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Corpos femininos desarquivados: sobre um romance inédito de Jorge Amado

Unarchived female bodies: about an unpublished novel by Jorge Amado

Cuerpos femininos desarchivados: sobre una novela inédita de Jorge Amado

Resumo

Este artigo traz para a cena contemporânea um romance inédito e inacabado de Jorge Amado (1941-1942) e como nele o autor representa as mulheres na utopia comunista, seja por corpos lésbicos, na perspectiva de Adrienne Rich, seja por já ensaiar o amor-camaradagem, conceituado por Alexandra Kollontai, de significativa importância na militância do século XXI.

Palavras-chave:
Jorge Amado; romance inédito; 1941-1942; representação de mulheres

Abstract

This article brings to the contemporary scene the unpublished and unfinished novel by Jorge Amado (1941-1942) and how the author represents women in the communist utopia, whether through lesbian bodies, in Adrienne Rich's perspective, or because he is already rehearsing love-camaraderie conceptualized by Alexandra Kollontai, of significant importance in 21st century militancy.

Keywords:
Jorge Amado; unpublished novel; 1941-1942; representation on women

Resumen

Este artículo trae para la escena contemporánea una novela inédita inacabada de Jorge Amado (1941-1942) y como, en esa obra, el autor representa las mujeres en la utopía comunista ya sea por cuerpos lesbianos, en la perspectiva de Adrienne Rich, ya sea por ensayar el amor-camaradería, conceptuado por Alexandra Kollontai, de importancia significativa en la militancia del siglo XXI.

Palabras-clave:
Jorge Amado; novela inédita; 1941-1942; representación de mujeres

A obra não é acabada ou inacabada: ela é.

Maurice Blanchot

Nossa leitura é uma descontinuidade necessária de tudo aquilo que já está tão bem construído nas biografias e nas pesquisas sobre Jorge Amado. A primeira fase de Jorge Amado é marcada pela ideologia comunista, já em suas obras publicadas, mas o que dizer então da materialidade pesquisada na última década presente no Acervo Mala de Jorge Amado, um acervo com mais de 1500 documentos guardados e estudados no núcleo Literatura e Memória do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC (nuLIME), materialidades estas que situam o escritor num momento de exílio na Argentina e no Uruguai, em 1941 e 1942, no calor do Estado Novo e da perseguição aos militantes de esquerda?

O Acervo contém, além de registros da atividade política de Jorge Amado e demais militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), um romance inédito de conteúdo engajado à ideologia comunista e, paradoxalmente, de caráter intimista, o que marca a diferença na leitura da obra do escritor baiano. É em direção a este romance, ora chamado de São Jorge dos Ilhéus e ora de Agonia da noite1 1 Faz-se importante elucidar que, apesar dos títulos atribuídos ao inédito serem os de livros posteriormente publicados pelo autor, a obra em nada se relaciona com o que foi a público. Após pesquisa aprofundada de enredo e personagens pudemos verificar o caráter inédito do romance. nas diferentes cópias contidas no Acervo Mala de Jorge Amado, que dirigimos nosso olhar atento e mais politizado no que se refere às suas personagens mulheres, suas construções e suas diferenças em relação a outras mulheres narradas no período. Vale lembrar aqui que a obra abordada é inédita e inacabada, logo, não foi a público e não obteve repercussão, muito menos um único olhar da crítica literária produzida acerca desta, apesar de ser, provavelmente, o romance mais engajado e intimista da obra de Jorge Amado.

Após 1935, Jorge Amado, que acabara de entrar em contato com ideais apresentados por Gilberto Freyre (Rossi, 2009ROSSI, Luiz Gustavo Freitas (2009). A militância política na obra de Jorge Amado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOLDENSTEIN, Ilana Seltzer (orgs.). O universo de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras . p. 23-33. ), muda seu discurso e passa a dar mais importância ao negro na formação da cultura brasileira, bem como a representar e dar valor positivo ao sincretismo das religiões afro-brasileiras. Já em contato com grupos comunistas nessa fase, Jorge Amado aborda temas ideológicos em suas obras. Com a repressão a militantes após o levante armado de 1935, sua escrita é nitidamente influenciada por tais fatores políticos e ele passa a abordar consideravelmente menos os assuntos voltados ao comunismo, o que se reflete também em suas publicações na imprensa. Jorge Amado era membro ativo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e estava envolvido também na coleção Romances do Povo, da Editora Vitória, vinculada ao Partido Comunista.

Então, a hipótese que se desvela aborda precisamente esse ponto: diferentes visões e vivências, situadas num espaço político e social de dominação patriarcal, interferem na construção de personagens, especialmente femininas. Como se dá a narrativa e o papel das mulheres num romance militante que retrata a luta do proletariado e a revolução comunista?

O intelectual e escritor não está livre das influências do meio social em que convive, e consequentemente, de reproduzir conceitos, situações ou caracterizações. Em seu romance Cacau, a memória do personagem principal nos conta que numa fábrica com 700 empregados, 500 eram mulheres e que “Os homens emigravam, dizendo que trabalhar em fiação era só para mulher” (Amado, 1933/2011AMADO, Jorge (1933/2011). Cacau. São Paulo: Companhia das Letras., p. 161), ficando para trás apenas os homens ditos mais “fracos”, que se casavam e tinham uma legião de filhas. Já em Suor (1934/2011AMADO, Jorge (1934/2011). Suor. São Paulo: Companhia de Letras.) há a personagem Linda, que começa a trabalhar como costureira e se torna uma agitadora política, continuando o trabalho de seu namorado assassinado pela polícia, Álvaro Lima, operário que liderava a greve. Em Mar Morto (1936/2011AMADO, Jorge (1936/2011) Mar morto. São Paulo: Companhia das Letras .), Lívia, ao perder o marido Guma, e contrariando todas as expectativas sociais de uma viúva de marinheiro, que costumava tornar-se prostituta ou trabalhar em casas de família, ela toma posse do saveiro e vai para o mar. Ainda assim, Jorge Amado apresenta alguns estereótipos e traços do modelo vigente de dominação, inclusive no seu livro inédito.

Vamos ao enredo: o romance inacabado de Jorge Amado se passa numa noite de tempestade, às vésperas da revolução comunista. Na fazenda de Augusto, os companheiros se reúnem ao redor de um aparelho de rádio transmissão, esperando pelo sinal que desencadearia o levante armado. Portanto, a narrativa acompanha de perto os medos e esperanças das personagens, permitindo que enxerguemos o íntimo de cada uma delas. Contudo, as personagens mulheres construídas pelo escritor permanecem às margens da própria história. Cada uma delas, da sua forma específica, desvela os topois, isso é, reflete as características atribuídas a mulheres através do discurso misógino perpetuado pelo cânone. Ironicamente, a revolução, protagonista do romance, nunca chega, abrindo aqui espaços para reflexão, inclusive, da função social atribuída por Jorge Amado a este livro.

O abandono do romance numa mala deixada para trás no seu retorno do exílio em 1942, e que posteriormente seria tema de A mala de Jorge Amado: 1941-1942 (Ramos, no preloRAMOS, Tânia Regina Oliveira (org.). A Mala de Jorge Amado: 1941-1942. Florianópolis: Imprensa Universitária UFSC. E-book. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228141 Acesso em: 1º out 2021.
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
), obra que conta com dez artigos resultantes das pesquisas realizadas no Acervo Mala de Jorge Amado, pela sua importância, pode ter se dado por inúmeros motivos, alguns deles uma pesquisa mais detalhada sobre este romance ousou supor2 2 Coelho (2021) analisa as fabulações possíveis entre o romance inédito de Jorge Amado e dois arquivos histórico-literários: A Mala de Jorge Amado e A Mala de Maria, este último, fruto de doação da família Marcondes Cruz para a pesquisadora, que se propôs a fazer um resgate da memória da militante Maria Cruz, com quem Jorge Amado manteve relação afetiva e política entre os anos de 1938 e 1942. . De início, o romance tinha o objetivo de influenciar a instituição do comunismo através de uma revolução armada: ou seja, derrubando a ditadura do Estado Novo. Quando o Brasil entra na guerra contra o Eixo, os objetivos de grande parte dos comunistas mudam:

Falo da posição dos comunistas, igual no mundo inteiro, tudo pela guerra, abandono do radicalismo, mudança se necessário do nome do partido - vem de acontecer em Cuba onde os comunistas e o ditador Batista se uniram em frente antifascista -, o que importa é derrotar Hitler, tudo o mais torna-se secundário, as palavras de ordem convocando à luta contra o Estado Novo já não têm razão de ser, nem a agitação social, reivindicações e greves, o importante é unir toda a nação em torno do governo, em torno de Getúlio (Amado, 2012AMADO, Jorge (2012). Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Companhia das Letras . E-book., posição 5132).3 3 Esta citação faz referência à versão digital do livro, em formato mobi, do Kindle.

Pouco tempo depois, os ares de união se desfazem, confirma a história do Brasil: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) é posto novamente na ilegalidade em 1947, sob o argumento de ser instrumento de intervenção soviética no Brasil. Os políticos eleitos pelo partido tiveram seus mandatos cassados e boa parte buscou asilo político em países vizinhos, dentre eles, o deputado estadual Jorge Amado, que emigrou para Paris e, posteriormente, para a antiga Tchecoslováquia. A nós cabe destacar que antes de ser eleito deputado, Jorge Amado já era militante comunista desde o início de sua carreira, tendo sido um dos maiores nomes da literatura socialista brasileira. Dessa forma, as marcas de sua ideologia política se espalharam por seus romances, inclusive naqueles que foram publicados entre os anos 1930 e 1940, fase proletária do escritor baiano, contudo, talvez seja um dos seus romances inéditos e inacabados aquele que traz mais fortemente os preceitos do PCB.

Ao deixar o romance dentro da mala, Jorge Amado abandona também uma revolução que nunca veio. Chamou-a, como já mencionamos e convém destacar, de São Jorge dos Ilhéus e, em outro original presente no Acervo Mala de Jorge Amado, Agonias da noite, alegoria de uma revolução que ficou sem nome definido e sem desfecho. O romance escrito entre os dois anos em que Jorge Amado esteve em exílio na Argentina e no Uruguai, 1941 e 1942, seguia os exatos preceitos do realismo socialista, até ser abandonado abruptamente. Jorge Amado era o maior representante literário dos ideais do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O realismo socialistavisava a disseminação da ideologia do PCB, exigindo que as obras comunistas possuíssem um caráter pedagógico. Ainda que apenas durante o Congresso Nacional de Escritores da Associação Brasileira dos Escritores (ABDE) tenha sido passada a orientação oficial aos escritores brasileiros acerca do método comunista de fazer arte, Jorge Amado já havia começado a escrever uma obra dentro dos moldes do realismo socialista, talvez a mando do PCB ou antecipando a ordem. Numa das cópias do romance, presentes na mala, no prefácio, o escritor evidencia a coletividade enquanto protagonista do livro:

Talvez vos pareça absurda a situação em que apresento as personagens desta história. A verdade é que se reuni esses homens em torno a um rádio numa noite de chuva é porque não creio que existam situação impossíveis na vida tão mais cheia de surpresas que qualquer romance. Esses homens são muitos outros, cada qual é bem mais de um, todos aqueles que conheci entre o amor e a morte. Eu os reuni em torno a um rádio, deixei-os pensar no que amavam e na morte presente nos ruídos da noite (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).4 4 O romance em questão não foi publicado, logo, não possui paginação oficial, havendo, inclusive, repetição de páginas durante toda sua extensão. Trata-se de um documento presente no arquivo Mala de Jorge Amado, parte da materialidade que compõe este acervo.

Ao nosso artigo interessa mesmo mostrar que o romance inacabado, inédito e inominado de Jorge Amado conta a história de um grupo de militantes prestes a se reunir na fazenda de um dos companheiros, numa simbólica noite de tempestade, todos ao redor de um aparelho de rádio que daria o sinal para o levante armado. A história possui muitos personagens e tem uma narrativa intimista, porém, não foca em nenhum deles especificamente, construindo, assim, um herói coletivo, característica primordial dos romances de realismo socialista. Contudo, a voz que ecoa desses coletivos é um uníssono masculino que escanteia as mulheres que compõem a narrativa, estas que são, em sua maioria, ocas, vazias, sem a subjetividade que constrói os indivíduos. Iremos ilustrar com ênfase duas das principais personagens: Dalva e Edith e apresentaremos Maria Franco, a que teve voz e vez na vida vivida de Jorge Amado.

A partir da crítica do sujeito universal masculino que constitui a mulher enquanto negatividade, partindo sempre da visão do homem para construí-la como o Outro, produzindo a subjetividade feminina como espelho do sujeito homem, buscou-se compreender o que constitui o sujeito feminino. Embora o estado da arte que versa sobre os sujeitos dos feminismos aborde a insuficiência da definição de feminilidade como negatividade e aposte na potência criativa do caráter ambíguo dessa posição, o que Cláudia de Lima Costa (2002COSTA, Cláudia de Lima (2002). O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu, Campinas, n. 19, p. 59-90. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3msOTzV Acesso em: 29 maio 2021.
https://bit.ly/3msOTzV...
) caracteriza como positividade do sujeito feminino, foi necessário buscar teorias que operassem com conceituações binárias, já que é de forma binária que o pensamento de Jorge Amado se constitui para estruturar as personagens.

Em crítica à semiótica, Monique Wittig (2006WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales.), feminista e escritora francesa, registra a despolitização da linguagem na medida em que não se investe em compreender as imbricações entre a sua formação e as relações de poder nas quais elas emergem. Esta disjunção permite que se tomem as categorias como fundamento, como dado imutável, a-histórico, de significado absoluto, naturalizando as relações de poder e, portanto, as condições de dominação e subordinação que lhes servem de fundamento:

Por mais que se tenha admitido nos últimos anos que não há natureza, que tudo é cultura, permanece habitando o seio desta cultura um núcleo de natureza que resiste à apreciação, uma relação excluída do social na análise e que reveste a cultura e a natureza de um caráter incontestável: a relação heterossexual. Eu descreveria como a relação social obrigatória entre o “homem” e a “mulher”. (Aqui me refiro a Ti-Grace Atkinson e a sua análise da relação sexual como uma instituição). Havendo definido a incontestabilidade dessa relação como uma verdade, um princípio evidente, um dado anterior a toda a ciência, o pensamento heterossexual investe em uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e de todos os fenômenos subjetivos. Não posso deixar de apontar o caráter opressivo do pensamento heterossexual em sua tendência a universalizar imediatamente sua produção de conceitos, a formular leis gerais que valem para todas as sociedades, todas as épocas, todos os indivíduos (Wittig, 2006WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales., p. 51-52, tradução nossa).

Luce Irigaray (2002IRIGARAY, Luce (2002). A questão do outro. Labrys, Estudos Feministas, n. 1-2, jul-dez. on-line. Disponível em: Disponível em: https://www.labrys.net.br/labrys1_2/irigaray1.html . Acesso em: 29 maio 2021.
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), filósofa e psicanalista belga, ao criticar Freud, chama a definição da mulher enquanto negativo do homem de “pensamento simétrico” ou “economia do mesmo” e argumenta que essa lógica exige do sujeito feminino uma adaptação para que seja inteligível dentro desta linguagem falocêntrica, resultando num estereótipo, uma casca vazia pensada para ser desejada pelo olhar masculino, ou seja, numa feminilidade como mascarada, como define a autora. Por sua vez, em sua tese, Rafael Kalaf Cossi resume bem o pensamento de Irigaray:

Para ela, a construção da máscara se edificaria a partir dos valores que os homens reconheceriam como importantes para uma mulher. Trata-se de um processo fálico e que, no seu desenrolar, exige que a mulher descarte o que, de fato, lhe seria “seu” para corresponder aos padrões masculinos que ditariam como ela deve se dar a ver (Cossi, 2016COSSI, Rafael Kalaf (2016). A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo.2016. 276p. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-25072017-090645/publico/cossi_do.pdf Acesso em: 29 maio 2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 37).

Dessa forma, Luce Irigaray aponta para uma feminilidade verdadeira5 5 Reiteramos que as discussões e estudos de gênero questionam fortemente o caráter essencialista de definições como esta. Contudo, a utilização do conceito foi feita de forma pontual e dentro de um contexto específico, em que seria necessário operar com uma definição extremamente binária e restrita de feminilidade/mulheridade. , passível de ser construída a partir de novos referenciais que não os masculinos, numa subversão da lógica patriarcal. Como argumenta Mônica Saldanha:

Deste modo, a mulher só pode inscrever-se no discurso psicanalítico lacaniano - assim como na economia simbólica do falo - como falta para o homem, nunca como um elemento singular; o masculino é, portanto, o único sexo e o único gênero. Sendo assim, Irigaray alerta que a simples constituição de um inconsciente feminino como oposição reiteraria o regime fálico e seus binários hierarquizantes. Seria necessária uma forma positiva de pensar a diferença, que altere os modos através dos quais se entendem a alteridade e o mesmo, que perturbe os referenciais masculinos legitimados. Essa ruptura não poderia existir senão através da emergência de um outro real, um elemento que permitisse aos homens exceder o domínio de seu imaginário, mas, para tanto, as mulheres têm de se fazer representar para além deste imaginário masculino (Saldanha, 2018SALDANHA, Mônica (2018). Lesbianizar o irrepresentável. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. Cuiabá, v. 1, n. 3. Disponível em: Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/9168 . Acesso em: 20 maio 2021.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, p. 12).

Sendo assim, enquanto Monique Wittig deseja propor outra linguagem e recusa as identidades masculinas e femininas tecidas pelo pensamento simétrico, já que enxerga a feminilidade enquanto negativo do masculino, Luce Irigaray recusa a definição da feminilidade como negatividade, que caracteriza como mascarada, acreditando na existência de uma feminilidade autêntica que é, no entanto, impossível de ser dita pela linguagem masculina.

Dito isso, chegamos ao ponto crucial para a leitura de Dalva, previamente, e Edith, subsequentemente: ao criar as duas personagens, Jorge Amado parte de um imaginário baseado na economia do mesmo, em que Dalva é o Outro de Augusto e Edith é o Outro de Heitor, seus maridos. Não há essência, conteúdo ou completude na personalidade das mulheres; então, ao escrever duas mulheres sem inspiração em sujeitas reais, nascidas unicamente de seu imaginário masculino, Jorge Amado dá conta de delinear uma feminilidade enquanto mascarada e passa longe de alcançar autenticidade ou positividade do sujeito feminino, contrariando o que acontece com Maria Franco, outra personagem mais significante, quando parte da convivência com uma mulher completa e de um lugar de afetividade. A seguir, discorremos sobre trechos específicos do romance inédito que vêm ilustrar o que denominamos de as cascas ocas de Dalva.

Dalva e Augusto vivem na fazenda, em Estância (SE), que é cenário da história, junto de seus dois filhos pequenos. É na sala da casa da família que os militantes se reúnem ao redor do rádio, à espera do chamado para o levante. Augusto, contrariado, torce para que os companheiros não apareçam para o encontro e agradece a tempestade que chega: talvez isso impedisse a chegada dos homens. Dalva, aflita, aguarda as visitas para o que seu marido chamou de reunião para realizar uma experiência. Se o homem está arrependido de haver se metido com a militância e sofre em silêncio, temendo seu futuro, como explicaria à esposa o que se passava, logo se recorda:

Por que se metera? Não encontrava uma justificativa, nada que dizer a Dalva e aos meninos. Quis rir lembrando-se que nada lhes perguntavam, que Dalva estava longe de imaginá-lo envolvido em conspirações, que a mais velha das crianças tinha apenas quatro anos e a outra sete mezes. Nada sabiam, Dalva pensava que se tratava de uma experiência que amigos vinham tentar. Mas essa ignorância amedrontava ainda mais Augusto porque compreendia que seria fatal a descoberta e então onde encontra palavras com que explicar? Hoje mesmo vira um olhar de dúvida no rosto frágil da mulher, rosto cansado e tão precocemente envelhecido. Ela já duvidava, por mais de uma vez perguntara de que ele tinha receio. Respondera brutalmente e fugira de casa, saíra pelo campo em grandes passadas, o rio embaixo de correnteza forte tentava como um convite. Mas que seria feito de Dalva e dos meninos se ele se matasse? (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).6 6 Optamos por trabalhar com a versão fac-similar do romance, respeitando a grafia utilizada pelo autor, ainda que em desvio segundo a norma padrão.

O casamento de Dalva e Augusto vai mal, para ele, “sua vida era sem desejos e sem fé e ele nada encontrou dentro de si que o afastasse da realidade da noite medonha” (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.). Tampouco Dalva era feliz ou apreciava a companhia do marido. A tristeza e o cansaço tomaram conta da mulher. Ao descrever a aparência de Dalva, o narrador trabalha dentro dos limites da feminilidade mascarada, que almeja a figura feminina como frágil, doente, ou seja, passível de proteção:

Ela fora bela, de uma beleza frágil e doentia quando ele a conhecera. Parada, os olhos tristes, as mãos caídas como que desesperançadas de tudo. Depois, quando findaram os sonhos e esperanças do noivado, o trabalho a dominara e a envelhecera. Da sua beleza só restava a tristeza dos olhos, certa graça da voz quando cantava para as creanças dormirem (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Os sonhos do casal foram trucidados pela exploração capitalista que impactou, também, o casamento. Augusto, não tendo se acostumado com o trabalho de vendedor, largou tudo e comprou uma fazendinha simples em que a família poderia plantar e colher para sobrevivência. A narrativa do sofrimento dos trabalhadores faz parte dos preceitos do realismo socialista, trabalhados no trecho a seguir:

Hoje Augusto achava quase impossível que em alguma ocasião houvesse sonhado. Esses sonhos do noivado apareciam-lhe agora como coisas tão distantes que por mais esforços que fizesse só conseguia se apossar de farrapos deles, não reconstruía um único totalmente. Viagens? Onde? Lembrava quando muito um detalhe: gondolas em Veneza. Dinheiro? Recordava de um medíocre colar que ela vira na vitrine de uma joalheria. Não conseguia possuir integralmente mais um único sonho. Os anos se passavam e o sonho agora, sonho de Dalva em que ele pouca parte sonhava, era um aparelho de rádio para a solidão da fazenda. Talvez fosse possível com as economias desse ano. Talvez no Natal... (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Ironicamente, o sonho de Dalva era um rádio para aplacar os dias solitários, o mesmo aparelho que agora estava em sua casa, prestes a trazer a revolução e a provável morte de seu marido. Augusto, esperançoso de que os companheiros de luta não aparecessem, começa a sonhar com o próximo Natal e o presente que dará à esposa:

Chegaria na noite de Natal com o aparelho. Ela só esperaria pelo presente dos meninos e talvez até chorasse de alegria. Ouviriam músicas de distantes terras, melodias na solidão da fazenda, os sonhos de noivado teriam alguma alegria. A música que ela adorava (tocara piano quando moça) encheria a casa, quem sabe se não encheria de alegria aquele rosto triste, se não animaria aquelas mãos caídas? (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Todas as descrições de Dalva transitam no campo das características esperadas de uma mulher através de olhos masculinos: fragilidade, tristeza, cansaço da mãe e esposa que trabalha no lar, ingenuidade e medo. Especificamente sobre os temores de Dalva, vislumbra-se, inclusive, frutos da memória intertextual que Luísa Marinho Antunes trabalha: os ecos de discursos misóginos, muitos utilizando referências judaico-cristãs para a composição de estereótipos femininos, ou, como diria Luce Irigaray, para a construção desta feminilidade como mascarada. Citamos a resenha do livro, publicada na Revista de Estudos Feministas para elucidar melhor as ideias trabalhadas pela autora:

Nas linhas do livro de Antunes, percebemos: a construção de um cânone baseando-se em regras sociais hierárquicas, e este cânone será repetido e repetido, ano após ano, século após século e seu resultado será uma voz hegemônica que nada mais é do que o eco de fantasmas. É este conceito que nos proporciona a repetição de autores canônicos e de suas vozes. O discurso é construído a partir de uma intertextualidade, inclusive aquele que segrega e perpetua o status quo, criando raízes na história e ganhando espaço como modelo a ser seguido (Coelho, 2019COELHO, Thalita S. (2019). O eco de fantasmas: perpetuação da misoginia no cânone. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 1, 09 maio. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Aeyxjh . Acesso em: 29 maio 2021.
https://bit.ly/3Aeyxjh...
, p. 3).

Os estereótipos de mulher enraizados na cultura ocidental estão, basicamente, nas figuras clichês da mulher beata e da mulher demônio, representadas, dentro do repertório cristão, como Maria e Eva. De um lado, a benevolência, a inocência, a castidade e a submissão. De outro, a sede pelo conhecimento, a transgressão, a sensualidade. Dalva, por diversas vezes, nos parece um reflexo da Virgem Maria; santa e religiosa que, ao contrário de Eva, teme a serpente que invade o Jardim do Éden, concretizado na ofiofobia da personagem:

Dalva tem sempre a impressão que as cobras terminarão por subirem na varanda e chegarem ao seu pescoço no qual se enroscarão como um colar [...] Nas noites da fazenda o bicho-papão que jamais a amedrontara na infância se realisava agora na figura das cobras se arrastando para o pulo fatal sobre as rãs. Tremia sempre que pensava que sobre o telhado podia estar uma delas, sutil e silenciosa (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

A narrativa retoma o pavor das cobras por diversas vezes, inclusive para contar a história de Joana, uma mulher “que bebia como qualquer dos homens” e que, certo dia, teve seu bebê picado por uma serpente venenosa, enlouquecendo após a morte da criança; o tom do causo soa como que castigo divino por Joana se atrever a largar a máscara da feminilidade. Dalva passa boa parte do enredo temendo enlouquecer, destino trágico dado a muitas mulheres através de perseguições históricas, vide a histeria que foi medicalizada e deu aval para a internação e tortura de mulheres durante o século XIX.

A máscara da feminilidade também se certifica de manter Dalva inocente, ingênua, quase como uma criança. Avisada pelo marido de que se realizaria uma experiência com os companheiros, Dalva não estranha a movimentação, as conversas ou as cantorias dos homens, mantém-se sempre sem compreender o que se passa, embora, em alguns momentos, se indague sobre as condições de tal “experiência”:

E por que teriam escolhido aquela noite tão feia para a experiência? Em meio à chuva e ao vento quando é difícil captar siqueras estações de onda longa deve ser quase impossível que uma experiencia dê bons resultados. Perguntara a Augusto e ele ficara furioso, não respondera, dissera que ela queria saber demais, que se não estava acreditando no que ele dissera paciência. Mas ela não estava duvidando e se espantava do repentino furor do marido. Ele andara incompreensível durante todo aquele dia, nervoso e inquieto, sombrio, evitando conversar. Parecia até dono da invenção. E tinha súbitas crises de carinho, se aproximava das creanças, fazia-lhe agrados, brincava com eles, beijava Dalva, dissera-lhe mesmo que “quem sabe nesse Natal não teremos o nosso rádio?”. Porque numa noite de chuva e temporal? Ia fracassar com certeza a experiencia e Dalva estava com pena do inventor. Parecia tão triste e tão nervoso. Quanto anos não perdera da sua vida trabalhando no aparelho, em silencio, gastando dinheiro (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Dalva é a única das três personagens mulheres que está, de fato, presente na reunião dos militantes comunistas. Contudo, talvez seja a que mais está alheia aos acontecimentos e a que menos entende a situação, mesmo que a veja com seus próprios olhos. Permanece no escuro, sem informações que venham do marido, sem conversar com os homens que estão na sala de sua casa, nem ao menos é apresentada a estes, Dalva aguarda que o marido a busque para que possa se apresentar e desejar boa sorte com a experiência. Mesmo ignorada, a benevolência de Dalva é tanta que, em silêncio, pede a Deus que a invenção funcione, para que os homens sejam felizes. Então, inicia uma oração, aos pés da Virgem Maria, coroando seu lugar de santidade na narrativa e, aqui, novamente, a imagem da serpente volta a atormentar a personagem, como se de fato a cobra fosse a metáfora do conhecimento que Dalva teme:

Do fundo do seu coração roga a Deus que tudo pode, que a experiência seja coroada de êxito. Assim aqueles homens ficarão alegres, o inventor que está nervoso à janela não torcerá mais as mãos nem fitará angustiado a noite de chuva e vento. Eles acabam o serviço de ligações e agora se aproximam todos do aparelho. Dalva lê a esperança e o medo no rosto dos homens desconhecidos. E, não sabe por que, os ama como a parentes e amigos queridos, sente com eles e deseja que saiam vitoriosos. Deixa devagarinho a porta entreaberta, se dirige para o quarto de dormir onde um pequeno oratório a luz de uma lamparina ilumina a imagem da Virgem. Dalva cae de joelhos e reza, pedindo com o mesmo fervor com que pede à Virgem que afaste as cobras de perto dela, do marido e dos filhos. Suas mãos tristes e caídas se levantam às súplicas. Tudo que ainda resta nela de desejo de alegria se une nessa prece rezada pela felicidade de homens que Dalva não conhece. Enquanto seus lábios murmuram maquinalmente as palavras da Ave-Maria e seu coração diz à Virgem:

“Senhora, vede que eles estão com medo, os rostos tristes,

As mãos tremendo. Senhora, a noite é triste, a chuva cae,

O vento geme nas árvores e no coração dos homens. Um deles

Trabalhou muito, Senhora, espere hoje a recompensa. Não consentí, Senhora,

Que ele perca a esperança. Pelo amor do vosso Filho fazei com que a experiencia

Desses homens seja bem sucedida. Assim eles serão alegres” (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Retirada de alegrias, de desejo próprio, resta a Dalva rezar por quem ela não conhece, amar aqueles com quem nunca trocou sequer uma palavra. Pela alegria dos homens é que ora Dalva, aos pés da Virgem Maria, e nada mais importa. Essa casca bondosa e incondicionalmente cheia de amor é vazia e sem voz. Em determinado trecho da narrativa, quando o rádio, finalmente, funciona e a música invade a sala da fazenda, “A voz de Dalva vem da sala em surdina, mas eles nem a percebem, não percebem voz nenhuma, só o conjunto alegre e confiante” (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.). Quem não possui personalidade, não possui voz, nesse fragmento do romance, literalmente. A voz só e de mulher de Dalva não alcança o uníssono coletivo e masculino, não é capaz de ecoar nem mesmo dentro de sua casa. À Dalva resta apenas o espaço privado e, mesmo sua sala de visitas tornou-se espaço público quando ocupada pelos homens; a ela resta o quarto com a imagem da Virgem e a cozinha, local para qual ela vai quando o maior momento de emoção e alegria da personagem chega: “Dalva tem uma inspiração súbita: E se eu fizesse um cafésinho para eles? Dirige-se para a cosinha e vae alegre, todo o seu ser palpita” (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

A primeira frase do romance parece já nos antecipar todo o destino de Dalva: “O relógio discordava dos moveis da sala, antigos e pesados, um relógio pequeno e moderno, presente que Dalva recebera no último aniversário” (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.). O relógio, talvez metáfora para o novo tempo que virá a partir da revolução, foi um presente do marido, o que pode nos apontar que a revolução virá das mãos dos homens e chegará para todos, mesmo para aqueles que de nada sabem, como Dalva. A mulher, figura estereotípica da submissão feminina, usando perfeitamente a máscara de que Luce Irigaray (2002IRIGARAY, Luce (2002). A questão do outro. Labrys, Estudos Feministas, n. 1-2, jul-dez. on-line. Disponível em: Disponível em: https://www.labrys.net.br/labrys1_2/irigaray1.html . Acesso em: 29 maio 2021.
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) fala, é tão vazia e sem complexidade que, em determinado trecho, Augusto diz que pensava em “rolar na cama e a possuir cheio de alegria”(Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.), o que pode transparecer apenas como a noção básica de posse masculina dos corpos objetificados de mulheres, lembrou-nos a possessão7 7 Acreditamos ser necessário diferenciar “possessão” e “incorporação” espiritual. Nas culturas de matriz africana, a incorporação faz parte dos ritos com orixás e entidades. Diferentemente da possessão, ao incorporar, o médium dá passagem à energia de espíritos ancestrais, conscientemente. espiritual; como se, sem alma própria, Dalva servisse de receptáculo para a alma masculina, como se, apenas no momento em que o marido a possui, ela estivesse, de fato, preenchida de espírito.

Por sua vez, há Edith que dorme durante todo o tempo em que se passa o romance. Adormecida, não se mexe na cama nem fala durante o sono. Toda a imagem da personagem, na cena em que Heitor8 8 Os detalhes pertinentes ao personagem Heitor foram trabalhados no artigo Sair da mala e sair do armário, de Thalita Saldanha Coelho, no livro A mala de Jorge Amado 1941 - 1942 (Ramos, no prelo). aparece e reflete sobre ir ou não para a revolução, é construída na inércia, no sonho. Se nos lembrarmos de algumas crenças kardecistas9 9 Diz respeito à doutrina religiosa de Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail. No Brasil, o Kardecismo e a Umbanda se encontram em alguns terreiros, compartilhando crenças. de que o espírito abandona o corpo durante o período de repouso, temos o físico vazio de alma: uma casca. O que já nos aponta para o que, de fato, ocorre na narrativa: Edith existe apenas na medida em que descreve e dá vida aos desejos de Heitor; é ausente de personalidade ou ação. Já tendo apresentado os trechos referentes a Edith, refletimos teoricamente sua construção ao evocar, novamente, Monique Wittig e Luce Irigaray, acompanhadas agora por Adrienne Rich (2010RICH, Adrienne (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bágoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 5, p. 17-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309 . Acesso em: 26 set. 2020.
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) ao discutirmos a lesbofobia como uma violência não apenas às lésbicas, mas a todo e qualquer afeto lesbiano, bem como às mulheres que, de alguma forma, não se encaixam dentro dos padrões de feminilidade.

Retomando o pensamento de Monique Wittig (2006WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales.), a autora defende que a feminilidade seja entendida como negatividade do masculino, o que caracteriza a mulher como categoria política; para ela, é preciso que se desenvolva uma linguagem nova, novas categorias, para operar com a potência desse lugar ambivalente, com a subjetividade dos sujeitos complexos que ocupam. Para ela, persistir na utilização da nomenclatura produzida pelo pensamento straight10 10 Sobre a utilização do termo straight, cito Mônica Saldanha (2021, p. 158): “Quanto à questão lexical, embora straight possa se traduzir como “heterossexual”, o termo também carrega significados como “direto”, “correto”, “honesto” ou “lógico”; é um termo que referencia, em amplo espectro, a ordem, a norma. O próprio Sam Bourcier, responsável pela tradução francesa do ensaio, comenta que a manutenção do termo straight no título foi uma decisão conjunta de ambos, indicando que Wittig de fato pretendeu conscientemente abranger muito mais do que o campo da sexualidade em sua análise”. é uma forma de se submeter a ele. A ambivalência, para Monique Wittig, não está na oposição entre o caráter positivo e o negativo da experiência feminina, mas na ideia de sujeito excêntrico, no deslocamento do sujeito para além da categoria política “mulher”.

Contudo, a evasão da categoria mulher não implica a conversão em homem:

Ter uma consciência lesbiana supõe não se esquecer, em hipótese alguma, até que ponto ser mulher era, para nós, algo não natural, algo limitador, totalmente opressivo e destrutivo, nos velhos tempos anteriores ao movimento de libertação das mulheres. Era uma constrição política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser mulheres “de verdade”. Mas, então, estávamos orgulhosas disso, porque na acusação havia uma sombra de triunfo: o reconhecimento, por parte do opressor, de que “mulher” não é um conceito tão simples, porque para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”. Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querermos ser homens. Hoje, essa dupla acusação tem sido encarada com entusiasmo no contexto do movimento de libertação das mulheres e por algumas feministas e, também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece ser se tornar cada vez mais “femininas”. Contudo, se negar ser uma mulher não significa ter que se tornar um homem. Ademais, se tomarmos como exemplo a perfeita “butch” - exemplo clássico que provoca horror, a quem Proust chamou de mulher/homem - em que difere sua alienação de quem quer se tornar mulher? Tanto faz, tanto fez. Ao menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que esta escapou da sua programação inicial. Porém, mesmo que desejasse com todas as suas forças, não poderia se tornar um homem, porque isso exigiria que não apenas tivesse uma aparência externa de homem, mas também uma consciência de homem, ou seja, a consciência de quem dispõe, por direito, de dois - senão mais - escravos “naturais” durante a sua vida. Isso é impossível, e uma característica da opressão lésbica é precisamente que colocamos as mulheres fora do nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens. Assim, uma lésbica deve ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da “natureza”, porque não existe “natureza” na sociedade (Wittig, 2006WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales., p. 34-35, tradução nossa).

Adrienne Rich (2010RICH, Adrienne (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bágoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 5, p. 17-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309 . Acesso em: 26 set. 2020.
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), por sua vez, opta pelo uso das expressões “existência lésbica” e “continuum lesbiano” como forma de escapar às definições heteronormativas (ou straight, como colocaria Wittig) da lesbianidade, que considera ter “alcance limitado e clínico” (2010, p. 35). Além disso, critica a definição da lésbica a partir do ódio aos homens, preferindo retratá-la como “uma carga elétrica de empoderamento entre mulheres” (2010, p. 42). Para ela, as relações entre mulheres - mesmo aquelas que não se definem pelo desejo sexual, mas que representam qualquer tipo de recusa à dinâmica normativa da heterossexualidade, como a reprodução - encerram uma potencialidade limitada pela instituição da heterossexualidade:

Existência lésbica sugere tanto o fato da presença histórica de lésbicas quanto da nossa criação contínua de significado dessa mesma existência. Entendo que o termo continuum lésbico possa incluir um conjunto - ao longo da vida de cada mulher e através da história - de experiências de identificação da mulher, não simplesmente o fato de que uma mulher tivesse alguma vez tido ou conscientemente tivesse desejado uma experiência sexual genital com outra mulher. Se nós ampliamos isso a fim de abarcar muito mais formas de intensidade primária entre mulheres, inclusive o compartilhamento de uma vida interior mais rica, um vínculo contra a tirania masculina, o dar e receber de apoio prático e político, se nós podemos ouvir isso em associações como uma resistência ao casamento e em um comportamento, digamos, “exaurido”, identificado por Mary Dale (significados obsoletos: “intratável”, “obstinada”, “licenciosa” e “impudica”, “uma mulher relutante de se submeter a cortejos”), nós começaremos a compreender a abrangência da história e da psicologia feminina que permaneceu fora de alcance como consequência de definições mais limitadas, na maioria clínicas, de lesbianismo [...]Como o termo lésbica tem sido empregado com associações clínicas, limitadas com definição patriarcal, a amizade e o companheirismo feminino são colocados à parte do erótico, limitando, portanto, o erótico em si mesmo. Quando, porém, nos aprofundamos e ampliamos o conjunto doque definimos como existência lésbica, quando delineamos um continuum lésbico, começamos a descobrir o erótico em termos femininos (2010, p. 35-37).

Edith não é lésbica, no que se refere à orientação sexual. É mulher, se mulher significar, como acredita Monique Wittig (2006WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales.), se submeter às dinâmicas da relação fundante da mulheridade. Contudo, por não se encaixar nos padrões moldados de feminilidade do pensamento straight, é considerada uma mulher incompleta, malfeita, medíocre, como afirmam os colegas de Heitor. É nesse espaço de incompletude que Edith se assemelha à lésbica: feia, incapaz de ser desejada, muitas vezes vista como rancorosa e frustrada com os homens, como Simone de Beauvoir afirma ao falar da figura das “viragos” que, se retomarmos Irigaray, seriam aquelas mulheres incapazes de produzir uma feminilidade como mascarada:

E, bem entendido, a natureza de suas experiências heterossexuais que leva a mulher “viril” a escolher, assumir ou repudiar o seu sexo. O desdém masculino confirma a mulher feia no sentimento de sua falta de graça; a arrogância de um amante fere a orgulhosa. Todos os motivos de frieza que já consideram: rancor, despeito, temor da gravidez, traumatismo provocado por um aborto etc., se encontram aqui (Beauvoir, 1967BEAUVOIR, Simone (1967). O Segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. , p. 151).

Essas particularidades podem motivar mais ou menos diretamente uma vocação lésbica. Uma pessoa dotada de uma vitalidade vigorosa, agressiva, exuberante, almeja despender-se ativamente e recusa ordinariamente a passividade; desgraciosa, mal constituída, uma mulher pode compensar sua inferioridade adquirindo qualidades viris; se sua sensibilidade erógena não está desenvolvida, ela não deseja as carícias masculinas (Beauvoir, 1967BEAUVOIR, Simone (1967). O Segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. , p. 145).

O corpo de Edith não é, portanto, um corpo de mulher. Também não é o de um homem, mas transita na fronteira, sendo comparado, todo o tempo, com um menino, pré-púbere. Se encarada como falha de gênero, podemos enxergar Edith dentro da lesbianidade e, portanto, a violência a ela imposta, principalmente pelo discurso dos amigos de Heitor que declaram sua inferioridade, se caracterizaria como lesbofobia. Há, então, no corpo de Edith, uma ambiguidade latente, o que nos remete às discussões da medicina acerca da categorização do sexo biológico e dos corpos ditos masculinos e femininos.

Dessa maneira, no modelo isomórfico só há a potência masculina, o ápice só pode ser descrito na figura de um homem. A mulher era uma forma subdesenvolvida deste. Logo, Edith seria uma versão da mulher no modelo do sexo único, em que se parece com um menino, ainda não plenamente desenvolvido, sem ter conseguido alcançar o seu auge, o que também dialoga com a visão da lésbica enquanto incompleta, malfeita, disforme. Edith é possuidora de um corpo incompleto, como se estivesse adormecido, sem ter de fato “acordado” para a sua evolução total, assim como a própria personagem, que dorme durante toda a narrativa. A ambiguidade da existência de Edith corresponde à ambiguidade do desejo de Heitor. Ela não é bem uma mulher, nem um homem; ele não é gay, mas também não corresponde à representação orgulhosa da masculinidade comunista. Sendo assim, Edith existe na medida em que o desejo de Heitor necessita ser expresso e representado, permanecendo vazia e inerte na cama.

Na narrativa, duas são as personagens masculinas que consideram desistir do levante armado: Heitor e Mario. Heitor é pintado como o covarde, aquele que ama a esposa por esta lembrar um rapaz, a esposa que é igual ao colega de classe. Heitor, o gay, o covarde, desiste de ir e fica na cama com Edith, sofrendo alucinações com todos os companheiros dentro de seu quarto. Mario é corajoso, o líder do levante da cidade, mas a felicidade, o amor por uma mulher o prende; mesmo assim, corajoso que é, característica atribuída pelo ideário patriarcal aos homens de verdade, opta por deixar para trás a amada e provar sua honra através de seu sacrifício:

Mesmo na hora de sair, no horror da noite, Maria Franco (não conseguia pensar no nome dela a não ser juntando-lhe o sobrenome) passara-lhe os braços em volta do pescoço e mais uma vez dissera:

- Não vá, Mario. Não vá. Então agora é que você acha de se desgraçar? Agora que nos encontramos? Não vá, vamos fugir, o mundo é grande, viveremos em qualquer parte. Largue tudo, pense em mim. Nunca mais você poderá viver junto deles tendo a mim. Nunca eu poderia ficar com você ao lado deles. E José? Não, Mario, vamos fugir. Não vá, eu te peço.

Ficara calado, beijando os olhos dela. Por que ela viera tão tarde? Por que viera com José, não viera sozinha? Desgraça. Como a felicidade traz desgraça! Desgraça. Era a única palavra. Naquele momento, os braços dela no seu pescoço, sentia o pensamento oco, não pensava mesmo em nada, nem em fuga, nem em luta. Desgraça. A voz dela era terrível de medo de perder tudo que tinham conquistado de repente, conquistado (e com ela, pensava Mario) traindo a confiança de um homem bom (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

É curioso perceber que a única fala de uma mulher com mais de três linhas em todo o romance é essa, retratada acima, de Maria Franco, a mais fundamental da tríade feminina. Maria é também a única das personagens que consegue articular e argumentar, as demais permanecem sem voz e, quando falam, são frases vazias, normalmente performances estereotipadas ou serviçais (oferecendo café, por exemplo).

Mesmo com o apelo da companheira, Mario escolhe a morte, escolhe os homens, escolhe a redenção da culpa de ter traído José Franco, seu melhor amigo e marido de Maria. Mesmo com o amigo tendo abandonado a esposa, Mario não consegue desvencilhar o sentimento de posse causado pelo matrimônio e pelo pensamento burguês, ironicamente incrustrado no militante comunista: para ele, era impossível chamá-la sem o sobrenome do marido; ela só existe dentro da posse do casamento, o que se evidencia com mais clareza no trecho a seguir:

- Vamos largar tudo, Mario, nossa vida é mais importante que tudo isso.

- É mais uma traição...

A voz dela era incisiva no desespero:

- Toda felicidade é traição...

Como tivera coragem de a deixar? Saíra como um desgraçado açoitado pelo vento e pela chuva, e ia quase correndo, doido para alcançar logo a garagem e não pensar mais em nada senão em morrer, em lavar, assim, a sua vida. Traíra um homem bom, traíra sua confiança, se apossara do bem que ele lhe dera a guardar quando fugia perseguido. Devia morrer por isso, desejava morrer por isso. E se fugisse? Se tomasse de Maria Franco e fosse com ela para outro mundo, outra gente que os conhecesse, um lugar onde ela não fosse Maria Franco, onde a chamasse de Maria de Oliveira? “Toda felicidade é traição”, ela dissera, era mais forte que ele, ela defendia com mais coragem o seu amor e a sua felicidade. [...] Ainda não compreendera como a conquistara, tão inacessível ela lhe parecera desde há muitos anos já, quando Maria Franco ainda era uma menina-moça e José Franco a desposou. Um dia José Franco teve que sair às pressas, fugitivo e lhe entregou Maria para que ele cuidasse dela. E foi assim quase de súbito que um dia veio a saber que ela também o amava. No delírio dos braços dela, na claridade daquela felicidade que tudo ofuscava, conseguiu esquecer que estava se apossando de um bem do amigo, um bem confiado a sua guarda (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile., grifo nosso).

José é descrito sempre como um homem bom, de coração grande, que nunca perdoaria uma traição; sua figura permanece sempre entre Mario e Maria, dividindo o casal, com seu olhar triste e decepcionado. Ao contrário de Maria, Mario não suporta o fantasma de José e decide que a morte pela revolução é a única forma de conseguir perdão. Neste ponto, o narrador deixa evidente que Maria é infinitamente mais forte do que o amado:

Ele não tem a fortaleza de Maria Franco que sacrifica tudo, passando sobre tudo. Essas coisas nos lábios dela saíam sempre num tom dramático de desespero e tinham uma marca de sinceridade que abalavam Mario. E ficava sem saber se devia ir para lutar pela felicidade de milhares e milhares de homens ou se devia abandonar tudo, trair uma causa depois que traíra um amigo e fugir, levando Maria para muito longe, tão longe que o fantasma de José Franco não os acompanhasse. Seria que ela não encontrava entre si a felicidade daquele amor a figura do marido, sempre tão bom e tão terno, risonho e afável, apaixonado pela mulher? Ela era mais forte que Mario, muito mais forte. Dissera-lhe que a felicidade é sobretudo egoísta e que o ser humano tem que despedaçar tudo que se encontre entre ele e a felicidade, sejam sentimentos, sejam homens (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

A coragem, por sua vez, significa rebeldia, diferente das medidas utilizadas para marcar Heitor enquanto covarde. Se o militante que, tendo descoberto as origens homossexuais de seu desejo por sua esposa, decide fugir da revolução, é facilmente taxado enquanto medroso, Mario, que escolhe os homens, a revolução e a morte, também ganha o mesmo título do amigo Heitor:

preferia se deixar matar por egoísmo. Por egoísmo, sim. Mario repete isso para si mesmo. Puro egoísmo morrer agora, libertando-se assim de tudo, encontrando um caminho só para ele. Morrer não era coragem. Nunca se precisa de coragem para morrer quando a morte é a mais alegre das perspectivas. Gesto corajoso era o de viver, de fugir, de não lutar naquela noite nem em outras noites futuras, coragem era ser covarde e traidor. Mario, a quem todos achavam um homem de coragem comprovada, não se sentia bastante corajoso para isso. Aquela frágil mulher que ficara em casa tinha muito mais coragem que ele. Ela não queria morrer. Ela preferia viver, mesmo que tivesse que carregar tão pesadas marcas na face. Achava que a felicidade valia qualquer sacrifício e que o dever do homem é defender sua felicidade acima de tudo (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Para Mario, a verdadeira coragem estava em conviver com o espectro de José Franco sempre entre ele e Maria, inclusive nos momentos de intimidade:

A paz só encontrava nos grandes momentos em que, penetrando em Maria, ficava na cama, os dois sem movimentos como a tomarem perfeito conhecimento que eram bem um do outro, que não havia ilusões e enganos. Nesses momentos nem o prazer procuravam no mistério da posse. Ficavam quietos e silenciosos, tranquilos porque estavam ligados, penetrados um no outro e eram um único ser e não havia sobre a face da terra nem tristezas nem alegrias. Tudo era tranquilo então e uma nova luz enchia o quarto e os olhos de Mario. Mas logo vinham os movimentos do prazer e isso já era como luta, um combate em busca do gozo e quando se separavam as trevas enchiam o quarto e próximo ao leito de Mario sabia que se encontrava José Franco, o dono da sua mulher (Amado, 1942AMADO, Jorge (1942). Romance inédito: documento 01 - 90. Acervo Mala de Jorge Amado -nuLIME. fac-símile.).

Nesse trecho, o escritor utiliza penetração com dois significados não só distintos, mas em oposição: o primeiro, de encaixe, completude e igualdade, quando em inércia, paralisados. Nesse momento, José Franco sai de cena e restam na cama Mario e Maria, um só ser, em relação de companheirismo, unidade, próximo ao que Alexandra Kollontai (2011KOLLONTAI, Alexandra (2011). A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011.), intelectual russa, trabalhou em sua conceituação de amor camaradagem unindo todas as facetas afetivas em suas diferentes dimensões possíveis, incluindo a dimensão sexual. O outro significado de penetrar invoca José Franco à cena: agora em movimento, o corpo de Maria torna-se campo de batalha a ser conquistado, os movimentos da relação sexual passam a ser violentos e combativos, uma disputa impossível de ser vencida por Mario: para ele, o amigo sempre vence o cerco.

Para Irene Khan, secretária geral da Anistia, “o corpo das mulheres, a sua sexualidade e capacidade reprodutiva são utilizados como campo de batalha simbólico e literal” (Khan apud Rosa, 2013ROSA, Susel Oliveira da (2013). Mulheres, ditadura e memórias. São Paulo: Editora Intermeios., p. 60), ou seja, a mulher torna-se território a ser conquistado através de violências física e sexual. O que abre caminho para o corpo feminino ser tomado como campo de batalha é justamente a ausência de um lugar para a mulher e, portanto, para seu corpo. Esse cenário de guerra foi construído a partir do discurso e de mecanismos de dominação sociopolíticos enquanto tradição secular. Sem lugar próprio para o corpo feminino, há sempre espaço para ser tomado - com frequência, à força.

No que concerne ao pensamento de Alexandra Kollontai (2011KOLLONTAI, Alexandra (2011). A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011.) sobre o amor camaradagem, dentro do romance de Jorge Amado, os comunistas, ao se curvarem ao matrimônio, emulam automaticamente o amor burguês e romântico com suas esposas: Dalva e Edith. Heloísa, noiva de Augusto e que, ainda, não contraíra matrimônio, ocupa um espaço de entremeio, sendo quase uma das musas das cantigas de amizade e amor durante o trovadorismo: intocável, perfeita, quase sobrenatural. A única relação que se aproxima do ideal de amor camarada está fora do matrimônio: a de Maria e Mario. Fica a questão: foi intenção de Jorge Amado demonstrar como a instituição do matrimônio soterra o potencial de amor e domina as mulheres ou apenas um reflexo da sociedade burguesa em que o autor estava inserido?

Com um olhar mais aproximado das relações construídas com as personagens mulheres, percebemos o desejo como irrealizável: quando se alcança a demanda, o desejo se frustra. Entramos também numa lógica burguesa de pensamento do amor em que o desejo da posse se disfarça de afeto e, tendo tomado para si o objeto cobiçado, perde o interesse. A única relação possível de companheirismo e ligação autêntica é a que é impossibilitada de ser realizada pelo matrimônio: Maria é casada com o melhor amigo de Mario, ou seja, pertence a José; são os laços matrimoniais indissolúveis - visto que o romance foi escrito em 1942 e que, à época, o desquite só previa a separação de corpos, mas não desfazia o casamento - e o amor/amizade entre Mario e José Franco, em uma sociedade regida pela monogamia a serviço da acumulação do capital, que constroem a culpa que Mario carrega e que, ao mesmo tempo, torna a relação dos amantes intocada pelas regras e termos de posse que o amor burguês impõe através do casamento. Então, o único amor camarada possível na narrativa inacabada de Jorge Amado é aquele que é também clandestino, como foi, em certa medida, sua relação com Maria Cruz. Mas esta é uma história a ser brevemente revelada, afinal, já abrimos a Mala de Maria.

Referências

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  • RICH, Adrienne (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bágoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 5, p. 17-44. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309 Acesso em: 26 set. 2020.
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  • ROSA, Susel Oliveira da (2013). Mulheres, ditadura e memórias. São Paulo: Editora Intermeios.
  • ROSSI, Luiz Gustavo Freitas (2009). A militância política na obra de Jorge Amado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOLDENSTEIN, Ilana Seltzer (orgs.). O universo de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras . p. 23-33.
  • SALDANHA, Mônica (2018). Lesbianizar o irrepresentável. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. Cuiabá, v. 1, n. 3. Disponível em: Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/9168 Acesso em: 20 maio 2021.
    » https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/9168
  • SALDANHA, Mônica (2021). Um conceito de deslocamentos: notas para uma leitura decolonial de The Straight Mind. In: ALVES, Bárbara Elcimar dos Reis; FERNANDES, Felipe Bruno Martins (orgs.). Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo Ilha, 2021. p. 156-169.
  • WITTIG, Monique (2006). El pensamientoheterosexual y otros ensayos. Barcelona: Editorial Egales.
  • 1
    Faz-se importante elucidar que, apesar dos títulos atribuídos ao inédito serem os de livros posteriormente publicados pelo autor, a obra em nada se relaciona com o que foi a público. Após pesquisa aprofundada de enredo e personagens pudemos verificar o caráter inédito do romance.
  • 2
    Coelho (2021)COELHO, Thalita S. (2021). Bagagens do exílio: Jorge Amado e um romance sem fim. 260p. Tese (Doutorado em Literatura) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. analisa as fabulações possíveis entre o romance inédito de Jorge Amado e dois arquivos histórico-literários: A Mala de Jorge Amado e A Mala de Maria, este último, fruto de doação da família Marcondes Cruz para a pesquisadora, que se propôs a fazer um resgate da memória da militante Maria Cruz, com quem Jorge Amado manteve relação afetiva e política entre os anos de 1938 e 1942.
  • 3
    Esta citação faz referência à versão digital do livro, em formato mobi, do Kindle.
  • 4
    O romance em questão não foi publicado, logo, não possui paginação oficial, havendo, inclusive, repetição de páginas durante toda sua extensão. Trata-se de um documento presente no arquivo Mala de Jorge Amado, parte da materialidade que compõe este acervo.
  • 5
    Reiteramos que as discussões e estudos de gênero questionam fortemente o caráter essencialista de definições como esta. Contudo, a utilização do conceito foi feita de forma pontual e dentro de um contexto específico, em que seria necessário operar com uma definição extremamente binária e restrita de feminilidade/mulheridade.
  • 6
    Optamos por trabalhar com a versão fac-similar do romance, respeitando a grafia utilizada pelo autor, ainda que em desvio segundo a norma padrão.
  • 7
    Acreditamos ser necessário diferenciar “possessão” e “incorporação” espiritual. Nas culturas de matriz africana, a incorporação faz parte dos ritos com orixás e entidades. Diferentemente da possessão, ao incorporar, o médium dá passagem à energia de espíritos ancestrais, conscientemente.
  • 8
    Os detalhes pertinentes ao personagem Heitor foram trabalhados no artigo Sair da mala e sair do armário, de Thalita Saldanha Coelho, no livro A mala de Jorge Amado 1941 - 1942 (Ramos, no preloRAMOS, Tânia Regina Oliveira (org.). A Mala de Jorge Amado: 1941-1942. Florianópolis: Imprensa Universitária UFSC. E-book. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228141 Acesso em: 1º out 2021.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    ).
  • 9
    Diz respeito à doutrina religiosa de Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail. No Brasil, o Kardecismo e a Umbanda se encontram em alguns terreiros, compartilhando crenças.
  • 10
    Sobre a utilização do termo straight, cito Mônica Saldanha (2021SALDANHA, Mônica (2021). Um conceito de deslocamentos: notas para uma leitura decolonial de The Straight Mind. In: ALVES, Bárbara Elcimar dos Reis; FERNANDES, Felipe Bruno Martins (orgs.). Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo Ilha, 2021. p. 156-169., p. 158): “Quanto à questão lexical, embora straight possa se traduzir como “heterossexual”, o termo também carrega significados como “direto”, “correto”, “honesto” ou “lógico”; é um termo que referencia, em amplo espectro, a ordem, a norma. O próprio Sam Bourcier, responsável pela tradução francesa do ensaio, comenta que a manutenção do termo straight no título foi uma decisão conjunta de ambos, indicando que Wittig de fato pretendeu conscientemente abranger muito mais do que o campo da sexualidade em sua análise”.

Editora:

Regina Dalcastagnè

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    27 Abr 2021
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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