Acessibilidade / Reportar erro

Oswaldo de Camargo - O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras, 2021

Camargo, Oswaldo de. - O carro do êxito.São Paulo: Companhia das Letras, 2021

Dedicado a uma tríplice coroa de influências particulares (a saber: o poeta Oliveira Silveira, o sociólogo Florestan Fernandes e o crítico literário Cuti), O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo, originalmente publicado em 1972, retorna ao mercado neste ano de 2021, em edição da Companhia das Letras, com paratextos de Jeferson Tenório, Mario Medeiros e Conceição Evaristo, e ilustrações de Marcelo D’Salete. São 14 contos, divididos em duas partes, cujos títulos são: “menino do oboé” e “chão de um preto”. A primeira parcela - bastante sintética - dá conta da maneira como o autor se coloca diante das demandas sociais de ser um intelectual negro, algo de caráter metalinguístico. A segunda metade do livro é dedicada à demonstração da habilidade da técnica narrativa em si, do exercício raro de transformação do material biográfico (nesse caso, a vida do homem negro no Brasil) em material literário de interesse estético. Essa operação espanta não apenas pelo resultado - altamente positivo - como pela proposição incomum em tempos em que o tema parece importar mais que a obra. Como uma espécie de Ralph Ellison do nosso tempo e de nossa geografia, seus contos vão fornecendo elementos para que conheçamos a vida de homens específicos, com reflexões particulares, cujo traço de unificação - e não de redução - é a fenotipia.

Camargo é crítico literário e pesquisador das questões afro-brasileiras. A junção das funções de crítico literário e autor ficcional não é algo inédito na literatura negra. Edimilson de Almeida Pereira e Paulo Colina, para ficar em apenas dois casos, também são exemplos de prosadores que, afinados à estética de Camargo, bifurcam-se na produção de teoria e literatura. Entretanto, permanece raro que esse movimento bloqueie a sugestão inverídica de que a negritude é apenas uma camada colocada por sobre a vida interior de um indivíduo negro, sem a qual o próprio indivíduo, se liberada dela, seria melhor sucedido em seu exercício artístico.

Já na apresentação de Mario Medeiros aparece a preocupação de demarcar o espaço dessa edição em não prolongar o apagamento da própria historicidade de uma obra que está no miolo daquele que parece ser o maior dos embates da literatura afro-brasileira contemporânea: os limites da vida concreta contra as ambições do talento literário:

A primeira edição do livro saiu em 1972, pela Livraria Martins, mesma casa editorial que publicara Lira paulistana seguida de o carro da miséria (1945), de Mário de Andrade, a que o título de Camargo se contrapõe. Algum comentário é importante acerca daquela edição: na capa, assinada por Genilson, aparecia um jovem negro de cabelo grande, estilo black power, sorridente, que dividia o desenho com o semblante de um homem, negro, de óculos e gravata, talvez um pouco mais velho, de perfil indefinido. Na contracapa, o jovem autor, aos 36 anos, de olhar fixo e sério, em terno e gravata. Essa atenção aos detalhes da primeira edição é importante pelo impacto visual, literário e político que a obra foi capaz de mobilizar entre alguns de seus leitores. Atente-se também ao contexto: foi publicada, com esse tema e marcas, num dos momentos mais brutais da ditadura civil-militar, que se recusava a reconhecer a existência do racismo e da discriminação contra negros no Brasil, enaltecendo, em vez disso, o mito da democracia racial (Camargo, 2021CAMARGO, Oswaldo (2021). O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras., p. 12).

Em todo o momento parece haver um cuidado editorial em devolver a Camargo a extensão completa de reconhecimento que o racismo parece ter negado a ele. Contudo, essa operação se ressente do risco iminente de que as qualidades estéticas do autor sejam vistas como alheias a sua origem étnica, em uma situação desconfortável na qual parece ser sugerido que o autor necessitaria ser resgatado da condição negra em que nasceu. Esse dilema não se constitui um fenômeno específico da presente edição, tampouco possui qualquer relação com as escolhas editoriais apresentadas. Trata-se de um problema adicional da literatura afro-brasileira contemporânea como um todo. Qualquer reivindicação de sua eventual qualidade estética esbarra em uma alavanca que impulsiona uma série de suspeitas sobre as reais filiações daquilo que se apresenta como raro. Ao atribuir excelência à produção de algo oriundo de um grupo considerado não-meritório, cria-se a suposição de que os julgamentos e as sentenças derivadas desse movimento podem ser atribuídos a todos os indivíduos membros de tal grupo, em um processo de essencialização radical.

Em Camargo, esse engano é desfeito já no primeiro conto do livro, “Toca o oboé, menino”, no qual a atividade estética se mostra, a todo momento, atravessada pelas demandas do mundo social. O elemento principal de sua obra é uma operação de desidratação do coletivo através da edificação de uma catedral de sentido pessoal, constituída por linguagem e autoconsciência. Camargo investe contra dois tipos de ilusão muito úteis ao capitalismo tardio: a de que o tempo que levamos para reconhecer o valor de algo aumenta sua preciosidade e, essa bem mais grave que a primeira, a de que qualidade estética não possui qualquer relação com as materialidades da vida cotidiana. Essas fantasias vivem no intestino da crítica literária brasileira e são fruto de uma ideologia segundo a qual literatura e sociedade devem seguir separadas porque o papel da primeira seria o de defender as ilusões da segunda. Quando essas instâncias se confundem, fica mais difícil estabelecer os elementos de controle que possibilitam podar o texto literário. Sem controles, a literatura tende a ultrapassar a sociedade. O fato de haver talento onde deveria haver somente resto é comprovação não da irracionalidade meritocrática, mas da chance generosa do acaso. O talento seria, afinal, tão arbitrário quanto a vida, não havendo motivos para reivindicações profundas. Por isso, durante muitas décadas, no Brasil, autores negros nacionais eram inexistentes para editores brancos. A dialética senhor-escravo, aplicada à edição de livros, petrificou uma relação de invisibilidade e desprezo. Os valores da vida social escorriam para a vida literária. Publicava-se o que tinha valor. O que tinha valor era resultado das reflexões de quem tinha valor. Os negros não tinham valor.

Ontem, quando fui entregar “Sociedade de Ébano” ao Firmino Alves, encontrei-o com a cara feia. Mas eu estava feliz, com uma coluna social muito rica: Dia da Mãe Preta, baile da associação Irmãos Patriotas e bodas de ouro do casal Gervásio-Genoveva, com missa pomposa na Igreja do Rosário. Até orquestra de cordas contrataram. Assunto de peso para o responsável pela divulgação da vida social do povo preto no Niger, eu, o degas, que me tornava conhecido como “Ibrahim Sued crioulo” (Camargo, 2021CAMARGO, Oswaldo (2021). O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras., p. 51).

O tema da desvalorização dos negros aparece na obra como oposição à evidência de valorização dos não negros. Surge daí uma espécie de dicotomia, através da qual, para almejar um tratamento humano, os indivíduos negros precisam recorrer à fantasia de serem, um dia, indivíduos brancos. Esse fenômeno é resultado de um escoamento de fatores materiais no artefato literário. Sobre isso, já pontuei que:

Os negros correm com correntes de aço nos pés, e o peso do mundo nas costas. Já os brancos recebem do racismo toda a força que ele retira dos negros. Nossas vidas são determinadas pela necessidade de proteção à vida dos brancos em todas as suas dimensões: não se pode tocá-los, não se pode amá-los, não se pode constrangê-los, sob pena de aumentar dramaticamente sua já infinita fragilidade. É preciso ter cuidado para não assustá-los ao entrarmos no elevador do nosso prédio; é preciso ter cuidado para não magoá-los com nossos textos; é preciso consolá-los quando se confrontarem com a evidência de que nem todo mundo gosta deles (o que eles agora chamam de cancelamento) (Azevedo, 2021AZEVEDO, Luiz Mauricio (2021). Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Porto Alegre: Sulina., p. 19).

Esse processo de teatralização da vida social negra é elemento central em O carro do êxito. O dia terminou a vida. A sensação de que tudo termina como a falência das promessas inválidas, que se esvaziam não tanto na falta de suas realizações, mas na velocidade como elas se dissolvem no vazio de vidas sociais que jamais chegam a atingir o ápice de suas potencialidades.

E, outra coisa: eles me enganaram. Acenaram o Benedito Corvo, falaram: é um preto velho tremendo, resolve tua vida num instante. Ele sabe… Ele sabe o quê? É isso que pergunto, mas não me perguntei quando a solidão apertou e eu desci ao Cambuci. E, no final de contas, era tempo de procurar gente fora da turminha, cair longe daquela solidão que me devorava a vida rasteira como uma rama de batata-doce lá no fundo do quintal, que ninguém sabe quem plantou, se a chuva festeja suas folhas, se dá mesmo batata e, se dá, que espécie é: roxa, amarela, branca; ninguém sabe. Eu não existia, eu não voava. E eles me enganaram. Por isso, fui ao Benedito Corvo: porque eu não sabia, porque a vida estava doendo muito e, afinal, eu nem queria saber que é que o Benedito Corvo sabia, se é que sabia mesmo alguma coisa. A vida doía; então fui (Camargo, 2021CAMARGO, Oswaldo (2021). O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras., p. 67).

Atualmente, a produção literária de um indivíduo negro pode parecer - aos olhos dos desatentos, tenham eles a cor que tiverem - uma grande oportunidade para assistirmos ao triunfo do indivíduo sobre o social. Contudo, o fato de que os acertos estéticos de um autor da envergadura de Camargo tenham permanecido sem reverberação comercial adequada por tantas décadas oblitera a fantasia de que nosso sistema literário seja outra coisa senão uma máquina de explicações palatáveis e domesticadoras sobre como - e principalmente por que - chegamos ao inferno que hoje habitamos. As narrativas que porventura escapam desse modelo produtivo são vilipendiadas e rotuladas como indignas de nota, e passam a habitar um limbo do qual raramente são retiradas.

Referências

  • AZEVEDO, Luiz Mauricio (2021). Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra. Porto Alegre: Sulina.
  • CAMARGO, Oswaldo (2021). O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras.
Editora: Regina Dalcastagnè

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2021
  • Aceito
    18 Abr 2021
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com