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Contra todos os fogos, o fogo: vingança como resistência em Antonio Callado

Against all fires, fire: revenge as resistance in Antonio Callado

Contra todos los fuegos, el fuego: la venganza como resistencia en Antonio Callado

Resumo

Este ensaio analisa a reportagem O esqueleto na lagoa verde (1953CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras .), e os romances Quarup (1967CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio.) e A expedição Montaigne (1982CALLADO, Antonio (1982/2014). A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio .), de Antonio Callado, a partir do tema da vingança como possibilidade de resistência e construção de futuro frente ao autoritarismo do regime militar e ao processo colonial. Os personagens indígenas e os camponeses representam a disputa por terras aliada a uma disputa discursiva e de saberes, por isso os gestos incendiários de revolta são compreendidos como modos de questionar quem tem direito à violência no Brasil e a quem interessa o discurso de paz.

Palavras-chave:
vingança; povos indígenas; camponeses; regime militar

Abstract

This essay analyzes the report O esqueleto na lagoa verde (1953CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras .), and the novels Quarup (1967CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio.) and A expedição Montaigne (1982CALLADO, Antonio (1982/2014). A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio .), by Antonio Callado, based on the theme of revenge as a possibility of resistance and construction of a future against the authoritarianism of the military regime and the colonial process. The indigenous peoples characters and the peasants represent the dispute for land allied to a discursive and knowledge dispute, therefore the incendiary gestures of revolt are understood as ways of questioning who has the right to violence in Brazil and who is interested in the discourse of peace.

Keywords:
revenge; indigenous peoples; peasants; military regime

Resumen

Este ensayo analiza el reportaje O esqueleto na lagoa verde (1953CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras .) y las novelas Quarup (1967CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio.) y A expedição Montaigne (1982CALLADO, Antonio (1982/2014). A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio .), de Antonio Callado, a partir del tema de la venganza como posibilidad de resistencia y construcción de futuro contra el autoritarismo del régimen militar y el proceso colonial. Los personajes indígenas y los campesinos representan la disputa por la tierra aliada a una disputa discursiva y de conocimiento, por lo que se entienden los gestos incendiarios de la revuelta como formas de cuestionar quiénes tienen derecho a la violencia en Brasil y a quiénes les interesa el discurso de paz.

Palabras-clave:
venganza; pueblos indígenas; campesinos; régimen militar

Eu sou rebelde

E faço questão de o ser.

Tenho fome, tenho ódio

E não me deem uma metralhadora

Eliane Potiguara

Se queres encontrar o fogo, procura-o nas cinzas.

Provérbio Hassídico

O primeiro livro de Antonio Callado a ser publicado foi a reportagem O esqueleto na lagoa verde, de 1953CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras .. Nele, conta-se a história do coronel britânico Percy Harrison Fawcett, que veio ao Brasil realizar uma expedição em busca de uma cidade perdida e acabou desaparecendo no Xingu, em 1925, junto com seus companheiros de viagem. Fawcett cruzava o Mato Grosso com seu filho mais novo, Jack, e um amigo deste, Raleigh Rimell, em direção ao norte da Bahia, onde se situaria a cidade que fora documentada por bandeirantes no século XVIII. Em janeiro de 1952, Antonio Callado vai ao Xingu, como membro de uma expedição formada pelos Diários Associados, acompanhando Brian Fawcett, o filho mais velho do coronel, que havia recebido novas pistas do paradeiro dos restos mortais dos britânicos. Em 1928, o explorador estadunidense George Miller Dyott já havia refeito os passos de Fawcett e foi capaz de reunir informações importantes sobre o percurso da expedição, sem, no entanto, precisar o que teria de fato ocorrido com o grupo de exploradores. Dentre as informações obtidas por Dyott, estava a de que o coronel teria chegado ao rio Culuene, um dos afluentes do Xingu, e possivelmente lá teria ocorrido sua morte. Brian Fawcett, baseando-se em registros feitos pelo pai que indicavam seu trajeto, acreditava que os expedicionários jamais haviam chegado ao Culuene, desaparecendo perto do rio Manitsauá, muito distante do ponto indicado por Dyott.

O grande motivador para a realização da nova expedição em busca dos restos mortais de Fawcett, ocorrida em 1952 e da qual Callado participou, foi uma confissão obtida por Orlando Villas-Bôas junto aos calapalo de que eles teriam assassinado o britânico e o enterrado próximo a uma lagoa à beira do rio Culuene. O relato dos calapalos - que sempre haviam negado participação na morte de Fawcett até então, sugerindo, na verdade, que a culpa seria dos nafuquás, que, por sua vez, culpavam os suiás - se encaixava perfeitamente no que Dyott apurou décadas antes, reforçando a hipótese de que o coronel registrava o percurso da expedição com informações falsas para despistar outros viajantes. A reportagem descreve uma viagem exaustiva para os brancos, em que as botas enlameadas pesavam como chumbo numa caminhada que parecia infinita até a cova meio rasa e certamente muito antiga indicada pelos calapalos. A escavação, tensa e sinistra, observada pela lúgubre sombra esverdeada da floresta, era acompanhada por Villas-Bôas, Brian Fawcett e os jornalistas que compunham a expedição. Dela, revelou-se uma ossada, no ponto muito próximo do sinalizado por Dyott anos antes. Apesar de tudo indicar que aquela se tratava da sepultura do coronel Fawcett, logo se comprovou que os ossos não eram do britânico, dada uma diferença considerável de estatura, e, até hoje, não se sabe ao certo o que se passou com os exploradores, tampouco seus restos mortais foram localizados.

A reportagem de Antonio Callado sinaliza logo de início uma aproximação com o romance policial, mesmo que reconheça este traço com certa ironia, já que a obra anuncia de partida que se constitui mais de perguntas do que de respostas. E ainda que o tema em si conduza o jornalista para um tom de suspense investigativo, é determinante sobretudo o aspecto ensaístico do livro, em que páginas sobre a personalidade de Fawcett se mesclam a uma reflexão sobre os calapalos e a presença não indígena na floresta, em uma sutil, embora contundente, apresentação de um dos grandes temas da obra posterior de Antonio Callado: a crítica sobre a formação de nossa intelectualidade. O explorador é um representante do Império Britânico e sua ideologia de dominação, que encontra nos registros do passado colonial brasileiro bússola e inspiração para sua aventura de conquista, empenhado, como Callado frisa, não tanto na ambição do enriquecimento, mas na fama e na glória. O desaparecimento de Fawcett é um meio de se repensar o destino da nação, que “vê a catástrofe a partir do espírito inglês” (Arrigucci Jr., 2010ARRIGUCCI JR., Davi (2010). O sumiço de Fawcett [posfácio]. In: CALLADO, Antonio. O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras., p. 108), em uma jornada ameaçadora, ao mesmo tempo mãe e filha da perdição. Os ossos anônimos que foram encontrados pela expedição revelam o mistério enfrentado pelo autor sobre a investigação do próprio país, que, assim como Fawcett, parece atuar para não ser encontrado, apagando os vestígios de seu itinerário. Um país que, embora tudo indique uma resolução para seus questionamentos, sempre escapa de ser apreendido de todo, evidenciando o fracasso da crença em um sentido único de Brasil.

A floresta e seus perigos falam da ideia de fundação do país e sua representação em nossas letras atendeu, no início do século XIX, ao desejo da “elite ilustrada”, próxima às camadas dirigentes do Império, de construção de um Estado-nação. Os primeiros textos românticos se prestam a marcos e mapas, que, investigando retornos e origens, se voltam a um Brasil pitoresco que cumprisse a função de resgate de um início histórico idealizado. A figura do viajante, e não raramente do viajante estrangeiro naturalista, moldou a formação do narrador da primeira ficção brasileira (Süssekind, 1990SÜSSEKIND, Flora (1990). O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras .). O texto, portanto, é, ao mesmo tempo, floresta e mapa de viagem, em que se deixam perscrutar as marcas da exploração. Futuros romances de Callado, como Quarup, de 1967CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio., e A Expedição Montaigne, de 1982CALLADO, Antonio (1982/2014). A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio ., saberão olhar novamente para a floresta, agora como lugar de disputa do que seja a nação, em que concepções românticas de pureza edênica se misturam ao atraso e à decadência nacional, e se revelam como meio para tocar a ferida da história oficial e da tradição literária (Germano, 2005GERMANO, Idilva (2005). Florestas, índios e sabiás: itinerários dos símbolos românticos da nacionalidade na ficção de Antonio Callado. Revista de Letras, Fortaleza, v. 1-2, n. 27, p. 17-26. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/17422/1/2005_art_impgermano.pdf Acesso em: 20 set. 2021.
http://repositorio.ufc.br/bitstream/riuf...
). A perdição de Fawcett como imagem das catástrofes nacionais não pode estar, portanto, dissociada do questionamento crítico sobre nossa formação intelectual, pois ele mesmo é o pincel e as tintas que, ao longo dos anos, organizaram a paisagem brasileira.

O discurso que move Fawcett a cruzar o Atlântico e a atirar-se na densa floresta em busca da mítica cidade perdida tem origem nos relatos de bandeirantes que datam de 1753. Callado faz uma genealogia do texto bandeirante, identificando como ponto de partida a história das Minas de Prata, que já se prestou a matéria romanesca para José de Alencar. Rocha Pitta, em História da América portuguesa, conta que, em 1591, Robério Dias, um poderoso e importante morador da Bahia e dono de terras que contavam com vultosas minas de prata, ofereceu ao rei acesso a seu tesouro, esperando em troca o título de marquês. O rei, achando o pedido do súdito excessivo, resolveu fazê-lo apenas administrador das minas. Robério Dias, em retorno, confundiu a expedição organizada para localizar as minas, encaminhando-a por caminhos diversos, ocultando, até mesmo de seus herdeiros, o verdadeiro destino da prata. Nas extensivas buscas pelas minas de Robério Dias, que mobilizaram familiares e bandeirantes ao longo dos séculos, um mestre do campo, chamado João da Silva Guimarães, e que havia dedicado sua vida à procura deste tesouro escondido, deixou o intrigante escrito intitulado “Relação histórica de huma occulta e grande povoação antiquissima sem moradores, que se descobrio no anno de 1753”.

O texto bandeirante atravessou os anos, perambulando entre arquivos e bibliotecas, sobrevivendo a cupins e extravios, livre do esquecimento, até cair nas mãos de Fawcett, no início do século XX, e se eternizar como mistério monumentalizante da conquista. É a barbárie documentada em cada documento da cultura, de que fala Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.). Se a memória do fogo está em cada folha que não ardeu, é verdade também que, quando se trata da história oficial e toda sua capacidade de autopreservação, fundada na escrita, como resquício da colonização jesuítica, mais do que lembrar incêndios, ela comunica que sua própria sobrevivência se dá graças às chamas que obstinadamente causa (Didi-Huberman, 2012DIDI-HUBERMAN, Georges (2012). Quando as imagens tocam o real. Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA/UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 206-219.; Taylor, 2013TAYLOR, Diana (2013). O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG.).

Ao procurar os ossos do pai na floresta brasileira, Brian Fawcett dedica-se em assegurar a integridade de sua memória. Enquanto Antonio Callado escrevia sua reportagem, já existiam livros sobre Fawcett e sua trágica aventura na selva, como Man hunting in the jungle (1930), de George Miller Dyott, E Fawcett não voltou (1944), de Edmar Morel, e Mysteries of Ancient South America (1946), de Harold T. Wilkins. No mesmo ano da publicação de O esqueleto na lagoa verde, Brian ainda organizou os diários e as anotações do pai, lançando o livro Exploration Fawcett (1953). Ele trabalha para que o pai seja lembrado pela seriedade das viagens, e que se eternize não apenas como explorador, mas como cientista. Para ele era imperativo escapar do olhar de ridicularização e excentricidade das aventuras em terras estrangeiras, em que um coronel britânico se movia em busca de cidades ciclópicas, hieróglifos gravados em rochas que só poderiam ser lidos sob a luz de certo raio de sol, atlântidas derrotadas nos trópicos. Fawcett deveria sobreviver à história como um respeitável descobridor de civilizações em ruínas, um homem da razão, enfim, um cientista.

No romance Reflexos do BaileCALLADO, Antonio (1976/2014). Reflexos do Baile. Rio de Janeiro: José Olympio ., publicado em 1976, o esforço do embaixador português em trazer os ossos de D. Pedro I ao Brasil também diz da permanência da história dos colonizadores. A chegada da ossada imperial em 1972 é convertida no romance em imposição de uma narrativa única, mostrando mais uma vez o interesse de Antonio Callado de estabelecer relação íntima e intercambiante entre fato histórico e ficção, em que possam iluminar-se mutuamente. O império mais uma vez cruza o Atlântico, agora como memória que recusa ser sepultada. Vivos, estes ossos, cujo périplo acompanhamos por boa parte da narrativa, são uma forma de esconder a repressão violenta aos revolucionários, que atuavam na guerrilha urbana contra o regime militar. Os ossos também são apresentados em Quarup como símbolo da história oficial. No primeiro capítulo do romance, intitulado “O ossuário”, os leitores logo descobrem que os ossos dos monges franciscanos que o protagonista conserva na cripta subterrânea da igreja encontram espelhamento em suas leituras. A formação intelectual de Nando, o jovem padre que se prepara para ir ao Xingu catequizar e alfabetizar os indígenas, se dá não apenas por autores1 1 Ao longo do capítulo, Nando faz referência às leituras que realizou dos seguintes autores: Santa Teresa D’Ávila, San Juan de la Cruz, Dante, Plutarco, São Mateus, São Lucas, São Jorge, Virgílio, Adriano, Suetônio, Antônio Vieira. Com relação aos indígenas, três fontes são citadas: Clóvis Lugon, Aurélio Porto e Karl von den Stein. ligados ao catolicismo, mas a realidades históricas muito distintas da que passará a viver junto aos povos xinguanos, expondo o conservadorismo da vida monástica e a desconexão com as necessidades do país. Calcificando a história, esta mesma palavra escrita é também responsável por apresentar os indígenas ao protagonista, e o faz a partir de todos os estereótipos do selvagem que moldaram o pensamento ocidental. Não por acaso, a primeira interação de Nando com os indígenas é uma encenação do mito de Adão e Eva.

Em O esqueleto na lagoa verde, Brian Fawcett, na floresta, devorado por mosquitos, entre homens que considerava incultos e atrasados, revirando túmulos que não pertenciam a ninguém, se punha a ouvir os calapalos repetirem à exaustão como mataram seu pai. Os indígenas apresentavam uma narrativa oral, que parecia confusa aos brancos por sua imprecisão, sempre acrescida de novas informações, confundindo-se com mitos e outras histórias muito antigas. Brian ouvia tudo com desconfiança, como ressalta Callado, que, em certo ponto, flagra a figura alta e loira do inglês encarando na selva os supostos assassinos de seu pai, com raiva e desdém, “com sua cara de frade espanhol roído de remorsos…” (Callado, 1953/2010CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 26). O coronel era conhecido pelo tratamento grosseiro que despendia aos indígenas. O marechal Rondon, que chegou a oferecer ao britânico conselhos sobre como ele deveria proceder na expedição que o levou à morte e foi ignorado em suas advertências, era alvo do desprezo do coronel, motivado por racismo, como registram diversas cartas e anotações de Fawcett (ROTHER, 2019ROTHER, Larry (2019). Rondon, uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva.)2 2 Em Rondon: uma biografia (2019), Larry Rohter escreve sobre o racismo de Fawcett e o tratamento dado a Rondon: “exploradores ingleses como Percy Fawcett, formado no curso da Real Sociedade Geográfica, e o escritor e aventureiro Arnold Henry Savage-Landor depreciavam Rondon constantemente em sua correspondência privada e escritos públicos, muitas vezes com termos racistas. O brasileiro, por sua vez, via os dois como uns pernósticos sem autoridade, e o dizia com todas as letras. Essas diferenças ficaram particularmente pronunciadas após 1910, quando o governo brasileiro criou o Serviço de Proteção aos Índios e o deixou ao encargo de Rondon. Nessa função, Rondon em mais de uma ocasião recusou-se a fornecer autorização ou apoio material para expedições financiadas pela Real Sociedade, argumentando que as propostas de pesquisa representavam violações desnecessárias da soberania dos índios, exigiam demasiados recursos que o governo brasileiro poderia fazer melhor proveito em outras partes ou reproduziam estudos já feitos pelos próprios brasileiros” (Rother, 2019, p. 23). . Callado destaca os “métodos drásticos” do coronel “em suas relações com a humanidade”, destacando um episódio em que teria roubado duas canoas dos nafuquás, deixando-os a pé a muitos quilômetros de distância da aldeia. “De que Fawcett tratava os índios com altaneria nada mais expressivo do que a apropriação indébita das canoas deles, a que nos referimos. Bernardino, que encontrou os índios roubados das canoas ao regressar sem Fawcett, disse a Dyott que estavam umas feras” (Callado, 1953/2010CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 59-60). Ainda que não se saiba o que, de fato, ocorreu com os britânicos em seus momentos finais, a reportagem se movimenta na costura e descostura de narrativas, sobretudo considerando o relato dos calapalos. Invariavelmente a raiva aparece como elemento central na relação conflituosa entre Fawcett e os indígenas da região, e sugerida como o principal motivo de seu assassinato.

A experiência de Callado junto aos calapalos, nesta que foi sua primeira viagem ao Xingu, reverbera em toda sua obra. Ele percebe criticamente que a história do desaparecimento de Fawcett interessava a muitos leitores, relegando os indígenas à mera paisagem, peças de um cenário exótico. Ensaia uma breve investigação sobre os primeiros escritos sobre cidades perdidas, identificando vestígios dessas narrativas em nosso romantismo. Do apagamento ou reducionismo literário dos indígenas, Callado estabelece relação com o descaso do Estado e da sociedade brasileira quanto a esses povos. Sete horas de viagem separam São Paulo do Xingu, e lhe parece incrível que os não indígenas estejam tão alheios à existência de um outro Brasil. O próprio Callado vive a descoberta dos indígenas, variando de polos. A escrita do jornalista é uma recusa ao isolamento e recorre à mobilidade como modo de pensar a realidade do país por meio do encontro com os indígenas, enquanto Fawcett é o movimento expansionista, colonizador, que age como se o mundo fosse uma extensão de si. Por vezes, Callado também se assemelha aos britânicos quando reacende estereótipos. Perguntando-se sobre o uso da violência por parte dos calapalos, ele diz: “Como entender o processo intelectual daqueles bugres simpáticos, que nos pedem camisa o tempo todo, que nos oferecem beiju e peixe assado, e que com o mesmo sorriso levantam a mão para apontar um pássaro ou para explicar como aniquilaram um inglês com um golpe de tacape na nuca?” (Callado, 1953/2010CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 56). Em outro ponto, fazendo referência à história bíblica de Caim e Abel, escreve: “Quanto aos índios calapalos, estes não cosem coisa nenhuma. E, no entanto, matam, matam fora da guerra, matam e quando se lhes pergunta onde está o morto também dizem: ‘Acaso sou eu o guarda de meu irmão?” (Callado, 1953/2010CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 7).

A representação dos indígenas como bárbaros, como sujeitos propensos à violência descontrolada, marcou invariavelmente os relatos de viajantes europeus nas Américas durante a colônia, como Hans Staden, Jean de Lery e André Thevet, em que práticas culturais como a antropofagia tupinambá foram lidas como prova de selvageria e argumento para se realizar massacres e escravidão. Essa quase unanimidade do discurso da violência bárbara encontrará dissidência apenas a partir de Montaigne e La Boétie, sobretudo no caso específico dos indígenas brasileiros (Clastres, 2004CLASTRES, Pierre (2004). Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify.; Kiening, 2014KIENING, Christian (2014). O sujeito selvagem: pequena poética do Novo Mundo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.). Evidentemente, essa percepção estereotipada sobre os povos originários ainda tem guarida hoje no imaginário ocidental.

Pierre Clastres (2014), no ensaio “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, publicado no fim dos anos 1970, considera que a literatura etnográfica das décadas anteriores dedicou-se a descrever as sociedades indígenas como “sociedades contra a guerra”. Ao passo em que mostra que os relatos europeus produzidos na colonização são praticamente uníssonos no que se refere à ideia de que os povos originários eram guerreiros sanguinários, ele ressalta, em contraponto, a ausência de estudos na etnografia de seu tempo sobre o uso da violência nessas sociedades. Para Clastres, esse silêncio contemporâneo é uma resposta ao discurso predominante do elemento guerreiro nos textos coloniais. De todo modo, o discurso de que os povos indígenas são pacíficos e rejeitam em absoluto a guerra não se adequa à realidade histórica e cultural desses povos.

Clastres ressalta que a guerra é uma estrutura das sociedades indígenas, tal como o sistema de trocas. Viver em estado permanente de guerra é um modo de assegurar a autonomia da comunidade. No caso dos tupinambás, a figura oposta do estrangeiro ou do inimigo é elemento central no ritual antropofágico, que tem a vingança como fundamento. A morte por vingança é um modo de garantir que haja futuro. Pois sendo a herança deixada pelos antepassados, a vingança está diretamente relacionada à memória. A guerra, portanto, não tem o caráter meramente de defesa, mas reserva em si uma ofensiva, tratando-se de um fim político. Matar, vingar-se é um modo de estabelecer a luta por independência política da comunidade (Castro e Cunha, 1985CASTRO, Eduardo Viveiros; CUNHA, Manoela Carneiro (1985). Vingança e temporalidade: os Tupinambás. Anuário Antropológico, v. 10, n. 1, p. 191-208. Disponível em Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6354 Acesso em: 20 set. 2021.
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).

As sociedades indígenas não desconhecem o que seja o Estado. Antes de mais nada, elas são sociedades contra o Estado. Efetivam-se guerras justamente a fim de evitá-lo. No ensaio “Do etnocídio”, Clastres aponta que o Estado busca destruir a diferença do outro, num empenho etnocida de homogeneização cultural. Sobre isso, Isabelle Stengers (2018STENGERS, Isabelle (2018). A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 442-464. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/145663 Acesso em: 20 set. 2021.
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) fala de uma unificação de mundos, em que a imposição de um mundo único implementa a destruição não apenas cultural (etnocídio) e humana (genocídio), mas também do meio ambiente (ecocídio). Ponto destacado insistentemente por Davi Kopenawa (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras .), de que a destruição da terra passa pela destruição dos saberes. Por isso, é fundamental observar esse movimento de resistência indígena à unificação de mundos e considerar a violência como um gesto contra o Estado.

Desenvolve-se na obra de Antonio Callado a fricção entre as noções de civilização e barbárie, em que pese o questionamento quanto à própria noção de civilização que serve tanto para valorizar a si mesma, na captura que a palavra no singular representa, como para justificar a sujeição de outros povos. Não por acaso personagens polidos, educados, consumidores da arte e do pensamento ocidental são colocados na floresta, desconfortáveis, confrontados com seus próprios valores, revelando, não raramente, a união entre certo saber considerado científico e marcas de barbaridade. Ilustrativo é o caso de Lauro, o etnólogo e especialista em lendas brasileiras de Quarup que, ao se perder na floresta e ser feito refém por um grupo de cren-acárores doentes de sarampo, defende que sua vida deve ser preservada a todo custo, pois, afinal, é um homem culto e civilizado, propondo um levante armado contra os indígenas. Portanto, neste livro símbolo da resistência à ditadura militar, a primeira vez em que se fala em luta armada, o alvo, ironicamente, são os indígenas.

A discussão sobre a violência, em O esqueleto na lagoa verde, manifesta esse embate. As marcas da guerra pedagógica, de que fala Pierre Clastres (2014), que é apenas outro modo de chamar o etnocídio, estão presentes ao longo de toda reportagem, desde as origens do texto bandeirante que motivou a viagem de Fawcett. Aqui, neste ensaio, proponho, entretanto, observar o elemento da violência por outra perspectiva, de quando ela é usada contra representantes do Estado e da “elite” brasileira. Trata-se de uma violência que pode, inclusive, ser motivada por sentimentos pouco legitimados pela sociedade ocidental, como a raiva3 3 O historiador sul-africano Jonathan Grossman (2000), pensando sobre o trabalho da Comissão de Reconciliação e Verdade, fundamental para o fim do apartheid, conta que a Comissão ouviu inúmeras pessoas que sofreram humilhações, maus tratos, torturas e prisões. Essa escuta foi necessária para a reconciliação nacional. Ele, no entanto, ressalta que muitas pessoas que queriam apresentar seus depoimentos não queriam fazê-lo como vítimas. Principalmente os jovens queriam dividir seus relatos de luta, de resistência, o que foi dispensado pela Comissão. Não interessavam as histórias de sublevação e contra-ataque, obrigando as pessoas a silenciarem sentimentos como o ódio e a provocação que porventura estivessem atrelados àquela dor. No ensaio que dedicou à reconciliação sul-africana pós-apartheid, Derrida (2005) pensa o papel do perdão, considerando a decisiva influência de uma visão cristã no processo. E lembra o seguinte depoimento à Comissão: “Convida-se uma mulher negra ˗ cujo marido tinha sido sequestrado e morto ˗ a vir escutar o testemunho dos assassinos. Indagam-lhe se está disposta a perdoar. (...) Ora, em seu dialeto, ela responde (...): Nenhum governo pode perdoar. [Silêncio] Nenhuma comissão pode perdoar. [Silêncio] Somente eu posso perdoar. [Silêncio] E não estou disposta a perdoar” (Derrida, 2005, p. 75). . Em O esqueleto na lagoa verde, então o primeiro livro de Callado, certamente a violência dos calapalos é retratada ainda com assombro, por meio de perguntas que dialogam implicitamente com descrições de atos de barbaridade desumana registrada por bandeirantes e naturalistas. Mas ela também é compreendida como reação, levando em conta o complexo contexto de exploração histórica. Quando trata dos maus-tratos de Fawcett aos indígenas da região, Callado escreve: “E índio fica ‘brabo’ com caraíba ‘brabo’...” (Callado, 1953/2010CALLADO, Antonio (1953/2010). O esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 61).

A violência como reação, como gesto de resistir, pode ser lida como vingança. Os sonhos de vingança são apenas uma das formas estratégicas de sobrevivência de grupos dominados, se valendo, muitas vezes, da aparência de aceitação da dominação, em uma simulação que tem como objetivo ocultar sua revolta e resistência, mas que não deixa de ser compartilhada internamente em espaços e contextos em que se fazem ausentes a vigilância e o controle dos dominadores. A ofensa e a humilhação públicas, quando não se restringem a apenas um indivíduo e seu possível desejo de vingança pessoal, mas comunicam “um conjunto de ofensas sistematicamente infligidas a uma raça, classe ou estrato social, então a fantasia pode converter-se num produto cultural” (Scott, 2013SCOTT, James (2013). A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa: Letra livre., p. 36). O esqueleto na lagoa verde, Quarup e Expedição Montaigne não são obras que necessariamente tematizem a vingança, ou mesmo que deem destaque significativo a esse elemento. Mas isso não significa que essas fantasias de revolta não existam, que os personagens, sejam eles os camponeses, os indígenas ou os guerrilheiros, não sejam eventualmente representados pelo ódio e pela indignação, chegando até mesmo a se moverem para transformar o sonho vingativo em ação concreta. Além disso, a sutileza deste aspecto fala justamente de sua natureza, de certa ambiguidade e codificação de discursos que não ganham a esfera pública facilmente:

Mas se os ignorarmos, ficamos reduzidos a uma compreensão da subordinação histórica que assenta apenas nesses raros momentos de rebelião declarada, ou no discurso oculto propriamente dito, que, além de evasivo é muitas vezes totalmente inacessível. A auscultação das vozes e das práticas não-hegemônicas dos grupos subordinados requer, creio, uma forma de análise substancialmente diferente da análise das elites, dadas as difíceis circunstâncias em que são produzidas (Scott, 2013SCOTT, James (2013). A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa: Letra livre., p. 49).

Na reportagem sobre o desaparecimento dos restos mortais de um explorador britânico, Callado observou a tempo que a narrativa deveria ser outra. Os calapalos, que por três décadas nunca falaram abertamente sobre a morte de Fawcett, não se furtaram a relatar como lembravam de sua tirania. Por que a busca por estes ossos? Por que este passado? Há muitos outros sob a floresta pelos quais nunca ninguém indagou, pelo menos não com a mesma obstinação. Os calapalos que bem entendem de memória indicaram uma ossada junto à lagoa que não era do coronel britânico. Teriam os calapalos se enganado ou essa era a sua forma de comunicar que existe muito passado enterrado na floresta que nunca interessou a ninguém, que, se pudéssemos ouvir as conversas subterrâneas das árvores, elas nos contariam dos outros tantos mortos que se perderam dos seus, de que bem sabem quem são os inimigos?

Os artistas indígenas contemporâneos, como Denilson Baniwa, Jaider Esbell e Eliane Potiguara, cujo poema usamos como epígrafe, tem feito uma crítica a esse apagamento colonial, inclusive no campo da arte, promovendo um movimento de retomada territorial da arte, em que denunciam criticamente a arte moderna brasileira no que diz respeito à usurpação de narrativas e símbolos indígenas4 4 A partir dessa perspectiva, podemos mais uma vez voltar ao etnólogo Lauro, de Quarup, que é um grande especialista em lendas brasileiras. Enquanto segue a expedição na floresta em direção ao centro geográfico, ele narra diversos causos do ciclo mítico do jabuti, que se compõe de diversas narrativas sobre esse animal, de origem incerta, mas presente em muitas culturas, inclusive em diferentes continentes. De todo modo, as narrativas de modo geral ressaltam a esperteza do jabuti que supera adversários muito mais fortes, como a onça ou o gigante. Entre os macuxis, a figura do narrador e do riso na contação dessas narrativas é fundamental, dando um caráter subversivo ao humor. Sobre isso, Devair Fiorotti diz: “Assumindo o ciclo do jabuti como uma metáfora das relações entre os macuxis e os não-índios, pode-se interpretar o riso não como sujeição às necessidades, mas como denúncia e resistência às relações estabelecidas em virtude de tais necessidades e à possível naturalização delas” (Fiorotti, 2020). No romance, narradas por Lauro, elas se esvaziam de qualquer significado subversivo, restando fora de lugar e motivo de ridicularização. Lauro se imagina como jabuti, quando na verdade é o gigante derrotado na selva. , à revelia dos povos originários. Essa usurpação, que contribui para aprisionar os povos indígenas ao passado colonial, é denunciada de forma intimidadora, em uma espécie de vingança, que mais do que nos aniquilar, nos responsabiliza (Diniz, 2020DINIZ, Clarissa (2020). Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas para além do “produzir ou morrer”. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 68-88. Disponível em: Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/102736/58302 Acesso em: 20 set. 2021.
https://www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindi...
). O artista macuxi Jaider Esbell escreveu em 2021ESBELL, Jaider (2021). Universos que se espelham nas artes. Teatro e os povos indígenas. Disponível em: Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/universos-que-se-espelham-nas-artes? Acesso em: 30 set. 2021.
https://www.n-1edicoes.org/universos-que...
: “Não custa lembrar que estamos e me parece que ainda estaremos, por muito tempo, em guerra”. As palavras de Esbell fazem eco à entrevista concedida por Ailton Krenak ao documentário Guerras do Brasil.doc (2019)GUERRAS DO BRASIL. DOC. Direção: Luiz Bolognesi. Produção de Laís Bodanzky e Buriti Filmes. Brasil: Netflix, 2019. , de Luiz Bolognesi, em que interpela seu interlocutor, dizendo:

Nós estamos em guerra. Eu não sei porque você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra, os nossos mundos estão todos em guerra. A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é para a gente continuar mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum. É guerra em todos os lugares o tempo todo.

O reconhecimento de que a guerra existe há muito tempo e seguirá indefinidamente é acompanhado da denúncia sobre a falsificação ideológica da paz e seus propósitos. Ascenso (2020ASCENSO, Gabriel (2020). 119 A paz. Pandemia crítica. Disponível em Disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/114 Acesso em: 15 set. 2021.
https://www.n-1edicoes.org/textos/114...
) oportunamente lembra que o termo “pacificação” é historicamente utilizado para designar a invasão de territórios indígenas, forçando aldeamentos, impondo o uso de outra língua e práticas religiosas cristãs. A palavra se estende aos indígenas, que, quando em contato com os brancos, são considerados “pacificados”. O contrário é o “índio bravo”, sobre o qual era legítimo o uso da força, dado sua resistência à “civilização”. O levante contra os “índios bravos” era a chamada “guerra justa”, usada até o século XIX. Como vimos, a expressão surge na reportagem de Callado, funcionando como título para um dos capítulos: “Quando o índio fica “brabo”.

O discurso de paz, portanto, reserva em si a manutenção de uma violência sistemática, como observa Krenak, e que impõe a determinados grupos o silêncio e a inação como únicas possibilidades de existência. Está diretamente ligada à ideologia etnocida de unificação dos mundos, em que as diferenças devem ser extintas, por meio da assimilação cultural de outros povos, que, na verdade, nunca são propriamente incorporados na sociedade dita civilizada, a não ser de modo subalternizado. Essa imposição da paz é um dos discursos mais arraigados sobre o Brasil. A ideia de que somos uma nação pacífica, que enfrentou suas maiores revoluções históricas sem derramar sangue, diz mais uma vez sobre a lógica de apagamento de movimentos de resistência.

Cinco mil camponeses

Entre dezembro de 1963 e janeiro de 1964, Callado escreve um conjunto de reportagens sobre as Ligas Camponesas, um dos movimentos mais importantes pela reforma agrária e as melhores condições de vida no campo do Brasil. Nesses textos, destaca que um dos aspectos mais importantes das Ligas era a possibilidade de fazer uma revolução social, em nível nacional, sem violência. Seu encantamento com a movimentação dos camponeses, por meio da organização social, do aparato legal e com apoio de representantes da política institucionalizada, é logo frustrado pela chegada dos militares ao poder. No posfácio de Tempos de Arraes, livro que reúne essas reportagens, ele não esconde sua decepção e se pergunta sobre a viabilidade de se fazer uma revolução sem conflitos:

O sistema brasileiro, de procurar fazer História sem violência, sem derramamento de sangue, é excelente em si mesmo. Resta saber se, para evitar a violência, não estamos o tempo todo evitando fazer História. Será possível entrar nessa maioridade das nações que é a fase histórica sem derramar uns pingos de sangue? Quem fazia a experiência para o Brasil era o Estado de Pernambuco, sob o governo de Miguel Arraes (Callado, 1965/1979CALLADO, Antonio (1965/1979). Tempos de Arraes: a revolução sem violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979., p. 179).

Em Quarup, um romance de esperança e de aprendizagem, a questão camponesa se soma à questão indígena, e a vingança nessas culturas é mobilizada também para compor a ação de resistência à ditadura militar no desfecho da obra. Publicado apenas três anos após o golpe de 1964, Quarup é um dos primeiros romances a tratar da ditadura militar. E é preciso ressaltar que, até hoje, é um dos poucos romances brasileiros a estabelecer aproximação entre o regime e o massacre de indígenas e camponeses neste período. Os relatórios da Comissão Nacional da Verdade, tornados públicos apenas no final de 2014, mostram como a ditadura atuou violentamente contra as Ligas Camponesas e também sobre trabalhadores rurais sem vinculação sindical, mas que eram acusados de ajudarem os guerrilheiros que se abrigavam no campo ou reivindicavam direitos junto aos donos de terras. Contra eles, foram usadas técnicas de tortura e armas desenvolvidas na guerra do Vietnã, como o napalm. Os relatórios também apontam que 8.350 indígenas foram mortos pelos militares ou com sua conivência, e muitos outros sofreram violências bárbaras, como estupros, sequestro de menores, prisões ilegais, entre outros. O projeto modernizador da ditadura também avançou sobre o campo e a floresta, com a construção de rodovias na região amazônica, a adoção do sistema de grandes hidrelétricas como a principal fonte de energia do país e, evidentemente, a integração dos povos indígenas ao projeto nacional, que nada mais é que um processo de desindianização.

O romance trata da luta pela efetivação do Parque Indígena do Xingu, retrata o empenho de personagens contra a efetivação de projetos de modernização da floresta e o avanço de fazendeiros e empresas estrangeiras na Amazônia, com apoio dos políticos brasileiros. Quarup não apenas remete ao passado colonial, mas também retrata o que já estava em disputa nos anos imediatamente anteriores ao golpe militar de 1964 e que viria a marcar a atuação do regime posterior à sua publicação. Trata-se de uma obra que aponta para um futuro, que não se restringe ao governo militar, mas nos alcança hoje, uma vez que nos interroga, por exemplo, sobre os interesses políticos e econômicos que geraram a crise ambiental.

Composta por elipses temporais, sobretudo entre 1954, ano do suicídio de Getúlio Vargas, 1961, ano da renúncia de Jânio Quadros, e 1964, ano do golpe militar, a obra aproxima os acontecimentos históricos, refazendo os passos da história recente do país, sem desconsiderar o fantasma colonial, e também promove uma vinculação entre indígenas e camponeses. Na representação violenta das forças de Estado sobre os camponeses, que são presos, torturados e assassinados, há o reflexo da invasão às terras indígenas, o adoecimento e a morte dos cren-acárores, o avanço de fazendeiros no Xingu e a cumplicidade dos políticos. Evidentemente, camponeses e indígenas têm lutas próprias, pautas específicas e culturas diferentes, mas no romance eles se aproximam na conexão com a terra, na luta pela defesa de seus territórios e de seus direitos. Sobre eles, abate-se o ímpeto do Estado de apagamento de realidades sociais ligadas à natureza e consideradas atrasadas.

No romance, as culturas indígena e sertaneja, mais do que reconhecer os ataques dos “civilizados”, oferecem um sentido de resistência vingativa. No caso dos homens e das mulheres do campo, leva-se em conta a relação que, ao longo dos anos, travaram com a justiça ou com sua ausência. Januário, um dos líderes das Ligas Camponesas, pensa no enterro discreto, com caixão fechado, de Levindo, um jovem idealista de esquerda morto por fazendeiros na primeira parte do romance, e sonha com a vingança de colocar cinco mil camponeses acompanhando seu velório pelas ruas da cidade.

Acho que eu nunca teria tido força de sair de lá, se um outro braço não me ajudasse. E falando de vingança. Era Januário me dizendo: “A família de Levindo está apavorada. Se me entregasse o corpo eu botava cinco mil camponeses para enterrar Levindo. Vão levar ele para casa como se tivesse sido atropelado por um jipe”. Depois acompanhei Levindo fechado no caixão. Um enterro discreto, de menino que ficou embaixo de carro (Callado, 1967/2014CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 310).

A morte de Levindo é anunciada como potência de luta por Januário5 5 A proposta de tornar o enterro de Levindo um evento político faz menção à morte de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, assassinado por latifundiários em 1962. Sua morte teve tanta repercussão que em seu enterro compareceram 5 mil pessoas. Callado escreveu uma reportagem sobre sua viúva, Elizabete Teixeira, líder camponesa da Paraíba. O título da matéria é “História Trágica de Elizabete Teixeira”. Eduardo Coutinho filmou Cabra marcado para morrer com Elizabete, o projeto foi interrompido pelas forças do Estado e anos depois concluído. . Permitir que Levindo permaneça fechado no caixão é encerrar com ele as violências que culminaram nesta última e a vivência de um luto coletivo. Já Manuel Tropeiro, outra liderança das Ligas, resgata sua ancestralidade, lembrando que todos os homens de sua família eram jagunços e sempre fizeram justiça com as próprias mãos.

Meu tio pai dele, e o tio dele, quer dizer meu pai, e meu avô e o avô dele era gente desembestada, seu Nando. Gente boa e temente de Deus, seu Nando, disso não tinha dúvida não. Mas era gente jagunça, gente de a-cavalo. E quando tinha um torto a endireitar não adiantava botar a polícia atrás dele não. Era gente de fazer o que tinha de fazer e sumir com a família inteira. Naquele tempo ninguém achava ninguém na caatinga não. A gente acabava botando a justiça de Deus nesta terra, a cavalo (Callado, 1967/2014CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 372-373).

Nando reconhece que os trabalhadores rurais não conhecem a justiça, o que os leva à vingança, mas também compreende que para eles a justiça está relacionada à violência do Estado. Em certo ponto, Januário questiona quem tem direito à violência no Brasil, evidenciando que a violência dos poderosos é a mesma violência do sistema político e econômico brasileiro, contra o qual a realidade histórica do autoritarismo exige reação. O pensamento do líder camponês ressoa naquilo que a artista contemporânea Jota Mombaça (2016MOMBAÇA, Jota (2016). Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. Oficina de Imaginação Política e 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi Acesso em: 20 set. 2021.
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) defende como “redistribuição desobediente e anticolonial da violência”, em que reconhece que é esperada a postura de vítima dos povos ameaçados justamente por quem mobiliza essa violência sistêmica, portanto é necessário redistribuir a violência, assumindo para si o direito a ela.

O jagunço ou o cangaceiro, lembrado principalmente por Manuel Tropeiro, passa a ganhar outra significação na literatura brasileira a partir de Grande Sertão: veredas (1956/2001ROSA, Guimarães (1956/2001). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), em que os dilemas sociais que forjaram estes homens passam a ser considerados. Há no romance de Guimarães Rosa a compreensão de que o sertão é também um lugar em que as contradições do país se fazem presentes, confrontando a visão exótica do sertanejo, visto não raramente como a representação do bárbaro. A representação do jagunço no romance de Guimarães Rosa se baseia nas dificuldades históricas da vida sertaneja, e também dialoga com a idealização literária das possiblidades de reagir a elas, o que significa escapar da dependência e da miséria por uma elevação do caráter sertanejo.

No romance de Callado, a imagem do jagunço, quando surge, é pela via da memória, como indica a fala de Manuel Tropeiro, como uma referência ou vínculo ancestral, que serve de esteio para a decisão de Nando de partir para a luta armada. Já nas frases finais do romance, antes de perguntar a Nando que nome ele vai assumir na clandestinidade, Manuel diz: “Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo Meia-Noite, cangaceiro importante” (1967/2014CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 555). É o espírito deste homem que Manuel sabe que precisa encarnar daí em diante, nesta noite adentro. Já Nando assume o nome de Levindo e veste um gibão de couro, ao que Manuel observa com ironia: “Com seu perdão, seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro não” (1967/2014CALLADO, Antonio (1967/2014). Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 555). As palavras de Manuel e a resposta que Nando dá a elas - “Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa” - foram lidas como o despreparo e o voluntarismo da classe média urbana na luta armada.

A discussão sobre a guerrilha mobilizou os intelectuais de esquerda nos anos seguintes à publicação de Quarup, ganhando representação na própria produção de Callado, o que levou parte da crítica a entender o romance como a primeira parte de um projeto literário que veio a assumir o desengano e a autocrítica como marcas. Compreensivelmente, a leitura de Quarup se manteve por muito tempo vinculada a isso, no entanto, hoje, me parece de extrema relevância pontuar que Nando busca uma transformação e uma preparação de luta a partir de uma tradição sertaneja, de sobrevivência por seus próprios termos. Não é uma proposta ingênua de vestir um gibão de couro como uma fantasia, mas assumir que esta luta é histórica, se dá há séculos, que é preciso assumir lados, o que em última medida requer conhecimento e vivência do que seja a nação - afinal é este um dos grandes temas da obra, a identidade nacional. Trata-se de um chamado para nosso passado histórico, de uma transformação social a partir dos valores e da experiência do sertão e da floresta, incansavelmente lidos como símbolos, nunca como propostas de fato, o que só revela o olhar de arrogante superioridade de nossa elite intelectual sobre estes povos e suas culturas, em uma demonstração daquilo que Isabelle Stengers (2011STENGERS, Isabelle (2011). Cosmopolitics. University of Minnesota Press.) chama de “maldição da tolerância”. Não por acaso, a adesão de Nando à luta armada é uma viagem ao sertão, a essa tradição, para dentro do país, em um movimento contrário à postura das elites brancas de darem as costas para o interior no Brasil, isolando-se no litoral, em um desejo de converterem o país no Chile do Atlântico, como diz um personagem de Quarup.

A vingança, associada à ausência de justiça, ganha centralidade, concretude e um caráter pessoal no romance Sempreviva (1981/2014CALLADO, Antonio (1981/2014). Sempreviva. Rio de Janeiro: José Olympio .). Quinho volta do exílio de dez anos em Londres para vingar a morte de Lucinda, sua companheira. Ele encontra os assassinos em uma fazenda, em Corumbá, atuando como fazendeiros e caçadores, porém ainda praticando atos bárbaros de violência na região. Há, sem dúvida, uma ligação entre Quinho e João, do romance Bar Don Juan (972/2014)CALLADO, Antonio (1972/2014). Bar Don Juan. Rio de Janeiro: José Olympio ., cuja companheira foi violentada por agentes da repressão. No entanto, para João, a vingança não se realiza, pois este acaba entendendo que isso seria uma espécie de desvio de sua missão revolucionária. Quinho, por outro lado, tem toda sua ação e construção enquanto personagem a partir da vingança. Mesmo quando busca expor ao mundo a violência dos assassinos de Lucinda, visando denunciá-los à Anistia Internacional, há, ainda assim, um projeto pessoal em torno dessa vingança.

Publicado em 1981, Sempreviva carrega em si um tom de desesperança que encontra representação na morte de Quinho, que recebe uma coronhada fatal de um dos capangas de Claudemiro Marques, o assassino e torturador de Lucinda. Antes de morrer, Quinho consegue efetivar sua vingança, fazendo Claudemiro ser trucidado por seus cães, após tê-lo envolvido com sangue de onça. Embora a morte do protagonista promova um reencontro com Lucinda, a sempreviva do título, esse desfecho em tudo se contrapõe ao final luminoso de Nando, em Quarup, cujo gesto de luta indicava esperança. Bastos pondera que a volta de Quinho do exílio tem valor alegórico, apontando que a pátria “ainda não estava preparada para receber de volta seus filhos, violentamente expelidos” (Bastos, 2000BASTOS, Alcmeno (2000). A história foi assim: o romance político brasileiro dos anos 70/80. Rio de Janeiro: Caetés., p. 35). Se em Quarup, publicado apenas três anos após o golpe militar, Callado buscava pensar em estratégias de luta e sobrevivência, em Sempreviva, de 1981, parecia interessar-lhe então saber o que afinal seria feito dos torturadores e assassinos que, àquela altura, atuavam no país há quase vinte anos, em uma prospecção de como seria possível seguir enquanto nação sem um vislumbre de justiça. A vingança de Quinho, aparentemente de cunho pessoal, parece representar o olhar pessimista de Callado para o curso da história, a descrença de que mecanismos dignos de justiça pudessem se efetivar.

Ritual incendiário

O movimento do homem branco pela floresta, como vimos até aqui, é uma imagem constante na produção de Antonio Callado, mas que passa por transformações, sobrepondo camadas de significação. Na reportagem de 1954, o movimento do coronel era de exploração e conquista. Este aspecto se modifica em Quarup, oferecendo a Nando e, portanto, à sociedade brasileira “civilizada” uma possibilidade de transformação pela experiência com outras culturas, promovendo um diálogo de mundos. Em A expedição Montaigne (1982/2014CALLADO, Antonio (1982/2014). A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio .), há uma descrença dessa proposta de transformação. Publicada nos estertores da ditadura, o romance destoa do sentimento de euforia da reabertura política. Callado parece olhar com desconfiança para os movimentos da sociedade brasileira quanto à questão indígena. A substituição dos militares por representantes civis conservadores não representava nenhuma mudança estrutural no tratamento dos povos originários. Ainda que a Constituição de 1988 tenha oferecido avanços fundamentais nos direitos indígenas, as ideias permaneceram mais próximas do romantismo, de um discurso idealizado e uma prática de destruição.

O romance tem Ipavu como protagonista, um indígena que foi expulso de sua aldeia por estar com tuberculose. Em seguida, foge do hospital em que se tratava na ânsia de se tornar branco, e acaba, por fim, no reformatório Crenaque, uma prisão que foi construída durante a ditadura militar, a fim de manter cativos os indígenas que incomodavam os fazendeiros locais. Vicentino Beirão, acompanhado de um fotógrafo, liberta Ipavu do reformatório, a fim de realizar com este uma expedição rumo ao Xingu para restitui-lo a sua aldeia de origem.

Tudo neste curto romance de Callado é tomado de ironia, e nenhum dos personagens estão isentos do olhar crítico e debochado do narrador. Ipavu detesta ser indígena. Seu nome verdadeiro é Paiap, mas, de tanto falar em Ipavu, a lagoa camaiurá, foi assim batizado pelos brancos. E é com certo alívio que abre mão de seu nome. Vicentino chega ao reformatório Crenaque, com a proposta de ser um antibandeirante, de libertar todos os “silvícolas” ainda aprisionados no país. Porém chega atrasado, o reformatório havia sido fechado, restando ali apenas três indígenas e o antigo carcereiro. A própria ideia da expedição é em si uma farsa, pois Vicentino quer fazer acreditar que Ipavu é o último de sua comunidade, o que não é verdade. Já o pajé Ieropé representa a revolta de uma liderança que vive o esfacelamento do tecido social de sua aldeia. Ele se recusa a tratar uma das indígenas camaiurá com penicilina a fim de preservar seus costumes, o que acaba levando-a à morte. Desacreditado por seu próprio povo, Ieropé adoece e, ao viver a angústia da doença, não hesita ele próprio em recorrer ao remédio dos brancos para se salvar.

Isolado e humilhado por seu próprio povo, ele resgata insistentemente as palavras de Zeca Ximbioá, um guerrilheiro que no passado esteve na região e que lhe falou sobre Karl von den Stein, chamado na narrativa de Fodestaine. O naturalista alemão realizou a primeira expedição ao Xingu, em 1884, e o romance, ironicamente, é dedicado a ele. Ieropé entende que Fodestaine é o responsável pela decadência de seu povo, por isso alimenta fortes desejos de vingança. Ao confundir Vicentino Beirão com Fodestaine, Ieropé o incendeia, preso em uma gaiola, num ato sacrificial que congrega toda a aldeia, entre crianças e guerreiros. Queimar Fodestaine vivo seria uma ilusão de Ieropé de expurgação da história, uma tentativa inútil de reordenação dos fios do passado na costura de um outro futuro? Ligia Chiappini (2014CHIAPPINI, Ligia. “Callado e a vocação empenhada do romance brasileiro”. In: CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio , 2014.) observa que, enquanto a aldeia, aqui novamente liderada por Ieropé, vive esse delírio de uma possibilidade de transmutação da história através do fogo, o leitor, em contraponto, fica de fora, com a chave da mentira nas mãos. De fato, a cena é uma espécie de farsa, pois não é Fodestaine que ali arde, mas Vicentino. O próprio encontro entre a figura histórica de Karl von den Stein e Ieropé é inviável devido ao espaço de quase um século que os separa. E mesmo que tal encontro fosse possível, pelas vias da literatura, não seria simplesmente a morte de Karl von den Stein a livrar os camaiurás da longa história de destruição a que foram submetidos.

A morte de Vicentino, portanto, não é um reembaralhamento dos fios da História, mas o gesto de uma vingança. Trata-se da agência de Ieropé sobre seu próprio destino e a manifestação de uma resposta raivosa contra as violências da história oficial, representada pela lembrança do explorador alemão, e também contra as violências do Estado brasileiro. Se o leitor, como afirma Chiappini (2014CHIAPPINI, Ligia. “Callado e a vocação empenhada do romance brasileiro”. In: CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. Rio de Janeiro: José Olympio , 2014.), tem em mãos a chave da mentira, isto é, que a morte de Vicentino não vai reordenar os fios da História, também sabe, afinal de contas, que esta morte tem um impacto direto sobre a aldeia, promovendo uma reconexão com Ieropé, o pajé desacreditado pelo coletivo. Não é possível dizer ao certo se a comunhão do grupo perdura, pois o romance acaba logo em seguida. Mas trata-se da única passagem da obra em que a aldeia age harmonicamente, em torno de um ritual, que trata das tradições antes abandonadas, da repetição de ciclos, da aposta no espiritual. Ieropé não tira Fodestaine de mente em nenhum momento porque o identifica como o invasor, o inimigo, porque sabe que algo precisa ser feito, estando ele mesmo perdido em fúria. Há não apenas uma recusa em esquecer o passado, como há também a manifestação continuada de sua revolta, de seu conflito consigo e com sua aldeia, em que experimenta uma série de humilhações. Esse sentimento de indignação com a realidade de seu povo encontra ápice e vazão justamente na morte de Vicentino, este homem branco, amante da língua francesa, que em sua alucinada expedição se vê como mártir e herói, se propondo salvar Ipavu e sua comunidade de origem, em um misto de paternalismo e busca por prestígio, que expõe o ridículo do personagem e a ironia final de seu destino.

Vicentino, em muitos sentidos, é tudo aquilo que Fodestaine representa para Ieropé. Sua morte final não é um equívoco delirante do pajé. Esta vingança, levada a cabo por um pajé que sofre individualmente e coletivamente as dores das invasões passadas e presentes, não é apenas a resposta raivosa e ritualística sobre o passado, mas se direciona ao futuro, já que traz harmonia de volta à aldeia e sentencia Vicentino ao esquecimento, interferindo na história oficial. Nas últimas páginas do romance, o narrador nos assegura que o Brasil nunca saberá de Vicentino, nem mesmo do fogo que lhe devorou. Outra face da vingança, a morte de Vicentino é também simbólica, sem direito à memória quando tudo o que ambicionava com sua expedição era permanecer na mente da nação como herói monumentalizante, um fim sem registro ou referência para este homem que se erige pelas palavras de intelectuais, viajantes e exploradores europeus, os verdadeiros arquitetos da história única.

Referências

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  • ESBELL, Jaider (2021). Universos que se espelham nas artes. Teatro e os povos indígenas. Disponível em: Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/universos-que-se-espelham-nas-artes? Acesso em: 30 set. 2021.
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  • FIOROTTI, Devair Antonio (2020). Os macuxis riem com o jabuti ou da traquinagem ao questionamento pelo riso. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 22, n. 39. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rblc/a/FWjn5638h9xZmH8X55NknkC/?lang=pt Acesso em: 30 set. 2021.
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  • GERMANO, Idilva (2005). Florestas, índios e sabiás: itinerários dos símbolos românticos da nacionalidade na ficção de Antonio Callado. Revista de Letras, Fortaleza, v. 1-2, n. 27, p. 17-26. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/17422/1/2005_art_impgermano.pdf Acesso em: 20 set. 2021.
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  • GROSSMAN, Jonathan (2000). Violência e silêncio: reescrevendo o futuro. História oral, Revista da Associação Brasileira de História Oral, v. 3, p. 7-24.
  • GUERRAS DO BRASIL. DOC. Direção: Luiz Bolognesi. Produção de Laís Bodanzky e Buriti Filmes. Brasil: Netflix, 2019.
  • KIENING, Christian (2014). O sujeito selvagem: pequena poética do Novo Mundo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras .
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  • ROSA, Guimarães (1956/2001). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • ROTHER, Larry (2019). Rondon, uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva.
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  • STENGERS, Isabelle (2011). Cosmopolitics. University of Minnesota Press.
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  • SÜSSEKIND, Flora (1990). O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras .
  • TAYLOR, Diana (2013). O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • 1
    Ao longo do capítulo, Nando faz referência às leituras que realizou dos seguintes autores: Santa Teresa D’Ávila, San Juan de la Cruz, Dante, Plutarco, São Mateus, São Lucas, São Jorge, Virgílio, Adriano, Suetônio, Antônio Vieira. Com relação aos indígenas, três fontes são citadas: Clóvis Lugon, Aurélio Porto e Karl von den Stein.
  • 2
    Em Rondon: uma biografia (2019ROTHER, Larry (2019). Rondon, uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva.), Larry Rohter escreve sobre o racismo de Fawcett e o tratamento dado a Rondon: “exploradores ingleses como Percy Fawcett, formado no curso da Real Sociedade Geográfica, e o escritor e aventureiro Arnold Henry Savage-Landor depreciavam Rondon constantemente em sua correspondência privada e escritos públicos, muitas vezes com termos racistas. O brasileiro, por sua vez, via os dois como uns pernósticos sem autoridade, e o dizia com todas as letras. Essas diferenças ficaram particularmente pronunciadas após 1910, quando o governo brasileiro criou o Serviço de Proteção aos Índios e o deixou ao encargo de Rondon. Nessa função, Rondon em mais de uma ocasião recusou-se a fornecer autorização ou apoio material para expedições financiadas pela Real Sociedade, argumentando que as propostas de pesquisa representavam violações desnecessárias da soberania dos índios, exigiam demasiados recursos que o governo brasileiro poderia fazer melhor proveito em outras partes ou reproduziam estudos já feitos pelos próprios brasileiros” (Rother, 2019ROTHER, Larry (2019). Rondon, uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 23).
  • 3
    O historiador sul-africano Jonathan Grossman (2000)GROSSMAN, Jonathan (2000). Violência e silêncio: reescrevendo o futuro. História oral, Revista da Associação Brasileira de História Oral, v. 3, p. 7-24., pensando sobre o trabalho da Comissão de Reconciliação e Verdade, fundamental para o fim do apartheid, conta que a Comissão ouviu inúmeras pessoas que sofreram humilhações, maus tratos, torturas e prisões. Essa escuta foi necessária para a reconciliação nacional. Ele, no entanto, ressalta que muitas pessoas que queriam apresentar seus depoimentos não queriam fazê-lo como vítimas. Principalmente os jovens queriam dividir seus relatos de luta, de resistência, o que foi dispensado pela Comissão. Não interessavam as histórias de sublevação e contra-ataque, obrigando as pessoas a silenciarem sentimentos como o ódio e a provocação que porventura estivessem atrelados àquela dor. No ensaio que dedicou à reconciliação sul-africana pós-apartheid, Derrida (2005)DERRIDA, Jacques (2005) O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero? In: NASCIMENTO, Evandro. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade. pensa o papel do perdão, considerando a decisiva influência de uma visão cristã no processo. E lembra o seguinte depoimento à Comissão: “Convida-se uma mulher negra ˗ cujo marido tinha sido sequestrado e morto ˗ a vir escutar o testemunho dos assassinos. Indagam-lhe se está disposta a perdoar. (...) Ora, em seu dialeto, ela responde (...): Nenhum governo pode perdoar. [Silêncio] Nenhuma comissão pode perdoar. [Silêncio] Somente eu posso perdoar. [Silêncio] E não estou disposta a perdoar” (Derrida, 2005DERRIDA, Jacques (2005) O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero? In: NASCIMENTO, Evandro. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade. , p. 75).
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    A partir dessa perspectiva, podemos mais uma vez voltar ao etnólogo Lauro, de Quarup, que é um grande especialista em lendas brasileiras. Enquanto segue a expedição na floresta em direção ao centro geográfico, ele narra diversos causos do ciclo mítico do jabuti, que se compõe de diversas narrativas sobre esse animal, de origem incerta, mas presente em muitas culturas, inclusive em diferentes continentes. De todo modo, as narrativas de modo geral ressaltam a esperteza do jabuti que supera adversários muito mais fortes, como a onça ou o gigante. Entre os macuxis, a figura do narrador e do riso na contação dessas narrativas é fundamental, dando um caráter subversivo ao humor. Sobre isso, Devair Fiorotti diz: “Assumindo o ciclo do jabuti como uma metáfora das relações entre os macuxis e os não-índios, pode-se interpretar o riso não como sujeição às necessidades, mas como denúncia e resistência às relações estabelecidas em virtude de tais necessidades e à possível naturalização delas” (Fiorotti, 2020FIOROTTI, Devair Antonio (2020). Os macuxis riem com o jabuti ou da traquinagem ao questionamento pelo riso. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 22, n. 39. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rblc/a/FWjn5638h9xZmH8X55NknkC/?lang=pt Acesso em: 30 set. 2021.
    https://www.scielo.br/j/rblc/a/FWjn5638h...
    ). No romance, narradas por Lauro, elas se esvaziam de qualquer significado subversivo, restando fora de lugar e motivo de ridicularização. Lauro se imagina como jabuti, quando na verdade é o gigante derrotado na selva.
  • 5
    A proposta de tornar o enterro de Levindo um evento político faz menção à morte de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, assassinado por latifundiários em 1962. Sua morte teve tanta repercussão que em seu enterro compareceram 5 mil pessoas. Callado escreveu uma reportagem sobre sua viúva, Elizabete Teixeira, líder camponesa da Paraíba. O título da matéria é “História Trágica de Elizabete Teixeira”. Eduardo Coutinho filmou Cabra marcado para morrer com Elizabete, o projeto foi interrompido pelas forças do Estado e anos depois concluído.
  • Nota:

    Este ensaio é composto parcialmente por discussões apresentadas na tese Serpente de ouro em relva escura: os indígenas e a ditadura em Quarup, de Antonio Callado, defendida em 2021, na Universidade de Brasília. A pesquisa de doutorado que originou este trabalho contou com bolsa financiada pela FAP-DF.

Editora:

Regina Dalcastagnè

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2021
  • Aceito
    24 Abr 2021
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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