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“Eu sou uma mulher negra escrevendo”: entrevista com Lívia Natália

Lívia Natália (1979), baiana, é poeta e professora. Mestre e doutora em teoria e crítica da literatura e da cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também leciona teoria da literatura. Seu primeiro livro, Água negra, de 2011, recebeu o “Prêmio Banco Capital Cultura e Arte-Poesia”. Em 2015 publicou o volume de poemas Correntezas e outros estudos marinhos.

Qual a sua relação com a literatura?

Eu escrevo desde sempre. Eu escrevo desde quando era muito pequena, porque eu sempre fui uma pessoa muito do silêncio, muito solitária, muito de ficar quieta. O silêncio é uma coisa que realmente me captura. Poucas coisas me atraem tanto quanto ficar quieta. Então essa coisa da solidão, do silêncio, do isolamento, isso me fez escrever e depois os temas foram aparecendo. Alguém observou no meu primeiro livro, que é o Água negra, que se falava muito em silêncio, em inquietude, em ausência, e depois outros temas foram aparecendo no decorrer do tempo. Então, eu escrevo porque eu preciso escrever. Clarice tem uma frase da qual eu gosto muito na qual ela diz que escreve para poder transformar o mundo - que é muito grande - em alguma coisa que caiba dentro da boca. É mais ou menos por isso que eu escrevo também.

Você acha importante se dizer autora negra dentro do campo literário brasileiro? O rótulo demarca ou aprisiona?

Eu acho que ser uma autora negra demarca de onde eu falo, porque eu posso ser uma escritora simplesmente, sem me comprometer de maneira nenhuma com todas as questões raciais, mas essa não sou eu. Não seria o que Lívia Natália é. O que eu sou é uma mulher negra escrevendo. Então, toda vez que eu escrevo, mesmo que eu não esteja falando diretamente, frontalmente, sobre as questões relativas ao racismo, de alguma maneira, meu texto é um texto racialmente marcado pelo lugar de fala. É uma mulher negra falando, antes de tudo. É uma filha negra falando. É uma amante negra falando. O tempo inteiro o “negra” está colado a tudo que faço, a meu gesto, ao modo como me visto, ao modo como penso, ao ser intelectual negra. Eu sou uma professora, então todo meu trabalho intelectual também circula muito pela questão da negritude.

O racismo presente na sociedade brasileira afeta sua produção?

O racismo nesse país, que se diz uma democracia racial, é estruturante de todas as relações. Quando eu entro numa sala, não entra apenas uma mulher, entra uma mulher negra e as pessoas me leem com a máquina do racismo montada, mesmo que essa pessoa não seja racista. Espera-se um determinado comportamento, uma determinada fala de uma determinada mulher negra. Não é raro uma pessoa se surpreender quando eu não sou a garçonete, quando eu não sou a vendedora, quando eu não sou a empregada doméstica. Quando eu abro a porta do meu apartamento para alguém fazer algum serviço, há um espanto pelo fato de ser eu a dona do apartamento e não a empregada.

Então, o racismo está presente do momento que eu abro os olhos ao momento que eu os fecho. E se eu durmo ele está nos sonhos, nos pesadelos. Não posso dizer de maneira nenhuma que o racismo não interfere diretamente naquilo que eu escrevo. Tenho um texto - do qual eu gosto muito - chamado “Eu mereço ser amada”, no qual eu falo sobre a solidão da mulher negra, que é diferente. Uma mulher negra é sistematicamente preterida pela maioria dos homens negros. Não existe uma naturalização de uma relação afetuosa e saudável entre homem e mulher negros. Qual é o sintoma disso? Qualquer homem negro que tem algum papel mínimo que seja de destaque terá em 90% das vezes uma mulher branca como acompanhante, porque a mulher branca surge como ideal para esse homem. Nós, mulheres negras, ficamos sempre como segunda opção ou nós ficamos sós. Se somos empoderadas, se nos sustentamos, se trabalhamos, se somos inteligentes, aí a gente já é demais. O tempo inteiro isso circula dentro daquilo que eu escrevo. Agora, eu escrevo sobre maternidade, eu escrevo sobre escrita - o próprio processo de escrita me interessa muito quando escrevo -, escrevo sobre violência. Todos os temas que eu escrevo nascem de um lugar de fala que é o meu lugar de fala enquanto mulher negra.

O que o corpo significa em sua produção?

Nós vivemos dentro de um país em que existe alguma coisa chamada “cultura do estupro” e que existe em vários países. É muito mais grave do que a gente possa imaginar. A cultura do estupro está no fato de um pai dizer a alguém “segure a sua cabrita porque o meu bode está solto”. É como se o corpo feminino fosse um corpo que é exposto à vontade, ao desejo de uso do outro, quando a gente sabe que isso é uma violência. Uma coisa é você ter uma cantada elegante, um flerte bonito, bem feito. Outra coisa é você ter uma coisa quase agressiva, acintosa a quem você é, ao que você acredita, ao modo como você se coloca no mundo. E quando a gente pensa nas mulheres negras, isso fica um pouco mais grave, porque, desde o processo de escravização, nós somos pensadas como um corpo de uso, nós somos pensadas como mulheres que podem ser usadas e desprezadas e isso acaba ficando. Os estrangeiros, quando vêm ao Brasil, vêm com determinado ideário. Eu sou baiana, ando pelo Pelourinho, e a gente sabe que no verão o Pelourinho é um lugar quase insuportável para uma mulher negra caminhar, porque os homens brancos, os homens estrangeiros, todos vêm querer tirar foto com a gente, todos vêm querer fazer qualquer tipo de oferta. A grande questão que a gente tem é a imagem de uma disponibilidade do feminino que não é verdade, que não é o que nós somos.

É possível desvincular a produção literária de um ato político?

Mesmo quando uma pessoa se crê neutra, a neutralidade é uma escolha. A neutralidade é uma escolha política antes de qualquer coisa. Para mim, é impossível apartar o que eu escrevo de uma dimensão política, ainda que seja de uma política da subjetividade. A gente sempre imagina que a política é apenas o exterior. Existe um livro de que gosto muito, o Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza, em que ela diz que ao homem negro e à mulher negra não foi permitida a construção de uma subjetividade. E quando você não constrói uma subjetividade, você sistematicamente é animalizado pelo desejo do outro, pela fala do outro, você acaba introjetando essa violência. É aquela situação em que o próprio negro se discrimina. Nós não nos discriminamos, nós aprendemos a nos discriminar, nós aprendemos que somos inferiores de alguma maneira. Isso é muito forte em nosso cotidiano. Não tem como negar que o gesto de se dizer um “eu” sendo um sujeito negro seja um gesto político. Dizer “eu sinto”, “eu vivo”, “eu amo”, “eu me apaixono”, “eu odeio”. Tudo isso, dentro da obra de arte de um sujeito negro, tem um vigor, tem um viés político muito forte.

Qual sua análise sobre um aumento dos mais diversos tipos de intolerância (religiosa, de gênero, étnico-racial, social) no país? Vivemos tempos mais violentos?

Tempos de violência simbólica e de violência física. Não é apenas a violência simbólica, que já é uma violência terrível. Não é apenas andar com a conta no pescoço e se arriscar. Não é apenas você estar de roupa branca e alguém lhe dizer alguma coisa na rua. É a violência de bater, de agredir. A gente está cada vez mais retrógrado, principalmente no que se refere às religiões neopentecostais, e isso é fato, a gente percebe a invasão da religião neopentecostal na política. Nós temos três bancadas muito perigosas, conhecidas como BBB: da Bíblia, da bala e do boi. São três penetrações dentro do campo político perigosas para os indígenas, para os quilombolas, para os negros, para as mulheres, para os homossexuais. Observe que aí se tem uma margem enorme da população brasileira, porque quem não é mulher pode ser gay, quem não é gay pode ser indígena, ou se pode ter todos esses entrecruzamentos em uma pessoa só. As violências são cada vez mais fortes e cada vez mais sistemáticas. Eu não posso deixar de perceber isso de maneira alguma. Eu preciso compreender que é necessário estar o tempo inteiro em posição de combate. O pensador Milton Santos tem uma frase da qual eu gosto muito, apesar de ser muito sofrida, na qual ele diz assim: “o fato de eu ser negro e tudo aquilo que decorre desse lugar que eu ocupo faz com que eu precise estar em constante vigilância”. Se você faz boxe, você consegue manter uma base de boxe por um minuto. Tente manter por dez minutos. Um negro ou uma negra tem que estar em posição de combate 24 horas por dia, porque, quando a gente dorme, o racista que mora dentro da gente aparece para nos acusar de alguma coisa. Eu tive um poema censurado em fevereiro deste ano (2016) sobre o genocídio negro. O poema saiu em um outdoor na cidade de Ilhéus, no interior da Bahia. Tiraram uma foto do poema, botaram na página da Associação de Policiais da Bahia e isso circulou o Brasil inteiro. Em seguida, vários policiais começaram a acessar minha página na internet para poder me violentar, para poder me agredir de alguma maneira, me xingar, desqualificar meu poema, desqualificar a mim enquanto ser humano, enquanto mulher. O poema, que tinha de ficar exposto por 15 dias, ficou exposto por três dias e foi retirado, colocaram outro texto por cima. Hoje eu não posso ir a Ilhéus. Eu não tenho segurança para ir para o sul da Bahia, nem para Ilhéus nem para Itabuna. Se você chegar em qualquer gráfica de Ilhéus ou de Itabuna com um papel escrito Lívia Natália, ninguém publicará aquilo, porque as pessoas foram ameaçadas. Isso que eu estou contando é uma cena de algo que aconteceu em 2016, no Brasil.

Quais autores, pensadores e pessoas que influenciam sua obra?

Eu tive toda uma educação plantada na literatura branca, etnocêntrica. No entanto, eu busquei outras formas de me informar. Então Maya Angelou, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Angela Davis são pensadoras que me interessam frontalmente. No que diz respeito à literatura: Zora Neale Hurston, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Carolina Maria de Jesus. Elas têm uma escrita e o pensamento muito focado no feminino negro e no feminismo negro, porque eu sou uma mulher negra feminista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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