e suas fontes de inspiração de origem folclórica asseguram a esta figura um grande sucesso durante a Idade Média, quando era utilizada pelos predicadores para difundir doutrinas e os ensinamentos da Igreja. No contexto religioso, os exempla, sob a forma das parábolas, conservaram, do ponto de vista de seu funcionamento didático e pragmático, uma estrutura que, posteriormente formalizada por Quintiliano em suas Instituições oratórias, se organizavam mediante três princípios fundamentais: brevitas, luciditas e credibilitas. Simples no estilo, concisas na estrutura dualística, repetitivas, desprovidas de digressões, plausíveis na elaboração diegética, as parábolas visavam à atenção, à reflexão e à persuasão do auditório numa cadeia de implicações que retomavam um processo indutivo: história → interpretação → injunção. Pela evocação de um evento particular (história) atingia-se uma generalidade (interpretação), que permitia o acesso a um evento particular mas expresso sob a forma de um imperativo (injunção).

Cada um destes três níveis pragmáticos (narrativo, interpretativo e pragmático) estrutura a novela Babel Babilônia, já que, à história, contada mediante uma lógica verossímil, seguem análises e comentários realizados por narradores extra e/ou heterodiegético com intuito de constituir um sentido geral e assegurar a adesão do leitor ao programa proposto pela autoridade extradiegética (o autor): a crítica ao ritmo desenfreado do processo de urbanização da polis moderna. Com efeito, uma boa parte das narrativas que compõe a antologia apoia-se em enunciados interpretativos que, realizados por instâncias atoriais, asseguram a adesão do leitor, atenuando deste modo a autoridade da voz autoral e o impacto ideológico do discurso, aqui diluído em procedimentos estilísticos aparentemente neutros. É o caso das trocas dialogais e dos efeitos de redundância que retardam o aparecimento da voz injuntiva, anunciada no primeiro conto e retomada, de maneira explícita, no desfecho do conto epônimo ao livro.

Abram bem os braços, inspirem profundamente. Prendam a respiração. Deixem o fogo preencher vocês. (...) Vão até lá. Façam o que precisa ser feito. E não voltem mais. (...) Matem todos. Esqueçam o que aconteceu aqui. Enterrem os mortos. (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis., p. 160-2)

Para além do questionamento acerca do esfacelamento das relações sociais e das noções de tempo e espaço causados pela empresa orgulhosa e tirânica do capitalismo globalizado, a retomada do mito babélico evidencia um impasse relativo ao processo de representação, o que em Babel Babilônia toma a forma de uma constante subversão das estruturas semionarrativas próprias ao conto. Este procedimento se manifesta de maneira contundente na omissão deliberada, ou no emprego excessivo, dos elementos articuladores tradicionais deste gênero literário: sua brevidade e seu caráter estanque.

Subversão do gênero

Como sabemos, a extensão narrativa não se afigura, por si só, como fator distintivo da estrutura contística. Todavia, ela determinou, historicamente, a formação de um paradigma próprio ao gênero: contribuiu para a sua distinção em relação a outras estruturas correlatas (novela e romance) e impôs limitações ao conjunto de suas configurações actanciais e espaçotemporais. Tais procedimentos são levados às últimas consequências em Babel Babilônia, que apresenta uma redução excessiva dos elementos macroestruturais do conto.

“Reavaliação” limita-se a uma troca dialogal entre duas personagens que relatam uma briga entre duas gangues adversas. Afora os acontecimentos relatados, a ação, no sentido clássico do termo, é praticamente inexistente neste conto: ela se concentra no explicit, enquanto última e única peripécia da narrativa. No final da história, uma das personagen alude a sua vontade de “assistir” ao combate há pouco evocado. Ora, a polissemia do verbo em questão instaura uma dúvida quanto à veracidade dos fatos transcritos, o que leva o leitor a se questionar se os eventos relatados realmente aconteceram ou se eles retomam a descrição de uma cena de um filme de ação. A releitura do texto é incapaz de desvendar o mistério que, finalmente, constitui a única e verdadeira ação da narrativa. Em outras palavras, a intriga de “Reavaliação” começa no momento exato em que a narração se interrompe.

Uma situação semelhante a esta pode ser observada em “Evolução”, narrativa que propõe uma releitura paródica da teoria darwinista acerca da evolução das espécies. Ora, o que se aparentava a uma pura digressão filosófica assume novo significado no desenlace do texto. A transposição de um diálogo no explicit vem revelar as verdadeiras razões do processo digressivo: tratava-se de um simples pretexto para conquistar uma parceira sexual. A explicit cria um efeito irônico pela oposição entre as noções de evolução anteriormente sublinhadas e o surgimento dos instintos animalescos da personagem. Por outro lado, ele aponta para um efeito de concentração narrativa que permite conjugar peripécia, início e fim da intriga num único momento, o que nos leva a questionar acerca dos limites dos elementos articuladores do gênero contístico presentes nas narrativas de Nelson de Oliveira.

Para além da sucessividade e do consequente enquadramento temporal dos eventos, a emergência da intriga implica “a apresentação de eventos de forma encadeada e o fato destes se encaminharem para um desenlace” (Reis e Lopes, 2002REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina (2002). Dicionário de Narratologia. Porto: Almendina., p. 206 ). Se toda intriga, no entanto, é ação, a presença desta no texto não conduz necessariamente ao estabelecimento de uma intriga. Estes procedimentos são constantemente neutralizados no conjunto das narrativas da novela que brincam com a brevidade excessiva da estrutrura contística, e, num polo oposto, com sua extensão demasiada até o rompimento do seu caráter estanque.

Da porosidade narrativa à ridigez programática

Uma grande porosidade estrutural caracteriza os textos presentes em Babel Babilônia que retomam cenas ou dão continuidade a histórias, como no caso do percurso de Beatriz, personagem que acompanha os diversos momentos da construção do edifício nesta cidade do interior de São Paulo. Da criança assombrada pelos mistérios da morte e pela força da natureza (“Beatriz”) passamos à evocação de uma personagem antissocial (“por que o mundo não se esforça para me fazer feliz”) que num último conto (“Babel Babilônia”) relata a destruição do edifício em construção, a morte de sua filha e seu próprio holocausto. Ao se entregar à força da Terra Máter, num rito purificador, a personagem assinala o fim de um percurso formador iniciado no momento do desaparecimento de seu pai (“Beatriz”). O efeito de circularidade confere a estes dois textos um papel fulcral na compreensão do projeto crítico proposto pelo autor.

“Beatriz” relata as consequências do desaparecimento do pai da protagonista durante uma caminhada no dia seguinte à instalação da família numa pequena cidade do interior paulista. Ao voltar da padaria com sua filha, este embrenha-se, como se tragado pela natureza, por um terreno baldio, abandonando assim os seus familiares. Elemento desencadeador da narrativa, o desaparecimento da personagem paterna é relatado como um acontecimento “extraordinário” assegurando uma inscrição parcial do texto nas modalidades do fantástico. Esta explica o comportamento paradoxal da protagonista cujo cotidiano será, a partir deste dia, ritmado por um curioso ritual: após um longo período de insônia, Beatriz decide ser cruel e passa a visitar cotidianamente o terreno baldio onde o pai desaparecera.

A menina decidiu que desse dia em diante deixaria de ser a boa menina de que todos gostavam. Passaria a ser má, muito má. Seria terrível, cruel. (...) Mas faria tudo isso de maneira sub-reptícia, dissimulada, pois sabia que as piores criaturas conhecem muitos truques para parecerem simpáticas e agradáveis apesar da maldade que praticam. (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis., p. 25)

Mais do que uma simples vingança contra o destino, a atitute da personagem testemunha o assombro da criança perante a força da natureza em ruínas. Durante suas visitas, ela mantém-se em pé, horas a fio, absorta, contemplando o espaço desconhecido da mata sem que qualquer elemento externo venha perturbá-la. Indiferente ao mundo que a rodeia, seu desprendimento situa-a num estado intersticial agônico que a presença de uma voz narrativa ambígua vem corroborar. Se a instância externa é largamente privilegiada no texto, isto não impede o emprego, por parte do autor, de uma variabilidade da representação da informação diegética, nomeadamente por uma visão externa. Além de determinar a quantidade e a qualidade da informação veiculada, esta reduz consideravelmente o grau de conhecimendo da consciência do narrador em relação à da personagem. A história é evocada muitas vezes a partir do aspecto externo das coisas, à maneira de uma câmera que capta imagens dos acontecimentos de maneira superficial. Este efeito suscita no leitor um desconforto próximo ao buscado nos contos fantásticos, que, no entanto, será rompido no decorrer do texto pela emergência de uma nova peripécia.

A visita inesperada de um menino aleijado rompe a rotina de Beatriz. Intrigada pela atitude da protagonista, a criança interroga-a sobre suas motivações e, não contente com a resposta obtida, decide, em sua ausência, investigar por si própria os mistérios que envolvem o terreno baldio. Elemento perturbador da narrativa, a chegada do aleijado provoca uma reviravolta no desenrolar da ação que, textualmente, é sublinhada pelo retorno à realidade prosaica e à emergência do diálogo até então ausente na história.

O encontro com o menino obriga a protagonista a abandonar o mundo agônico de contemplação no qual ela se refugiara. Mas Beatriz fustiga sua intrusão e acusa o aleijado de alterar a ordem de um universo que pensava controlar com seu olhar perplexo. Para vingar-se do intruso, ela derruba-o no chão, pondo em prática pela primeira vez o seu plano maquiavélico. A consciência de sua estúpida superioridade e a visão divertida do menino ao cair de pernas para o ar surgem como um novo momento epifânico para a narradora. A cena se passa num contexto crepuscular materializando, assim, a intemporalidade do instante de revelação.

É a plenitude da tarde, com a descomunal moeda vermelha do sol procurando no horizonte o melhor local para se enfiar. Mas o planeta, cofrinho privilegiado do sistema solar, parece não querer aceitar novos depósitos, está sem fôlego, enfastiado. (id., p. 31)

O emprego inesperado de um campo lexical ligado ao universo da infância cria um efeito irônico no texto. Este permite ao narrador sugerir, sob a forma de uma aparente focalização interna, o desejo da protagonista em retornar a uma temporalidade anterior à dor provocada pelo desaparecimento do pai.

Andorinhas executam piruetas sobre as árvores do boqueirão. A menina de nove anos também está sem fôlego, também gostaria de executar rodopios de alegria. Não, nada de pios nem rodopios. Em vez disso, senta-se para tirar a areia que entrou nos sapatos, enquanto acompanha, enternecida, os passos do aleijado que agora está quase chegando em casa. (id., ibid.)

Suas novas motivações conduzem-na, finalmente, a estabelecer uma ruptura com o passado, impondo uma cisão do relato em duas partes simétricas. Beatriz volta a ter insônias, mas estas já não constituem a manifestação de sua angústia perante a morte. Nelas mesclam-se agora um sentimento confuso de orgulho e de vergonha. A sua tomada de consciência permite-lhe afastar-se definitivamente das lembranças nefastas do terreno baldio, processo que culmina com uma recusa total do passado e dos perigos que encarnavam o universo do boqueirão.

O lixo no pé do muro, o lixo que já não é somente lata de óleo e de sardinha, (...) o lixo que, além disso, é também o mundo todo, esse lixo que quer subir nos escombros, conquistar primeiro as ruínas do muro e depois da cidade inteira. Mas a menina de nove anos não está mais preocupada com o atrevimento do lixo. Não tem mais paciência para bobagens. Também está pouco se lixando para as entranhas do boqueirão, para a terra úmida e fedorenta que arrota caranguejos viciados em coca-cola. (id., p. 32)

Se Beatriz continua a visitar regularmente o terreno baldio, ela o faz somente com a intenção de rever seu camarada. A postura tomada pela personagem é, neste sentido, significativa. Em pé, horas a fio, ela já não mais contempla o espaço desconhecido da mata, absorta e indiferente. De costas para a antiga paisagem avassaladora, doravante, ela passa a vigiar a casa do amigo rejeitado.

Sua espera será interrompida por uma nova visita do aleijado que, desta vez, oferece-lhe um presente e comunica-lhe a sua partida. A tristeza da despedida faz com que Beatriz reviva a experiência da perda do pai, o que a leva a recusar o brinquedo do amigo e jogá-lo na mata em sinal de revolta. O menino parte para recuperá-lo, mas desaparece no boqueirão. Ao ouvir os gritos de desespero do amigo, Beatriz decide enfrentar, pela primeira vez, os perigos da mata temida. Finalmente, ela o descobre, preso, no fundo de um buraco, às gargalhadas. Elaborado sob a forma de um coup de théâtre prolongando até o último momento o instante dramático da história, o desenlace é inusitado. Ele constitui, de fato, o elemento revelador do significado latente da narrativa, sobretudo, se levarmos em conta o rompimento do contrato do fantástico previamente estabelecido com o leitor.

A revelação final (a presença do buraco) restabelece a ordem natural das coisas, reinscrevendo o texto numa lógica do estranho. A presença desta natureza temível, o curioso desaparecimento do pai pela mata, as estranhas atitudes de Beatriz e a própria humanização do espaço selvático passam a ser lidos como simples fatos insólitos, fruto do imaginário das personagens. O fim inusitado da intriga impõe-nos uma releitura do texto, mas sua desambiguização se revela parcial e infecunda. O desequilíbrio obtido pela multiplicação de tons, de registros e de procedimentos de focalização impede uma reinterpretação plena da narrativa, cujo sentido deve ser buscado no decorrer da antologia. Estratégia pragmática e programática, esta vem comprovar um posicionamento suspeito de uma voz autoral/atorial também suspeita (Dalcastagnè, 2005DALCASTAGNE, Regina (2005). Entre fronteiras e cercado de armadilhas. Brasília: Editora UnB., p.13-4), cuja matéria ficcional apela para a presença de um leitor compromissado, cônscio e desconfiado dos comprometimentos ideológicos impostos a um texto narrativo articulado mediante um movimento híbrido simplificador/esquematizante (a tese) e multiplicador/plural (a ficção).

Referências bibliográficas

  • DALCASTAGNE, Regina (2005). Entre fronteiras e cercado de armadilhas. Brasília: Editora UnB.
  • DURANTE, Daniel Castillo (2004). Les dépouilles de l’altérité. Montréal: XYZ éditeur.
  • GOMES, Renato Cordeiro (1999). “A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema”. Ipotesi: revista de estudos literários. Juiz de Fora. v. 3, n. 2, jul-dez. p. 19-30.
  • GROJNOWSKI, Daniel (1993). Lire la Nouvelle. Paris: Dunod.
  • LACROIX, Sophie (2007). Ce qui nous disent les ruines. Paris: L’Harmattan.
  • OLIVEIRA, Nelson de (2007). Babel Babilônia. São Paulo: Callis.
  • REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina (2002). Dicionário de Narratologia. Porto: Almendina.
  • TONUS, José Leonardo (2009). “El Imigrante y la Jerusalen Celeste”. Talles de Letras. v. 44, 1. Semestre. p. 21-34.
  • SULEIMAN, Susan Rubin (1983). Le roman à thèse. Paris: Puf.
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    É o próprio Nelson de Oliveira que utiliza este termo para designar as narrativas de Babel Babilônia. Ao falar acerca do emprego da internet no seu processo de escrita, ele afirma no blog “Bule”: “A internet facilitou enormemente a publicação. (...) Eu mesmo tentei escrever uma novela diretamente na rede, abusando dos links, mas, ao perceber que dava muito trabalho, em pouco tempo já estava de volta ao papel. Babel Babilônia é essa novela.” Entrevista concedida em 03/02/2010. Disponível no site: http://o-bule.blogspot.com/2010/02/os- colunistas-do-bule-entrevistam.html (consultado em 25/05/2010). A utilização deste termo explica-se, igualmente, pelo caráter não estanque destes textos. Trataremos desta questão na última parte de nosso trabalho quando analisarmos os procedimentos de subversão do gênero contístico no conjunto da obra Babel Babilônia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2011

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Ago 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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