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Editoras cartoneras e a literatura fora do cânone: um olhar crítico para as margens do mundo editorial

Cartoneras Publishers and Literature Outside the Canon: A Critical Look at the Margins of the Publishing World

Editoriales cartoneras y la literatura fuera del canon: una mirada crítica a las márgenes del mundo editorial

Resumo

O objetivo deste artigo é traçar um panorama das múltiplas possibilidades de intervenção do movimento cartonero, uma rede internacional formada por editoras independentes que utilizam o papelão reciclado para a confecção das capas de seus livros. A partir da apresentação do contexto histórico no qual surge a pioneira Eloísa Cartonera - uma editora artesanal que emprega catadores de papelão e indivíduos à margem da sociedade para editar obras de autores iniciantes ou de grandes nomes da literatura latino-americana - o texto traz uma reflexão sobre a potência criativa dos sujeitos alterizados e sobre os processos de assunção de voz dos subalternizados na periferia do capitalismo. Por meio de uma ampla coleta de dados em diferentes fontes (livros, catálogos, blogs, sites e entrevistas), buscou-se construir uma imagem mais complexa do universo das edições cartoneras e discutir o impacto da intervenção dessa rede cooperativa e solidária de editoras nos processos de reconfiguração do campo literário. Trata-se de um estudo descritivo que se baseou em diferentes experiências editoriais para tentar chegar a uma compreensão mais ampla da situação atual das disputas pelo domínio das máquinas expressivas da sociedade, em particular aquelas que tradicionalmente garantiram a produção e difusão de representações hegemônicas através do objeto livro.

Palavras-chave:
cartoneras; editoras independentes; subalternidade; campo literário

Abstract

The purpose of this article is to provide an overview of the many possibilities for intervention of the cardboard book movement, an international network formed by independent publishers who use recycled cardboard to make the covers of their books. Starting from a presentation of the historical context out of which emerged the pioneering Eloísa Cartonera - an artisanal publisher that employs cardboard scavengers and individuals on the margins of society to edit works of beginning authors as well as those of great names of Latin-American literature - the text presents a reflection on the creative power of otherized subjects and on the processes of the subalternized on the periphery of capitalism making their voices heard. Through an ample collection of data from different sources (books, catalogs, blogs, websites and interviews), an attempt was made to construct a more complex image of the universe of cartoneras publishers and to discuss the impact of the intervention of this cooperative and solidary network of publishers in the processes of reconfiguration of the literary field. This is a descriptive study based on different publishing experiences to try to attain a greater understanding of the current disputes over the dominion of society's expressive machines, in particular those that traditionally guaranteed the production and diffusion of hegemonic representations through the book object.

Keywords:
cartoneras; independent publishers; subalternity; literary field

Resumen

El objetivo de este artículo es construir un panorama de las múltiples posibilidades de intervención del movimiento cartonero, una red internacional formada por editoriales independientes que utilizan cartón recogido en las calles para hacer las portadas de sus libros. A partir de la presentación del contexto histórico en el que surge la pionera Eloísa Cartonera - una editorial artesanal que emplea cartoneros y marginados de la sociedad para editar obras de nuevos autores en el campo literario y también de grandes nombres de la literatura latinoamericana - el texto trae una reflexión acerca de la potencia creativa de los sujetos alterizados y acerca de los procesos de asunción de voz de los subalternizados en la periferia del capitalismo. A través de una amplia recolección de datos en distintas fuentes (libros, catálogos, blogs, sitios y entrevistas), se buscó construir una imagen más bien compleja del universo de las ediciones cartoneras y discutir el impacto de la intervención de esa red cooperativa y solidaria de editores en los procesos de reconfiguración del campo literario. Es un estudio descriptivo que se basó en distintas experiencias editoriales para intentar llegar a una comprensión más amplia de la situación actual de las disputas por el dominio de las máquinas expresivas de la sociedad, en especial aquellas que tradicionalmente han garantizado la producción y difusión de representaciones hegemónicas a través del objeto libro.

Palabras-clave:
cartoneras; editoriales independientes; subalternidad; campo literario

Salvar de la basura un pedazo de cartón para crear de la nada un objeto, un libro que se convierta en arte. El arte de compartir un yo, de colorear una cubierta que lo envuelva, que lo arrope y lo haga único. Dotarlo de contenido para echarlo a andar por el mundo a un coste mínimo. Susana Pereira, “Letras de cartón”

Entre os mais pobres da nossa sociedade, as latas vazias de querosene, leite, óleo ou tinta servem, há décadas, para transportar água, funcionam como vasos de plantas ou substituem carrinhos de brinquedo que as crianças não ganharam de presente. Em um ensaio de seu livro Vale quanto pesa, Silviano Santiago já nos lembrava: “antes mesmo de que os teóricos falassem sobre reciclagem do lixo na sociedade de consumo, ou sobre os perigos ecológicos do lixo industrial, já as classes populares tinham encontrado uma forma de torná-lo útil no seu cotidiano” (Santiago, 1982SANTIAGO, Silviano (1982). Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 128). No âmbito do campo cultural, onde impera a economia das trocas simbólicas (Bourdieu, 1999BOURDIEU, Pierre (1999). A economia das trocas simbólicas. Introdução, seleção e organização Sergio Miceli. Tradução de Sergio Miceli et al. 5. ed. São Paulo: Perspectiva.), também podem acontecer essas práticas de reimaginação do real que despontam primeiro nos setores populares para, só depois, chegarem ao restante da sociedade.

A construção de um projeto editorial independente que visa produzir livros de forma não industrial, reinventando o destino do papelão descartado e superando tradicionais obstáculos que os subalternizados enfrentaram para acessar os espaços de representação, pode ser um pequeno passo para que se venha a articular, através da prática de grupos alterizados, uma resposta à inquietante pergunta feita por Gayatri Spivak no título de seu famoso ensaio intitulado “Pode o subalterno falar?” (2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty (2010). Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG.). A resposta, no caso específico que tratamos aqui, parece ser positiva e foi construída em um período de profunda crise das estruturas sociais, momento que alguns sujeitos na periferia da periferia souberam aproveitar para lançar mão das máquinas expressivas a fim de difundir sua própria voz. Tal processo acarretou uma série de outras transformações, derivando no domínio de novas tecnologias e na apropriação e ressignificação dos instrumentos de poder da “cidade letrada” por parte de sujeitos subalternizados. Esse novo cenário implica no protagonismo das margens da cidade e da sociedade através de inusitadas “artes de fazer”, conforme Michel de Certeau (2003CERTEAU, Michel de (2003). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes.) denominou os “modos de fazer” das pessoas comuns, que, à sua maneira, criam novos usos para regras, convenções e práticas impostas pela ordem social e econômica dominante.

Fruto dessa dinâmica, surge, nos anos iniciais deste século, um movimento editorial alternativo com a intenção de colocar em circulação vozes silenciadas, autofigurações de sujeitos subalternizados e representações de territórios periféricos. Essas novas dicções agora passam a se fazer ouvir através da edição de livros artesanais encadernados com o papelão proveniente de caixas recicladas, compradas de catadores de rua. Considerando-se que quem pensou uma inciativa tão vinculada às minorias como essa foi o filho de uma família humilde da cidade de Quilmes, na Grande Buenos Aires, podemos talvez entender esse projeto social e cultural como uma daquelas astúcias do fraco que Josefina Ludmer chamou de “tretas del débil en una posición de subordinación y marginalidade” (1984LUDMER, Josefina (1984). Las tretas del débil. In: ELENA GONZÁLEZ, Patricia; ORTEGA, Eliana (Ed.). La sartén por el mango. Encuentro de Escritoras Latinoamericanas. Río Piedras: Ediciones Huracán. p. 47-54., p. 47). Conforme assinalou a própria Josefina Ludmer, os fracos precisam constantemente converter para seus próprios fins instrumentos e repertórios que sempre lhes foram alheios. A ideia de publicar textos de autores iniciantes a partir de materiais recicláveis adquiridos dos próprios catadores remete-nos aos processos de subversão dos quais Michel de Certeau fala com frequência em sua obra.

Parece que os sujeitos tradicionalmente desqualificados e marginalizados assumiram a consciência de ser o Outro e começaram a se apropriar de objetos, produtos, saberes e discursos até recentemente tidos como próprios do mundo desses que os representaram como incapazes de “falar”. Josefina Ludmer, no ensaio “Las tretas del débil”, afirma que “el no saber [decir] conduce al silencio y se liga con él; pero aquí se trata de un no saber decir relativo y posicional: no se sabe decir frente al que está arriba, y ese no saber implica precisamente el reconocimiento de la superioridad del otro” (1984LUDMER, Josefina (1984). Las tretas del débil. In: ELENA GONZÁLEZ, Patricia; ORTEGA, Eliana (Ed.). La sartén por el mango. Encuentro de Escritoras Latinoamericanas. Río Piedras: Ediciones Huracán. p. 47-54., p. 48). De fato, o não saber dizer - outro nome para o silenciamento dos sujeitos subalternizados - existe em função da superioridade assumida por outros, bem como pela posição de inferioridade imposta em determinado contexto da produção discursiva. Esta injustiça epistemológica, contudo, pode ser desestabilizada ou desordenada a partir das próprias práticas ordinárias dos que estão em uma posição subalternizada. Desenvolvem-se, assim, artimanhas de sujeitos potencialmente insubmissos, que precisam colocar em xeque o lugar ao qual foram relegados através de táticas cada vez mais descentralizadas e horizontais, prescindindo, quase sempre, de lideranças e autoridades estáveis. Nas falhas da estrutura que afirma que ele não sabe dizer, o subalternizado, portanto, pode dizer; pode lançar mão de uma espécie de artimanha do despoder, que “combina, como todas las tácticas de resistencia, sumisión y aceptación del lugar asignado por el otro, con antagonismo y enfrentamiento, retiro de colaboración” (Ludmer, 1984LUDMER, Josefina (1984). Las tretas del débil. In: ELENA GONZÁLEZ, Patricia; ORTEGA, Eliana (Ed.). La sartén por el mango. Encuentro de Escritoras Latinoamericanas. Río Piedras: Ediciones Huracán. p. 47-54., p. 51).

Em sentido semelhante ao expressado por Ludmer, Michel de Certeau já propunha cinco anos antes (L’invention du quotidien, 1980) a ideia de tática, que ele entende como a “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio” (2003CERTEAU, Michel de (2003). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes., p. 100). Essa concepção de um movimento feito pelos fracos num espaço que é controlado por forças hegemônicas refere-se a sujeitos que operam sem um projeto global ou totalizador, investindo numa ação que se reconfigura a cada ato, em função das aberturas ou possibilidades encontradas num terreno que lhes é estranho. O “não-lugar” desses atores, como o chama Michel de Certeau (2003CERTEAU, Michel de (2003). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes., p. 100), lhes permite uma grande mobilidade, remetendo à ideia de não fixidez, a qual dificulta ou impede a localização precisa de tais elementos subversivos e, por consequência, inviabiliza o combate que o poder poderia oferecer a essa resistência resultante da tática de “los de abajo”. Essa tática dos fracos é sinônimo de movimento constante e age nas frestas das estruturas de dominação, conforme aponta Michel de Certeau: “Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. [...] Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (2003CERTEAU, Michel de (2003). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes., p. 101). A tática seria, portanto, o recurso do fraco, daquele que foi submetido a diferentes formas de controle do discurso e do corpo, e que, com seus balbucios, supera o silenciamento historicamente imposto.

O movimento de editoras cartoneras é uma tática do fraco. Adaptando as palavras de Roger Chartier a outro contexto, poderíamos concluir, em relação a esse objeto tão particular chamado livro cartonero, que: “esta encarnação do texto numa materialidade específica carrega as diferentes interpretações, compreensões e usos de seus diferentes públicos” (Chartier, 1999CHARTIER, Roger (1999). A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp., p. 18).

Soluções criativas em meio à crise

Em 2001, o fim da paridade entre o peso argentino e o dólar foi o catalizador de um processo que exporia as múltiplas contradições do projeto neoliberal que marcou a década governada por Carlos Menem (1989-1999). A crise econômica, somada à crise política e à falência institucional, provocaria uma explosão nas taxas de desemprego e arruinaria bruscamente a vida de milhares de pessoas. Nas fachadas descascadas de inúmeras lojas fechadas e também nos grafites e estampas em stencil deixadas pelos manifestantes nas paredes dos prédios da Avenida de Mayo, a cidade, antes soberba, mostra as cicatrizes desses anos duríssimos de marchas, piquetes e batalhas campais. Entretanto, a marca mais visível da crise nesses anos iniciais do século XXI talvez fosse a presença dos cartoneros, pessoas que, no final da tarde, dedicavam-se a recolher papelão e outros materiais recicláveis no Centro de Buenos Aires. Vinham de periferias distantes, muitas vezes de municípios vizinhos da Região Metropolitana, e voltavam naquele que ficaria conhecido como o “Tren Cartonero” ou “Tren Blanco”. Eram composições que já estavam fora do serviço ferroviário regular há muito tempo e que não tinham luzes ou assentos. Esses vagões, em visível estado de abandono, eram especialmente destinados aos cartoneros e às suas cargas de papelão. Cada dia havia mais catadores dedicados a sobreviver através daquilo que a cidade jogava fora. Eram uma multidão. Em 2002, já se contavam mais de 40.000 deles trabalhando nas ruas de Buenos Aires, segundo estudos da Universidad Nacional General Sarmiento. Para alguns, que viam de fora o fenômeno, eram verdadeiras hordas a violentar a civilizada imagem da Paris dos trópicos com suas carroças carregadas de papelão. Os veículos precários que anunciavam os novos tempos eram muitas vezes puxados por cavalos tristes e magros, equipados com uma indumentária imprescindível: um fraldão de couro que tinha a importante função de evitar que os animais sujassem as ruas, as mesmas que seus donos ajudavam a limpar recolhendo os refugos da vida urbana.

Alberto Manguel (2005MANGUEL, Alberto (2005). Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras., p. 21), escrevendo anos depois, ofereceria uma importante chave de leitura para aqueles tempos de crise: “Mas há também o ressurgimento do impulso criativo. [...] A ruína do país gerou misteriosamente uma atmosfera palpável de criatividade, como se artistas e escritores tivessem decidido de repente fazer surgir das cinzas aquilo que lhes foi roubado”.

Havia algo no ambiente desse início de século que fazia com que muitas pessoas usassem a imaginação para encontrar novas estratégias de resistência correspondentes ao que Michel de Certeau chamou de “artes de fazer” ou “astúcias do fraco” (2003CERTEAU, Michel de (2003). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes.). Alguns argentinos perceberam que as estéticas dominantes e certas práticas culturais e sociais não poderiam mais ser reduplicadas como antes. Decididos a mover-se em um terreno no qual estética e política se encontram e buscando atuar de modo subversivo junto a um sistema que continuava excluindo as maiorias do contexto da produção de representações, três jovens artistas oriundos das margens do campo cultural criaram, no ano de 2003, as edições Eloísa.

Idealizado por Washington Cucurto (heterônimo do escritor Santiago Vega) e pelos artistas plásticos Javier Barilaro e Fernanda Laguna, o projeto assumiu uma dinâmica de autonomia como forma de enfrentar a crise e gerar renda para um grupo de cartoneros (catadores de papelão). O coletivo propunha um modelo mais democrático de publicação, com a intenção de ampliar o acesso da população aos livros e também como forma de atuar de modo efetivo nas disputas internas do campo literário. Dessa iniciativa surge a Eloísa Cartonera e, posteriormente, vários outros selos editoriais que contribuiriam de forma significativa para a criação de uma nova atmosfera cultural.

Já assinalava Roger Chartier, em A aventura do livro: do leitor ao navegador, que “a grande questão, quando nos interessamos pela história da produção de significados, é compreender como as limitações são sempre transgredidas pela invenção” (Chartier, 1999CHARTIER, Roger (1999). A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp., p. 19). É justamente na efervescência cultural de um entorno criativo muito potente que a reinvenção das práticas de edição a partir da reciclagem de papelão despontaria como forma de fazer frente à crise imperante nesses anos difíceis. A invenção atravessava por inteiro essa tendência que passou a operar no setor editorial, trazendo em si uma ideia muito simples: transformar o papelão de caixas usadas e descartadas em novos e belos objetos artísticos, conforme assinala Andréa Carneiro Lobo, editora da Voz Cartonera:

Transformam embalagens, criadas para proteger e transportar bens de consumo produzidos pela indústria, em capas de livros, as quais, ressignificadas, protegerão e transportarão criatividade, independência, beleza, autonomia e ideias sob a forma de palavras (Lobo, 2019LOBO, Andréa Carneiro (2019). Prefácio. In: ALMEIDA, Marcelo Henrique Barbosa de. O que são esses livros com capas de papelão?: aspectos da história dos livros cartoneros - 2003-2018. João Pessoa: Marca de Fantasia. p. 7-9., p. 8).

O miolo dos livros era fotocopiado na Biblioteca Nacional (onde foi trabalhar Washington Cucurto) ou na sede da editora, inicialmente no bairro da Boca, num edifício vizinho ao estádio La Bombonera, e mais recentemente no bairro de Almagro (Calle Venezuela, 3892). As caixas de papelão compradas diretamente dos catadores começaram a virar capas pintadas à mão por cartoneros (e até por seus filhos), que cortam o papelão, fazem o stencil com o título das obras e encadernam os volumes. O custo do livro diminui sensivelmente e as tiragens se tornam mais modestas, ficando em torno de 50 a 100 exemplares, geralmente numerados. O modelo cartonero ampliou, assim, as possibilidades de edição, levando-as a novos autores. Isso faz com que uma das mais potentes máquinas expressivas da sociedade esteja finalmente ao alcance de indivíduos ou grupos que até então dispunham de pouquíssimos recursos e que jamais sonhariam em publicar um livro por uma editora tradicional. Anos depois, o próprio Cucurto dirá, não sem um pouco de ironia:

Armar una editorial propia. Por esos años, explotaban en Argentina las editoriales independientes. [...] Armarse una editorial alternativa era el fetiche de las clases trabajadoras. Incluso, muchos las pensaban como fuentes de trabajo a largo plazo. [...] Todo el que tenía un mango, armaba una editorial. En esos tiempos en Buenos Aires llegó a haber una cantidad impensada de libros (Cucurto, 2015CUCURTO, Washington (2015). La serie negra. Buenos Aires: Paisanita Editora., p. 9).

Nesse contexto de crise, surge uma prática que se difunde rapidamente a partir da proposta de empoderamento dos subalternizados e da ideia de infiltrar a própria condição nas manifestações do pensamento. Sujeitos sociais que antes eram apenas consumidores de bens materiais e imateriais convertem-se em produtores de cultura, numa experiência facilmente replicável, que permite problematizar os modos de pensar a realidade e o próprio fazer artístico.

O projeto pressupunha também algumas preocupações com a sustentabilidade. Em sua constituição, estão envolvidas questões sociais relacionadas à economia colaborativa bem como questões culturais implicadas no movimento de publicação independente e na difusão da leitura a baixo custo, mas um foco que não se pode desprezar tem a ver com a reciclagem de resíduos da sociedade moderna. Havia, implícito, um alerta sobre os danos ao meio ambiente provocados pela produção industrial. Isto se torna evidente se levarmos em conta que as ameaças à biodiversidade e aos ecossistemas de todo o planeta em consequência do consumo de produtos industrializados em larga escala também podem ser calculadas pela quantidade de papelão usado para embalar produtos freneticamente comercializados e descartados.

Em Homens e máquinas: como a tecnologia pode revolucionar a vida cotidiana, Kim Vicente traz alguns dados que embasam a preocupação com o papelão como elemento importante no processo de degradação do meio ambiente. Entre os números que assinalam a crise ecológica e a grave ameaça à qualidade de vida no planeta, o autor destaca alguns dados que indiretamente refletem o impacto da crescente produção industrial e do consumo de produtos manufaturados em diferentes países. Segundo o estudioso canadense do campo dos fatores humanos, em apenas uma década (de 1988 a 1998), a quantidade de papelão produzida à custa das florestas teve um aumento assustador em todo o mundo: 123% na China, 502% na Indonésia e 148% na República da Coréia, por exemplo (Vicente, 2005VICENTE, Kim (2005). Homens e máquinas: como a tecnologia pode revolucionar a vida cotidiana. Tradução de Maria Inês Duque Estrada. Rio de Janeiro: Ediouro., p. 39). Diante desses números, que apontam para aquilo que Vicente chamou de “tecnologia enlouquecida” ou “fora de controle” (2005VICENTE, Kim (2005). Homens e máquinas: como a tecnologia pode revolucionar a vida cotidiana. Tradução de Maria Inês Duque Estrada. Rio de Janeiro: Ediouro., p. 37), destaca-se a importância de um projeto de reciclagem de papelão que trazia também um elemento adicional, que é a valorização do trabalho dos catadores de recicláveis.

O reaproveitamento de papelão garante outro patamar de trocas culturais, incorporando os subalternizados à confecção de capas e à produção de discursos de autorrepresentação. Ajuda a manter a renda dos catadores e possibilita a publicação de livros por parte daqueles que não tinham qualquer acesso ao mercado editorial. Unindo esses dois aspectos, a construção desse projeto, que teve à frente um escritor marginal projetado do quadro de funcionários do supermercado Carrefour da Calle Salguero e que contou a colaboração de alguns catadores desde o primeiro momento, colocou os sujeitos alterizados no centro da cena cultural. Em um fragmento de seu romance 1810: la Revolución de Mayo vivida por los negros, Washington Cucurto faz referência aos editores das cartoneras, que acreditaram no seu potencial literário muito antes das editoras comerciais começarem a publicar suas obras: “Mi homenaje a esos editores, que además eran negros como yo, y creían en la literatura y la cultura [...], auténticos amanuenses y visionarios” (Cucurto, 2008CUCURTO, Washington (2008). 1810: la Revolución de Mayo vivida por los negros. Buenos Aires: Emecé., p. 138-139).

A iniciativa demonstrou uma imensa potência simbólica e serviu de modelo para uma ampla rede de editoras cartoneras. A partir do exemplo dado por Eloísa Cartonera, várias outras editoras nasceriam nos anos seguintes. Em 2004, surgiria Sarita Cartonera (em Lima, Peru); em 2005, Animita Cartonera (na cidade de Santiago do Chile); nesse mesmo ano seria criada a Mandrágora Cartonera (em Cochabamba, Bolívia); e em 2006, foi fundada a Yerba Mala Cartonera (em El Alto, na Bolívia). No ano de 2007, depois que a equipe da Eloísa Cartonera esteve entre os 27 artistas e coletivos convidados a participar da 27ª Bienal de São Paulo (de 7 de outubro a 17 de dezembro de 2006), Lúcia Rosa e Peterson Emboava - que haviam desenvolvido dois meses de trabalho colaborativo com os integrantes da pioneira de Buenos Aires - organizaram na cidade de São Paulo o coletivo Dulcineia Catadora, a primeira cartonera do Brasil. E 2007 foi também o ano de fundação da Yiyi Jambo, em Assunção, no Paraguai.

Hoje, contamos com dezenas de cartoneras em diferentes cidades da América hispânica. Existem também pessoas dedicadas a publicar livros cartoneros em vários outros cantos do mundo, de Paris a Maputo (Moçambique), de Lisboa até a Chapada Diamantina (no interior da Bahia), de Memphis, no Tennessee (Estados Unidos) a Caruaru, no agreste pernambucano. Foram criadas quase 300 editoras cartoneras em pouco mais de quinze anos e, atualmente, essas editoras se encontram em mais de vinte países e em quatro continentes (América, Europa, África e Ásia). Observe-se, porém, que algumas delas são projetos de curta duração e não continuam em atividade, sendo desativadas depois da publicação de alguns poucos títulos.

Cada cartonera tem sua particularidade. Yiyi Jambo, por exemplo, foi criada pelo poeta Douglas Diegues para publicar, em edições artesanais com capas de papelão comprado nas ruas de Assunção, a obra de autores do Brasil e do Paraguai, bem como os poemas que o próprio Diegues escreve em “portunhol selvagem” (portuñol sauvage), uma espécie de língua de contato ou língua de fronteira e também um projeto poético translinguístico no qual se mesclam elementos do português, do espanhol e do guarani.

O universo cartonero

Os livros cartoneros se baseiam nos mesmos princípios e quase sempre apresentam as mesmas estruturas fundamentais do livro moderno pós-Gutenberg. São objetos compostos por folhas em determinado formato reunidas em cadernos que são montados e costurados (ou colados) em uma capa. Todos esses elementos, salvo a encadernação com capa de papelão, já existiam antes do surgimento do livro cartonero. Há, portanto, uma grande continuidade entre o livro moderno e o livro artesanal com capa de papelão. Mas há também algumas mudanças significativas na cultura do impresso com a chegada dessa nova modalidade de edição.

O modelo cartonero se sobrepõe ao modelo tradicional de edição e distribuição de livros, mas introduz técnicas e práticas muitas vezes já abolidas no mundo editorial. É comum, por exemplo, o recurso a técnicas mais artesanais de multiplicação, como a xilografia, o stencil, a serigrafia ou o carimbo, permitindo que se possa imprimir sobre o papel ou o papelão e produzindo exemplares únicos, que não se repetem. Cabe destacar também que certas práticas da indústria editorial foram adaptadas para os novos tempos pelos cartoneros. Os editores, por exemplo, trabalham, via de regra, com direitos autorais cedidos gratuitamente pelos autores ou com obras que tenham caído em domínio público. Trata-se, na maioria dos casos, de livros que não trazem código de barras ou ISBN, o International Standard Book Number, sistema internacional de identificação de livros, comungando com a filosofia inerente às licenças Creative Commons, que permitem a cópia e compartilhamento com menos restrições que o tradicional “todos os direitos reservados”.

Ao contrário da grande diversidade de formatos encontrada na indústria editorial, os cartoneros têm preferência pelas soluções mais econômicas. O formato mais utilizado nesse meio é o tradicional 14 cm x 21 cm, facilmente encontrado em qualquer papelaria sob a forma de resmas de papel A4. Desde o primeiro momento, quando produziam o miolo dos livros em impressoras domésticas ou em fotocopiadoras, os editores cartoneros optaram pela folha de papel A4 (21 cm x 29 cm), que, dobrada ao meio, resulta em duas folhas no formato A5 (14,8 cm x 21 cm). Isto permite que se chegue a um livro que pode ser publicado praticamente por qualquer pessoa, tornando acessível a todos uma máquina expressiva que era dominada por um limitado número de especialistas.

É preciso destacar também que o perfil dos editores cartoneros é bastante diversificado, mais do que o dos editores independentes ou indie. Alguns são jovens, outros, nem tanto. Alguns investem no desenvolvimento de um produto próprio que se restringe à sua obra pessoal, outros se dedicam à construção de um rico catálogo de autores. Alguns poucos trabalham com edições de 300 exemplares ou mais. A maioria, contudo, optou por imprimir em pequena escala, com tiragens reduzidas de 50 exemplares, ou ir produzindo à medida que chegam os pedidos. A diferença entre os selos cartoneros muitas vezes tem a ver com o território onde estão sediados e com a língua das publicações. Alguns estão voltados para autores locais e buscam fortalecer determinados aspectos da cultura popular. Outros investem na literatura latino-americana em geral ou mesmo em obras traduzidas que publicam em edições bilíngues. Os exemplos se multiplicam. Enquanto a decana Eloísa Catonera já conta em seu catálogo com vários títulos de autores brasileiros lançados em espanhol e português, a sevilhana Ultramarina Cartonera & Digital publica obras como Village of stones/Pueblo de piedras, um livro de poesia bilíngue, escrito pelo britânico Brian Lee e traduzido para o espanhol por José Manuel Camacho.

Se, por um lado, alguns selos editoriais têm longa trajetória e um catálogo de mais de cem títulos,1 1 Eloísa Cartonera publicou mais de 190 títulos em 17 anos e Dulcineia Catadora publicou aproximadamente 120 mil exemplares de quase 130 títulos em pouco mais de dez anos, conforme números informados no site da editora. por outro, não são raros os empreendimentos cartoneros de existência efêmera, que desaparecem após a publicação de dois ou três títulos, conforme já observamos anteriormente.

Cabe dizer também que não contamos com muitos dados disponíveis sobre o universo cartonero. Considerando-se que a maioria dessas editoras não existe formalmente como pequenas empresas e que muitas não chegam a ter um controle mais rigoroso sobre o fluxo de vendas, é bastante difícil trabalhar com dados sobre a comercialização de seus títulos. Geralmente, sem contar com lojas físicas (uma rara exceção é a Eloísa Cartonera, que, por muitos anos, teve uma banca de revistas na Avenida Corrientes dedicada exclusivamente a expor e a vender seus livros), os selos cartoneros participam de feiras de livros ou eventos de curta duração e vendem também em páginas na internet ou nas redes sociais. Daí a necessidade de destacarmos a importância descomunal dos meios eletrônicos para a estrutura de trabalho desses pequenos empreendimentos cujas propaganda, distribuição e vendas são operadas através do Facebook, do Instagram ou de websites próprios.

No que se refere às características temáticas de seus catálogos, alguns estão mais interessados em tradução. Muitas vezes traduzem os livros que queriam ler e não encontravam no catálogo das editoras tradicionais. Uns poucos trabalham com divulgação científica, como é o caso da Vera Cartonera (Santa Fe, Argentina), outros com literatura infantil (Eloísa Cartonera e a Editora Cartonera Amarillo, Rojo y Azul, da cidade de Córdoba, Argentina, onde se desenvolve também um trabalho com crianças do ensino fundamental). Mas a grande prioridade de quase todas é mesmo a publicação de poetas narradores latino-americanos.

Quanto ao aspecto financeiro, os editores cartoneros que constituem o grupo mais numeroso constroem seus empreendimentos sem esperar qualquer ajuda, embora seja importante ressaltar que algumas dessas editoras não deixam de manter relações com instituições públicas ou organizações não governamentais. Os exemplos mais frequentes nos mostram vínculos com universidades, muitas vezes com a cartonera assumindo o status de projeto de extensão, como é o caso da editora argentina Vera Cartonera ou da mato-grossense Curupira Cartonera. Outras concorrem a editais, e, entre estas, poderíamos destacar o exemplo da Cartonera das Iaiá, que atua na cidade de Cachoeira e municípios vizinhos do Recôncavo baiano, como São Félix, Acupe de Santo Amaro e Saubara. Alguns poucos editores se dedicam às cartoneras de maneira exclusiva. A maioria tem outras ocupações e do seu trabalho em diferentes profissões tiram recursos para financiar alguns projetos que não dão retorno regular. Talvez possamos dizer sobre algumas cartoneras aquilo que Raúl Marcó Pont Lalli e Cecilia Vilchis Schöndube dizem sobre as independentes em geral: “El sentido de independencia es lo que caracteriza a este sector. Rara vez el autoempleo es un paso para ocupar un puesto en una empresa mayor; generalmente vienen de experiencias en grupos editoriales grandes, a los que pueden regresar ocasionalmente” (Pont Lalli e Vilchis Schöndube, 2012PONT LALLI, Raúl Marcó del; VILCHIS SCHÖNDUBE, Cecilia (2012). Editores independientes jóvenes. In: GARCÍA CANCLINI, Néstor; URTEAGA, Maritza (Org.). Cultura y desarrollo: una visión crítica desde los jóvenes. Buenos Aires: Paidós. p. 91-133., p. 112).

Apesar de sua diversidade, podemos identificar três grandes grupos de empreendimentos cartoneros: os projetos individuais, os coletivos cartoneros e as cartoneras universitárias, como La Sofía Cartonera (Córdoba, Argentina), Vera Cartonera (Santa Fe, Argentina), Malha Fina Cartonera (São Paulo/SP) e Curupira Cartonera (Tangará da Serra/MT).

Algumas cartoneras se definem como selos editoriais; outras, como coletivos ou cooperativas. Em certos casos, classificam a si mesmas como independentes ou artesanais para diferenciar-se do establishment editorial, tido como seletivo e elitizado. Em outros casos, temos projetos de intervenção social, cultural e educativa, o que fica mais claro no exemplo das cartoneras que atuam ou atuaram junto a instituições prisionais na Argentina, no México, no Brasil ou na Espanha. Mas, chame-se Cartonera, Catadora, Cartonnière ou Cardboard Publishing House, todas elas, apesar daquilo que as particulariza, reconhecem-se como parte da grande rede de editoras artesanais conhecidas como cartoneras.

O termo cartonero dá uma falsa ideia de unicidade e obviamente não pressupõe o reconhecimento da diversificação de características dos projetos que compõem o meio. Apesar disso, esse termo tão popularizado, por mais impreciso que seja, serve para agrupar e estabelecer uma identidade reconhecível para editoras tão diferentes. Todas são cartoneras, desde as que trabalham com publicações caseiras de um único autor, com páginas datilografadas e copiadas numa papelaria do bairro, até as que disponibilizam em sítios eletrônicos próprios ou na Amazon livros que apresentam todas as características das publicações das médias ou grandes editoras, salvo a particularidade da capa de papelão, mas podendo inclusive algum título circular como brochura simples sem a capa de papelão. Este é o caso da pioneira Eloísa Cartonera (Ensayo de pueblo nuevo, 2018) e também da Cartonera das Iaiá (Entre o rio e a praça, 2018; Migrantes, 2019) e da Ganesha Cartonera (A poesia falada invade a cena em Sobral, 2019; Clíris, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera.).

A maioria dos que fazem parte do movimento cartonero são, ao mesmo tempo, editores, capistas, designers, distribuidores e administradores do seu negócio. Geralmente, instalam pequenos ateliês em suas próprias casas e passam a ter um pequeno faturamento, começando a participar de feiras literárias e a realizar vendas on-line, algo que caracteriza a quase todas as cartoneras. Limitados a pouquíssimas pessoas, esses pequenos empreendimentos culturais têm maior riqueza em motivação e criatividade que em capital. O que os define é a rede de solidariedade, sendo bastante comum a troca de títulos e experiências ou o compartilhamento de projetos, o que ocorre quando mais de uma editora cartonera investe na publicação de um mesmo título em várias cidades ou países. Não há um foco prioritário no lucro ou na competição com outras editoras, cartoneras ou não. O universo cartonero é, por excelência, autônomo, coletivo e solidário. Poderíamos definir tais empreendimentos como o contraponto das editoras comerciais:

Lo que no necesariamente aparece en el caso de los editores es su interés por probarse en el mercado; al menos no a través de los modelos establecidos, que se consideran tomados por grandes grupos. Hay un interés claro por buscar esquemas diversos para un público reducido, como ventas nocturnas, eventos de uno o pocos días, aprovechando los espacios que se van abriendo (Pont Lalli e Vilchis Schöndube, 2012PONT LALLI, Raúl Marcó del; VILCHIS SCHÖNDUBE, Cecilia (2012). Editores independientes jóvenes. In: GARCÍA CANCLINI, Néstor; URTEAGA, Maritza (Org.). Cultura y desarrollo: una visión crítica desde los jóvenes. Buenos Aires: Paidós. p. 91-133., p. 114)

Trata-se de uma grande rede que reúne um grupo de pessoas sediadas em diferentes lugares do mundo, mas com ideias afins: a edição de livros como tarefa artesanal e a dedicação à literatura. O que caracteriza o movimento cartonero é a cooperação, a parceria e o estabelecimento de estreitos laços em rede. Recorrer à lógica dos “campos” (Bourdieu, 1999BOURDIEU, Pierre (1999). A economia das trocas simbólicas. Introdução, seleção e organização Sergio Miceli. Tradução de Sergio Miceli et al. 5. ed. São Paulo: Perspectiva.), com sua realidade de lutas e conquista de posições, pode não ser a melhor forma de abordar o fenômeno. As cartoneras são mais bem compreendidas quando pensamos em “mundos”, no sentido de âmbitos de cooperação e colaboração que lhe foi atribuído por Howard Becker em Mundos da arte (2008BECKER, Howard S. (2008). Mundos da arte. Tradução de Luis San Payo. Lisboa: Livros Horizonte.).

Políticas editoriais e a virada da representação

Como uma modalidade de edição de baixo custo destinada a produzir artesanalmente e com material reciclável obras literárias de autores iniciantes, a experiência cartonera responde a uma necessidade de públicos que não encontram espaço nas editoras convencionais nem podem arcar com os custos de uma autoedição em gráficas ou pequenas editoras comerciais. Em Sobre livros cartoneros: experiências em publicação de livros de papelão, Daniele Carneiro e Juliano Rocha, fundadores da Magnolia Cartonera (Curitiba), mostram como o ato criativo - elemento nuclear para o movimento cartonero - é também uma aposta na superação dos limites técnicos que regem a atividade editorial, fazendo com que esta assuma uma dimensão marcadamente democrática:

Assim como a internet dá voz para todas as vozes, os livros cartoneros dão voz a todas as pessoas, sejam elas escritoras, poetas, artistas, educadoras, trabalhadoras da reciclagem ou anônimas, que fazem dessas publicações um meio para que suas obras sejam conhecidas e circulem entre as leitoras e leitores (Carneiro e Rocha, 2019CARNEIRO, Daniele; ROCHA, Juliano (2019). Sobre livros cartoneros: experiências em publicação de livros de papelão. Curitiba: Magnolia Cartonera., p. 18).

O livro cartonero se origina, portanto, em lugares que não estiveram comumente associados ao fazer literário e passa a chegar a lugares onde era um objeto cultural raro ou bem pouco frequente. Trata-se de um projeto que pretende problematizar e repensar o alcance das vozes silenciadas, bem como democratizar e redimensionar a difusão da literatura a partir das políticas editoriais promovidas pelos diferentes membros da imensa rede de quase 300 editoras que integram o movimento cartonero no mundo inteiro. Segundo Carneiro e Rocha, esse é um meio eficaz de publicar obras literárias de forma totalmente autônoma, fazendo chegar o objeto livro e as técnicas de edição aos lugares que têm demanda desses produtos e serviços:

Os livros e os artistas independentes vieram para preencher lacunas ainda não descobertas pelo mercado editorial e atender à demanda das pessoas por conteúdos que ainda não foram considerados e desenvolvidos, mas que são necessários e estão fazendo falta nas nossas estantes, livrarias e bibliotecas (Carneiro e Rocha, 2019CARNEIRO, Daniele; ROCHA, Juliano (2019). Sobre livros cartoneros: experiências em publicação de livros de papelão. Curitiba: Magnolia Cartonera., p. 31).

Trata-se agora de uma nova concepção do fazer editorial. As pequenas, as independentes e as cartoneras reagem diante da concentração da indústria editorial nas mãos de grandes grupos que dominam quase todo o mercado, conforme assinala José Luis de Diego, um grande estudioso do mercado editorial de literatura na Argentina:

El proceso de concentración ha generado, como en otros países, una creciente polarización; esto es, la proliferación de numerosos emprendimientos editoriales pequeños que han encontrado, en la especialización de sus catálogos, las razones para su nacimiento y supervivencia. Concebidos como proyectos culturales, han aprovechado la reducción de costos producto de las novedades que ha aportado la tecnología y desarrollado políticas de edición que apuntan precisamente a aquellos “nichos” de la cultura que los grandes grupos han omitido o descartado (Diego, 2010DIEGO, José Luis de (2010). Un itinerario crítico sobre el mercado editorial de literatura en Argentina. Iberoamericana, v. 10, n. 40, p. 47-62. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bVAXuv Acesso em: 18 fev. 2020.
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, p. 59).

Fernando Larraz estrutura seu trabalho “¿Un campo editorial? Cultura literaria, mercados y prácticas editoriales entre Argentina y España” seguindo uma abordagem similar à de José Luis de Diego. Busca entender como a ação das editoras independentes derivam na criação de um ambiente propício à construção de certas carreiras e à difusão de certos trabalhos artísticos, o que motiva a assimilação de autores por parte de um mercado fortemente concentrado e com muito poucas possibilidades de inserção para aqueles que têm um perfil diferente do dominante:

Los editores, como industria, juegan por tanto en el campo de la cultura y no son meros gestores de ella. Su mediación no es neutral […]; su labor incide incuestionablemente sobre la literatura. Detentan un poder central: convertir en materia y hacer visibles para el público a los textos y a los autores. Son, en realidad, quienes dirimen qué texto es publicable y bajo qué forma y cuál no lo es. Son árbitros del campo literario, pero unos árbitros sui generis porque también participan -y de manera activa- en la fijación de las normas. […] Dado que el libro debe someterse a su realidad industrial y comercial, el editor es depositario de una especial responsabilidad en los procesos de comunicación literaria (Larraz, 2014LARRAZ, Fernando (2014). ¿ Un campo editorial? Cultura literaria, mercados y prácticas editoriales entre Argentina y España. Cuadernos del CILHA, ano 15, n. 21, s.p. Disponível em: Disponível em: http://bit.ly/2NnA0RE Acesso em: 18 fev. 2020.
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, s. p.).

Para olhares menos perspicazes, o universo da edição e a constituição do campo literário são fenômenos aparentemente dissociados, mas, se dedicarmos maior atenção ao assunto, perceberemos que estabelecem uma relação muito direta entre si.

Acostumados a considerar as dinâmicas editoriais a partir das práticas das grandes editoras e conglomerados, é possível que não estejamos preparados para assistir a um momento de reconfiguração do próprio campo literário como consequência da ação de pequenas editoras independentes ou artesanais. Contudo, não são poucos os que defendem o uso das edições cartoneras como forma de fugir à ascendência que as grandes editoras têm sobre o gosto do leitor e sobre a própria noção do que venha a ser literatura.

O lugar dos que monopolizaram a maioria dos recursos para poder se expressar com exclusividade quase absoluta corresponde ao recorte hegemônico do campo literário: são homens, brancos, de classe média alta, heterossexuais e, não raro, moradores de determinadas capitais e de determinados bairros de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte; Rio de Janeiro: Editora da UERJ.). A tendência hegemônica do campo literário reflete estruturalmente a composição da elite ilustrada da qual emergem nossos escritores.

Na contramão dessa tendência, editando vozes que provêm de estratos subalternizados, as cartoneras se mostram muito mais próximas de atores infames que representam em seus textos a diversidade do real que ficou “fora do retrato da [nossa] literatura”, conforme a expressão cunhada por Regina Dalcastagnè e Anderson Luís Nunes da Mata (2012DALCASTAGNÈ, Regina; MATA, Anderson Luís Nunes da (Org.) (2012). Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte.). Na medida em que surge como fruto de uma nova proposta estética e operacional para o mundo da edição, o catálogo que vem sendo construído pelas pequenas editoras artesanais responde à denúncia das desigualdades sociais, do sexismo e do racismo como elementos estruturais da sociedade, associando-se às estratégias dos “fracos” nas lutas pela reconfiguração do campo literário.

Em um mundo cada vez mais dividido entre visíveis e invisíveis, entre aqueles que são ouvidos e aqueles que são ignorados, entre os que se representam e os que são representados, o projeto cartonero assume uma importância fundamental, despontando como uma alternativa para publicar aquilo que as grandes editoras acreditam que não é vendável, numa atitude que insiste em desconsiderar a enorme demanda por esse tipo de material.

Postura autônoma e coragem de arriscar em autores iniciantes com edições de pequenas tiragens são fatores que apontam novas possibilidades de atuação dos indivíduos e coletivos nas práticas do campo. No poema “Enfoque subjetivo”, segundo texto do livro que divide com Elizandra Souza, o poeta Akins Kintê fala da superação das barreiras invisíveis que impedem as “letras pretas” de preencherem a “página branca”:

Manchei de preto a página branca quebrando as barreiras invisíveis invadi esse espaço que finge ser livre rabisquei interrogando e cheio de exclamação: Se somos tantos! Onde estamos todos? entre parênteses e cheio de reticências colchetes tranca revolta em garrancho página branca oprime letras pretas pra não deixar de ser rascunho e ter sempre dentro de si um ponto final (Kintê, 2007KINTÊ, Akins (2007). Enfoque subjetivo. In: KINTÊ, Akins; SOUZA, Elizandra (2007). Punga. São Paulo: Edições Toró., p. 13)

Assim como Ferréz - que só foi publicado pela primeira vez depois que um jornalista da Folha de S. Paulo escreveu uma matéria em que dizia: “Desempregado do Capão Redondo escreve romance baseado em histórias verdadeiras de um dos bairros mais violentos de SP; livro, sem editora” (Finotti, 2000FINOTTI, Ivan (2000). Bem-vindo ao "fundo do mundo". Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 6 jan. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0601200006.htm Acesso em: 18 fev. 2020.
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, s.p.) -, Kintê e vários outros nomes que emergiram da Literatura Marginal e do movimento de saraus de poesia da periferia de São Paulo só conseguiram publicar seus primeiros livros em selos independentes. Muitas dessas pequenas editoras foram criadas por eles próprios com a finalidade de publicar narradores, poetas e slammers da periferia. Este é o caso das Edições Toró (fundada por Allan da Rosa, em 2005), do Selo Povo (criado por Ferréz, em 2008) e do Selo do Burro, que surgiu dentro do Sarau do Burro (Vila Madalena), em 2011, e já publicou nomes de destaque para a cena da poesia escrita por mulheres, como a slammer Luiza Romão, que lançou por esta casa publicadora seus dois primeiros livros: Coquetel Motolove (2014) e Sangria (2017).

O surgimento de novos fatores e de novos atores transformou o perfil do mercado editorial latino-americano no final do século XX e nos anos iniciais do século XXI. A partir de um desses marcadores de época (a emergência das editoras independentes e artesanais), deparamo-nos com a seguinte questão: em que medida a publicação está limitada apenas por um conjunto de condicionamentos materiais que se interpõem entre o desejo do autor e o livro colocado diante do olhar do leitor? Talvez as possibilidades maiores ou menores de publicar se deem em função da posição que as autoras e os autores ocupam no sistema de relações de produção artística. E nesse sentido, o papel dos editores como instâncias de legitimação interna do campo literário ganha importância fundamental, pois o próprio ato de publicar tem seus reflexos na medida em que concede a estes artistas certo grau de reconhecimento ou consagração. Contudo, o impacto cultural das políticas editoriais no campo literário é bastante variável e sempre foi difícil de quantificar ou avaliar, costuma destacar Diego (2010DIEGO, José Luis de (2010). Un itinerario crítico sobre el mercado editorial de literatura en Argentina. Iberoamericana, v. 10, n. 40, p. 47-62. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bVAXuv Acesso em: 18 fev. 2020.
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). Isso não o torna, porém, uma questão menos importante, e poderíamos mesmo dizer que essa é a questão que atravessa todo este artigo.

A importância do uso mais independente das ferramentas de edição por parte de pequenos grupos que lançam mão da lógica do faça-você-mesmo para publicar suas próprias obras e as de outros autores pode ser avaliada através das transformações causadas pela interferência desses novos atores no campo editorial.

A existência de um modelo alternativo de edição nos anos iniciais do século XXI foi um recurso valioso e extremamente impactante para a cena editorial e literária argentina. O primeiro romance do hoje consagrado escritor Luciano Lamberti se chama Los campos magnéticos e foi publicada pela artesanal Sofía Cartonera, sediada na cidade de Córdoba. Por conta de exemplos como esse, muitos críticos consideram determinante a presença das independentes no cenário editorial do início do século XXI para o surgimento da Nueva Narrativa Argentina (Souza, 2014SOUZA, Lívia Santos de (2014). Cartografias líquidas da narrativa argentina: antologias de novos autores e a reestruturação do campo literário. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

No âmbito da literatura hispano-americana, esse mundo editorial alternativo foi abordado por vários estudos recentes (Diego, 2010DIEGO, José Luis de (2010). Un itinerario crítico sobre el mercado editorial de literatura en Argentina. Iberoamericana, v. 10, n. 40, p. 47-62. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bVAXuv Acesso em: 18 fev. 2020.
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; Drucaroff, 2011DRUCAROFF, Elsa (2011). Los prisioneros de la torre: política, relatos y jóvenes de la postdictadura. Buenos Aires: Emecé.; Pont Lalli e Vilchis Schöndube, 2012PONT LALLI, Raúl Marcó del; VILCHIS SCHÖNDUBE, Cecilia (2012). Editores independientes jóvenes. In: GARCÍA CANCLINI, Néstor; URTEAGA, Maritza (Org.). Cultura y desarrollo: una visión crítica desde los jóvenes. Buenos Aires: Paidós. p. 91-133.; Larraz, 2014LARRAZ, Fernando (2014). ¿ Un campo editorial? Cultura literaria, mercados y prácticas editoriales entre Argentina y España. Cuadernos del CILHA, ano 15, n. 21, s.p. Disponível em: Disponível em: http://bit.ly/2NnA0RE Acesso em: 18 fev. 2020.
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; Souza, 2014SOUZA, Lívia Santos de (2014). Cartografias líquidas da narrativa argentina: antologias de novos autores e a reestruturação do campo literário. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Nesses textos, apesar de suas diferentes intenções e abordagens, os pesquisadores trazem interrogantes sobre o papel do campo editorial e seus reflexos na literatura atual.

No caso da literatura brasileira, embora o tema tenha merecido menor atenção entre os críticos, não se pode negar que o papel cultural (mas também social e político) das pequenas editoras ganha mais destaque a cada ano.

Entendendo literatura como bem mais que um conjunto de textos poéticos, narrativos, cronísticos e dramáticos, ao mesmo tempo que, permanecendo atentos a uma série de outras preocupações, percebemos o importante papel que tiveram as pequenas editoras para a consolidação do novo perfil da literatura brasileira. Basta ver o caso de Conceição Evaristo, que teve a maior parte das suas obras publicadas por pequenas editoras. Conceição começou a publicar seus contos e poesias nos Cadernos Negros, do selo Quilomboje, desde o volume 13, de 1990. Depois, vieram as editoras Mazza (Ponciá Vicêncio, 2003; Becos da Memória. 2006) e Nandyala (Poemas da recordação e outros movimentos, 2008; Insubmissas lágrimas de mulheres, 2011), em alguns casos com a edição financiada integralmente pela própria autora. Cabe destacar que se trata de duas pequenas editoras de Belo Horizonte com catálogos temáticos dedicados à busca da visibilização da autoria negra. Quando Conceição já não era mais uma iniciante e levava duas décadas e meia publicando seus textos, vieram os livros lançados no Rio de Janeiro pela Editora Pallas (Olhos d'água, 2014; Ponciá Vicêncio, 2017; Becos da Memória, 2017), reflexos de um momento em que essa casa publicadora “racializou” seu catálogo, em palavras da própria Conceição. Só então, com Olhos d’água (Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2014), veio o devido reconhecimento e o Prêmio Jabuti.

Enquanto a Mazza surgiu em 1981, a Nandyala foi fundada em 2006 por Iris Amâncio para publicar obras de autoria negra. Desde então investe nas leituras da diversidade, com foco específico em questões de raça e gênero, privilegiando os seguintes temas em seu catálogo: respeito, África, etnias, consciência negra, resistência, antirracismo, mulheres negras, ancestralidade, outros saberes e corporeidades. Hoje, a pequena editora tem no catálogo Dina Salústio, Cidinha da Silva, Sojourner Truth, Miriam Alves e Paulina Chiziane, entre muitas outras.

“Escrever para as mulheres brancas é um ato político. Publicar é um ato político para as negras”, disse Conceição Evaristo em uma conferência durante o XVIII Seminário Internacional Mulher e Literatura, em agosto de 2019, na cidade de Aracaju. Quem se interessa pelas novas configurações do campo literário não pode desconsiderar o impacto cultural das pequenas casas publicadoras. As políticas editoriais estiveram voltadas para a difusão de certo conjunto de textos e autores, não de outros, derivando no silenciamento e na sub-representação dos demais. Muitas vezes os novos cenários da literatura brasileira só foram possíveis por conta do surgimento de formas alternativas de produção e circulação do objeto livro. Poderíamos dizer que, quando muda o meio, muda o discurso.

A publicação ou a reedição de certos autores e obras por grandes editoras pode, inclusive, ser consequência da ação das independentes e cartoneras. Algumas propostas para editar obras de autores como Ferréz, Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus surgiram como consequência da visibilidade alcançada por edições independentes ou cartoneras. Não é raro que a decisão de grandes editoras para investir em um novo autor seja tomada depois que suas obras foram testadas em edições de pequenas tiragens. Esse é um procedimento comum no mercado da edição, que não arrisca muito ao escolher os caminhos a serem seguidos pela política editorial, conforme assinalam os estudos desenvolvidos por Diego (2010DIEGO, José Luis de (2010). Un itinerario crítico sobre el mercado editorial de literatura en Argentina. Iberoamericana, v. 10, n. 40, p. 47-62. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bVAXuv Acesso em: 18 fev. 2020.
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). Tal prática continua a ser uma realidade nos tempos atuais, tanto na Argentina quanto no Brasil. Uma parte significativa da poesia de Carolina Maria de Jesus, que permanecia inédita até 2019, só veio à luz a partir do trabalho de duas pequenas editoras fundadas na periferia do Rio de Janeiro (a Desalinho Publicações, editora criada em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e a Ganesha Cartonera, selo editorial sediado no Morro da Babilônia, uma das favelas mais antigas do Rio de Janeiro). Somente após a seleção de poemas de Carolina Maria de Jesus intitulada Clíris: poemas recolhidos (2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera.) vir à luz pelas mãos dos editores que estão à frente desses dois selos independentes em uma pequena tiragem de livros artesanais, a maior editora do Brasil resolveu investir na reedição desse título da autora de Quarto de despejo.

Considerações finais

A edição cartonera é fruto de um projeto preocupado em visibilizar e incluir a todas as pessoas. Através desse modelo de publicação, qualquer um pode fazer circular sua voz livremente, sem as restrições do capital econômico ou aquelas derivadas da falta de acesso aos recursos técnicos. Pode-se dizer que a produção de livros cartoneros é uma atividade estratégica para colocar as máquinas de representação ao alcance de todos. Com os livrinhos com capa de papelão, a literatura encontra um suporte material bastante democrático.

A pergunta mais pertinente para os dias que correm talvez seja: “Quem representa quem?” ou, formulando melhor: “Quem tem o poder de representar e de colocar essas representações para circular em meio a um mundo bastante diverso de receptores?”. No âmbito literário, o poder das instâncias de consagração e construção de pertencimento precisava ser confrontado. Com o advento do movimento cartonero, um grupo cada vez mais amplo foi capaz de se apropriar dos processos de produção de bens simbólicos, entendidos aqui como máquinas de representação.

As cartoneras se projetam como uma forma de multiplicação de instâncias de consagração, atuando junto a autores iniciantes que estão competindo por legitimidade cultural. Na contramão de um mercado editorial dotado de tendências e interesses próprios, o movimento cartonero fortalece a esfera autônoma do campo literário.

Surgindo na interseção entre o movimento social, o projeto comunitário e as disputas artística e culturais, esse fenômeno do mundo editorial contemporâneo conduz à constituição de um campo artístico mais autônomo, no qual a produção não está subordinada aos interesses econômicos.

Dedicados a atribuir uma posição no campo artístico a certa fração invisibilizada dos que estão produzindo seus próprios conteúdos, contando suas próprias histórias sem passar pela chancela do mercado ou pela avaliação dos editores estabelecidos, os selos cartoneros constroem a legitimidade de outros atores que passam a integrar as esferas da vida literária. Taxistas, mecânicos de automóvel, empregadas domésticas, agricultores, travestis, professoras primárias, cobradoras de ônibus, estudantes do ensino fundamental, sujeitos privados de liberdade, enfim, qualquer pessoa comum pode assumir a condição de escritor através dessa nova tática relacional que se instaura a partir do desenvolvimento de um sistema alternativo de produção e circulação de bens simbólicos.

Referências

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  • 1
    Eloísa Cartonera publicou mais de 190 títulos em 17 anos e Dulcineia Catadora publicou aproximadamente 120 mil exemplares de quase 130 títulos em pouco mais de dez anos, conforme números informados no site da editora.
  • Organizadoras:

    Flávia Denise de Magalhães e Paula Renata Moreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2020
  • Aceito
    18 Nov 2020
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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