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Por uma anatomia do gesto literário: design de si e exercício crítico em Laura Erber

For an anatomy of the literary gesture: self-design and critical exercise in Laura Erber

Por una anatomía del gesto literario: diseño de sí y ejercicio crítico en Laura Erber

Resumo

“É tão perigoso falar do que desata?”, questiona Laura Erber no texto (poema?) “A retornada”, que encerra o livro homônimo lançado pela Relicário Edições em 2017. A escrita que parece conjugar aspectos biográficos da autora e elementos que fogem à especulação autoficcional organiza-se em torno de um binômio: o questionamento de uma presença de autor que remeteria ao design de si e à forma e o exercício crítico empreendido por toda a obra. Em primeiro lugar, o conforto da presença de um eu-lírico, que indicaria certa adequação à forma, esvai-se diante do sentimento confesso da autora a respeito da imprecisão classificatória de todo o livro. Abstraindo as etiquetas de gênero do texto de Laura Erber e em certa medida relativizando a noção de autonomia do literário, interessa-nos explorar a construção de um design de si (Groys, 2016GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36.) e o exercício crítico (Laddaga, 2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes.) da autora, ambos ligados à forma em que vários índices textuais procuram orientar a recepção, ainda que fazendo implodir o horizonte de expectativas de seus leitores (Jauss, 1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.).

Palavras-chave:
design de si; forma; leitor

Abstract

“Is it so dangerous to speak of what unleashes?”, asks Laura Erber in the text (poem?) “A retornada”, which closes the eponymous book released by Reliquary Editions in 2017. Erber’s writing, which seems to combine biographical details and elements that tend towards autofictional speculation, is organized around a binomial: the questioning of an author's presence that refers to the construction of self and to the form and the critical exercise undertaken by the whole work. In the first place, the comfort of the presence of a lyrical self, which would indicate a certain appropriateness to the form, comes before the author's confessed feeling about the classificatory imprecision of the whole book. Extracting gender labels from Laura Erber’s text, and to some extent relativizing the notion of literary autonomy, we are interested in exploring the construction of a self-design (Groys, 2016GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36.) and the author's critical exercise (Laddaga, 2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes.) both linked to form, in which several textual indexes seek to guide its reception, despite imploding its readers’ horizon of expectations (Jauss, 1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.).

Keywords:
self-design; form; reader

Resumen

“¿Es tan peligroso hablar de lo que desenlaza?”, es lo que cuestiona Laura Erber en el texto (¿poema?) “La retornada”, que encierra el libro homónimo lanzado por Relicário Edições en 2017. La escritura que parece mezclar aspectos biográficos de la autora y elementos que huyen a la especulación autoficcional se organiza alrededor de un binomio: el cuestionamiento de una presencia de autor que remitiría al diseño de sí y a la forma y el ejercicio crítico emprendido por toda la obra. En primer lugar, la comodidad generada por la presencia de un yo lírico, lo que señalaría cierta adecuación a la forma, se disipa ante el sentimiento evidente de la autora respecto a la imprecisión clasificatoria de todo el libro. En el caso de Laura Erber y, en cierta medida relativizando la noción de autonomía de lo literario, nos interesa explorar la construcción de un diseño de sí (Groys, 2016GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36.) y el ejercicio crítico (Laddaga, 2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes.) de la autora, ambos vinculados a la forma, en que varios índices textuales buscan orientar la recepción, aunque haciendo colapsar el horizonte de expectativas de sus lectores (Jauss, 1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.).

Palabras clave:
diseño de sí; forma; lector

Introdução

“A retornada”, poema que dá título ao último livro da poetisa e artista visual Laura Erber, é um convite à leitura que compartilhe o repertório do leitor e os desvios biográficos da autoria. Tudo nele parece dar pistas, sugerir traçados, esboçar caminhos interpretativos. Do gênero em que foi escrito às chaves de sentido, A retornada (2017) coloca crítica e recepção diante de um salto carpado, ensaiado ao longo de todo livro, mas que não deixa de oferecer sensação de perigo ao chegar ao poema-título, não por acaso o desfecho da obra. Epígrafes, textos de orelha, prefácio, posfácio e contracapa circunscrevem o planejamento da obra em que o exercício crítico da poetisa aparece em evidência, bem como um suposto estímulo pessoal aos assuntos tratados. No caso das epígrafes, elas criam imagens que sustentam a ordem de partida dos poemas, a começar pelo poema que abre a primeira das três partes (habilmente chamada “Espécies de contágio”) em que o livro é dividido. Nele as imagens aparecem não só na epífrase do dramaturgo e escritor alemão Heiner Müller, mas na sequência textual que faz as vezes de topografia inicial do projeto de Erber, para além das páginas de A retornada:1 1 Faço a distinção entre o poema “A retornada”, grafado entre aspas, e o livro A retornada, em itálico. a preocupação com a forma, a suspeição sobre as imagens, o embaraço diante do que pode a escrita. Os três elementos harmonizam o que entendo como um exercício crítico da autora sobre o fazer literário.

Em “O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira recente”, ensaio de 2013, Laura Erber analisa a pertinência imagética na poesia, notadamente no trabalho de alguns poetas que segundo ela fazem dos seus poemas “dispositivos de visualização de algo que não pode ser dito” (Erber, 2013ERBER, Laura (2013). O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira recente. Celeuma, São Paulo, n. 3, p. 67-83., p. 81). Ela inicia sua reflexão a partir do incômodo com o texto de Luis Dolhnikoff, “Poesia média e grandes questões”, publicado no Portal Cronópios, em que o crítico e poeta identifica como causa principal da perda da vitalidade poética o abandono da vertente visualista da poesia brasileira, com ênfase no concretismo, espécie de marco “heroico” de uma poesia tida visual. Erber recupera as alfinetadas críticas aos pressupostos de Dolhnikoff2 2 A escritora se refere às considerações de Marcos Siscar em “Poetas à beira de uma crise de versos”, texto de 2007. e a ideia do crítico a respeito da redução da noção de visualidade no texto, para pensar o caso de três poetas contemporâneos: Lu Menezes, Carlito Azevedo e Paulo Henriques Britto. Neles, ela identifica a relação entre poesia e imagem em outros termos, não captados talvez pelo olhar de Dolhnikoff. Se fizermos a devida separação dos regimes de visualidade e visibilidade tão bem destacados por ela, em certa medida o ensaio de Laura Erber é uma reflexão também sobre a sua escrita, já que o tiro dado para fora, ou seja, para os textos alheios, acerta uma questão central, interna da sua escrita. Estamos diante da mediação da própria autora, ali localizada enquanto pesquisadora, em torno de algo essencial para a sua escrita - a forma da poesia. Mas ao que parece, dando um salto do citado ensaio para seu último livro, ela não se contém sozinha no próprio problema instituído quando torna sua obra mais recente uma sequência de textos com robustez para se pensar no papel do leitor e da própria autoria em busca de direções de interpretação.

Neste artigo problematizo o exercício crítico da autora a partir do poema-título de seu último livro, que dá sinais de retorno à escrita, mas também de um gesto acerca do processo de produção e dos embates de classificação em que pese o rótulo de poesia. Em “A retornada” é notória sua edificação temática a partir de três elementos: o trauma, a memória e o apagamento temporário, dando a ver um corpo saído da letargia e de volta à ativa na mesma pulsão do retorno à escrita (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Gustavo Silveira (2017). Laura Erber: para retomar a posse dos próprios abismos. Suplemento Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2sOzMqQ . Acesso em: 27 ago. 2017.
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). Apesar das aparentes referências à vida privada, evidenciadas mais claramente no posfácio, assinado por Heloísa Buarque de Hollanda, é quase impossível desassociar os poemas das personagens que assinam as epígrafes. A partir disso, todo o volume informa o resultado de uma operação da artista porque, como afirma Reinaldo Laddaga (2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 13), “um artista se expõe, mas não pretende que aquilo que exibe seja sua nudez definitiva”. O crítico defende que o artista concebe “em meio a regulação de si mesmo e mimetiza cenas da vida em condições controladas” (Laddaga, 2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 14). No caso analisado, Erber mescla o que se entende como biográfico à implícita biografia de autores e artistas que compõem a obra. Tais efeitos de vigilância, o jogo bem arquitetado entre Erber e os demais autores citados, reconhecem a potência da recepção, daí o ensejo de limitar o que pode ser acessado, ao mesmo tempo em que mostra consciência da distância estética (Jauss, 1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.) empreendida por meio da ruptura formal.

Como tentarei demonstrar, o processo de escrita de Erber possui dois atalhos a serem analisados; i) o primeiro deles em que penso o processo de composição da obra relacionando-o ao design de si (Groys, 2016GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36.) e à forma literária e ii) o segundo em que o processo se encaminha, também por efeito do primeiro, como um exercício crítico do autor contemporâneo. Os dois casos apontam para a dimensão do leitor à medida que entendemos o empreendimento literário de Eber como dependente da relação dialógica entre a obra e sua recepção.

Design de si e forma

O documentário “The artist is present” (2012) mostrou a preparação da retrospectiva da obra da performer Marina Abramovich realizada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa) em 2010. O filme acompanhou o processo de um trabalho que tentava dar sentido progressivo e de unidade à trajetória da artista, mostrou personagens fundamentais em seu percurso artístico, como o ex-marido e companheiro de performance Ulay, recuperou imagens resguardadas a um só tempo como íntimas e públicas, como o momento da separação do casal ao final de uma ação que consistia na caminhada de ambos pela Muralha da China. Na cena, o fim do percurso, do casamento, o clímax da performance.

Já na retrospectiva no MoMa, a presença de Abramovich, cuja espinha dorsal do trabalho, falando a grosso modo, é o uso do próprio corpo como objeto artístico, pode ser conferida em uma série de performances que levaram em torno de 750 mil pessoas ao museu. Performance e documentário sinalizam para a constituição de um design da artista a partir da confluência entre vida e obra, expõem os processos de composição dos trabalhos ao mesmo tempo em que procedem à construção de uma imagem para a artista. Em diversos momentos, seja no filme, seja na exposição, o público se emociona, talvez levado a acreditar que tudo que é enunciado, sem distinção, compõe parte da biografia da artista, ela própria apresentando-se como alguém que não tem nada a esconder. Neste ponto, qualquer contrato de suspeição parece substituído pelo pacto estabelecido a partir da ilusão biográfica (Bourdieu, 1996BOURDIEU, Pierre (1996). A ilusão biográfica. In: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus. p. 183-191.) proposta por Abramovich.

Recorro a um caso das artes para pensar a constituição da artista como composição da obra em uma espécie de desvio, que se distancia da vida original em favor de um design de si, e que pode ser entendido como etapa de um processo artístico que tem a cabo apresentar uma determinada realidade ao público, sem que com isso um pacto de referencialidade esteja em questão. Boris Groys (2016GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36., p. 33, tradução nossa) afirma que por meio da fabricação de um design de si, o artista “declara de alguma maneira sua fé em certos valores, atitudes, programas e ideologias”. Interpelar sobre o percurso que faz de tal design uma marca da contemporaneidade exige retornar à velha dicotomia aparência/essência, à morte de Deus e a consequente morte do design de alma. Como sugere Groys, há um potencial político fulcral em destaque nos diferentes tipos de acordos e regras estéticas, daí se poder falar em design em diferentes figurações do discurso; o design suicida, por exemplo, no caso de ataques suicidas ou de exércitos da salvação, ou design de poder ou de resistência em se tratando de movimentos políticos alternativos.

No poema de Laura Erber, o design de si opera na matéria ficcional que alude a episódios de sua vida pessoal, mas não se confina a isso. O verbo retornar, neste caso, pode tanto significar volver à escrita e aos seus autores de estimação como também pode tratar-se de uma volta à vida. O design delineia a autora e também a narrativa prévia que alicerça a temática do livro de modo insidioso. Caso o leitor comece o livro pelo fim, ou seja, pelo posfácio de Heloísa Buarque de Hollanda, sua leitura é municiada de informações e impressões que orientam o contato com o texto em uma espécie de confissão de sobrevivência da poetisa à professora da UFRJ (ela, Laura Erber, sobrevivente de um coma induzido, sobrevivente de uma vivência sensorial da morte).

A escrita do si não é algo óbvio, suscitado pelo gênero em que a autora produz, mas encorajada também pelos elementos paratextuais que dão suporte a toda uma estratégia do livro, da orelha assinada por Lu Menezes, uma das poetas estudadas no ensaio de Erber já citado, ao posfácio de Hollanda. O design de si bordeja os poemas, ou seja, ladeia o que não é a obra em si, mas que também a compõe, cumprindo um papel de apresentação e trazendo o dispositivo curadorial ao centro de sua poesia. É oportuno observar o que escapa aos contornos do texto bem como o que lhe é devido pela tradição do gênero, inserindo poema e livro como matéria de análise sobre mudanças em outras tipificações literárias e, ainda, no caso da poesia, pensar o sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia (Combe, 2010COMBE, Dominique (2010). A referência desdobrada: o sujeito lírico entre a ficção e autobiografia. Revista USP, São Paulo, n. 84, p. 112-128.). Isso porque a gênese do conceito de “sujeito lírico”, como lembra Dominique Combe, é inseparável da questão das relações entre literatura e biografia, e do problema da referencialidade da obra literária. É ele também quem nos adverte que “o sujeito lírico não se opõe tanto ao sujeito empírico, ‘real’ - à pessoa do autor -, por definição exterior à literatura e à linguagem, como ao sujeito autobiográfico”, que é a expressão literária desse sujeito “empírico”. “O poeta lírico não se opõe tanto ao autor quanto ao autobiógrafo como sujeito da enunciação e do enunciado” (Combe, 2010COMBE, Dominique (2010). A referência desdobrada: o sujeito lírico entre a ficção e autobiografia. Revista USP, São Paulo, n. 84, p. 112-128., p. 120).

Seguindo esse raciocínio, o conceito de “eu lírico” opõe-se ao lirismo autobiográfico e, particularmente, à possibilidade de uma poesia autobiográfica em sentido estrito, conforme a definição de “pacto autobiográfico” proposta por Philippe Lejeune (2008LEJEUNE, Philippe (2008). O pacto autobiográfico. In: LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora da UFMG. p. 13-47.). O critério autobiográfico, com efeito, repousa na identificação entre autor, narrador e personagem confundidos no emprego da primeira pessoa. Abstraindo-se a dimensão narrativa, atenuada ou ausente do lirismo, a definição de Lejeune pode ser aplicada para pensarmos a poesia lírica, pois, além do pressuposto segundo o qual no poema é “o homem mesmo” que fala, apresenta-se a delicada questão do poema lírico autobiográfico (Combe, 2010COMBE, Dominique (2010). A referência desdobrada: o sujeito lírico entre a ficção e autobiografia. Revista USP, São Paulo, n. 84, p. 112-128., p. 121).

E é nos gêneros da poesia explicitamente reconhecida como “de circunstância” (aquela que se inspira na realidade e é na realidade que ela se funde) estreitamente ligados aos gêneros autobiográficos, que o “eu” é mais próximo do “eu empírico” do discurso referencial, aproximando-se de uma maneira reiteradamente apontada no contemporâneo. Em comparação ao que diz Laddaga (2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 34), referindo-se ao romance contemporâneo, “essa maneira se tornou tão normal que talvez não demos conta de quão estranha é sua reiterada presença”, a presença do autor.

O poema ao passo de prosa de Erber evidencia o tratamento dado ao texto contemporâneo, em que a poesia ganha movimento narrativo e os extremos colidem e se misturam, ainda que a própria autora busque proteção em sua dúvida classificatória. A respeito disso, quem nos alerta é Hollanda (2017HOLLANDA, Heloísa Buarque. Posfácio. In: ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário , 2017. p. 51-58., p. 52): “Diz ela não saber precisar o gênero deste livro. Com a difícil tarefa de tentar formalizar pela linguagem a perda da forma do corpo, afirma que pode ter feito um ensaio, um texto em prosa, poesia”. A esse respeito, é possível interpelar a emancipação do gênero em contato com o que defende Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.). Para o autor, um dos principais nomes da Estética da Recepção, o horizonte de expectativas é constituído por épocas e sociedades dentro das quais as obras se situam. Como pensar tais expectativas quando a compreensão prévia de gênero é problematizada? O leitor tem autonomia, é fundamental para o sistema literário, mas o faz a partir de normas, códigos e formas previamente conhecidas. Portanto, ao romper com as marcações que o leitor supõe que encontrará ou, dizendo de outro modo, ao contrariar o leitor, a obra emancipa-se, traçando a distância estética entre o que se pretendia dizer e o que de fato foi dito. Os poemas de A retornada caminham todos nessa direção.

Leituras como a apontada acima não descartam pontos de vista que sustentam a defesa da poesia como faz Gustavo Silveira Ribeiro (2017RIBEIRO, Gustavo Silveira (2017). Laura Erber: para retomar a posse dos próprios abismos. Suplemento Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2sOzMqQ . Acesso em: 27 ago. 2017.
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), antecipando o próprio questionamento da autora como um dos assuntos fundamentais de todo o livro:

Dentre todas essas possibilidades, a força e a fraqueza, a assertividade e a dúvida. O poema (a poesia, mais amplamente) é tarefa imensa e virtualmente infinita, tão intrincada quanto a própria vida. E não é sem razão que seja justamente o poema, essa forma ao mesmo tempo maleável e rigorosa, seja escolhida para narrar (para apresentar, expor, refazer, dar corpo) a um fantasma, voz que fala de dentro da morte, a uma retornante, enfim, que, entre os fios e máquinas vitais, mas inóspitas, do hospital, vai voltando ao mundo dos vivos (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Gustavo Silveira (2017). Laura Erber: para retomar a posse dos próprios abismos. Suplemento Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2sOzMqQ . Acesso em: 27 ago. 2017.
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, s/n).

Neste ponto, mais que uma disputa entre correntes e posicionamentos críticos, interessa-me propor que, ao menor sinal de classificação do texto, não pela crítica, mas por parte do leitor comum, a obra de Erber já dispara um diferencial, ao exigir da recepção uma mudança dos protocolos de leitura da poesia. Como ler o poema/texto tão influenciado pela prosa? Como ler um poema/texto que exige uma visita em paralelo a espacialidade ocupada do livro? Como ler um poema/texto em passo de prosa, que ganha mais sentido e força se soubermos quem são os vivos e os mortos das epígrafes de Erber? Por fim, como ler determinada poesia contemporânea?3 3 Aqui novamente recorro ao ensaio de Laura Erber (2013). Naquela posição, ela desenvolve uma tensa reflexão sobre o espaço da imagem na poesia contemporânea a partir dos três poetas analisados. A imagem amplamente discutida no ensaio ressurge como matéria de composição do seu livro-poema.

A sintaxe em aberto, “no ritmo, na asfixia” (Hollanda, 2017HOLLANDA, Heloísa Buarque. Posfácio. In: ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário , 2017. p. 51-58., p. 52), a ser realizada pelo leitor, aspecto portanto relacionado à forma, convida-nos em visitação à memória do trauma, quando “a retornada” situa-se entre dois mundos; a um passo dos vivos, mas brevemente refugiada entre os mortos, nesse lugar que não se sabe onde e nem se sabe definitivo:

alguém abriu todas as portas ligou todas as máquinas tocou uma espécie de cítara não houve tempo suficiente para o temor somente a maciez da pele de um soldado sem saber se a leveza vinha de dentro ou se era do lado de fora a pura carne em prona de onde (onde?) a imagem que falta (ali onde as coisas não são nomeadas) de laços uns dos outros os órgãos se soltando “o que você sente?” longe das horas o que significa agora (onde?) “passar pela morte” (como duas escarpas se cruzando erva daninha de verbo não conjugado) estranhas regras do falar “meu sangue está podre” como um rio morto os olhos também sentem calor e frio a ineficácia das palavras na soleira quando você já não está em você quem flutua pelos corredores brancos? “o ideal é o mutismo e a mostração: silêncio e ostentação do cadáver” (Erber, 2017ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017., p. 46).

O poema em oito partes prossegue dando vazão ao delírio que se por um lado sugere um escape ou um desnorteio que nos coloca à deriva, por outro mostra o voltar à vida a cada trecho. À medida que a vida ressurge, a escrita parece mais clara, a fragmentação cede à ordem, ainda que a sintaxe mantenha a mesma organização inicial. O que se vê é que o borrado a princípio ganha nitidez, feito uma voz embolada que é recuperada conforme o corpo inteiro também se cure. De tal forma, escrever sobre a morte e anunciar sua própria experiência de proximidade se misturam: “dizer a própria morte traz de volta espécies de receio de contágio ao tentar escrevê-la compactuo com ela? convoco-a? desejo-a” (Erber, 2017ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017., p. 49).

Exercício crítico e o salto carpado do leitor

A explicitação de um eu que conjuga dados biográficos da autora e ficção é apenas um dos aspectos que tenciona a relação da literatura com o real, acentuando a aposta dos críticos que realçam a ênfase em primeira pessoa como um dos selos do contemporâneo. A crítica a respeito do design de si por Groys prolonga-se com o questionamento se o encontro com o real é possível ou se o real desapareceu por completo por detrás do design. E acrescento: se é possível pensar em um design de si contemporâneo, qual real lhe escapa e ao mesmo tempo serve como substância capaz de provocar uma experiência estética focada no reconhecimento do autor?

Seja por meio do design modernista em busca de uma economia formal para que uma essência de organização política venha à tona, seja na produção de si no espaço literário, o texto de Erber traz um apelo ao processo de fundição da escrita com o biográfico. Enquanto em Desarticulaciones Sylvia Molloy (2011MOLLOY, Sylvia. Desarticulaciones (2011). Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora.) se refere à ideia de sobrevivência por meio do gesto da escrita sobre uma amiga com Alzheimer, em Laura Erber é possível falar em auto sobrevivência, uma vez que voltar à escrita parece mimetizar voltar à vida. A um só tempo, essa mesma escrita encaminha-se como uma etapa da cura no gênero incerto em que a autora se estabelece. Não se trata apenas da expressão do si, mas de uma narrativa poética, cuja experiência única relatada é a de quase-morte. Laura Erber constrói um design de si que em vez de mostrar a vida em superfície, biográfica, sem importância ou utilidade, provoca uma tensão entre vida e poesia. É nesse ponto que se manifesta a potência política de questionamento sobre as possibilidades do literário, o segundo atalho da escritora, assunto deste tópico.

Assumindo o design de si como uma estratégia autoral, a próxima manobra sugere que o texto seja interpretado na clave da reflexão crítica não mais sobre a morte ou um dado de vida, mas sobre o literário e o ato de escrever, na esteira do que diz Roland Barthes em Diário do luto (2011BARTHES, Roland (2011). Diário de luto. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Martins Fontes.). Muito embora se possa reconhecer que tema e forma, imagem e referente se embaralham. Ali, o semiólogo empreende a impossibilidade da escrita sobre a morte da própria mãe, fundando naquele momento uma obra pungente sobre outra impossibilidade, a da escrita. No caso de Erber, a voz que se enuncia tem o agravante de ser a mesma que retorna do coma e que tenta voltar a escrever.

Na oitava e última parte de “A retornada” lemos: “seria preciso mais de uma vida para dizer a confusão mental de não esgotá-la tudo o que empurra arrasta o fundo sem forma alguém abriu todas as portas desligou todas as máquinas retirou a máscara e com uma voz de cristal e ópio ‘você sabe onde está agora?’” (Erber, 2017ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017., p. 49). A volta não dada como certa afinal acontece e quem esteve do outro lado da vida deve se levantar e seguir. A poesia nesse ponto se equipara a respirar, a caminhar novamente, e é, ao mesmo tempo, texto e anatomia da escritura.

O trecho final aponta para o desejo da autora de representar por meio da linguagem esta experiência de “quase estar”. É como se ela, de volta de uma viagem que poucos apreendem, tentasse colocar em “marcha escrita” o que ocorreu. E porque a morte supostamente é uma experiência pouco plausível de ser representada, também se torna uma viagem ao redor do próprio ato criador, não um ato criador qualquer, mas um processo de escrita sobre si, cuja potência se aloja na problematização sobre o que pode a literatura.

Laddaga, atento a uma condição de exposição de si no romance, questiona o estranhamento de que esse retorno do autor se dê num momento em que “a centralidade da literatura como arte é posta em dúvida” (2013, p. 51). Como se o investimento na apresentação de si implodisse os alicerces já frágeis do estatuto literário. Por outro lado, a reflexão a ser feita passa tanto pelo enraizamento de um certo literário quanto pelos resultados advindos exatamente da diversidade de subjetividades e das novas formas subsequentes do literário.

Há livros porque estes livros foram e são escritos por indivíduos cujos esforços constantes se dirigem a constituir as formas de organização do tempo e do espaço, os sustentáculos econômicos e emocionais necessários para que possam ser executadas, de maneira cotidiana, as usualmente complexas operações que resultam seus textos (Laddaga, 2013LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 51).

Mais uma vez, Erber procura apoio no que lhe é exterior no ardil do texto, anunciando um certo destaque aos paratextos e autoras que lhe ajudam na compreensão do próprio projeto de escrita e, por conseguinte, seus leitores. A sequência de epígrafes, minuciosamente escolhidas como destaca tanto o texto de Hollanda quanto o ensaio de Ribeiro, é tema fundamental, dada a profusão de ingerências nos poemas. Não à toa é de Sylvia Plath4 4 A biografia da poeta e romancista norte-americana é marcada por obras que expunham as agruras da depressão e o suicídio aos 30 anos, levando a crítica a acessá-la com frequência pela chave do autobiográfico. Em 2017, o selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, relançou no Brasil seus diários, corroborando essa tendência do mercado e da crítica. a epígrafe de abertura do livro e contamina-o por inteiro: “Posso escrever poemas? Por uma espécie de contágio?” (Eber, 2017ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017., s/n). A sequência segue o mesmo compasso. A epígrafe que antecede “A retornada” é da escritora e fotógrafa canadense Alix Cléo Roubaud, morta na casa dos 30 anos por problemas pulmonares. Já o poeta Leo Martinelli, morto em 2008, ganha um dos poemas em sua homenagem, com direito a citações diretas. Sem contar nos demais nomes ligados à imagem, seja pelo cinema ou pela fotografia, como a belga radicada na França, Agnès Varda, precursora da nouvelle vague, falecida em março de 2019. Assim, qualquer mostra de precariedade dá lugar ao planejamento bem traçado do livro como um todo, que a uma só vez reúne imagens várias, tematiza determinado assunto que lhe interessa (o retorno?) e arrebata o leitor não mais atento à morte, ao coma, ao estar viva, mas às palavras, ao movimento ritmado que é ele próprio um atestado da pertinência de certo literário agora, ainda que sem a forma que querem lhe atribuir.

Cada peça colabora para a composição dos poemas e do livro como um todo, disparando rajadas de informações a serem acessadas pelos dois tipos de leitor-modelo apontados por Eco (1989ECO, Umberto (1989). Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.). O leitor de primeiro nível que irá acessar o texto pelo caminho semântico, e aqui cabe dizer que talvez nesse grupo possamos considerar o leitor mais acostumado a tradição da poesia, e o leitor que tem a experiência de leitura como uma experiência sobretudo estética. Nesse segundo ramo, encontra-se o leitor que verá outras camadas de interpretação, não devido apenas a seu repertório de leitura, mas pelo trabalho curadorial da autoria, interessada na construção de um design de si e no seu próprio ofício de poetar como um espaço crítico sobre o estado da poesia, a literatura e a escrita. Em ambos os casos tanto crítica quanto leitor se veem diante uma manobra arriscada de contato com o universo proposto por Laura Erber, porque sua poesia alude à vida, mas também oferece perigo.

Referências

  • BARTHES, Roland (2011). Diário de luto. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Martins Fontes.
  • BOURDIEU, Pierre (1996). A ilusão biográfica. In: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus. p. 183-191.
  • COMBE, Dominique (2010). A referência desdobrada: o sujeito lírico entre a ficção e autobiografia. Revista USP, São Paulo, n. 84, p. 112-128.
  • ECO, Umberto (1989). Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017.
  • ERBER, Laura (2013). O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira recente. Celeuma, São Paulo, n. 3, p. 67-83.
  • GROYS, Boris (2016). La obligación del diseño de si. Traducción del Paola Cortes Rocca. In: GROYS, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporânea. Buenos Aires: Caja Negra. p. 21-36.
  • HOLLANDA, Heloísa Buarque. Posfácio. In: ERBER, Laura (2017). A retornada. Belo Horizonte: Relicário , 2017. p. 51-58.
  • JAUSS, Hans Robert (1994). A história literária como provocação à teoria da literatura. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.
  • LADDAGA, Reinaldo (2013). Estética de laboratório: estratégias das artes do presente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes.
  • LEJEUNE, Philippe (2008). O pacto autobiográfico. In: LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora da UFMG. p. 13-47.
  • MOLLOY, Sylvia. Desarticulaciones (2011). Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora.
  • RIBEIRO, Gustavo Silveira (2017). Laura Erber: para retomar a posse dos próprios abismos. Suplemento Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2sOzMqQ Acesso em: 27 ago. 2017.
    » https://bit.ly/2sOzMqQ

Nota:

  • 1
    Faço a distinção entre o poema “A retornada”, grafado entre aspas, e o livro A retornada, em itálico.
  • 2
    A escritora se refere às considerações de Marcos Siscar em “Poetas à beira de uma crise de versos”, texto de 2007.
  • 3
    Aqui novamente recorro ao ensaio de Laura Erber (2013ERBER, Laura (2013). O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira recente. Celeuma, São Paulo, n. 3, p. 67-83.). Naquela posição, ela desenvolve uma tensa reflexão sobre o espaço da imagem na poesia contemporânea a partir dos três poetas analisados. A imagem amplamente discutida no ensaio ressurge como matéria de composição do seu livro-poema.
  • 4
    A biografia da poeta e romancista norte-americana é marcada por obras que expunham as agruras da depressão e o suicídio aos 30 anos, levando a crítica a acessá-la com frequência pela chave do autobiográfico. Em 2017, o selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, relançou no Brasil seus diários, corroborando essa tendência do mercado e da crítica.

Nota:

  • A autora é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2018
  • Aceito
    14 Fev 2019
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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