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A literatura com a tesoura na mão: sobre Brandão, Burroughs e Gysin

The literature with scissors in hands: about Brandão, Burroughs and Gysin

La literatura con tijeras en las manos: sobre Brandão, Burroughs y Gysin

resumo

Zero, de Loyola Brandão, é um romance que desperta desconforto e estranhamento em seus leitores. A violência e o caos, tanto temáticos quanto estéticos, e o próprio procedimento de composição a partir de fragmentos e retalhos, são elementos que causam esse estranhamento. Nesse artigo, partimos da hipótese de que a voz experimental que rege o texto de Zero luta não somente contra a Ditadura Militar brasileira (seu contexto histórico), mas sim se insere numa esteira de obras que, histórica e perpetuamente, posicionam-se contra um discurso - ou qualquer discurso - de opressão. Nosso diálogo crítico se foca na composição estético-estrutural de Zero e nas suas consequências crítico-políticas. Portanto, optamos por trazer à tona a relação entre essa obra e a experimental e libertária técnica literária desenvolvida por Burroughs e Gysin, tentando enxergar, assim, Zero enquanto uma espécie de romance cut-up.

Palavras-chave:
Zero; Ignácio de Loyola Brandão; William Burroughs; Brion Gysin; cut-up

abstract

Zero, by Ignácio de Loyola Brandão, is a novel that generates discomfort and estrangement in its readers. Violence and chaos, both thematic and aesthetic, and its manner of composition: a collage of fragments and scraps, are elements that cause this estrangement. In this article, we propose that the experimental narrative voice that prevails in Zero text not only struggles against the Brazilian Military Dictatorship (the text’s historical context), but is also part of a lineage of works that, historically and in principle, are positioned against an oppressive discourse. Our critical dialogue focuses on the aesthetic and structural composition of Zero and its critical-political consequences. Therefore, we establish a correlation between this work and the experimental and libertarian literary technique developed by Burroughs and Gysin, proposing to read Zero as a type of cut-up novel.

Keywords:
Zero; Ignácio de Loyola Brandão; William Burroughs; Brion Gysin; cut-up

resumen

Zero, de Loyola Brandão, es una novela que provoca incomodidad y extrañeza en sus lectores. La violencia y el caos, tanto temáticos como estéticos, e incluso el procedimiento de composición desde fragmentos y trozos, son elementos que causan extrañeza. En este artículo, se parte de la hipótesis de que la voz experimental que rige el texto Zero no sólo lucha contra la Dictadura Militar Brasileña (su contexto histórico), sino que es parte de una serie de obras que, histórica y perpetuamente, están posicionadas en contra de un discurso - o cualquier discurso - de la opresión. Nuestro diálogo crítico se centra en la composición estética y estructural de Zero y en sus consecuencias crítico-políticos. Por lo tanto, se optó por comentar la relación entre este trabajo y la técnica literaria libertaria y experimental desarrollada por Burroughs y Gysin, tratando de ver Zero como una especie de novela de cut-up.

Palabras clave:
Zero; Ignácio de Loyola Brandão; William Burroughs; cut-up

Introdução: estaca Zero

In nature reality is selection

the tool of critical intervention

Fragmentation is the rule

Sonic Youth

Desde o seu conturbado lançamento brasileiro em 1975 - precedido de um lançamento italiano em 1974 e seguido de imediata censura no Brasil, em 1976 - até hoje, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, desperta desconforto e estranhamento em seus leitores. A violência do material narrado, a virulência da realidade ali retratada, a pesada crítica transgressora à sociedade brasileira do período da Ditadura Militar, a escatologia explícita, o sexo explícito, beirando a pornografia - para alguns, a pura pornografia -, o grotesco exposto dos protagonistas, que transitam de maneira alienada pelo universo desse romance, podem ser elencados como os principais causadores desse estranhamento e desse desconforto. Ofendendo a uns ou agradando a outros, o fato é que Zero é um texto que, ao longo dos anos, tem intrigado várias gerações de leitores e críticos - já em 1980, por exemplo, apenas um ano após sua primeira edição alemã,2 2 A saber: editada pela Suhrkamp Verlang, em Frankfurt, 1979, com tradução de Curt Meyer-Clason – informação encontrada na edição comemorativa de 35 anos de Zero (Brandão, 2010). o crítico Jörg Drews definia Zero como uma obra que “assustava, comovia e entusiasmava” (Drews apud Almeida, 1980, p. 90). No entanto, faltam aí nessa lista dois dos principais elementos - se não os dois principais - de violência e desconstrução que geram esse tal desconforto, esse “assombramento comovente” de leitura: a desconstrução da linguagem e a não linearidade da narrativa - essencialmente, as experimentações formais mais radicais de Brandão nesse romance.

Segundo Lizandro Carlos Calegari, em seu artigo “A ficção brasileira pós-64: notas sobre o autoritarismo e a fragmentação em A festa de Ivan Ângelo”, a produção literária que se firmou entre 1964 e 1979 passou por três distintos momentos: um primeiro, entre 1964 e 1968, que se bifurca na vertente do romance de impulso político e na do romance da desilusão urbana; um segundo, entre 1969 e 1974, que apresenta romances que trabalhavam com a questão da resistência armada e da guerrilha; e um terceiro momento, esse entre 1975 e 1979, que “vislumbra uma produção literária que adere a formas originais para responder aos desafios impostos pela conjuntura histórica” (Calegari, 2010CALEGARI, Lizandro Carlos (2010). A ficção brasileira pós-64: notas sobre o autoritarismo e a fragmentação em A festa de Ivan Ângelo. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 35, n. 58, p. 54-73, jan./jun., p. 56, grifo nosso).

Entre as obras diretamente ligadas a essa terceira tendência de época, desponta Zero como uma das principais manifestações dessas “formas originais” do romance pós-64 - eis aí, portanto, a importância das experimentações com a linguagem e com a construção narrativa de que tratávamos. Concordando ou não com essa divisão cronológica da ficção brasileira durante a Ditadura Militar, o fato é que, se levarmos em consideração textos como A festa, de Ivan Ângelo (1976), Reflexos do baile, de Antonio Callado (1976),3 3 Acerca dessa tríade de romances – A festa, Reflexos do baile e Zero –, indicamos a leitura do capítulo “Os salões”, da obra Espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro, de Regina Dalcastagnè (1996). e Quatro olhos, de Renato Pompeu (1976),4 4 Essa lista de obras está elencada no supracitado artigo de Calegari (2010). perceberemos que há sim uma tendência ao experimentalismo na ficção que se desenvolve nesse período, um voltar-se às tais “formas originais” referidas por Calegari. Assimilando as temáticas que vibravam no momento histórico e que até então tinham sido trabalhadas pela literatura - o impulso político, a desilusão urbana e a luta armada -, os autores que publicaram nesse período de 1975-1979 propunham-se a reler essas problemáticas a partir de novas formas, novas experiências linguístico-narrativas que representassem a situação em que se encontrava o país. As constituições estéticas da própria linguagem e da narrativa de Zero estariam, portanto, irmanadas às dos romances dessa geração, todos eles buscando novos modos de dialogar - e digladiar - com os discursos opressores da realidade e da política ditatorial.

Poder-se-ia concluir que essa afeição à experimentação linguístico-narrativa, assim como a brutalidade dos temas e das cenas que vemos em Zero, é nada mais que a resposta literária, uma voz de revolta contra esse discurso de poder opressor que se instaurava no Brasil graças aos problemas históricos que se manifestavam à época da produção desse romance; ou seja, um “antidiscurso” contra o da Ditadura Militar. Essa perspectiva, a nosso ver, delimitaria demais - e limitaria - o impacto e o rendimento estético dessa obra a um espaço-tempo cronologicamente muito restrito, retirando Zero de uma dimensão mais universal de obra artística e o apregoando a um contexto fechado, como se, para compreender ou ler de maneira satisfatória esse romance, fosse “necessário” ler, também, uma enciclopédia sobre a história do Brasil. Frise-se: nós não negamos que há sempre uma ligação muito íntima entre história e literatura - esse é um princípio teórico marxista que enxerga correlações e interdependências entre as várias instâncias da sociedade com o qual nós concordamos -,5 5 A respeito das relações entre realidade histórica e texto literário, para que citemos apenas três fundamentais exemplos, basta que mencionemos os estudos de Antonio Candido (2006), Mikhail Bakhtin (2009) e Auerbach (2011). ainda mais no caso de um romance como esse, nascido de um período histórico que clamava por resposta, por embate. Nossa intenção tampouco é desmentir o arcabouço crítico que se construiu, ao longo dos anos, acerca desse rico material. O que estamos dizendo é que, agora, neste artigo, o que nos interessa é o que há de não essencialmente datado e local em Zero. Voltamo-nos ao que existe, na proposta estética de transgressão da linguagem desse romance, que, suplantando sua ligação com o momento específico da Ditadura Militar no Brasil, o faz ultrapassar a barreira do tempo, atingindo, conquistando ou mesmo repelindo leitores até hoje.

Sendo a questão da transgressão linguístico-narrativa e, consequen temente, política de Zero nosso foco de análise, traremos o pensamento de Bakhtin, renomado filósofo da linguagem, como referência teórica.

Em seu Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin tece a seguinte afirmativa - que interessa profundamente à nossa percepção crítica da obra de Brandão: “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (Bakhtin, 2009BAKHTIN, Mikhail (2009). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec., p. 36). Essa máxima se refere à ideia de que os signos e a linguagem em si são sempre sociais, produtos de uma gama de fios que se tramam somente a partir de relações dialógicas, a partir de “um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação” (Bakhtin, 2009BAKHTIN, Mikhail (2009). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec., p. 45). Postula-se, portanto, uma relação dialética interna da própria linguagem. Não é somente a realidade a que ela representa que está transpassada pelos elementos ideológicos, mas a própria essência da linguagem configura-se “refletindo e refratando” - para usar aqui termos do próprio autor - esses elementos; a realidade objetiva dos signos - ou seja, a linguagem - “é” a própria realidade dos fenômenos ideológicos.

Mais adiante em seu texto, Bakhtin vai afirmar, acerca da essencialidade ideológica do signo, que:

A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente. [...] Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia (Bakhtin, 2009BAKHTIN, Mikhail (2009). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec., p. 48).

Ao perceber a luta de classes ocorrendo no interior da própria linguagem, a partir justamente da ideia de como a classe dominante confere um aspecto estável e não ideológico ao mais essencial dos fenômenos ideológicos, Bakhtin nos alerta para os jogos de poder que ocorrem interna e - muitas vezes - desapercebidamente na interior da própria linguagem, dentro da própria realidade semiótica.

Sendo assim, voltando-nos novamente para nosso objeto de análise, entendemos que a própria construção linguística de uma obra literária carrega em si uma marca ideológica, social, política. A nossa hipótese, portanto, é a de que a voz, materializada na construção linguístico-narrativa que rege o texto de Zero - uma voz experimental, fragmentária, ligada diretamente ao caos e à violência, como comprovaremos ao longo deste artigo -, luta não somente contra uma “Ditadura Militar” cronologicamente localizada, mas, sendo percebida na sua essência de transgressão estético-política da linguagem, insere esse romance numa esteira de obras que, histórica e perpetuamente, posicionam-se do lado do oprimido, lutando contra um discurso - ou qualquer discurso - da opressão, do ditador.

Nas palavras de Dalcastagnè (1996DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora da UnB., p. 47 grifo nosso) acerca de Zero, A festa e Reflexos do baile: “Livros que falam ao leitor de hoje não só sobre a opressão daqueles anos, como também sobre a opressão de todos os tempos, sobre todos os homens. É a patética e comovente história do ser humano em busca de sua libertação”.

Trata-se, portanto, de representar - repetimos: linguisticamente, semioticamente - uma realidade violentada e, ao mesmo tempo, também violentar essa realidade, uma realidade que é ditatorial, a partir da sua própria violência. Eis, para nós, a essência de Zero.

Nossa opção de diálogo crítico, por sua vez, baseou-se numa questão fundadora e bastante específica - ainda não mencionada -, ligada à composição estético-estrutural, formal e composicional do texto de Zero: sua construção feita a partir da colagem ou montagem de textos de origens diversas - e as consequências linguístico-narrativas e estilísticas da utilização desse procedimento composicional. Por querermos abordar o romance de Loyola Brandão a partir dessa questão, discutindo inclusive sua perspectiva de composição estético-política, é que optamos por trazer à tona a relação entre a supracitada obra e a técnica cut-up de Burroughs e Gysin. Até então havíamos comentado a linguagem e a desconstrução narrativa de Zero mencionando o caos e a violência dessas, mas é essa questão da montagem/colagem, ou seja, o próprio processo de composição dessas estruturas, que mais nos interessa e chama a atenção aqui - tendo em vista que é ela a geradora dessa experimentação violenta e caótica. É isso que nos faz relacionar Loyola Brandão e o cut-up. Eis, então, a justificativa de nossa abordagem.

Antes de fazermos comentários mais minuciosos sobre a supracitada obra de Loyola Brandão, ou mesmo de passarmos às comparações propriamente ditas entre a configuração de Zero e as proposições de Gysin e Burroughs, é necessário apresentar estas últimas, esclarecendo, assim, os princípios e as consequências da implementação da técnica cut-up no processo de criação literária.

Linguagem: vírus sem cura - e seus paliativos

William S. Burroughs, um dos mais cultuados escritores modernos norte-americanos, membro fundador e mentor da Geração Beat, autor reconhecido por sua postura contracultural, sua identificação com o consumo de narcóticos pesados, sua conturbada vida pessoal e sua dedicação ao experimentalismo literário, desenvolveu, em certa altura de sua extensa carreira artística, e juntamente com seu amigo Brion Gysin - um, também renomado, pintor, desenhista e poeta inglês -, uma técnica de “construção” literária6 6 Como veremos, a própria noção de “escrita” é questionada por essa técnica. Por isso não podemos nos referir aqui a uma “técnica de escrita literária”. extremamente experimental: o cut-up. Essa técnica, descendente direta das vanguardas artísticas europeias, especialmente da pintura e da poesia do Cubismo e do Dadaísmo,7 7 É dito em vários textos (acadêmicos, biográficos, jornalísticos) e pelos próprios Burroughs e Gysin, em entrevistas, que o primeiro escritor a utilizar essa técnica de colagem na literatura foi Tristan Tzara, um dos fundadores do movimento dadaísta. Porém, o cut-up desenvolvido pelo inglês e pelo norte-americano “expande e sistematiza o gesto iconoclasta e provisório do desconstrutor/destruidor cultural do início do século” (Vasconcelos, 1996, p. 243). influenciaria fortemente o processo de composição da obra mais famosa de Burroughs, Naked lunch,8 8 Nas palavras de Gysin: “O primeiro romance importante de Burroughs – Naked Lunch, escrito em Tangier em 1957 – já continha todos os princípios de uma total e sistemática desconstrução do romance” (Burroughs e Gysin, 1978, p. 13 tradução nossa). de 1959, e seria a fórmula criadora fundamental da segunda fase de sua literatura. Robinson define essa fase estilística e cronológica de Burroughs como:

o período do meio, tipificado pela ampla experimentação e um inclinar-se para a ficção científica [...]. [...] a segunda fase, que consiste principalmente de The softmachine, The ticket that exploded e Nova Express, construídos usando os métodos do cut-up e do fold-in, e que também inclui os outros textos experimentais que Burroughs produziu durante o mesmo período, representados por Minutes to go, The exterminator e, talvez mais significativamente, The third mind, compilado a partir de textos que datam dessa época, mas somente publicado em 1978. No entanto, é necessário dar um passo mais para trás na cronologia de Burroughs, para o seu romance de ruptura Naked lunch, para que possamos avaliar o contexto em que Burroughs veio a receber a concepção da técnica do cut-up (2011, p. 33-34, tradução nossa).

Tendo em mente a data de publicação de Naked lunch (1959) e da Nova Trilogy - respectivamente, The softmachine (1961), The ticket that exploded (1962) e Nova Express (1964) -, define-se, cronologicamente, essa segunda fase como compreendendo meados dos anos 1960. É durante esse período que nasce o cut-up na obra de Burroughs.

Os fundamentos teóricos e estéticos dessa técnica estão discutidos - como mencionado no excerto acima -, a partir de uma reunião de entrevistas e textos coletados, num dos livros nascidos da colaboração desses dois artistas: The third mind, publicado originalmente em 1977 - e, obviamente, também numa inumerável série de trabalhos acadêmicos que se propuseram e se propõem a discutir essa técnica e a obra desses autores.9 9 Caso haja interesse na história da técnica cut-up e no seu desenvolvimento para além – mas também acerca – dos trabalhos de Burroughs, indicamos a fundamental e já mencionada obra: Shift linguals (Robinson, 2011).

Para melhor compreendermos essa tão complexa questão dos cut-ups, apoiemo-nos nas palavras ditas pelo próprio Burroughs, em entrevista:

[...] cut-ups tornam explícito um processo psico-sensorial que está acontecendo o tempo todo, de todo modo. Alguém está lendo um jornal e seus olhos seguem a coluna no correto modo aristotélico, uma ideia e sentença por vez. Mas, subliminarmente, ele está lendo as colunas dos dois lados e está atento à pessoa sentada perto dele. Isso é um cut-up. Eu estava sentado num restaurante em Nova York, comendo minhas rosquinhas com café. Eu estava pensando que uma pessoa realmente se sente um pouco encaixotada em Nova York, como se vivesse numa série de caixas. Eu olhei para fora da janela e lá estava um grande caminhão da Yale. Isso é um cut-up - a justaposição do que está acontecendo ao redor e o que você está pensando sobre (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press., p. 8-9, tradução nossa).

É a partir do relato de duas situações corriqueiras - o momento de leitura de um jornal e algumas reflexões cotidianas durante um café - que Burroughs define a essência por trás da prática, o princípio que fundamenta sua técnica literária: a natural capacidade humana de leitura de mundo; mas uma capacidade que é, aos olhos de Burroughs, não aristotélica e não cartesiana. Por aristotélico e cartesiano, é possível perceber que o autor está simplesmente se referindo à ordem linear, sequenciada, organizada, lógica, racional, científica, que rege - ou que pretende reger - a linguagem, o pensamento, enfim, a realidade humana. De fato, mais adiante, nessa mesma entrevista, o autor se refere à proposição da lógica aristotélica - nas palavras dele: a que se define pelo princípio do “either-or” (em tradução aproximada: “um-ou-outro”) - como sendo um dos maiores erros do pensamento ocidental.

Burroughs aqui fala especificamente no pensamento ocidental porque, segundo ele, boa parte das linguagens orientais, tais como os ideogramas chineses ou japoneses, é baseada numa perspectiva de leitura mais plural, menos linear, que assimila várias possibilidades de codificação a partir de um mesmo símbolo, gerando, assim, várias significações distintas para uma mesma estrutura gráfica10 10 Na literatura brasileira, mas no campo da poesia, tivemos o caso dos autores e teóricos da poesia concreta, que também se utilizaram dessa referência ao ideograma oriental para fomentar algumas de suas experimentações e propostas poéticas. Ver Teoria da poesia concreta (Campos, Pignatari e Campos, 1975). (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press.).

Para Burroughs, portanto, a visão humana da realidade é naturalmente - e diferentemente do que postulam a linguagem e o pensamento ocidentais - um complexo de associações e interpretações não lineares, e as justaposições dessas; uma concepção plural e simultânea que engloba 360º ao redor do homem. Portanto, o caos e a fragmentação - lembremos en passant de Zero - são, em essência, o princípio que rege essa visão.

Então, partindo desse pressuposto, pode-se dizer que o cut-up é uma tentativa - estética, linguística, literária, artística - de dialogar e expressar essa percepção multifacetada e simultânea da realidade, fugindo e/ou lutando contra essa norma imposta pela linguagem linear; ou, ainda mais que isso, seria uma forma de exercitar a mente humana - esticar os músculos dessa mente -, que, ao longo do tempo e com o uso constante da ordem linear, sequenciada, de compreensão da realidade, teria se tornado atrofiada, retesada e amortecida.

Há, portanto, uma postura libertária na proposição literária de Burroughs e Gysin; uma proposição que, por se postar enquanto desconstrutora de uma instituição de controle e limitação da experiência humana - segundo os autores: a própria linguagem -, estaria se portando de maneira não só estética, mas também política, diante da realidade: “o escritor buscava evidenciar um parasita que se torna uma metáfora para todas as relações de poder” (Peccioli, 2012PECCIOLI, Marcelo Romani (2012). Drogas: experimentações estéticas e literárias. Aurora, São Paulo, v. 5, n. 15, p. 107-126., p. 118, grifo nosso). O cut-up é visto então como uma arma de rebelião política, tendo em vista que se posta enquanto desestruturador de um discurso de poder - para Burroughs, “é pela linguagem que a mídia, servindo aos interesses daqueles que detêm o poder estatal, manipula os cidadãos para que se tornem idiotizados e desprovidos de individualidade” (Burroughs apud Peccioli, 2013PECCIOLI, Marcelo Romani (2012). Drogas: experimentações estéticas e literárias. Aurora, São Paulo, v. 5, n. 15, p. 107-126., p. 119). A literatura e a linguagem passam a ser, portanto, cenários de uma grande e perpétua luta.

Em outras palavras - parafraseando uma das assertivas mais famosas e recorrentes de sua obra -, a palavra ou a linguagem é, para Burroughs, um vírus que infecta o homem,11 11 Aqui cabe um esclarecimento, que encontramos em Peccioli (2013, p. 119): “para Burroughs, não se trata de nenhuma metáfora; a linguagem é literalmente um vírus, uma forma maligna e letal que invade seus hospedeiros, multiplica-se neles e, por contágio, atinge outros hospedeiros”. Essa percepção “viral” da linguagem talvez tenha a ver com a dupla formação acadêmica de Burroughs: artes e medicina. um parasita que lhe sufoca, uma fórmula que lhe é imposta e lhe limita. “A linguagem não é algo natural [...], pois toda língua é estranha” (Castilho, 2005CASTILHO, Pedro Teixeira (2005). O mais além da escrita na obra “The ticket that exploded” de William Burroughs. Em tese, Belo Horizonte, v. 9, p. 245-252, dez., p. 246), e, como todo corpo estranho, deve ser combatida ferozmente. Os cut-ups podem então ser definidos como “mecanismos que lhe possibilitam escapar da linguagem” (Castilho, 2005CASTILHO, Pedro Teixeira (2005). O mais além da escrita na obra “The ticket that exploded” de William Burroughs. Em tese, Belo Horizonte, v. 9, p. 245-252, dez., p. 251), ou seja, vacinas contra a linguagem-vírus.

Cabe, aqui, uma observação. Notemos que essa visão acerca do cut-up remete muito à perspectiva de Roland Barthes acerca da própria natureza da literatura; mais especificamente, a algumas ideias discutidas no seu texto A aula. Vejamos a seguinte passagem:

Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura (Barthes, 1996BARTHES, Roland (1996). Aula. São Paulo: Cultrix., p. 8, grifo nosso).

Lembremos também de Bakhtin (2009BAKHTIN, Mikhail (2009). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec., p. 48): “a dialética interna do signo só se revela inteiramente em épocas de crise social e comoção revolucionária”. Percebemos, portanto, que tanto Bakhtin quanto Barthes estão discutindo acerca de uma postura de linguagem desviante, que busca desautomatizar a norma, desconstruir padrões e subverter as formas que se impõem sobre a linguagem comum. E essa postura é justamente o que determina a própria natureza do texto literário para Barthes, é o que define o que vem a ser a literatura. Segundo ambos os autores, existe um elemento político nessa desconstrução, uma questão que se espraia para além do estético - o que percebemos, no caso da fala de Barthes, no momento em que se menciona uma “língua fora do poder”. Ou seja, nessa perspectiva, é elemento fundador da literatura essa postura revolucionária de desconstrução de estruturas opressoras; elemento esse que também faz funcionar toda a armação estético-política do cut-up.

Retomando, então, a técnica do cut-up, e todos seus desdobramentos estilísticos, deparamo-nos com uma série de questões importantes: como se postar diante de uma realidade opressora e controladora? Como combater a imposição viral que parasita a experiência humana? Como suplantar a ditadura da linearidade que, há séculos, suprime o homem? É a partir dessas questões que se desenvolvem os traços composicionais e experimentais fundamentais do cut-up literário; é partindo dessa problemática que surge esse paliativo estético-político - essa esquiva, essa trapaça, esse logro, diria Barthes; essa realidade ideológica do signo revelada, diria Bakhtin - para o vírus sem cura que é a linguagem. Parece-nos que Burroughs e Gysin atingiram diretamente o coração dessa questão.

Explicitados os princípios estéticos e também políticos do cut-up, falemos agora dos procedimentos e das minúcias formais, estilísticas e narrativas, geradas a partir dessa técnica de composição literária.

Diz Burroughs, acerca da técnica que lhe foi apresentada pelo amigo Gysin:

O método é simples. Aqui está um modo de fazê-lo. Pegue uma página. Como esta página. Agora, corte-a verticalmente e horizontalmente ao meio. Você tem quatro segmentos: 1 2 3 4… um dois três quatro. Agora rearranje os segmentos, colocando o segmento quatro no lugar do segmento um e o segmento dois no lugar do três. E agora você tem uma nova página. Às vezes, algo bem diferente - fazer cut-up com discursos políticos é um exercício interessante -; de todo modo, você vai descobrir que diz algo e algo bem definido. Pegue qualquer poeta ou escritor que você goste, digamos... ou poemas que você tenha lido muitas vezes. As palavras perderam sentido e vida através de anos de repetição. Agora pegue o poema e digite passagens selecionadas. Encha a página com excertos. Agora corte a página. Você tem um novo poema. Quantos poemas você quiser. Quantos poemas de Shakespeare e Rimbaud você quiser (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press., p. 35, tradução nossa).

O procedimento descrito por Burroughs é bastante prático e concreto; é um experimento, no sentido mais laboratorial do termo: recortar pedaços de papel, partes de um texto, remontá-los numa nova configuração e depois reescrever o resultado dessa remontagem. Reconfiguração, portanto: essa é a chave; o novo que surge a partir do velho, do que já existe. É da reconfiguração que nasce a literatura do cut-up; a literatura com a tesoura na mão e pronta para reinventar o texto literário - reinventando também a si mesma enquanto técnica a todo instante no processo - a partir de sua própria destruição. O vanguardismo estético - e, num certo sentido, político - dadaísta/cubista dessa técnica é notório. É fácil imaginar que o resultado de um procedimento mecânico como esse - “uma máquina que pode desconsertar a ordem semântica” (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press., p. 18, tradução nossa) - será, contrariamente, um material desautomatizante, não mecânico, fragmentário, notavelmente experimental e instigante.

Mas por que se utilizar de uma técnica que parece estar ligada muito mais às artes plásticas do que à literatura para construir essa nova proposta estética? Essa é uma questão que facilmente poderia e pode surgir na mente dos apreciadores e críticos literários. E surgiu. Numa entrevista cedida ao Paris Review, em 1966,12 12 Reimpressa em The third mind (Burroughs e Gysin, 1978). quando questionado sobre a possibilidade de evitar o trabalho do cut-up com as tesouras, através do trabalho com a livre-associação de ideias e palavras escritas numa máquina de escrever - como já haviam feito, ao longo de milênios, segundo a perspectiva de Barthes, todos aqueles que se dedicaram a desenvolver o artefato literário -, Burroughs responde:

A mente de uma pessoa não consegue fazer isso desse modo. [...] Sua mente simplesmente não poderia administrar isso. É como tentar manter muitos movimentos de xadrez na mente, você simplesmente não poderia fazê-lo. Os mecanismos mentais de repressão e seleção também estão operando contra você (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press., p. 8, tradução e grifo nossos).

Ou seja, para Burroughs, o cut-up e suas tesouras vão além, surgem como um procedimento necessária e extremamente palpável, prático e concreto, porque, segundo ele, ao se construir um texto literário - ou seja, ao se inserir dentro do campo de batalha da linguagem - é necessário combater uma série de mecanismos mentais de repressão e seleção - aristotélicos, lineares, sequenciais - que acontecem automaticamente na mente humana. A proposta então é a radicalização do processo de criação literária em função da desconstrução desses processos mentais - uma radicalização ainda mais extrema, que pretende ir além do próprio fundamento que define a literatura como uma linguagem desautomatizante. As tesouras são, portanto, literalmente, radicais instrumentos de desautomatização do processo de produção literária, mecanismos plásticos de desestruturação narrativa, linguística e poética.

O próprio Burroughs admite ser possível treinar a mente para que ela, sozinha, trapaceie esses mecanismos, para que distorça a repressão e a seleção automatizantes da linguagem, mas isso requer uma laboriosa rotina cotidiana de exercícios e experimentações de desconstrução linguístico-narrativa.13 13 Nessa mesma entrevista, Burroughs descreve uma série de procedimentos diários que adotou durante anos para treinar sua mente a desassociar e reassociar a realidade em processos mentais não lineares, fragmentários e simultâneos. Para saber mais sobre essas técnicas, conferir o primeiro texto de The third mind, que contém a entrevista com William S. Burroughs. Trabalhar com o cut-up - com tesouras e remontagem, com assimilação e fragmentação - seria uma forma de exercitar a libertação desses mecanismos mentais automatizantes - esse discurso de poder exercido pela linguagem em si.

Tendo sido apresentados o procedimento composicional e os rendimentos estético-políticos, narrativos e estilísticos da técnica literária de Burroughs e Gysin, o cut-up, é tempo então de retomarmos as discussões acerca de Zero. Nos próximos passos de nossa leitura/diálogo crítico, estabeleceremos conexões entre o romance experimental de Ignácio de Loyola Brandão e os procedimentos propostos por Burroughs e Gysin. É a partir daqui que começamos a enxergar, com maior clareza e discernimento crítico, Zero enquanto uma espécie de romance cut-up - acrescentando, assim, mais uma tentativa de definição na vasta lista de abordagens referentes a essa contundente obra.

Cutting-up Zero

Sobre o processo de composição de Zero, é válido esclarecer algo que ainda não havíamos comentado diretamente. Nas palavras do próprio Brandão (2006BRANDÃO, Ignácio de Loyola (2006). Zero, ou como escrever livros debaixo de uma ditadura. In: DEL VECHIO, Angelo; TELAROLLI, Sylvia (Org.). Literatura e política brasileira no século XX. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 15-45., p. 20-21):

quando as matérias censuradas voltaram para mim, joguei sobre uma pequena mesa suplementar ao meu lado [...]. A operação “jogar na mesa” foi se repetindo e ela se encheu de papéis, fotografias, ilustrações. [...] No sábado de manhã fui ao jornal e comecei a olhar aquelas “cenas proibidas” da vida brasileira. [...] Ali estava o Brasil oculto, aquele que ninguém podia ver, conhecer. Era a nossa face verdadeira.

Segundo os críticos Lavorati e Teixeira (2008LAVORATI, Carla; TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges (2008). O romance reportagem e a crítica social. Revista Voos, Guairacá, n. 5, p. 77-84, mar., p. 80):

Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, nasceu de matérias produzidas pelo autor e censuradas pelo regime militar no período em que trabalhava como jornalista no jornal Última Hora. [...] A obra surge inicialmente como uma série de fragmentos sobre uma grande cidade, num período obscuro e conturbado, de medo e violência, o da ditadura militar. [...] E assim, o texto se estrutura repleto de inovações como recortes de jornal, caixas com pensamentos, frases de banheiro, desenhos, rabiscos, letras de música, poemas.

Por hora, deixemos essas informações em suspenso.

Voltemo-nos agora para um excerto do próprio texto romanesco - as primeiras páginas de Zero - para que possamos ter uma visão mais concreta e imediata do que estão falando os críticos e o próprio autor nos excertos que citamos anteriormente.

O romance abre com a seguinte frase, ocupando uma página inteira, como se fosse uma grande manchete de jornal: “Num país da América Latíndia, amanhã” (Brandão, 1986BRANDÃO, Ignácio de Loyola (1986). Zero. São Paulo: Clube do Livro., p. 9). E mais adiante, nas páginas seguintes, o texto segue:

José mata ratos num cinema poeira. É um homem comum, 28 anos, que come, dorme, mija, anda, corre, ri, chora, se diverte, se entristece, trepa, enxerga bem dos dois olhos, tem dor de cabeça de vez em quando, mas toma melhoral, lê regularmente livros e jornais, vai ao cinema sempre, não usa relógio nem sapato de amarrar, é solteiro e manca um pouco, quando tem emoção forte, boa ou ruim. Atualmente, José está impressionado com uma declaração do Papa de que o Natal corre perigo de se tornar uma festa profana. CADA RATO TEM UM PREÇO Nove horas, José veste o macacão, calça as botas de borracha e instala a aparelhagem de tambores e tubos plásticos. Aciona a manivela e produz uma fumaça amarela que vai para as tocas. Os ratos correm e logo caem. Mortos. Ele recolhe num saco e vai jogar nos terrenos baldios da Várzea do Glicério. José tem uma cota diária de ratos. Ele sabe que no dia em que tiver exterminado todos os bichos, perde o emprego. Um dia, não tinha mais ratos. José foi à Várzea, pagou 50 centavos a dois moleques, cada um trouxe três ratos. Assim, José continuou trabalhando. [...] NOME: cosmo ou universo. CARACTERÍSTICAS: contêm os “corpos” celestes e o espaço em que eles se encontram. O seu conjunto contém 1076 (10 elevado a 76 potência) de prótons. PESO: em gramas: 1056. GRANDEZA: segundo Einstein, todo o universo deve ter um diâmetro de 8 milhões de anos-luz. IDADE: (presumível) 10 a 12 bilhões de anos. FORMAÇÃO: os “corpos” celestes são principalmente as estrelas, os planetas que giram com seus satélites em volta das estrelas, os cometas e matérias que aparecem periodicamente entre as estrelas. IDADE MÉDIA DE UMA ESTRELA: 10.000 milhões de anos. QUANTIDADE DE ESTRELAS: cada galáxia contém em média 100.000 milhões de estrelas. FORMA DE VIDA: 1 planeta em cada grupo de 1.000 parece oferecer condições favoráveis à vida. GRANDEZA DA NOSSA GALÁXIA: comprimento de 100.00 anos-luz; largura de 30.000 anos-luz; espessura de 15.000 anos-luz. VELOCIDADE DA NOSSA GALÁXIA: 150 a 330 quilômetros por segundo. O SOL: pesa 330.000 vezes mais que a Terra. A TERRA: pesa:................... 6.000.000.000.000.000.000.000 de toneladas. JOSÉ: pesa 70 quilos ou quilogramas (Brandão, 1986, p. 11-12).

O impacto visual das duas colunas subdividindo a página de um romance, por si só, já é uma marca notória do experimentalismo estético que caracterizará toda a composição do romance de Brandão. Isso porque essa formatação é típica do texto jornalístico e não do romanesco. Essas colunas - ou seja, o texto visual - já nos arremessam num universo linguístico que promete ser de estranhamento, e isso antes mesmo de nos determos sobre o texto verbal. Estamos diante, portanto, de um gênero maleável, movediço, caracterizado justamente por essa sua falta de forma fixa e pelo intercâmbio que faz com várias outras formas textuais.

Na coluna do lado esquerdo da página, lemos a história de José, o exterminador de ratos. É interessante notar que, em função das suas estruturas, essa parte do texto se caracteriza nitidamente como uma narrativa. Dispomos de um narrador que conta a história, de personagens (José e os dois “moleques” da Várzea), de espaços bem demarcados (o cinema, os terrenos baldios, a própria Várzea do Glicério), de uma trama de ações; enfim, essa parte do texto se estrutura a partir de elementos fundamentais do texto narrativo. Há um intrincado tratamento estilístico desenvolvido aí, ainda que ele se volte muito mais à condição de uma linguagem rústica e seca do que necessariamente metafórica ou imagética. Esse trato estético, presente nessa passagem - a longa e estranha, quase non sense, listagem que define quem é José no começo do texto poderia ser um exemplo disso -, atribui-lhe também o aspecto de texto literário, de narrativa literária; parece que estamos diante de uma espécie de conto.

Paralelamente, na coluna do lado direito da página, lemos um texto com cunho marcadamente científico - pelo menos até o seu último tópico, intitulado “JOSÉ”. É como se estivéssemos diante de um verbete de enciclopédia que versa, sucintamente, sobre as propriedades do universo, das galáxias, das estrelas, dos planetas etc. Inicialmente, as duas colunas não parecem ter relação alguma, a não ser o fato de que estão dividindo o espaço físico da página. Elas parecem deslocadas; não há elemento coesivo ou de coerência algum que as conecte; elas permanecem paralelas, sem se tocar temática ou mesmo esteticamente. Somente na última linha dessa outra coluna é que vemos o seu texto se transformar abruptamente, conectando-se e tomando para si as características da coluna ao lado. Vemos que toda aquela delimitação científica acerca da grandeza dos elementos que compõe o universo funciona como uma espécie de grande imagem estética: a imagem da pequenez e da inferioridade da personagem José em relação ao universo ao seu redor. É importante também frisar que não existe nenhuma determinação clara dizendo em que ordem as colunas devem ser lidas. Poder-se-ia partir da noção tradicional de leitura da esquerda para a direita, mas o fato de, inicialmente, as duas colunas aparentarem constituir textos completamente díspares torna lícita uma outra abordagem - na perspectiva de Burroughs e Gysin, talvez essa leitura simultânea, não aristotélica, não linear, enfim, essa leitura cut-up, é que fosse a verdadeiramente desejada.

Percebemos então que Brandão subverte gêneros - o jornalístico, o científico e o literário, nesse caso -, estilos, formas e mesmo temas para construir e talhar o seu romance. Zero traz em suas feições as marcas da fragmentação como estrutura basilar. Reafirmamos, então, o que já asseverou Dalcastagnè (acerca da tríade de romances por ela analisada, A festa, Reflexos do baile e Zero): “a principal característica deste bloco de narrativas está em sua fragmentação” (1996, p. 45).

Desse modo, retomando as citações que abrem o presente tópico (de Brandão e de Lavorati e Teixeira) e colocando-as em relação à leitura crítica que fizemos acima, é possível compreender que, apesar de não estar determinado objetivamente no corpo da obra quais dos fragmentos que compõem Zero são textos literários nascidos para o romance e quais são “colados” a partir de recortes de jornais, citações de músicas ou outros textos - e daí o caos e a violência linguístico-narrativa de que antes falávamos -, fica-nos claro, de imediato, se tivermos um razoável conhecimento de mundo, que o processo de composição dessa obra é o da colagem e da remontagem, da intertextualidade gerada através do recortar/colar, da citação que é incorporação indiscriminada e não marcada do texto de outro ao seu próprio texto. Isso acontece, essa percepção clara, porque conseguimos notar, através da intercalação e da mudança de estilos de escrita, das características de gêneros textuais diversos e até mesmo dos diversos layouts e configurações gráficas do texto - como vimos no exemplo -, as marcas, os rastros linguísticos que nos levam a perceber esse processo específico de composição: a remontagem.

Ora, e esse não é exatamente o processo da técnica do cut-up? Cortar páginas de fontes diversas - e Burroughs inclusive cita o texto jornalístico como uma das fontes primárias de seus experimentos -, remontá-las e reescrevê-las, criando assim um novo texto, uma nova obra? Portanto, é possível perceber que o que Burroughs fazia, em busca da desconstrução do vírus da linguagem - ou seja, na tentativa de desestruturar e fugir do discurso de poder da linguagem -, é muito similar ao que Brandão fez, lutando, por sua vez, contra o discurso de poder da Ditadura. Pode-se dizer, então, que ambas as propostas estéticas nascem de uma mesma fórmula composicional, de um mesmo procedimento basilar: a configuração/reconfiguração de uma obra a partir do recorte/cole de textos de várias fontes.14 14 Aqui cabe uma nota frisando que, a nosso ver, Burroughs foi um tanto mais radical do que Brandão, criando constructos linguísticos violentamente mais caóticos e non sense; as “mensagens” do texto de Brandão são ainda um pouco mais claras do que as imagens cifradas nas narrativas de Naked lunch e da Nova Trilogy. Mas não entraremos nesse mérito no presente artigo.

No entanto, somente essa equivalência de procedimentos técnicos não possibilitaria um diálogo tão íntimo, como o que aqui traçamos, entre as produções de Brandão e Burroughs - seria o mesmo que dizer que qualquer texto pode ser lido como literatura simplesmente por trabalhar com o uso da língua. Continuemos, pois, nossas investigações, buscando ir além dessa abordagem puramente procedimental.

Veremos então que o diálogo se torna mais acurado quando refletimos sobre os desdobramentos políticos da implementação dessa técnica, tanto nas produções dos autores estrangeiros quanto na do brasileiro. Pensando a partir desse viés, veremos que ambas as propostas podem ser percebidas enquanto questões estéticas que, através de suas próprias constituições formais e estruturais, reverberam proposições e posições politicamente engajadas - sejam elas contra o poderio da linguagem ou o dos militares. Como afirma Dalcastagnè (1996DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora da UnB., p. 67-68):

Se Ivan Ângelo fez do mal-estar objeto de representação dramática, Ignácio de Loyola Brandão o levou antes à sua intensificação máxima para só então, com a certeza de ter extinto toda possibilidade de sublimação, expô-lo grotescamente à visitação pública. Zero é a radicalização de um processo narrativo. [...] ele nasce sob o signo da fragmentação. Uma fragmentação que não atinge apenas a sua estrutura interna, determinando sua forma e seu estilo [...], mas que subverte toda a sua dicção. [...] o romance imita, estiliza e parodia os discursos que camuflam e sublimam a miséria e a violência. É fundamentalmente com o discurso do poder que Zero dialoga.

Vemos, portanto, que Brandão, Burroughs e Gysin estavam todos digladiando com discursos de poder, adentrando um campo de batalha no qual eles deliberadamente assumiam posições - e não somente posições estéticas, mas também, e claramente, posturas políticas. Desarticular a linguagem para vencer seus mecanismos de repressão e seleção; esfacelar a narrativa para representar, atingir e desmascarar o discurso dos poderosos ditadores; para uns e para o outro, a técnica do cut-up surge como escudo e armamento estético-políticos.

Cabe aqui uma reflexão que Dalcastagnè desenvolve acerca de Zero (e seus dois companheiros geracionais), mas que podemos estender também à estética de Burroughs e Gysin: “a maior força dessas obras está em colocá-la [a história dos vencidos] em permanente confronto com a história oficial, com os discursos ideológicos do poder” (1996, p. 48-49, grifo nosso). Verdadeiros discursos de embate.

Sendo assim, comprovamos que, tanto de um ponto de vista da própria técnica composicional de montagem do romance, quanto do das reverberações políticas da implementação dessa técnica, a ligação entre Zero e o cut-up - independentemente do nível de consciência de Brandão acerca dessa relação no momento da produção de sua obra - é algo bastante claro e digno de nota.

Passemos agora a pensar o próximo passo de nossa análise, aquele que se volta diretamente à particular composição estilística e linguístico-narrativa de Zero.

Partamos dos seguintes comentários de Calegari (2011CALEGARI, Lizandro Carlos (2011). Uma estética fragmentária: a perspectiva crítica em Zero e a organização da linguagem literária. Interdisciplinar, Itabaiana, ano 6, v. 13, p. 165-175, jan./jun., p. 167):

Em Zero, a caótica organização estrutural da narrativa determina a elaboração de uma linguagem que se dissipa justamente ao apresentar a dispersão que caracteriza os conteúdos tematizados. Sendo um elemento estruturador de procedimentos linguísticos, poéticos e temáticos, a presença do caos define e modela a linguagem. Esta, por sua vez, passa a ser a principal força motriz, responsabilizando-se por e motivando todos ou muitos desvios averiguados no texto. [...] num romance cuja preocupação fundamental é a linguagem. [...] observam-se, no livro em questão, além da acentuada fragmentação da narrativa, o uso da montagem, o desrespeito às regras convencionais, a desordem dos vocábulos, o uso de palavras informais, o recurso às técnicas cinematográficas e televisivas.

Percebemos, então, que o ponto principal, aquele que imediatamente chama a atenção e que mais causa estranhamento ao leitor de Zero, é a composição linguística, estilística - lembremo-nos das páginas citadas anteriormente. Consequentemente, uma vez adentrado o romance, a desconstrução fragmentária narrativa e a contundente e violenta temática da opressão de uma realidade ditatorial também se apresentam como pedras basilares, os outros recursos experimentais que funcionam como principais desestabilizadores da leitura e da compreensão geral da obra. Tem-se então uma linguagem fragmentária e caótica para falar sobre uma realidade violenta e brutalizada; trata-se da dicção da voz do caos e da violência da realidade do caos - o caos que, como dito no excerto acima, é a estrutura a partir da qual se sustenta todo o romance.

É válido frisar que não é só Calegari - assim como Dalcastagnè, que citamos anteriormente - que parece ter essa percepção do estranhamento e da fragmentação enquanto marcas estilístico-linguístico-narrativas desse romance. Grande parte dos estudiosos e críticos que eventualmente puseram as mãos nessa fascinante obra parecem corroborar com essa ideia. Pereira (2005PEREIRA, Helena Bonito Couto (2005). Semelhanças que não são meras coincidências: narrativas pós-modernas no Brasil e no México. Todas as letras, São Paulo, ano 7, n. 7 (ed. esp.), p. 65-74.) menciona um vínculo entre “Zero e o pós-modernismo”, expressão estética que, segundo a autora, é marcada pelas “transgressões gráficas e morfossintáticas e [...] neologismos”; Reimão (2008REIMÃO, Sandra (2008). Dois livros censurados: Feliz ano novo e Zero. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, ano 29, n. 50, p. 149-161.) afirma que o romance é constituído de “fragmentos, apresentados graficamente como tais”, ou seja, um romance descompactado, fragmentário; para Vertuan (2013VERTUAN, Ederson (2013). Gênero, fragmentação e montagem em Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. E-scrita, Nilópolis, v. 4, n. 1, p. 134-152, jan./abr.), “Zero poderia ser considerado tanto como um romance quanto um não romance”, em função de suas inovadoras e experimentais técnicas; Lavorati e Teixeira (2008LAVORATI, Carla; TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges (2008). O romance reportagem e a crítica social. Revista Voos, Guairacá, n. 5, p. 77-84, mar.) referem-se a Zero como fazendo parte do gênero jornalismo literário, ou “romance reportagem”, por ser formado, em grande parte, pela colagem de matérias de jornal, e também por dialogar com a linguagem de cunho jornalístico; e isso somente para citar algumas das leituras críticas. Sendo assim, embora a gama de definições, aproximações e associações teóricas seja bastante variada, a percepção - repetimos - da fragmentação e do estranhamento estilístico-narrativo enquanto pedras definidoras dessa obra é uma recorrência inegável.

Não queremos afirmar, com isso, que todos os outros elementos e recursos do romance, tais como as anteriormente mencionadas sexualidade explícita, brutalidade dos quadros descritos e crítica à Ditadura, por exemplo, não têm ou tiveram um grande impacto, gerador de estranhamento e desconforto na percepção do leitor. Não é isso. O que estamos dizendo é que, para tornar seu texto ainda mais agressivo, bruto, impactante e transgressor - o que lhe atribuiu a alcunha, dada pelos censores, de autor que atentou “à moral e aos bons costumes” -, Ignácio de Loyola Brandão se valeu de uma linguagem e de uma composição narrativa igualmente agressivas, brutalizadas, impactadas e transgressoras, construindo, assim, uma obra literária temática, linguística, estilística e narrativamente pautada numa mesma fórmula: a da violência - ou, para usar as palavras de Calegari, a do caos. Sendo assim, os recursos linguístico-narrativos, postando-se como potencializadores dessa caótica violência temática, tornam-se a principal engrenagem que faz funcionar essa máquina literária que é Zero.

Retomando, em paralelo, as reflexões acerca da proposta de Burroughs, vejamos o que Castilho (2005CASTILHO, Pedro Teixeira (2005). O mais além da escrita na obra “The ticket that exploded” de William Burroughs. Em tese, Belo Horizonte, v. 9, p. 245-252, dez.) diz sobre a composição de The ticket that exploded (comentário esse que pode ser estendido a toda a estilística do cut-up):

O tempo traz o ritmo e uma quebra de padrões linguísticos no qual a sintaxe aparece cheia de traços, parênteses e hifens. Se a sintaxe é a constituição das frases dentro do discurso, bem como a relação lógica das frases entre si e a correta construção gramatical, nessa obra de Burroughs existe um desafio aos padrões linguísticos. [...] se o método cut-up for aplicado da maneira que Burroughs comumente postula, “um pequeno pedaço de papel sendo cortado em quatro partes iguais”, as disjunções ocorrerão com mais frequência e a sintaxe será comprometida. [...] dentro do texto de Burroughs, a realidade passa a ser um mosaico constituído na e pela fragmentação do texto (Castilho, 2005CASTILHO, Pedro Teixeira (2005). O mais além da escrita na obra “The ticket that exploded” de William Burroughs. Em tese, Belo Horizonte, v. 9, p. 245-252, dez., p. 249-250).

A descrição do texto e da proposta de Burroughs feita por Castilho não poderia ser mais nítida: desafio e quebra de padrões linguísticos; traços, parênteses e hifens compondo a sintaxe; disjunções sintáticas; realidade como um mosaico e texto enquanto fragmentação. E essa descrição não nos lembra outra, há pouco citada? Parafraseamos: fragmentação narrativa, montagem, desrespeito às regras e convenções, desordem vocabular. As citações de Castilho e Calegari irmanam-se, parecem dizer algo acerca de um mesmo texto. E, de fato, aproximam-se tanto justamente por se voltarem a obras que, como já afirmamos, surgem e se desdobram a partir de procedimentos composicionais - e, consequentemente, políticos - bastante aproximados, gerando, consequentemente, construções linguísticas bastante aproximadas.

Comprovamos, assim, que a estilística de Zero é irmã da do cut-up: uma estilística do fragmentário, da violência, do caótico e do estranhamento.

E se a linguagem é tomada e experimentada de maneira tão radical e subversiva, a própria narrativa não poderia ser concebida de maneira diferente. Como exemplo disso, pensemos na triste história de Carlos Lopes e seu filho doente, apresentada de maneira espaçada e caótica ao longo de toda a narrativa de Zero. Em resumo, acompanhamos o adoecimento do filho, a infinita espera - não atendida - por tratamento no hospital, culminando no falecimento do garoto e no kafkiano processo enfrentado por Carlos Lopes depois de sua perda. Como grande parte das “subnarrativas” que movimentam esse romance, o conto de Carlos Lopes não tem relação direta com a história central de Zero - se é que podemos falar em centralidade num romance tão fragmentário e caótico -, ou seja, a vida de José. Ela se desenvolve de maneira fragmentária e não coesa, nas muitas brechas que constituem a própria estrutura essencial do enredo do romance. De um ponto de vista formal, essa narrativa é apresentada de várias maneiras diferentes, dialogando e se utilizando de elementos de gêneros textuais variados, seja configurando-se como um dos curtos capítulos isolados de Zero ou mesmo como uma nota recortada dentro de um enxerto no canto da página.

Curiosamente, o termo “fragmentação” é utilizado para se referir à construção narrativa tanto de Zero quanto do texto de Burroughs, nos excertos referidos anteriormente. Veremos então que, em ambos os casos, o termo está se referindo à imagem de enredos que são fragmentários - “Um após o outro vão surgindo fragmentos que não resguardam entre si um nexo semântico lógico ou ordenado” (Calegari, 2001CALEGARI, Lizandro Carlos (2011). Uma estética fragmentária: a perspectiva crítica em Zero e a organização da linguagem literária. Interdisciplinar, Itabaiana, ano 6, v. 13, p. 165-175, jan./jun., p. 168) -, violentados, que aparecem e depois somem dentro de aglomerados caóticos de non-sense, sexo e violência; de personagens que são peças soltas, muitas vezes anônimas, agindo dentro de cenas ou fragmentos de cenas que se misturam, intercalam-se, sem qualquer marca que instaure unidade, a não ser os - enganadoramente delimitadores - capítulos; à representação de um espaço-tempo diluído num amontoado de imagens desconexas, quadros que estão perdidos num universo literário gerido pelo caos e pela violência.

Frisamos aqui, como outrora já o fizemos, que acreditamos que, nesse quesito, Burroughs foi mais radical e experimental do que Brandão, dando às suas narrativas um tratamento ainda mais fragmentário e caótico do que o que vemos em Zero. No entanto, radicalismos a parte, a proximidade entre as desconstruções narrativas desenvolvidas por ambos os autores é bastante nítida e contundente.

Um último ponto a ser comentado aqui diz respeito ao procedimento de leitura dessas obras.

A própria experiência de leitura de uma obra construída sobre esses fundamentos é uma experiência muito específica. Castilho nos fala de “uma leitura hipnótica” (2005CASTILHO, Pedro Teixeira (2005). O mais além da escrita na obra “The ticket that exploded” de William Burroughs. Em tese, Belo Horizonte, v. 9, p. 245-252, dez., p. 250), para remeter ao fato de que, ao nos aproximarmos de um texto de Burroughs, não devemos nos portar como se estivéssemos diante de uma narrativa tradicional - julgá-lo desse modo seria um engodo, um erro que poderia nos custar a própria compreensão, num sentido mais sensorial do que intelectivo, desse material. Para ler cut-ups é necessário se deixar “hipnotizar” por eles, deixar-se absorver pelo vórtex linguístico-narrativo que ali se apresenta, experienciando a obra, as sensações da obra, muito mais do que tentando compreendê-la, decifrá-la como a um código secreto.

De forma mais prática, poderíamos dizer que, para ler esse tipo de texto - e aqui nós incluímos Zero, em função do parentesco com o cut-up que tão insistentemente viemos comentando -, é necessário que, por exemplo, o leitor se desprenda da ideia de enredo enquanto série de ações e cenas que se interligam nitidamente, umas como consequências das outras. É preciso esquecer também a ideia de que as personagens estão ligadas de modo direto, ou até mesmo a noção de que o universo descrito temporal e espacialmente no romance é uno - um lugar, um tempo definido. Nada num cut-up está definido, a não ser a própria indefinição enquanto princípio básico. O enredo está desconjuntado, dificilmente pode-se falar em personagens principais, e nem mesmo se consegue explicitar uma descrição clara do universo apresentado pela obra. Quando nos referimos anteriormente a uma compreensão mais sensorial do que intelectiva, estávamos nos referindo a isso: ler o livro sem procurar uma linearidade intelectualmente delimitada na história, mas sim buscando perceber as sensações que são suscitadas pela obra - sensações essas nascidas também da própria composição e disposição estilístico-narrativa da obra.

Ou seja, ao questionar a linguagem e a maneira de narrar, esses autores questionaram também os modos de ler e compreender a realidade narrada e/ou ficcionalizada - e esse não é o princípio do cut-up? Exercitar a mente para se desligar da percepção dita aristotélica, linear, da realidade? Aproximar-se de uma obra concebida a partir do cut-up é enxergar o mundo através de associações fragmentárias, e percebê-lo enquanto violenta e subversiva fragmentação, posto que somente assim seja possível fugir dos, ou digladiar com, os discursos de poder que nos são impostos a cada minuto.

Conclusão

Cientes agora da composição de Zero e da proposta estética de Burroughs e Gysin, a aproximação que aqui propusemos e desenvolvemos - nós acreditamos - torna-se clara. O que é dito, de várias formas, sobre a revolucionária obra de Brandão é muito similar ao que está proposto em The third mind - do próprio procedimento técnico de montagem da narrativa a partir da colagem até as consequências estético-políticas da implementação dessa técnica.

É, portanto, a partir das questões anteriormente apresentadas e discutidas que nós nos aventuramos a afirmar que, em certo sentido, e segundo a perspectiva crítica que aqui adotamos - perspectiva essa que pode ser desenvolvida, com mais vagar e minúcia, em outros momentos e espaço propícios -, Zero pode ser lido também como um romance cut-up.

Brandão cut-up censura.

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  • 2
    A saber: editada pela Suhrkamp Verlang, em Frankfurt, 1979, com tradução de Curt Meyer-Clason – informação encontrada na edição comemorativa de 35 anos de Zero (Brandão, 2010BRANDÃO, Ignácio de Loyola (2010). Zero. 13. ed. rev. e ampl. São Paulo: Global.).
  • 3
    Acerca dessa tríade de romances – A festa, Reflexos do baile e Zero –, indicamos a leitura do capítulo “Os salões”, da obra Espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro, de Regina Dalcastagnè (1996DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora da UnB.).
  • 4
    Essa lista de obras está elencada no supracitado artigo de Calegari (2010CALEGARI, Lizandro Carlos (2010). A ficção brasileira pós-64: notas sobre o autoritarismo e a fragmentação em A festa de Ivan Ângelo. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 35, n. 58, p. 54-73, jan./jun.).
  • 5
    A respeito das relações entre realidade histórica e texto literário, para que citemos apenas três fundamentais exemplos, basta que mencionemos os estudos de Antonio Candido (2006CANDIDO, Antonio (2006). Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul.), Mikhail Bakhtin (2009BAKHTIN, Mikhail (2009). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec.) e Auerbach (2011AUERBACH, Erich (2011). Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva.).
  • 6
    Como veremos, a própria noção de “escrita” é questionada por essa técnica. Por isso não podemos nos referir aqui a uma “técnica de escrita literária”.
  • 7
    É dito em vários textos (acadêmicos, biográficos, jornalísticos) e pelos próprios Burroughs e Gysin, em entrevistas, que o primeiro escritor a utilizar essa técnica de colagem na literatura foi Tristan Tzara, um dos fundadores do movimento dadaísta. Porém, o cut-up desenvolvido pelo inglês e pelo norte-americano “expande e sistematiza o gesto iconoclasta e provisório do desconstrutor/destruidor cultural do início do século” (Vasconcelos, 1996VASCONCELOS, Mauricio S. (1996). Rimbaud cut-up Burroughs. Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v. 4, p. 241-257., p. 243).
  • 8
    Nas palavras de Gysin: “O primeiro romance importante de Burroughs – Naked Lunch, escrito em Tangier em 1957 – já continha todos os princípios de uma total e sistemática desconstrução do romance” (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press., p. 13 tradução nossa).
  • 9
    Caso haja interesse na história da técnica cut-up e no seu desenvolvimento para além – mas também acerca – dos trabalhos de Burroughs, indicamos a fundamental e já mencionada obra: Shift linguals (Robinson, 2011ROBINSON, Edward S. (2011). Shift linguals: cut-up narratives from William S. Burroughs to the present. New York: Rodopi.).
  • 10
    Na literatura brasileira, mas no campo da poesia, tivemos o caso dos autores e teóricos da poesia concreta, que também se utilizaram dessa referência ao ideograma oriental para fomentar algumas de suas experimentações e propostas poéticas. Ver Teoria da poesia concreta (Campos, Pignatari e Campos, 1975CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo (1975). Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades.).
  • 11
    Aqui cabe um esclarecimento, que encontramos em Peccioli (2013PECCIOLI, Marcelo Romani (2012). Drogas: experimentações estéticas e literárias. Aurora, São Paulo, v. 5, n. 15, p. 107-126., p. 119): “para Burroughs, não se trata de nenhuma metáfora; a linguagem é literalmente um vírus, uma forma maligna e letal que invade seus hospedeiros, multiplica-se neles e, por contágio, atinge outros hospedeiros”. Essa percepção “viral” da linguagem talvez tenha a ver com a dupla formação acadêmica de Burroughs: artes e medicina.
  • 12
    Reimpressa em The third mind (Burroughs e Gysin, 1978BURROUGHS, William S.; GYSIN, Brion (1978). The third mind. New York: The Viking Press.).
  • 13
    Nessa mesma entrevista, Burroughs descreve uma série de procedimentos diários que adotou durante anos para treinar sua mente a desassociar e reassociar a realidade em processos mentais não lineares, fragmentários e simultâneos. Para saber mais sobre essas técnicas, conferir o primeiro texto de The third mind, que contém a entrevista com William S. Burroughs.
  • 14
    Aqui cabe uma nota frisando que, a nosso ver, Burroughs foi um tanto mais radical do que Brandão, criando constructos linguísticos violentamente mais caóticos e non sense; as “mensagens” do texto de Brandão são ainda um pouco mais claras do que as imagens cifradas nas narrativas de Naked lunch e da Nova Trilogy. Mas não entraremos nesse mérito no presente artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Ago 2016
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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