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Mãos que dançam e traduzem: poemas em língua brasileira de sinais

Hands that dance and translate: poems in Brazilian sign language

Manos que danzan y traducen: poemas en lengua brasileña de señales

resumo

O presente artigo apresenta uma pesquisa que buscou explorar um baú de poemas em língua brasileira de sinais (Libras) que fizeram e fazem parte da história da comunidade surda brasileira. Utilizamos a imagem de um baú como forma de trazer os poemas e selecionar as preciosidades e antiguidades que são guardadas no baú, relacionando os poemas sinalizados com a ideia de riquezas dessa comunidade. O problema de pesquisa que acompanhou o desenvolvimento da investigação foi: de que modo a língua de sinais é utilizada em poemas e quais os temas mais frequentes? Em outras palavras, o que dizem os poemas e de que modo? A partir desses questionamentos, o objetivo foi analisar o uso da língua de sinais e as temáticas privilegiadas nos poemas selecionados. A metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa consistiu em uma análise qualitativa, considerando a utilização da bricolagem em pesquisas na área da educação, com ênfase no uso da língua de sinais por surdos em poemas sinalizados. Para isso, foram analisados dois poemas registrados em vídeos, com posterior tradução de Libras para o português, a fim de viabilizar a descrição e análise do material e registrar recorrências encontradas. Como resultado, apontamos que os poemas analisados têm relação com temas da comunidade surda, tais como a formação de surdos (em “O balé das mãos”) e os intérpretes de Libras (em “Dia dos intérpretes”) e linguisticamente salientam formas de produção artística em língua de sinais.

Palavras-chave:
literatura surda; poemas em língua de sinais; surdos; estudos culturais em educação

abstract

This research explores the poetry chest in Brazilian Sign Language (Libras) that has been a part of the history of the Brazilian deaf community. We use the chest as an image that alludes to a collection of treasures and antiques. In this framework, the sign-language poems reference the richness of the hearing-impaired community. The research question that guides this essay is how is sign language used in poems and which are its preferred themes? In other words, what do the poems say and how? Using these questions, the objective is to analyze the use of sign language and the privileged themes in selected poems. The methodology used for the development of the research is qualitative analysis. The essay considers the use of sign language by the hearing-impaired in sign-language poems. For this, we analyze two poems recorded on videos, with subsequent translation from Libras to Portuguese, in order to facilitate the description and analysis of the material and the register recurrences found in the poems. The essay shows that the poems analyzed relate to important themes in the deaf community, such as the training of the deaf (in “O balé das mãos” [The Hands Ballet]) and Libras interpreters (in “Dia dos intérpretes” [Interpreters’ Day]) and linguistically highlight forms of artistic production in sign language.

Keywords:
deaf literature; poems in sign language; deaf; cultural studies in education

resumen

El presente artículo hace parte de la investigación de maestría que buscó explorar un baúl de poemas en lengua de señas brasileña (Libras), que hicieron y hacen parte de la historia de la comunidad sorda brasileña. Utilizamos la imagen de un baúl como forma de traer los poemas y seleccionar las preciosidades y antigüedades que son guardadas en un baúl, relacionando los poemas señalados con la idea de riqueza de esa comunidad. El problema de investigación que acompañó el desarrollo del proceso fue el siguiente: ¿de qué modo la lengua de señas es utilizada en los poemas y cuáles son los temas más frecuentemente privilegiados? En otras palabras, ¿qué dicen los poemas y cómo lo dicen? A partir de esos cuestionamientos, el objetivo fue analizar el uso de la lengua de señas y las temáticas privilegiadas en los poemas seleccionados. La metodología utilizada para el desarrollo de la pesquisa se constituyó en un análisis cualitativo, considerando el uso de la lengua de señas por sordos en los poemas señalados. Para eso, fueron analizados dos poemas registrados en videos, con posterior traducción de Libras para el portugués, con el objetivo de viabilizar la descripción y análisis del material y registrar recurrencias encontradas. Como resultado, señalamos que los poemas analizados tienen relación con temas de la comunidad sorda tales como la formación de sordos (“El ballet de las manos”), y de intérpretes de Libras (“Día de los intérpretes”) y lingüísticamente destacan las formas de producción artística en lengua de señas.

Palabras clave:
literatura sorda; poemas en lengua de señas; sordos; estudios culturales en educación

Poemas em línguas de sinais 3 3 O presente artigo é um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “Pedagogia cultural em poemas da Língua Brasileira de Sinais” (Bosse, 2014), realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.

Esta pesquisa se inscreve no campo dos estudos culturais em educação e dos estudos surdos, os quais marcam uma virada cultural, tendo a cultura como conceito central. Hall (1997HALL, Stuart (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/nRj1ru >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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) afirma que a cultura é central não porque ocupe um centro, uma posição única e privilegiada, mas porque perpassa tudo o que acontece em nossas vidas e as representações que fazemos desses acontecimentos. Hall (1997HALL, Stuart (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/nRj1ru >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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) relaciona cultura e educação a partir do circuito da cultura.

Os estudos surdos emergiram no Brasil vinculados ao campo dos estudos culturais e ampliaram-se, ganhando força em pesquisas que tematizam os vieses da cultura surda e fazendo circular outras narrativas dos surdos e do valor cultural da comunidade surda. A ideia de cultura surda, a partir da valorização das experiências surdas, vem transformando e diversificando as análises teóricas nos diversos ambientes acadêmicos em que este tema é analisado e debatido. No âmbito da literatura, área em que se insere a presente investigação, envolve a discussão sobre o cânone literário, a partir do qual se dá um rompimento com a ideia dominante de que certas produções culturais são válidas e outras não, ampliando-se o conceito de cultura para as produções de grupos minoritários. Não apenas a chamada “alta cultura”, como defendida por uma elite econômica, tem valor a partir de então, mas também as produções culturais das comunidades minoritárias passam a ser consideradas válidas como “fenômenos culturais” (Silveira et al., 2012SILVEIRA, Rosa et al. (2012). Deficiência e infância: representações de cegos e cadeirantes na literatura infantil contemporânea. In: SILVEIRA, Rosa Hessel et al. A diferença na literatura infantil: narrativas e leituras. São Paulo: Moderna.).

Essa mudança de perspectiva causou progressivas mudanças no âmbito da educação. A pedagogia, que tradicionalmente privilegiou a chamada “alta cultura”, se vê, no caso da educação de surdos, desafiada pelas produções culturais surdas, sendo que tais produções passam, principalmente nas últimas décadas, a serem valorizadas pelas comunidades surdas. A partir dessa abertura, as produções culturais e as práticas de bilinguismo começam a se apresentar como uma questão prioritária na educação de surdos. Neste sentido pensamos que a poesia surda também passou por um processo de mudança nos cânones, antes muito vinculados às traduções das tradições clássicas. Os estudos culturais apontaram uma mudança de perspectiva, que considera as circunstâncias, os sentimentos, as histórias e experiências únicas dos sujeitos, na construção de suas produções poéticas, não se limitando a regras pré-estabelecidas (Bosse, 2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre., p. 32-33).

A literatura surda constitui um artefato cultural, no entanto, segundo Mourão (2016MOURÃO, Cláudio (2016). Literatura surda: experiência das mãos literárias. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/NrgF4B >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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), tem pouca presença na vida escolar dos surdos. Embora já houvesse uma prática informal da literatura surda e produções literárias em línguas de sinais, no contexto das associações de surdos, as pesquisas sobre este tema são recentes. Para Bosse (2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), a poesia é uma das produções mais antigas na comunidade surda, embora até hoje não esteja presente no currículo escolar.

A poesia em sinais é um tipo de texto apropriado para e praticado por sujeitos surdos, mas isso não é necessariamente uma regra. A experiência com a poesia é uma parte importante da literatura surda ligada à produção artística em língua de sinais. A comunidade surda faz o reconhecimento de sua cultura e compartilha possibilidades artísticas em línguas de sinais, por meio da literatura surda e de poemas sinalizados. Sutton-Spence (2014SUTTON-SPENCE, Rachel (2014). Por que precisamos de poesia sinalizada em educação bilíngue. Educar em Revista, Curitiba, v. 30, n. especial 2, p. 111-128. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/4FgQaG >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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) afirma que as crianças surdas precisam desenvolver uma compreensão e uma apreciação da língua de sinais que estão usando, e a poesia pode ser uma maneira de ajudá-las nessa tarefa. Para que isso ocorra, os espaços escolares devem oferecer oportunidades de ver e produzir poemas, viabilizando meios para que os surdos possam se debruçar sobre o modo como a língua de sinais pode ser utilizada em produções poéticas.

O movimento e as lutas surdas empreendidas na metade dos anos 1990 em diante resultaram mudanças na educação de surdos, entre elas, a formação de professores surdos e sua inserção nos espaços escolares. Muitos desses professores narram experiências escolares como potencializadoras para uma mobilização e articulação política de resistência às práticas educacionais vividas por eles (Thoma e Klein, 2010THOMA, Adriana; KLEIN, Madalena (2010). Experiências educacionais, movimentos e lutas surdas como condições de possibilidade para uma educação de surdos no Brasil. Cadernos de Educação. Pelotas, n. 36, maio/ago., p. 107-131. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/TazdLK >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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).

Considerando o contexto histórico da educação de surdos no Brasil, em que o oralismo4 4 O oralismo é uma abordagem educacional que objetiva capacitar a pessoa surda a utilizar a língua na modalidade oral como única possibilidade linguística, de modo que o sujeito surdo utilize a voz e a leitura labial, tanto nas relações sociais com em todo o processo educacional. foi o método mais difundido e utilizado por mais de um século, acreditamos que os espaços educacionais têm a oportunidade de resgatar os valores culturais que foram suprimidos, dos quais os surdos foram privados por muito tempo, além de dar visibilidade à língua de sinais e à literatura surda. Consideramos a escola um lugar de oportunidades, de formação e de aproximação aos bens culturais historicamente negados.

Neste sentido, a escola contemporânea precisa de contribuições mais amplas, de reflexões sobre o que está proposto como formação, através do currículo. Desta forma, as cenas sobre a busca de uma identidade, sobre o papel da tecnologia e sobre o pertencimento a uma comunidade vem favorecendo uma mudança do universo que antes era silenciado, mas agora sinalizado, e faz emergir a capacidade reflexiva e poética da língua de sinais através da literatura surda (Bosse, 2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre. p. 31).

A literatura, no âmbito da educação escolar, favorece o uso da língua de sinais de modos variados: em práticas interlinguais de tradução de poemas de Libras para o português e do português para Libras; em práticas de uso dos recursos linguísticos e literários; em práticas literárias diversas que potencializam o entendimento de emoções e ideias complexas, desenvolvendo habilidades em fronteiras sociais e linguísticas; e em práticas de criação literária em língua de sinais que exploram a visualidade, entre outros. Neste sentido, segundo Karnopp (2006KARNOPP, Lodenir (2006). Literatura surda. Caderno Pedagógico - Curso de licenciatura em Letras-Libras. Florianópolis: UFSC., p. 16):

Assim como em outras línguas, a poesia em língua de sinais explora os recursos linguísticos para obter efeitos estéticos. A forma como os poemas são organizados, bem como os sentidos que se abrem a partir disso, fazem uma quebra com a forma que a linguagem é utilizada no cotidiano. Os poemas podem estar mais próximos ou mais distantes do uso que se faz com a língua de sinais no cotidiano, em geral, fazendo uma ruptura com a regularidade e tornando as formas linguísticas completamente criativas e novas.

Marta Morgado (2011MORGADO, Marta (2011). Literatura em língua gestual. In: KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra . p. 151-172.) destaca a importância da literatura surda e defende que os poemas em línguas de sinais são uma fonte rica de textos artísticos. A autora destaca que, ao utilizar o termo “textos”, sua preocupação não é com a estética das palavras escritas em português, mas com a estética que se manifesta nos gestos, na língua de sinais. Para que os surdos se apropriem de poemas sinalizados, é indispensável a aquisição e o desenvolvimento da língua de sinais em diversas práticas linguísticas, em um ambiente linguisticamente adequado. Morgado propõe ainda que educadores surdos sejam os modelos linguísticos à vida da criança surda, pois considera que a experiência visual de surdos é diferente da dos ouvintes, sendo que a identidade surda favorece a aquisição da língua de sinais e o convívio entre surdos possibilita à criança surda ser um usuário nativo dessa língua.

Conforme as autoras citadas anteriormente (Bosse, 2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre.; Sutton-Spence, 2006SUTTON-SPENCE, Rachel (2006). Imagens da identidade e culturas surdas na poesia em língua de sinais. In: QUADROS, Ronice; VASCONCELLOS, Maria Lucia (Org.). Questões téoricas das pesquisas em língua de sinais - TISLR 9. Petropolis: Arara Azul. p. 329-339. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/W8oq7g >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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; Karnopp, 2006KARNOPP, Lodenir (2006). Literatura surda. Caderno Pedagógico - Curso de licenciatura em Letras-Libras. Florianópolis: UFSC.), produzir e fazer circular poemas em língua de sinais, marcadamente em um gênero poético, é um ato de empoderamento em si para as pessoas surdas, enquanto membros de uma minoria linguística. Deve-se considerar que, por longos anos, os surdos foram levados a acreditar que o português era a única língua a ser estudada na escola, a única língua que carregava literatura, poemas, narrativas..., e que a língua de sinais poderia ser usada, apenas, em conversas informais, em momentos sociais. Desse modo, acreditava-se que a poesia deveria ser escrita e apenas em português, devido ao prestígio dessa língua. Além disso, a língua de sinais historicamente assumiu o caráter de “bengala” ao propósito de ensino do português, ou seja, a língua de sinais era aceita e tolerada nos contextos educacionais desde que o objetivo final fosse o aprimoramento da língua portuguesa.

Estudos sobre literatura surda indicam uma inevitável mudança das práticas escolares para uma valorização da língua de sinais, contemplando a diferença e a literatura do ponto de vista do reconhecimento da cultura surda. Tais propostas são potentes para a elaboração de transformações curriculares e para produção, circulação e consumo da literatura surda no âmbito escolar.

Nessa esteira de pensamento, Karnopp, Klein e Lunardi-Lazzarin (2011KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.) (2011). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra.) salientam a estreita relação entre o contexto histórico e a produção da literatura surda, mais especificamente o impacto da oficialização da Libras, que favoreceu a circulação e o consumo das produções culturais surdas em espaços que transcendem as fronteiras da comunidade surda.

[...] enquanto a língua brasileira de sinais (Libras) não era reconhecida ou enquanto era proibida de ser usada nas escolas e em diferentes espaços sociais, também não existiam publicações ou o reconhecimento de cultura surda. O ensino priorizava o aprendizado da fala e da língua portuguesa. Nas escolas, não havia espaços nem aceitação para as produções em sinais. No entanto, entre os surdos, circulavam histórias sinalizadas, piadas, poemas, histórias de vida, mas em espaços que ficavam longe do controle daqueles que desprestigiavam a língua de sinais. Especificamente no panorama brasileiro, é possível constatar ainda que para muitas pessoas torna-se irrelevante e, para outras, decisivamente incômoda, a referência a uma cultura surda (Karnopp; Klein; Lunardi-Lazzarin, 2011KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.) (2011). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra., p. 18).

Nas comunidades surdas, a literatura ocupa um lugar de destaque, em que a língua de sinais está em evidência - a arte e a literatura estão vinculadas. Mourão (2011MOURÃO, Cláudio (2011). Literatura surda: produções culturais de surdos em língua de sinais. In: KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra . p. 71-90.) trata da visibilidade das produções culturais da literatura surda e afirma que o movimento político das comunidades surdas fez com que as produções literárias fossem mostradas e circulassem em diferentes espaços, principalmente através de vídeos. Dessa forma, sugere que o movimento político dos surdos favoreceu a circulação e o consumo de produções culturais de surdos em espaços que ultrapassam as fronteiras das comunidades surdas, por meio do registros visuais que fazem emergir a produção de conhecimento sobre os surdos, a língua de sinais, a literatura surda em espaços mais amplos. Além dessas questões, Daiane Pinheiro (2011PINHEIRO, Daiane (2011). Produções surdas no YouTube: consumindo a cultura. In: KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra . p. 29-40) realiza análises das produções surdas no site Youtube, onde são publicados vídeos de livre acesso aos internautas, e investiga de que forma a cultura surda vem sendo representada no contexto midiático escolhido.

Sutton-Spence (2013SUTTON-SPENCE, Rachel (2013). Literatura surda. Porto Alegre: UFRGS . (Comunicação sinalizada)) elenca quatro pontos sobre a literatura surda: i) muito visual; ii) centra-se na linguagem estética; iii) carrega elementos que nos fazem aprender a partir das coisas ditas; e iv) carrega elementos que nos fazem aprender a partir da forma como as coisas são ditas. Em seu artigo sobre poesia em línguas de sinais, Sutton-Spence (2006SUTTON-SPENCE, Rachel (2006). Imagens da identidade e culturas surdas na poesia em língua de sinais. In: QUADROS, Ronice; VASCONCELLOS, Maria Lucia (Org.). Questões téoricas das pesquisas em língua de sinais - TISLR 9. Petropolis: Arara Azul. p. 329-339. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/W8oq7g >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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) defende que o folclore surdo (deaflore) e o ser surdo (deafhood) são as bases que sustentam a poesia em língua de sinais. O folclore surdo abrange o conhecimento coletivo de comunidades surdas e, em nível linguístico, refere-se à língua que constitui a herança cultural do povo surdo, o que significa conhecer e avaliar os elementos culturais e linguísticos que formam um poema sinalizado. O ser surdo (Deafhood) é um processo por meio do qual os surdos desenvolvem a identidade surda, enquanto usuários de uma língua de sinais e enquanto parte de uma comunidade que compartilha uma experiência visual.

Utilizar a literatura surda e, especificamente, a poesia sinalizada, significa empoderar os membros da comunidade surda. A poesia em língua de sinais faz circular representações valorativas da experiência de ser surdo e das formas artísticas da língua. A análise de poesias que Sutton-Spence desenvolve mostra como os temas e as línguas usadas na poesia sinalizada constroem e dão visibilidade à cultura e à identidade surda. A autora analisa dois poemas em língua de sinais britânica (BSL), “Cinco sentidos” (“Five senses”), de Paul Scott, e “A escadaria” (“The staircase”), de Dorothy Miles, para explorar as representações do ser surdo construídas e propostas nesses poemas em língua de sinais. As representações de ser surdo em poesia de língua de sinais podem ser consideradas em termos de uma variedade de temas, incluindo: a surdez como “perda”; a opressão pela sociedade ouvinte e a resistência de pessoas surdas; a experiência sensorial de pessoas surdas; a celebração do orgulho surdo e da comunidade surda; a celebração do ser surdo e das línguas de sinais; o lugar de pessoas surdas no mundo (Sutton-Spence, 2006SUTTON-SPENCE, Rachel (2006). Imagens da identidade e culturas surdas na poesia em língua de sinais. In: QUADROS, Ronice; VASCONCELLOS, Maria Lucia (Org.). Questões téoricas das pesquisas em língua de sinais - TISLR 9. Petropolis: Arara Azul. p. 329-339. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/W8oq7g >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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).

Esse empoderamento produz novas maneiras de os surdos se reconhecerem como sujeitos, estando mais abertos à transformação através da linguagem, seja através do teatro, das narrativas ou outras formas de texto. Os poemas vêm sendo explorados também como estratégias pedagógicas, sendo um recurso para alcançar objetivos pedagógicos. Pelo fato de serem textos mais livres, trabalhados de maneira estética, os surdos se sentem atraídos pelo que os poemas dizem e pela forma como dizem.

Peters (2000PETERS, Cynthia L. (2000). Deaf American literature: from carnival to the canon. Washington, DC: Gallaudet University Press., p. 53-60) discute o uso das produções literárias pelos surdos americanos, cujo vernáculo visual ganhou legitimidade recentemente e se tornou interessante pelo uso fluente da língua e dos valores que transmite.

“Sinalidade” é um neologismo proposto por Mourão (2011MOURÃO, Cláudio (2011). Literatura surda: produções culturais de surdos em língua de sinais. In: KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (Org.). Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da Ulbra . p. 71-90.) e utilizado para se referir à herança cultural das produções literárias de surdos em língua de sinais que passam de geração a geração. Assim, “sinalidade” faz uma analogia com “oralidade” e trata das produções literárias em língua de sinais. Na “sinalidade”, é possível transmitir a palavra e a imagem ao mesmo tempo, demonstrando uma vantagem da língua de sinais em relação à língua oral. Essas formas linguísticas - dada a esteticidade e a forma de construção das produções sinalizadas - vêm utilizando os recursos da mídia visual para registro, visto que as filmagens em vídeos são potentes meios para guardar as línguas de sinais, a fim de que sejam divulgadas e registradas.

Estudos sobre a literatura surda vêm possibilitando que muitos registros e análises sejam realizados. Há quatro décadas, era comum que os poemas em língua de sinais se perdessem, devido à falta de registro em vídeo (ou outras formas de documentação), ficando sua permanência vinculada ao efetivo compartilhamento entre as comunidades surdas, com a passagem dessa produção por meio de encontros presenciais entre surdos. Esse movimento de registro dos poemas (impresso ou digital) vem favorecendo a criação poética, sendo que as produções de novos textos em língua de sinais vêm ganhando força em quantidade, em força estética e temática, servindo como fortaleza para a comunidade surda e possibilitando que a cultura e a língua sejam registradas e preservadas.

Se considerarmos as traduções literárias de uma língua para outra, teremos outra produção. A tradução do que é produzido dentro da literatura surda para a língua escrita pode perder sentido em suas possibilidades expressivas, imagéticas e rítmicas (Lima, 1995LIMA, Sérgio (1995). A aventura surrealista. Rio de Janeiro: Vozes. Tomo 1.). A tradução pode gerar impasses/desafios, devido aos aspectos culturais relacionados às línguas.

Na análise de poemas produzidos em Libras, optamos por começar destacando os aspectos visualmente mais salientes do poema, ou seja, aqueles que “saltam aos olhos” e não aos ouvidos. Em geral, em poemas das línguas faladas, está em evidência a sonoridade; ao contrário do que ocorre nas línguas de sinais, em que a visualidade tem centralidade.

Consideramos que as expressões poéticas em língua de sinais utilizam recursos da modalidade visual-gestual. Desse modo, a produção de rimas na poesia em língua de sinais ocorre marcadamente na repetição de fonemas, morfemas ou sintagmas. No âmbito de rimas que se manifestam na fonologia das línguas de sinais, podemos destacar a repetição de configurações de mão, locação, movimentos, orientação da mão e também em elementos não manuais. As repetições, simetrias e/ou pausas, que podem ocorrer juntas ou isoladamente, de modo simultâneo ou alternado, manifestam-se na fonologia, na morfologia e/ou na sintaxe da língua de sinais. Esses recursos poéticos presentes em poesias têm um padrão de regularidade, trazido pela modalidade visual-gestual da língua de sinais. Certamente, há muitas formas de manifestação poética em língua de sinais e o que apresentamos são ensaios de análise, com base na identificação de formas criativas e de marcadores da cultura surda. Desse modo, muito mais que um ponto de chegada, esse é um ponto de partida para as muitas formas e possibilidades de análises de poemas em línguas de sinais.

Para realizar a escolha dos poemas sinalizados, inicialmente foram visualizados 72 poemas, disponíveis nos seguintes “baús”: i) arquivo pessoal da pesquisadora; ii) banco de dados do projeto “Produção, Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira” (Karnopp; Klein; Lunardi-Lazzarin, 2012KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia (2012). Projeto Produção, Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira. Relatório de Pesquisa. Porto Alegre: UFRGS .); e iii) internet, no siteLiteratura Surda5 5 Disponível em: <www.literaturasurda.com.br>. e no Youtube. A metodologia para o desenvolvimento do trabalho incluiu a coleta de poemas e posterior tradução e análise, sob o viés linguístico, pedagógico e cultural, verificando questões relacionadas à pedagogia cultural (Costa e Andrade, 2013COSTA, Marisa Vorraber; ANDRADE, Paula Deporte de (2013). Na produtiva confluência entre educação e comunicação, as pedagogias culturais contemporâneas. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 36., Goiânia, 29 set. a 02 out. 2013. Anais... Rio de Janeiro: Anped. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/ALi56Y >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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).

Para o desenvolvimento da pesquisa (Bosse, 2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) foram analisados os poemas apresentados no Quadro 1, entretanto, para a construção deste artigo optamos pela análise de dois poemas: “O balé das mãos” (Carrier, 2012CARRIER, Márcio Stein (2012). O balé das mãos. Vídeo do banco de dados do projeto “Produção, Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira”. Porto Alegre: UFRGS.) e “Dia dos Intérpretes” (Suzin, 2011SUZIN, Rosani (2013). Dia dos intérpretes. Youtube. 26 jul. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=AvwOhefZrBA >. Acesso em: 11 jul. 2013. Tradução da Língua Brasileira de Sinais para Língua Portuguesa realizada por Luciane Bresciani Lopes.
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).4 6 Ambos os poemas foram traduzidos da língua brasileira de sinais para língua portuguesa por Luciane Bresciani Lopes.

Quadro 1
Acervos e títulos dos poemas analisados na pesquisa

Em grande parte das produções poéticas analisadas aparecem as narrativas de si, em que são valorizadas as experiências e vivências dos surdos, como um modo expressar o orgulho assumido. Segundo Sutton-Spence (2006SUTTON-SPENCE, Rachel (2006). Imagens da identidade e culturas surdas na poesia em língua de sinais. In: QUADROS, Ronice; VASCONCELLOS, Maria Lucia (Org.). Questões téoricas das pesquisas em língua de sinais - TISLR 9. Petropolis: Arara Azul. p. 329-339. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/W8oq7g >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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, p. 330) “usar a poesia para empoderar os membros da comunidade surda por meio da criação de formas de língua para descrever as imagens positivas da experiência de pessoas surdas é uma forma de ser surdo”.

Não há um conceito geral de poesia que seja totalmente satisfatório e contemple uma visão única, mas há diferentes definições de poesia. É preciso investigar sua forma, função e contexto social, ampliando o entendimento das possibilidades estéticas dos textos, tanto escrito como sinalizado. Assim, a análise de poemas sinalizados inspirou-se no conceito de bricolagem: modo de realização de pesquisas em educação, em que “uma dimensão central da bricolagem envolve o ato interpretativo, compreendendo a complexidade da vida cotidiana e os dados que ela constantemente nos lança” (Kincheloe e Berry, 2007KINCHELOE, Joe L.; BERRY, Kathleen S. (2007). Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Tradução de Roberto C. Costa. Porto Alegre: ArtMed., p. 101). Esse foi o caminho investigativo trilhado nesse trabalho, ou seja, através das análises dos aspectos temáticos, buscamos apresentar as poesias como parte da literatura surda e como uma pedagogia cultural (Andrade e Costa, 2015ANDRADE, Paula Deporte; COSTA, Marisa Vorraber. (2015). Usos e possibilidades do conceito de Pedagogias Culturais nas pesquisas em Estudos Culturais em Educação. Textura, Canoas, v. 17, n. 34, p. 48-63, maio/ago. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/fuPUJZ >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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) que ensina por meio de poemas sinalizados o que é dito e como é dito. Assim, não há uma única forma de se produzir os poemas, mas analisá-los é uma tarefa de compreensão da história literária da língua de uma comunidade.

Mãos que dançam: o que os poemas narram?

Para o desenvolvimento do presente artigo selecionamos “O balé das mãos”, realizando uma breve apresentação e análise das experiências narradas nesse poema. “O balé das mãos” trata do curso de Letras-Libras, mostrando que esse curso “salvou” a língua de sinais.

A respeito da salvação que o curso de Letras-Libras representa para os surdos, Perlin e Strobel (2008PERLIN, Gladis; STROBEL, Karin (2008). Fundamentos na educação de surdos. Caderno Pedagógico. Curso de licenciatura em Letras-Libras. Florianópolis: UFSC .) afirmam que o curso de Letras-Libras representou uma importante política educacional implantada no Brasil, sendo uma iniciativa de extrema importância social e histórica, pois foi uma ação concreta de educação voltada aos surdos.

O poema “O balé das mãos” está registrado em vídeo, com duração de 1’40”, foi realizado por Márcio Stein Carrier e Ellery em uma aula do curso de Letras-Libras (2008), mas sinalizado apenas por Márcio. Operacionalmente, para fins de análise no presente artigo, o poema foi traduzido de Libras para o português.

O balé das mãos O mundo das palavras Alimenta as mãos Cria... transforma a língua de sinais Cria expressões... expressões faciais A língua circula Atravessa mundos Modifica os ouvintes Ganha espaço A língua de sinais é pobre? Não, a língua é importante Ela se modifica As mãos sinalizam Uma letra Outra letra Letras-Libras Os surdos se desenvolvem Ampliam seus horizontes São reconhecidos... Admirados As mãos refletem As mãos sentem Nunca esqueçam: Elas criam mundos!

Márcio sinaliza, no poema, como o mundo das palavras pode contribuir para o enriquecimento da língua de sinais, indicando que as trocas linguísticas trazem fluência e beleza à sinalização. Mostra que, às vezes, alguns pensam que a língua de sinais é uma língua pobre, mas isso é um equívoco, já que as mãos dançam, criam novas formas, significados múltiplos e produzem efeitos políticos e poéticos. Além disso, ele cria um poema por meio de brincadeiras com as configurações de mãos em “L” e produz o sinal de Letras-Libras, mostrando com isso que o surdo teve a oportunidade de desenvolver-se e ampliar seus horizontes, de chamar a atenção para si, de se sentir orgulhoso e de nunca esquecer que as mãos são capazes de criar o mundo a seu redor.

Um poema semelhante é analisado por Sutton-Spence (2006SUTTON-SPENCE, Rachel (2006). Imagens da identidade e culturas surdas na poesia em língua de sinais. In: QUADROS, Ronice; VASCONCELLOS, Maria Lucia (Org.). Questões téoricas das pesquisas em língua de sinais - TISLR 9. Petropolis: Arara Azul. p. 329-339. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/W8oq7g >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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). Ela analisa o poema “A escadaria”, de Dorothy Miles, apresentado pela primeira vez em 1987, na cerimônia de graduação da primeira turma surda britânica a receber um título em ensino de língua de sinais britânica na universidade. O curso que essa turma frequentou foi ministrado em língua de sinais e conduzido por pessoas surdas. O poema exalta e celebra a conquista não apenas dos graduandos, mas também de seus tutores. Esse poema possibilita uma mudança significativa na maneira de se ver as línguas de sinais. É um ato de empoderamento simplesmente por se usar a língua de sinais, e uma expressão implícita do orgulho de ser surdo. Em suas investigações, Sutton-Spence constatou que os surdos, mesmo estando em países diferentes, com línguas de sinais diferentes, revelam semelhanças em suas identidades surdas. A temática dos poemas, em sua maioria, é sobre experiências de vida, espelhando os sentimentos dos surdos como membros de uma mesma comunidade, que partilham uma cultura surda. Assim, a poesia aparece como um momento de partilha de experiências pessoais e de valores de uma comunidade.

No poema “O balé das mãos”, observamos a valorização do ser surdo (deafhood), na direção em que Perlin e Miranda (2003PERLIN, Gladis; MIRANDA, Jeferson (2003). Surdos: o narrar e a política. Ponto de Vista, Florianópolis, n. 5, p. 217-226.), pesquisadores surdos, propõem: “Se vocês nos perguntarem aqui: o que é ser surdo? Temos uma resposta: ser surdo é uma questão de vida” (Perlin e Miranda, 2003PERLIN, Gladis; MIRANDA, Jeferson (2003). Surdos: o narrar e a política. Ponto de Vista, Florianópolis, n. 5, p. 217-226., p. 218). Não se trata de uma deficiência, mas de uma experiência visual. Dessa experiência visual surge a cultura surda marcada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento científico e acadêmico. Nessa direção, o poema “O balé das mãos” vai sendo proposto ao público.

Na próxima seção apresentamos o segundo poema analisado “Dia dos Intérpretes”, com foco na pedagogia cultural, ou seja, o que os poemas nos ensinam através do que é sinalizado e do modo como é sinalizado.

Mãos que traduzem: o que os poemas nos ensinam?

Para desenvolver o presente artigo, selecionamos o poema “Dia dos Intérpretes” (Suzin, 2013SUZIN, Rosani (2013). Dia dos intérpretes. Youtube. 26 jul. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=AvwOhefZrBA >. Acesso em: 11 jul. 2013. Tradução da Língua Brasileira de Sinais para Língua Portuguesa realizada por Luciane Bresciani Lopes.
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), articulando a análise com um gênero textual, em sinais, conhecido como produções sequenciais, tais como ABC/123. Inicialmente ilustraremos como a sequencialidade se aplica a esse poema.

Os poemas sequenciais consistem em utilizar as letras do alfabeto (ou números) para compor formas que exploram a língua e a experiência visual dos surdos. A ordem alfabética é uma maneira de fazer um arranjo, em língua de sinais, propondo uma ordenação por meio das possibilidades de uso das configurações de mão ou da soletração manual. Além da utilização de letras e números, encontramos também poemas que se organizam em forma de acróstico, que consiste em composições poéticas na qual certas letras ou configurações de mão, quando lidas em outra direção e sentido, compõem uma palavra ou frase. Poemas ABC, 123 e acrósticos podem ser considerados como produções de fronteira, pois a palavra é da língua portuguesa, mas produzida manualmente. Assim, podemos considerar essa forma linguística como uma fronteira entre as duas línguas, resultado de criações poéticas com elementos de ambas. Poemas em forma de acróstico produzem uma ideia diferente, a partir de cada letra que compõe o nome escolhido. O poema “Dia dos Intérpretes” se organiza em forma de acróstico e tal criação utiliza a soletração de cada letra que compõe essa frase.

O poema produziu um significado para cada uma das letras das palavras D-I-A D-O-S I-N-T-E-R-P-R-E-T-E-S, tendo como foco temático os intérpretes de Libras que atuam em comunidades surdas. Está ligado à proposta de explorar datas comemorativas e celebra o valor dos intérpretes de Libras para os surdos.

O vídeo é feito por Rosani Suzin (surda), disponível no YouTube, com duração de 3’35”. A poetisa quer mostrar como os intérpretes são importantes para os surdos. Ela começa o vídeo com a sinalização da datilologia D-I-A D-O-S I-N-T-E-R-P-R-E-T-E-S, no plano superior do espaço de enunciação. Em seguida, ela vai trazendo as mãos para o espaço neutro, em frente ao corpo, digitando manualmente cada uma das letras que compõem essa frase, criando expressões, brincando com as configurações de mãos e as composições. A seguir, explicamos as imagens visuais que o acróstico apresenta:

D - Surd@ e intérprete se encontram, se reconhecem, se cumprimentam felizes e seguem caminhando juntos. I - Importante, você é importante! A - Seguimos juntos em uma relação de afeto! D - Surdo e intérprete seguem... porque.... O - no passar dos dias brindamos, compartilhamos e saboreamos esse... S - afeto que pulsa na sinalização, na língua de sinais, nas mãos. I - Você é importante, não pense que é menos importante, é muito importante, então entenda esse valor. N - Caminhe! Sonhe ... traduza... T - a dor no pulsar do coração. E - Impressione-se! R - Respeitando a si mesmo, aos surdos e recebendo o respeito de ser intérprete. Espero... P - Fale sobre a paz... paz para todos... amor para as pessoas... paz. R - Esperança que ilumina! E - Coração que brilha, sinaliza e se expande como um sopro que carrega a língua de sinais e ilumina. Que todos esses significados sejam entregues em sinal de amor e agradecimento aos intérpretes.

A poetisa exalta o trabalho dos intérpretes e destaca a parceria “Surd@ e intérprete se encontram, se reconhecem, se cumprimentam felizes e seguem caminhando juntos”. Afirma (direcionando seu poema ao intérprete): “você é importante” e mostra a relação de “afeto que pulsa na sinalização, na língua de sinais, nas mãos”. Incentiva e defende o respeito, a paz, o sonho, a tradução. Deseja ao final que todos os significados, construídos ao longo do poema “sejam entregues em sinal de amor e agradecimento aos intérpretes”.

O poema segue a sequência das letras que compõem o título “Dia dos Intérpretes”. Esse recurso sequencial, na narrativa básica em sinais, é muito utilizado. Por exemplo, há três poemas da mesma autora, Rosani Suzin, também disponíveis no Youtube, em que ela apresenta datas comemorativas, com um formato diferente, pois sinaliza o alfabeto ao contrário, tendo como referência a visão do espectador, e não de quem está sinalizando. Da mesma forma, brinca com as configurações de mão e com a criação de frases, utilizando esse recurso poético.

Consideramos que os poemas nos ensinam e atuam como pedagogias culturais. A pedagogia cultural articula as questões da educação e da cultura, permitindo transformar as experiências em conhecimento - o mesmo ocorre com os surdos, em relação à comunidade surda. É na comunidade que se desenvolvem as experiências, as produções poéticas e as narrativas; essa produção na comunidade pode ser caracterizada como pedagogia cultural. Na comunidade, ocorrem as construções de significados, emoções, prazeres, identidade, argumentação e planejamento do futuro, é um lugar de luta e relações de poder.

Os poemas em língua de sinais apresentam a resistência da comunidade e fortalecem o processo pedagógico, a partir dos recursos poéticos e estéticos das línguas de sinais. Nesse sentido, Hall (1997HALL, Stuart (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/nRj1ru >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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, p. 40-41) adverte que:

Todos nós queremos o melhor para nossos filhos. Mas o que é a educação senão o processo através do qual a sociedade incute normas, padrões e valores - em resumo, a “cultura” - na geração seguinte na esperança e expectativa de que, desta forma, guiará, canalizará, influenciará e moldará as ações e as crenças das gerações futuras conforme os valores e normas de seus pais e do sistema de valores predominante da sociedade? O que é isto senão regulação - governo da moral feito pela cultura?

Os surdos que constroem os poemas, tanto os descritos neste artigo, quanto tantos outros que circulam na comunidade surda, produzem significados que representam sujeitos, relações com outros e com o ambiente. A comunidade surda também apresenta diversidade cultural que compõe essa pedagogia cultural, não existe uma única cultura na comunidade surda, e a literatura surda demonstra isso na forma como são apresentados os poemas e o que cada um propõe e ensina.

Baú está prestes a ser fechado... temporariamente

A produção poética em Libras é muito recente, então, inicialmente, neste trabalho, foi necessário explicar como e onde ocorre essa produção. Como resultados das análises, consideramos os objetivos elencados e destacamos que, no uso dos sinais, nas análises das experiências narradas, os temas mais frequentemente destacados estavam relacionados às experiências de ser surdo (deafhood). Nesse sentido, os poemas tratam do sofrimento vivenciado no processo histórico da comunidade surda, das lutas realizadas pelos surdos para constituir-se como povo surdo, bem como a defesa da língua de sinais. As produções poéticas, sob o viés da pedagogia cultural, possibilitaram a identificação dos poemas ABC e 123 como meios de expressão da celebração da comunidade surda, por meio da riqueza estética dos poemas em língua de sinais, com foco nas produções manuais e de fronteira.

De um modo mais específico, os dois poemas selecionados para a presente análise, evidenciam a leveza das mãos, a produção de significados em forma poética e na Libras. O poema “O balé das mãos” liga-se à dança e à beleza que as mãos produzem, convertendo a junção de duas configurações de mão, em L, à produção de um novo sinal (Letras-Libras), com foco na celebração do curso de Letras-Libras e na formação de surdos em curso de graduação. O poema “Dia dos Intérpretes” destaca a importância dos intérpretes de Libras e atua pedagogicamente no sentido de valorizar o trabalho em parceria, priorizar o respeito, a tradução, paz e amor entre surdos e intérpretes, pois trata-se de um poema dedicado aos intérpretes.

Quanto à escolha dos sinais que compõem os poemas, constatamos que eles colaboram para interpretar o texto. A interpretação dificilmente será única, já que o poema sugere múltiplos sentidos, dependendo de como se percebe o entrelaçamento dos fios que o organizam, ou seja, geralmente ele possibilita mais de uma interpretação. Metodologicamente, trabalhamos com a tradução e identificação de elementos poéticos e temas que são apresentados. Além disso, destacamos a riqueza estética dos poemas, e sobre isso há muito a ser explorado no sentido de investigar o modo como à língua de sinais é utilizada nas produções poéticas.

O baú de poesias está prestes a ser fechado. Mas espere! Não podemos fechá-lo! É preciso mantê-lo entreaberto, para que esses poemas continuem nos provocando sensações, leituras e vivências diferentes, além de muitos outros estudos que podem ser desdobrados futuramente!

Referências

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    » http://www.youtube.com/watch?v=AvwOhefZrBA
  • THOMA, Adriana; KLEIN, Madalena (2010). Experiências educacionais, movimentos e lutas surdas como condições de possibilidade para uma educação de surdos no Brasil. Cadernos de Educação. Pelotas, n. 36, maio/ago., p. 107-131. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/TazdLK >. Acesso em: 20 maio de 2017.
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  • 3
    O presente artigo é um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “Pedagogia cultural em poemas da Língua Brasileira de Sinais” (Bosse, 2014BOSSE, R. O. H. (2014). Pedagogia cultural em poemas da língua brasileira de sinais. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.
  • 4
    O oralismo é uma abordagem educacional que objetiva capacitar a pessoa surda a utilizar a língua na modalidade oral como única possibilidade linguística, de modo que o sujeito surdo utilize a voz e a leitura labial, tanto nas relações sociais com em todo o processo educacional.
  • 6
    Ambos os poemas foram traduzidos da língua brasileira de sinais para língua portuguesa por Luciane Bresciani Lopes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2017
  • Aceito
    07 Jan 2018
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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