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Midiologia, linguagem e poesia

Medialogy, language and poetry

Resumo

As novas possibilidades abertas pela comunicação em rede, no que diz respeito a sua produção, circulação e consumo, e as instigantes possibilidades que a cultura digital abre para a literatura em suas diversas formas, na medida em que implicam modificações significativas nos seus usos, necessitam de novos aportes teórico-metodológicos. Cremos, contudo, que uma tal necessidade, diríamos crítica em toda amplitude, deve estar articulada a uma reflexão sobre os processos técnicos que agiram diretamente sobre a literatura ao longo de todos estes séculos de sua existência. Pensamos ainda que a poesia, exatamente por ter dialogado sem interrupção com tais processos, tenha muito a nos dizer a respeito do que consideramos, na esteira de Régis Debray (1995DEBRAY, Régis (1995). Manifestos midiológicos. Rio de Janeiro: Vozes.) e Lévy (1997LÉVY, Pierre (1997). As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34.), as três idades da inteligência, centradas na voz, na escrita e no vídeo digital.

Palavras-chave:
poéticas da voz; poéticas do som; poéticas do vídeo

Abstract

New possibilities opened up by web communication as regarding its production, circulation and consume, as well as the challenging possibilities that digital culture opens up to literature in its different forms, insofar as they imply significant changes in their usages, require new theoretical-methodological approaches. However we believe this necessity - although altogether critical - must be connected with a reflexion over the technical processes that have directly influenced literature throughout the centuries it has existed. We also think that poetry, mainly because it has dialogued on a non-stop basis with such processes, has much to tell us about what we hold, following the track of Régis Debray (1995) and Lévy (1997), to be the three ages of intelligence, centered on voice, writing and on digital video.

Key words:
poetics of the voice; poetics of sound; poetics of video

No texto bíblico a origem da linguagem remonta aos primórdios da criação: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus” (João I, 1). De acordo, pois, com a tradição bíblica, inicialmente, Deus criou o verbo, para, depois, criar o mundo. É por essa razão que alguns autores chegam a traduzir o termo Verbo (verbum) como “o som” ou “o canto”. A partir dessa interpretação, o Verbo assume o sentido de “a palavra divina” ou “o próprio Deus”, podendo tomar como base a ideia de que o Criador seria uma espécie de canto infinito. Não seria Deus, sob este aspecto, o primeiro poeta? E mais, no imaginário judaico-cristão, a poesia não estaria na origem do próprio mundo e o antecedendo? E, o que aqui nos interessa, sobretudo, não teria precisado Deus, não obstante sua onisciência, onipresença e onipotência, de um sistema de escuta que o pudesse ouvir e transformar o dito em ação e coisa?

Relativizando o que há de mítico-religioso na narrativa bíblica, ela é exemplar do caráter fundante de pelo menos três grandezas: 1) a linguagem; 2) um suporte, neste caso, a voz; 3) um meio ambiente; às quais nem o próprio Deus estaria imune. É neste sentido que propomos uma abordagem da literatura, em especial da poesia, que articule produção, circulação e consumo, considerando as novas possibilidades abertas pela cultura digital e on line em suas relações com uma história das tecnologias da comunicação e de seus suportes.

Poéticas da voz e do som

Em uma ecologia cognitiva dominantemente acústica, som, corpo emissor e meio-ambiente imediato são três dimensões indissociáveis. A palavra vocalizada nunca existe em um contexto puramente verbal, o som não se separa da “ligação imediata a outro corpo”. As palavras proferidas são sempre atualizadas em circunstâncias existenciais, que envolvem os corpos dos participantes numa situação que Paul Zumthor (2000ZUMTHOR, Paul (2000). A letra e a voz. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras., p. 130) chama de verbomotor.

Adrian Frutiger (2006FRUTIGER, Adrian (2006). “Os sinais que registram a linguagem”. In: Sinais e símbolos: desenho projeto e significado. São Paulo: Martins Fontes., p. 83) considera que, no princípio, havia um “tipo de linguagem” ou “sistema de comunicação” que se desenvolveu em milhões de anos. Para esse pesquisador,

Supõe-se que parte dele era feita de sons de curta duração, mas certamente esse sistema era mantido por outras formas de expressão, não exclusivamente relacionadas à esfera auditiva. Todas as espécies animais enviam e recebem informações que, no entanto, são expressas por todos os sentidos: visão, audição, tato, olfato e paladar. Por isso, é válido admitir que uma “linguagem” primitiva não consistia apenas em sons, mas também em vários tipos de gestos, contatos, sensações olfativas.

Há, na esfera acústica, outra dimensão espaçotemporal do enunciado e da enunciação. A esfera acústica os embaralha num contexto que é sempre imediato. Ela é a que menos se permite mapear, compartimentalizar. O que é próprio da voz e do som é seu caráter ainda mais não acústico. O acústico só pode ser pensado em relação ao aspecto integralizador do ouvir. São implicações midiais que interferem, como o fará sempre, nas formas de significação. Não se trata de estudar um diferente conceito de signo, pois a diferença aqui é sobretudo de transporte e de meio ambientesuporte. Deve-se, contudo, afastar qualquer tentativa de idealizar a semiose da voz como uma semiose primeira, cujo valor estaria na proximidade (numa espécie de sinceridade) do signo em relação ao referente, como se a semiose da voz fosse uma primeira natureza. Em momento algum se deve pressupor isto, pois desde o início (embora se saiba que não há início) a voz, assim como as formas de interação instauradas por ela, já é fortemente convencional, confirmando aquilo que Jacques Derrida chama de arquiescrita presidindo toda semiose, uma defasagem inalienável entre o signo e o referente.

Para o que aqui se propõe, a voz se estabelece antes como diferença (em relação à escrita e ao vídeo digital, por exemplo) do que como “natureza primeva”. É isto que faz o padrão mnemotécnico das comunidades orais possuir uma forma particular de rigidez, embora a reiterância exigida na esfera acústica seja acompanhada de uma abertura (senão uma dependência) ao contexto imediato e a modos de produção semiótica integrantes, como a dança, o figurino, a entonação etc. O papel social da poesia nesta midiasfera será indissociável da função privilegiada de arquivo comunal que ela exerce. A ela caberá inventar(iar) os valores e os usos que fundamentam a comunidade, sua tradição e seus anseios partilhados. Na esfera acústica, a poesia se situa entre (e transitando por) o curandeiro (já enfermo de velho) e o filósofo (que ainda não chegou)1 1 O primeiro grande inimigo, Platão, em seu Carro alegórico de Apolo, só aparece muito, mas muito tempo depois, em um lugar totalmente diferente, embora ao longo dos séculos no ocidente tenha sido tomado como lugar “natural” das origens. , e une-se à dança, ao mugido pré-lingual, à música, à performatividade, à encenação, antes só pode ser entendida como uma miscelânea de tudo isso e ainda mais numa outra relação com o mundo das coisas e da natureza, já que a semiose da voz é apenas o motor impulsionante de uma pletora sígnica.

No livro seminal que escreveu sobre a chegada da escrita na Grécia antiga, Eric Havelock (1996HAVELOCK, Eric (1996). “A psicologia da declamação Poética”. In: Prefácio a Platão. Campinas: Papirus., p. 167) escreve:

Para o recitador, a execução na lira envolvendo um movimento das mãos produz um ritmo correspondente numa outra parte do seu corpo, que age em consonância com o movimento dos órgãos vocais. Isso lhe proporcionará uma ajuda mnemônica na conservação do ritmo. Na medida em que o recitador, quando combina os sons da fala com seu acompanhamento, simultaneamente ouve também seu efeito acústico, ou ouve a si mesmo, a melodia produzida pelas cordas reforçará ainda mais o padrão dos seus reflexos físicos e, assim, o comportamento automático numa parte do corpo (os órgãos vocais) é então reforçado pelo comportamento em outras partes do corpo (ouvidos, pernas e braços). O sistema nervoso como um todo, em suma, é atrelado ao trabalho de memorização.

Na base dos instrumentos (ou tecnologias) de produção sonora primária, há restos de corpos, presenças ressonantes de ruídos, suspiros: ossos para as flautas, intestinos para as cordas, peles para os tambores, chifres para as cornetas. O poeta inventará ritmos repetíveis, padronizados, aliterativos e assonantes, modelares para apreensão e memorização rápidas, regras fundamentais de uso para o cérebro, a ferramenta de arquivo dominante. Já distante e ainda muito próximo do animal, o humano faz poesia como uma extensão problematizadora de seu próprio corpo e do corpo de seus ouvintes.

A condenação platônica da poesia, sistematizada no livro X da República, se deve ao fato dela ser este que mais expõe a separação (a vacuidade) da ideação e do ideal. O imitador de terceiro grau, como dirá o filósofo, é aquele que não separa a divindade (em Platão, a verdade) de sua ocorrência semiótica. A condenação se deve a este afastamento da verdade abstrata, totalizadora e universal. Numa acepção peirceana, a voz é indício, é aquilo que não pode se dar a não ser se fundindo a um existente. É por estar associada desde o início a indícios matéricos, corporais, sonoros, a formas interligantes e contextuais de transmissão semiótica que a poesia é fortemente indicial, estatuto que ela não perderá, embora lide na modernidade com indícios maquínicos e algoritmos (a escrita fonética e o audiovisual, por exemplo). Em vários aspectos está próxima da semiose audiovisual contemporânea que, embora se alardeie o contrário, baseia-se muito mais na repetição háptica que no fluxo dispersivo. O audiovisual, em suas diversas formas, é uma sobrevivência no contemporâneo desta temporalidade muito próxima de uma memória frágil.

Poéticas da escrita

O homo faber está no planeta há cerca de 50 mil anos, e só tardiamente, por volta do ano 3500 a.C, é que se tem notícia de registros escritos. Estas marcações gráficas, porém, não podem ser tomadas como escritas, no sentido moderno ocidental do termo, pois uma escrita não é feita por desenhos ou representações de coisas; ela é a simbolização de uma elocução. Das escritas pictográficas é sabido que os poietas da voz faziam uso, incluídas na pletora sígnica da poiesis que praticavam, mas é a escrita fonética que vai, criando uma cisão, um fantasma humanizante, propiciar o nascimento de uma nova midiasfera e colocar o poieta de novo em ponto de alerta e pesquisa. No entanto, é só por volta do século XVI d.C. que se pode notar uma nova configuração semio-histórica de fato no ocidente, por essa época já não unicamente europeu. No século X a.C., o alfabeto chega à Grécia. Na Palestina, um pouco antes, mas não muito se se pensar na longa duração da esfera acústica.

Para Adrian Frutiger (2006FRUTIGER, Adrian (2006). “Os sinais que registram a linguagem”. In: Sinais e símbolos: desenho projeto e significado. São Paulo: Martins Fontes., p. 85), há uma tendência a considerar precursores da escrita os desenhos em forma de sinais riscados, esculpidos e pintados sobre rochas, produzidos na era glacial (cerca de 60.000 anos antes de nossa era). Entretanto, esses registros não devem nos induzir a compreendê-los como modelos relacionados ao que hoje chamamos de escrita, mesmo no que diz respeito a uma escrita pictórica, o que o leva a concluir que “o despontar do verdadeiro registro ‘plástico’ do pensamento situa-se num progresso de mão dupla, que abrange os sons pronunciados, de um lado, e os gestos desenhados, de outro”. Assim, calcula-se que a escrita, como preservação gráfica do pensamento e da fala, começou a existir, no Oriente Médio, a partir dos primeiros “escribas” da proto-história, no quinto milênio antes de Cristo:

A escrita propriamente dita nasceu apenas no momento em que começaram a organizar e “alinhar” os sinais lado a lado ou um sobre o outro, correspondendo à evolução linear dos seus pensamentos. Desse modo, pouco a pouco foram surgindo fileiras de sinais que, graças ao seu uso constante, desenvolveram-se até formar as culturas de escrita contínua. (Frutiger, 2006FRUTIGER, Adrian (2006). “Os sinais que registram a linguagem”. In: Sinais e símbolos: desenho projeto e significado. São Paulo: Martins Fontes., p. 87)

A escrita, então, foi lentamente evoluindo, o que permitiu a caracterização de duas categorias: as escritas figurativas e as escritas alfabéticas.

A primeira abrange todas as escritas que não sofreram alterações importantes, mesmo ao longo de muitos séculos, pois seus sinais, embora estilizados, mantiveram-se no estágio pictórico, por exemplo, a escrita chinesa; já a última corresponde a todas as escritas, cujos pictogramas originais sofreram transformações em que o traçado foi reduzido à simplificação extrema, por exemplo, o alfabeto latino. Nessa perspectiva, os pictogramas e os ideogramas deram origem aos sinais silábicos, e não apenas o significado, mas também a pronúncia das inscrições foram preservados a partir da escrita.

Seria oportuno também citar o ponto de vista de Antonio Faundez (1994FAUNDEZ, Antônio (1994). “A passagem da oralidade à escrita na África e na América Latina”. In: A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 12) a esse respeito, que apresenta as três formas clássicas da escrita, a saber, a pictórica, a ideográfica e a fonética:

Desde o nascimento da escrita, o pictograma, o ideograma e o fonograma se entrelaçam de maneira mais ou menos permanente, com a predominância de um ou de outro desses modos. Não obstante, é o fonograma que, pouco a pouco, adquire uma preponderância sobre os outros. Depois de longo período de coabitação, a grafia fonética domina, dando origem a um salto qualitativo fundamental; a criação do alfabeto sem dúvida influenciou esse domínio. O resultado é um sistema que anota a língua propriamente dita, representando, unidade por unidade, os significados pelos sinais, do mesmo modo que a pronúncia os utiliza. A invenção do primeiro alfabeto pode ser datada por volta de 1500 a.C., e este era cuneiforme e não hieroglífico, apesar dos inúmeros contatos que os egípcios tiveram com os comerciantes semitas. A escrita como tal chega, pois, com o fonetismo, quando o signo não designa somente o objeto mas, sobretudo, um som.

As escritas fonéticas, de saída, já implicam uma diferença, senão abrupta, no mínimo considerável da voz do primeiro tempo. Na nova midiasfera da escrita (de uma certa escrita), sistematizada pelos gregos pré-platônicos, a significação deixa de estar numa situação real e existencial imediata para situar-se no âmbito da própria linguagem. Será preciso entender a autonomia da escrita, da escrita fonética especificamente, como uma conquista paulatina, feita de pequenas guerras, guerras simbólicas, contra outros modelos e práticas. As esferas acústica e visual serão afetadas na base pela forma “simbolista” do dispositivo dos povos do deserto e de seu Deus descarnado, exportada para a Grécia e posteriormente para Roma, como sugere ainda Faundez (1994FAUNDEZ, Antônio (1994). “A passagem da oralidade à escrita na África e na América Latina”. In: A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 8). O signo escrito será tomado nunca como um particular, não se prestará à ocorrência singular, e cotidiana, mas ao pressuposto identitário contido na convenção. O idealismo platônico é em todos os aspectos o fundador, e o primeiro filho, de um certo uso da escrita fonética: homo sapiens.

Sem esquecer o papel fundamental da escrita fonética em conquistas cognitivas, sociais e ideológicas ao longo de todos esses séculos, tecnologia indispensável para a emancipação do humano moderno ocidental, para a poesia, no ato mesmo de expandir, ela é em princípio “castradora”. Visando afastar toda contextualização que não esteja pressuposta no enunciado, abertura ao universal, à lei e à ciência, ela reduz a ocorrência a um fora visável, quer que o agente a transforme em simples natureza restituinte, apagando sua literalidade e sua refratação. O aprofundamento de tal uso arruína a audiência ativa, os gestos, os odores, os ruídos do lugar. Sugere que o poeta descarte toda a bagagem pesada, multicolorida e rumorosa de signos e objetos que usava, no porão; e que aceite o significado simplesmente para além de sua ocorrência sensível.

A escrita fonética, portanto, introduz uma prática dominante da letra/ leitura no ocidente que objetiva abstrair todo indício, é um atrofiamento dos sentidos indiciais (tato, olfato, paladar), é a supremacia do mais abstratizante e compartimentalizador dos sentidos, a visão. O rebaixamento cultural da prática cotidiana e da vida imediata, impulsionador da escrita fonética grega, não pode ser efetivado sem que os caracteres sejam objetivos, simplificados e uniformizados ao máximo.

A grande ruptura posta em prática por este uso da escrita fonética se deve em parte a uma redefinição total da enunciação vocal e do valor social da semiose da voz e das palavras trocadas nas atividades cotidianas. Quando a enunciação passa a ser pressuposta no próprio enunciado, não é apenas a autonomia deste que nasce, mas um novo sentido de autoridade, pautado pelo “signo de Lei”, para usar uma expressão da semiótica de Peirce, que nada mais é que a autoridade jurídica dada ao documento escrito (as constituições nacionais, relação direta lei/letra, virão logo a seguir).

O primeiro escritor ainda tinha um equipamento que o impedia de se afastar por completo da poiesis, ainda mais se comparado às formas soft de escrita contemporâneas, ao percurso que vai da máquina de datilografia ao teclado eletrônico. Com a mudança de suporte, da pedra ao papiro, deste ao papel, do papel ao teclado e ao mouse e dos diversos hábitos de leitura, pública e oralizada, nas reuniões familiares e nos saraus, nos quartos de dormir da família burguesa ou nos ambientes digitais contemporâneos, há um processo mnemotécnico que só a poesia da escrita fonética é capaz de esclarecer como nenhum outro gênero do discurso.

No entanto, o escriba-poeta ainda cava sinais em sua tábua, assim como o semeador abre sulcos na terra; página vem de pagus, campo do agricultor. Da esfera acústica para a escrita fonética, o poeta sabe que a espera muda de eixo e salta da margem para o centro. O poeta deixa de projetar seu afazer na agoridade da co-execução com o público, para labutar a sós consigo e em si mesmo no seu escritório, “imaginando” um leitor ausente, no máximo “implicitado” em um “quarto de leitura”. O material do primeiro escritor era ainda bastante pregnante para que pudesse ser abstraído pelo significado em si mesmo:

O escritor antigo possuía um equipamento tecnológico mais rebelde. Como superfícies para a escrita, ele possuía blocos de barro molhado, peles de animais (pergaminho, velino) desbastadas de gordura e pêlos, muitas vezes amaciadas com pedras-pomes e branqueadas com giz, frequentemente reprocessadas pela raspagem de um texto anterior (palimpsestos). Ou então cascas de árvores, papiros (melhor do que a maioria das superfícies, mas ainda áspero para os padrões de alta tecnologia), folhas secas ou outros vegetais, cera derramada sobre mesas de madeira, muitas vezes dobradas para formar um díctilo usado em um cinto, bastões de madeira e de pedra de vários tipos. (Ong, 1998ONG, Walter (1998). Cultura oral e cultura escrita. Campinas: Papirus., p. 110)

A expansão da escrita e seu desenvolvimento estão intimamente ligados ao aumento do comércio entre os povos e as regiões. Com o passar do tempo, a escrita foi conquistando o seu espaço nas sociedades e passou a ser sinônimo de status, de sabedoria entre os povos, mas a alfabetização não era privilégio de muitos. Foi assim que durante milhares de anos a linguagem escrita esteve sob o monopólio das elites do poder econômico, religioso e político.

No século XIIl, as técnicas de fabricação de papel aperfeiçoam-se, permitindo a reprodução de livros, a partir do trabalho dos copistas. Depois, evoluem as técnicas de reprodução, possibilitando, pouco a pouco, a produção maciça de textos. Concomitantemente, “vão criando-se e desenvolvendo-se as línguas europeias”, e esses acontecimentos permitem “que grandes massas falem a língua que, mais tarde, deverá ser lida e escrita. O latim ficava como patrimônio das elites religiosas, que continuavam a ter o monopólio da escrita e da educação (Faundez, 1994FAUNDEZ, Antônio (1994). “A passagem da oralidade à escrita na África e na América Latina”. In: A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 21)2 2 O autor observa que os chineses já haviam inventado a imprensa alguns séculos antes. .

O mundo das letras continua a expandir-se e o uso da escrita vai destacando-se em vários segmentos: no comércio, nas leis, na administração, e, através dos mapas, das rotas marítimas e dos tratados de navegação, nos descobrimentos. Esse panorama propicia a invenção da imprensa na Europa, no século XV, revolucionando o mundo da escrita e o mundo social. Outro fato histórico, um século mais tarde, dará impulso à expansão da escrita: as reformas protestantes em diversas regiões da Europa.

As traduções da Bíblia muito contribuíram com a expansão da escrita. Se em séculos anteriores, a Igreja condicionava o contato dessa obra, escrita em latim, aos mosteiros, aos conventos e às cortes, as reformas protestantes disponibilizam o “Livro” em outras línguas, favorecendo a propagação da palavra sagrada para todos os cristãos. A Igreja Católica, percebendo, então, a força pela divulgação escrita, e com o intuito de estancar o avanço das ideias do protestantismo pelo mundo, cria a contrarreforma. Consequentemente, essas motivações de ordem religiosa estimulam a alfabetização, gerando um impacto da cultura escrita, tanto para as elites quanto para o restante da população.

Mais tarde, esse processo de valorização da educação, iniciado pelas reformas protestantes e, mais adiante, pela contrarreforma, alicerça outro fenômeno histórico de caráter econômico-social, que exige contato intenso com as ciências e as técnicas, as quais, por sua vez, implicam o desenvolvimento da escrita: a revolução industrial. É por essa razão que não devemos “estranhar que se constate que a revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo que a acompanha se tenha expandido de maneira notável nos países protestantes do norte da Europa” (Faundez, 1994FAUNDEZ, Antônio (1994). “A passagem da oralidade à escrita na África e na América Latina”. In: A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 26). Em resumo, esses são os acontecimentos essenciais que parecem explicar o surgimento e a expansão da cultura escrita, mais particularmente, nas sociedades de colonização europeia.

O fragmento de Walter Ong, anteriormente transcrito, torna útil distinguir duas tradições de escrita que, embora se coabitem, não têm o mesmo peso nem a mesma circulação no “campo literário”, duas tradições que, sem dar excessiva importância aos termos, apenas convivem nos quartos curtos do espaço literário: 1) a poesia da literatura e 2) a poesia na literária. Os termos são incômodos, mas servem para formular o problema, o que em princípio é suficiente.

Portanto, pode-se aventar a hipótese de que não se possa falar de literatura sem que uma cultura da escrita fonética, da restituição da presença, da verdade, da ideia, da metáfora, da identidade e do significado, subordine todos os espaços à sua lógica de coleta e transmissão, sem que uma nova dominante semio-histórica marginalize seus pares sincrônicos. Falar de literatura, no sentido próprio do termo, antes da imprensa, da invenção da leitura silenciosa por monges católicos e principalmente de um projeto político-educacional que toma toda a Europa depois do período revolucionário, soa curioso e anacrônico, pois as práticas mencionadas aqui como primeiro tempo se prestam muito pouco ao âmbito do literário, por não se reduzirem à midiasfera da letra e da leitura como praticadas no ocidente cristão daí por diante. Claro está que de dentro da literatura há todo um movimento poético, mas que nunca deve ser tomado como modelo ou como paradigma dominante, pois se trata de uma marginália apenas tolerada pela “república das letras”. A écriture barthesiana, embora se tenha dito muitas vezes o contrário, é uma prática de exceção na literatura.

A literatura é uma certa prática da escrita fonética, que marginaliza as outras formas semióticas, tanto escritas (ideográficas, pictográficas) quanto sonoras e visuais, visando à representação de um fora do signo, de uma presença chapante encontrável pelo apagamento da letra enquanto vestígio, metáfora e ficção. A literatura só existe a partir do momento em que a difusão da cultura da escrita fonética cria um ambiente específico para sua produção-recepção e, posteriormente, para seu uso estético, este ambiente é o capitalismo. Michel Foucault (2001FOUCAULT, Michel (2001). “Literatura e linguagem”. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 139) assim se refere ao nascimento da literatura em seu polêmico texto “Literatura e linguagem”:

Não é tão evidente que Dante, Cervantes ou Eurípedes sejam literatura. Certamente, hoje fazem parte da literatura, pertencem a ela, mas graças a uma relação que só a nós diz respeito: fazem parte de nossa literatura, não da deles, pela excelente razão que a literatura grega ou latina não existem. Em outras palavras, se a relação da obra de Eurípides com nossa linguagem é efetivamente literatura, sua relação com a linguagem grega certamente não o era.

A se tomar alguns exemplos para fins de comparação, Camões é o fundador da literatura em língua portuguesa, porque usa a escrita fonética (nos sonetos) como um sistema simbólico no mais alto grau. O amor em Camões, talvez o maior de todos, é “belo” por sua transcendência, imaterialidade, idealidade, por seu apagamento das superfícies pregnantes da escrita. As “realidades” do poeta luso são o que se pode com propriedade chamar de “imaginárias”. No Brasil do século XVIII, o árcade, ativo na vida política, se veste de pastor em seus poemas tornando-se exemplar da cisão entre “o poeta e a tribo”, entre a atividade do homem (Tomás Antonio Gonzaga) e do escritor; é poeta literário.

Contudo, os cortes abruptos e a dinâmica plurilinguística do mundo capitalista no “Inferno de Wall Street” de Sousândrade, os silêncios desconfortantes dos poemas minutos de Oswald de Andrade e a mímica indiciante do Memórias póstumas de Brás Cubas, a desconstrução da metáfora em João Cabral de Melo Neto, o pastiche intersemiótico em Zero de Ignácio Loyola Brandão rompem o confinamento que a supremacia do significado quer pressupor na literatura, asséptica, limpa da marca e da referência, em última análise, da vida cotidiana. A poesia na literatura é convidada para o banquete, mas não dá palpite sobre o cardápio e ainda menos sobre os talheres para construí-lo.

As poéticas digitais

Contrariando a realidade empírica da página do livro, locus da escrita fonética, o vídeo digital abre uma nova comunicação. Os traços particulares do suporte digital nos impõem rever alguns conceitos, tais como de escrita, de leitura e até a própria noção de texto. Isso porque o uso do computador acarreta transformações nas formas de produção, circulação e consumo que modificam a lógica dominante da escrita fonética e do livro, o que leva Chartier (1999CHARTIER, Roger (1999). A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2. ed. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado., p. 12) a afirmar que

a inscrição do texto na tela cria uma estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em cadernos, folhas e páginas. O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica.

On line, o texto digital propicia o contato com questões desafiadoras, como as que englobam os conceitos de tempo, espaço, velocidade, corporeidade e também de realidade e de representação, tão caras à arte e a à literatura. Esse tempo nos conduz também a outros conceitos de espaço e de velocidade. A comunicação, no ambiente virtual, atinge um nível de corporeidade não física, espectral, cujos envolvidos interagem em um mundo que não pressupõe o deslocamento pelo espaço real de vozes ou de corpos. Essa velocidade definidora das sociedades atuais adquire uma especificidade muito própria, não sendo apenas o deslocamento de um ponto para outro, ela passa a interferir na realidade dos fatos: o presente é o que se impõe, a imediaticidade do presente tem primazia sobre o passado e o futuro.

Ao refletir sobre a revolução tecnológica que ora vivenciamos, Lucia Santaella (2001SANTAELLA, Lucia (2001). Matrizes da linguagem e pensamento - sonora, visual, verbal - aplicações na hipermídia. São Paulo: Iluminuras., p. 389 e 392) defende que, favorecida, sobretudo, pelas mídias digitais, essa revolução é de ordem psíquica e cultural, e:

Socialmente é muito mais profunda do que foi a invenção do alfabeto, do que foi também a revolução provocada pela invenção de Gutenberg. É ainda mais profunda do que foi a explosão da cultura de massas, com os seus meios técnicos mecânico-eletrônicos de produção e transmissão de mensagens.

A autora afirma ainda que se todas as formas de linguagem e processos sígnicos que os seres humanos foram capazes de produzir, ao longo da história, constituem-se a partir de três matrizes lógicas de linguagem e pensamento: a sonora, a visual e a verbal. Assim, o meio digital, sob a rubrica da hipermídia, fundamenta uma intersemiose em que as poéticas da voz e do som se irmanam com uma poética da imagem:

Palavra, texto, imagens fixas e animadas podem complementar-se e intercambiar funções na trama de um tecido comum. Como se isso não bastasse, a hipermídia pode importar sons, vozes, música, ruídos e vídeos. Tudo isso é então orquestrado em ambientes 3D em cujas arquiteturas o receptor imerge em processos de busca propositada ou aventurosa.

As novas configurações abertas pela cultura e por seu suporte dominante, o computador em rede, se fizeram ruir a inteireza e a monossemiose própria da escrita fonética no livro, a poesia volta como um representante instigante de uma prática potencialmente crítica, de novo uma produção coletiva (embora não mais comunitária), envolvendo saberes e técnicas de diversos “campos e procedimentos” que confluem dos tempos anteriores e abrem para relações complexas entre as linguagens, os homens e seus ambientes-suportes.

A nova práxis poética, digital e em rede - híbrida e plurivetorial - que tem na miscelânea de meios de informação e de transporte sua base material, coloca questões inteiramente atuais, que passam a dizer respeito à poesia em seu percurso desde a aurora do homo faber e retoma aquilo que a escrita fonética e seu uso mais avançado, a literatura, têm de mais criativo e crítico.

Se o novo meio faz oscilar as práticas de um outro até então mais “respeitável e natural”, aponta para a produção, a recepção, a própria institucionalização de uma poesia da escrita e, por extensão, da própria literatura como um todo, e, talvez a mais importante, à abertura de um novo tempo para as práticas artísticas para além do literário, confluência tensa, nas experiências mais fecundas e radicais, de literatura, música, artes visuais, ciência, vida cotidiana e poesia.

Os aparatos tecnológicos contemporâneos (monitor de vídeo, aparelho celular, modulador de som), em virtude de seu alto grau de “simbolicidade” (o código fonte complexo inerente tanto à fabricação quanto à utilização), não entram na vida cotidiana e nas memórias humanas sem antes preencher espaço ou, dito de outro modo, sem habitar e ser habitados pelo meio. Nas experiências mais fecundas da prática poético-literária no vídeo digital, como em Augusto de Campos, por exemplo, o digital não pode ser percebido sem seu aspecto material e sem sua inserção no agora da recepção. Tais produções acentuam o cruzamento entre o tecnológico e o analógico, entre o científico e o cotidiano, entre a tecnologia e a técnica, entre o homem e a máquina. Para Derrick de Kerckhove (1996KERCKHOVE, Derrick de (1996). “O senso comum, antigo e novo”. In: PARENTE, André (Org.). Imagem-máquina. São Paulo: Editora 34., p. 61):

Como produtos da percepção todas as formas são analógicas. Uma forma só pode ser percebida como um continuum, mesmo que nós saibamos que nós só vemos como um ambiente total um acúmulo de elementos discretos. As formas não são materiais em si mesmas, elas já são, desde o instante em que são reconhecidas e utilizadas, entidades pelo menos mentais, se não diretamente espirituais. Elas são duplamente analógicas: não somente pelo processo de reconhecimento que é a identificação, mas também quando, utilizadas em um contexto diferente daquele em que nós as descobrimos, elas oferecem um novo modelo de compreensão, e, portanto, de analogia.

Ora, o espaço do vídeo-digital como um espaço autônomo, com suas próprias regras de produção e uso, não anula a história nem tampouco sua relação com as mídias anteriores e nem com os processos técnicos que o precederam, até porque se a técnica muda rapidamente, sobretudo quando aliada com a ciência sob a forma da tecnologia, o corpo humano tem mudado pouco nestes últimos milênios. Ao contrário da tendência corrente de encarar a cultura digital como recreativa e amnésica, pela característica cinética e dispersiva da imagem-vídeo, a melhor poesia e narrativa digital têm sido aquelas que recusam a memória em prol de um presente a-histórico, deslumbrado com as seduções superficiais do aparato tecnológico. Um poema digital como Tour de Augusto de Campos possibilita justamente uma memória e uma durabilidade de “alvenaria”, um monumento: “a construção deliberada de um espaço vazio para espelhar aquilo que partiu” (Manguel, 2001MANGUEL, Alberto (2001). Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras., p. 276), contra a recreação ine-rente ao uso corrente do vídeo digital on line, recreação que opera pela desmaterialização do espaço-tempo, que transforma os lugares em uma abstração numérica.

Cidadão do mundo, o sujeito-vídeo padrão flutua na possibilidade de trocar de lugar a qualquer momento bastando acionar o controle remoto ou o mouse. Mas, aqui, o conteúdo do enunciado não aparece sem antes chamar a atenção para o local da enunciação, a imagem-vídeo nele assume uma “localidade paradoxal”, uma “paratopia” (Maingueneau, 2006MAINGUENEAU, Dominique (2006). Discurso literário. São Paulo: Contexto., p. 28).

Assim, a melhor poesia e narrativa hoje devem ser pensadas como um diálogo com o campo mais vasto da imagem-vídeo digital e da produção simbólica on line, entendendo por estes não apenas dispositivos técnicos, mas fundamentalmente poderosos construtos de atividades socioculturais contemporâneas, onde técnica e tecnologia dialogam sem interrupção com o imaginário e as demandas sociais.

Outro aspecto a se tomar em conta é o da natureza do pacto que estabelecem tais produções poéticas e narrativas com o receptor. Este encontra um objeto quente e úmido, vivo, pulsante. Se o mouse permite um não envolvimento com a forma, pois possibilita abandoná-la com extrema rapidez, tais obras tentam quebrar isso acionando uma ação que instala um corpo num espaço. Se o receptor já abandonou as geografias tradicionais e agora se alterna entre o indiferenciado global e o individualismo esquizofrênico potencializado pelo vídeo, como muito se diz, diante da nova poesia e da nova narrativa é obrigado a reconhecer estas velharias que teimam em obscurecer a luminosidade do monitor e a fluidez do mouse. Nos termos de Walter Benjamin, sua mente civilizada não pode esquecer a barbárie que lhe é inerente. Num ambiente amorfo, etéreo e simbólico, do vídeo e da rede, o receptor resgata a temporalidade e a historicidade não apenas de um passado ido e findo, mas de seu presente se fazendo, ou em via de construção.

Assim, fecha-se provisoriamente uma espiral: do percurso do “ruído performatizado”, a poesia acompanha, no exílio, a lógica subordinativa da escrita fonética (invenção do homo sapiens) até recolocar sua utilização radical como gesto crítico-criador. Agora, como nunca com tanta intensidade, sai do limbo, impulsionada por um lado pela ruptura da grande literatura de vanguarda da primeira metade do século XX, necessariamente antiliterária, e pelos novos meios de transmissão e transporte desenvolvidos durante todo o século XX e que reestruturam o imaginário e a práxis contemporânea. Não que esteja havendo, como não raro se diz, um “retorno” da voz, da imagem, de uma “razão sensível”. Trata-se na verdade de uma permanência, estiveram sempre, como reitera Paul Zumthor (2000ZUMTHOR, Paul (2000). A letra e a voz. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras.). A poesia nunca deixou de exercer seu “compromisso total perante a linguagem”, é que a cortina do teatro escriturário não permitia ver todas estas coisas tão juntas do humano sempre; a transcendência, a verdade, a prova, a obra, a metáfora, não as deixava falar. No entanto, a permanência implica, necessariamente, mudança; o sincrônico não sobrevive sem o diacrônico, embora possua uma relativa autonomia, que pode inclusive re-formular, re-verter, re-apropriar em novas bases o que herda. Se a voz e a imagem permanecem, já não podem ser as mesmas de antes (onde está, o que é esse antes?), pois os ambientes são outros: outra ecológica, outra semiósica.

As poéticas contemporâneas evocadas aqui transitam pelas três matrizes de linguagem, sonora, verbal, visual, e incorporam as idades da inteligência e suas ferramentas num único meio superpotente e potencializante. Se não é impossível reduzi-las à literatura nem por isso é mais simples mapeá-las. Usa-se o corpo como suporte/veículo, sonoridades pré-linguais e instrumentos musicais em performances, imagens de televisão comercial invertidas e ironizadas, escritas cinéticas em vídeo, “poemas plásticos”, clippoemas, poesia sonora, holografia, cartazes, néons, intervenções abruptas e chocantes em ambientes inusuais: fábricas, repartições públicas, comícios, todas confluindo para uma cultura digital e em rede.

A poesia e narrativa digitais que aqui queremos diferenciar da leva comum não são antiescriturais nem antiliterárias, apenas não podem ser reduzidas aos pressupostos da literatura e da escrita fonética. A poesia e narrativa de hoje não podem passar ao largo do “imaginário simbólico”: a letra está incrustada no sêmen da matéria humana contemporânea. Ao homem do Ocidente (e dos lugares invadidos por ele) não é possível abrir mão dela e, nas cidades onde ele habita, a vida prática não se concebe sem o sinal abstrato e universal das letras. Ela deve saber o quanto é necessário para usar criticamente as máquinas semióticas hodiernas. Devem trazer de volta, a despeito da sua propalada “virtualidade”, uma poética vivencial radicalmente contemporânea, quebrando o fechamento da significação petrificante e clicherizada, deslumbrada com a nova ferramenta, dando forma a uma mímesis energética, e, num gesto de radical consciência crítica (que o terceiro mundo potencializa como nunca antes, dada sua hibridização sócio-semiótica e lucidez inerente às periferias, menos assombradas pelos usos canônicos), des-hierarquizam a tendência hermenêutico-identitária ocidental. Tais objetos fazem uma utilização crítica dos meios, dos transportes e das relações, pois sabem que só uma politização do ato criador poderá arrancar as linguagens da mesmice fetichista do tecnicismo. Trata-se de relembrar a máxima benjaminiana: “contra a estetização da política, a politização da estética”. Uma poética tecnológica obriga a uma consciência radical do saber fazer, dado o suporte altamente especializado e codificado que utiliza.

Poesia e narrativa, enfim, subvertem e des-instalam a “utilização utilitária” do médium, são propulsoras de uma nova semiose capaz de perceber a contradição existente entre a atividade potencialmente subversiva dos novos meios e seus usos clicherizados. Se a poesia chegou antes da língua no primeiro tempo (pode-se dizer, com exagero, que o primeiro poieta inventou a língua); se chegou depois da literatura no segundo tempo, agora parece ressuscitar dos mortos, corrosiva, construtora não mais de enigmas, mas de desvelamentos, e de novo no presente. Reencarna sua potencialidade pública e volta a aproximar-se da política, do direito, da vida cotidiana.

Referências bibliográfias

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  • MANGUEL, Alberto (2001). Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras.
  • SANTAELLA, Lucia (2001). Matrizes da linguagem e pensamento - sonora, visual, verbal - aplicações na hipermídia. São Paulo: Iluminuras.
  • ZUMTHOR, Paul (2000). A letra e a voz. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 1
    O primeiro grande inimigo, Platão, em seu Carro alegórico de Apolo, só aparece muito, mas muito tempo depois, em um lugar totalmente diferente, embora ao longo dos séculos no ocidente tenha sido tomado como lugar “natural” das origens.
  • 2
    O autor observa que os chineses já haviam inventado a imprensa alguns séculos antes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2011

Histórico

  • Recebido
    Jul 2010
  • Aceito
    Nov 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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