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Princípios para o estudo das materialidades da poesia marginal

Principles for the study of the marginal poetry materialities

Principios para el estudio de las materialidades de la poesía marginal

Resumo

Proponho, neste artigo, um estudo acerca das materialidades da poesia marginal. Desde a exposição “Poesia Marginal: palavra e livro”, em 2013, promovida pelo Instituto Moreira Salles, e a FLIP 2016, em que a homenageada foi a poeta Ana Cristina Cesar, a poesia marginal voltou aos holofotes da cena cultural brasileira. O título da exposição do IMS, aliás, sugere a relação orgânica entre o poema marginal e sua materialidade. Contudo, isso não se reflete na fortuna crítica sobre essa poesia, o que deriva, talvez, do fato de o campo de pesquisas sobre as materialidades da literatura ser ainda incipiente no Brasil. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é realizar uma revisão crítica da poesia marginal sob a perspectiva das materialidades da literatura. Pretende-se, com isso, tanto desfazer lugares-comuns da crítica quanto promover uma necessária releitura dessa poesia, uma vez que, embora o seu modo de produção à margem editorial seja sempre aventado, ainda não houve o devido reconhecimento de suas implicações.

Palavras-chave:
poesia marginal; materialidades da literatura; teoria dos media

Abstract

In this paper, I propose a study about the materialities of the marginal poetry. Since the exhibition “Marginal Poetry: word and book”, in 2013, promoted by the IMS, and the FLIP 2016, in which Ana Cristina Cesar was chosen as the honored author, the marginal poetry has returned to the spotlights of the Brazilian cultural scene. The title of the IMS exhibition rightly suggests the organic relation between the marginal poem and its materiality. However, this is not reflected in the critical fortune of this poetry, which perhaps results from the fact that field studies on the materialities of literature are still incipient in Brazil. Thus, this paper aims to accomplish a critical review of the marginal poetry from the perspective of the materialities of literature. Thereby it is intended both to undo commonplaces of criticism and to promote a necessary re-reading of this poetry, since although its mode of production based on self-publishing is always suggested, its implications have not yet been properly recognized.

Keywords:
marginal poetry; materialities of literature; media theory

Resumen

En este artículo se presenta un estudio acerca de las materialidades de la poesía marginal. Desde la exposición “Poesía Marginal: palavra e livro”, en el 2013,

promovida por el instituto Moreira Salles, y la FLIP 2016, en la que se homenajeó a la poeta Ana Cristina Cesar, la poesía marginal volvió a estar bajo los focos de la escena cultural brasileña. El título de la exposición en dicho Instituto, por lo demás, sugiere la

relación orgánica entre el poema marginal y su materialidad. Sin embargo, esta relación no se refleja en la fortuna crítica de dicha poesía, lo que tal vez se derive del hecho de que el campo de la investigación sobre las materialidades de la literatura sea todavía incipiente en Brasil. En este sentido, el objetivo de este artículo es hacer una revisión crítica de la poesía marginal bajo la perspectiva de las materialidades de la literatura. Se pretende, así, tanto deshacer los lugares comunes de la crítica, como promover una necesaria relectura de dicha poesía, pues, aunque su modo de producción al margen del ámbito editorial sea siempre recordado, todavía no se ha dado el reconocimiento que se debe a sus implicaciones.

Palabras clave:
poesía marginal; materialidades de la literatura; teoría de los medios

O estado da arte

Em “Rebate de pares”, número 2 da revista Remate de Males, de 1983, João Alexandre Barbosa, Boris Schnaiderman, Alfredo Bosi e Benedito Nunes discutem a poesia brasileira da década de 1970. A certa altura, Bosi (1983BOSI, Alfredo et al. (1983). Rebate de pares. Remate de Males, n. 2., p. 78) diz: “a gente fica até com um pouco de dificuldade de julgar esta poesia. Por todos nossos critérios, ela está aquém da linguagem poética”. E complementa: “teríamos, dentro de uma concepção mais tradicional, até um pouco de escrúpulo em considerar isso como poesia” (Bosi, 1983BOSI, Alfredo et al. (1983). Rebate de pares. Remate de Males, n. 2., p. 78). Isso era a poesia marginal. Cumpre destacar que, para além do julgamento depreciativo do crítico, o que chama a atenção é o fato de Bosi ter consciência de que esta poesia não deve ser pensada segundo os “critérios” da Academia, dentro de “uma concepção mais tradicional”; ou seja, uma nova poesia requer novos instrumentos de análise. Afinal, a poesia marginal caracteriza-se, conforme as palavras de Bosi (1983BOSI, Alfredo et al. (1983). Rebate de pares. Remate de Males, n. 2., p. 77-79), pelo “coloquialismo realmente imediato”, pela “imediatidade do sentimento”, pura “expressão”, “sem nenhum trabalho de elaboração”, uma literatura “confessional” e “desabrida”, em suma, “antiliterária”.

Iumna Simon e Vinicius Dantas (1985SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius (1985). Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 12, junho., p. 96), no célebre artigo “Poesia ruim, sociedade pior”, sustentam uma posição semelhante à de Bosi, embora busquem uma relação entre a sociedade de consumo, com suas mercadorias homogeneizadas, e essa poesia “fácil e de rápida aceitação”. O caráter contestatório (no que refere ao mercado editorial, ao comportamento e à oposição política) da poesia marginal aos poucos teria sido assimilado pelo establishment: “esta experiência à margem só teve sentido como tal durante os anos de repressão política e de censura, quando a interdição do espaço público recaía sobre a produção” (Simon; Dantas, 1985SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius (1985). Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 12, junho., p. 99). Daí é que, com a abertura política, essa produção foi facilmente aceita e publicada pelas grandes editoras, domesticando-a. A hipótese central de Simon e Dantas é que essa “poesia ruim”, em vez de se colocar como consciência crítica de uma “sociedade pior”, termina por reafirmá-la, fazendo-se “à sua imagem e semelhança”, ou melhor, “o poeta antes expressa afirmativamente o substrato coletivo de sua sensibilidade do que é capaz de denunciar e iluminar aquilo que ele próprio sofreu, naquilo em que sua sensibilidade foi afetada” (Simon; Dantas, 1985SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius (1985). Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 12, junho., p. 103). Decorre dessa premissa que a poesia marginal, ao contrário das vanguardas poéticas da década de 1960 - concretismo, poesia-práxis e poema-processo -, abdicaria do experimentalismo que define a poesia moderna (a tradição da ruptura, nos dizeres de Octavio Paz1 1 Cf. Os Filhos do Barro (2013). ) em favor da comunicação direta com o leitor. Assim, Simon e Dantas (1985SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius (1985). Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 12, junho., p. 104) apontam uma “literalidade pragmática” na linguagem dos poetas marginais, isto é, haveria um “vínculo espontâneo e imediato com a vida”, numa “linguagem simples e transparente” - o que pode ser resumido no poema “Na corda bamba”, de Cacaso (2012CACASO [Antônio Carlos de Brito] (2012). Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify., p. 57): “Poesia/ eu não te escrevo/ eu te/ vivo”. E o fato de a poesia marginal ter sido produzida e distribuída à margem do sistema editorial é tido como uma mera “contingência histórica”, uma vez que essa poesia nada teria, afinal, de subversiva.

Ora, há pelos menos dois problemas nesse tipo de interpretação: 1) ao afirmarem um “vínculo imediato” e uma “linguagem transparente”, Simon e Dantas parecem pretender que a poesia marginal dar-se-ia sem a mediação da palavra escrita, aliás, sem o medium.2 2 Na conferência “Poesia e composição”, de 1952, recolhida na coletânea Prosa (1998), João Cabral de Melo Neto traça um esquema segundo o qual a “inspiração” opor-se-ia “ao trabalho de arte. O texto de Cabral é uma espécie de crítica avant la lettre da poesia marginal, antecipando, por exemplo, alguns dos pontos levantados por Iumna Simon e Vinicius Dantas. João Cabral de Melo Neto (1998, p. 56) afirma que “[n]o autor que aceita a preponderância da inspiração o poema é, em regra geral, a tradução de uma experiência direta. O poema é o eco, muitas vezes imediato, dessa experiência”. Mais adiante: “[a] experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua transcrição é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. [...] O poema é um depoimento e quanto mais direto, quanto mais próximo do estado que o determinou, melhor estará. A obra é um simples transmissor, um pobre transmissor, o meio inferior que ele tem de dar a conhecer uma pequena parte da poesia que é capaz de vir habitá-lo” (Melo Neto, 1998, p. 58-59). Afirmam isso explicitamente: “transparente, simples, literal [...], o poema é rebaixado assim a um modo de sensibilização, uma terapia que se efetua fora do medium verbal” (Simon; Dantas, 1985SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius (1985). Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 12, junho., p. 105); 2) ao atribuírem à “contingência histórica” o fato de os “livrinhos” dos poetas marginais terem sido escritos, editados e vendidos à margem do mercado editorial, os dois críticos desconsideram a materialidade dessa poesia. Com efeito, citando Bosi, a crítica literária teve um pouco de dificuldade de julgar essa poesia, mas não por causa de um pretenso literalismo que resiste à interpretação: na verdade, o desafio que a poesia marginal impõe aos estudos literários consiste no fato de que a crítica, baseando-se em critérios tradicionais no entendimento da obra literária, frequentemente ignora as materialidades da literatura, como se a literatura (ou, mais especificamente, a poesia) fosse uma entidade trans-histórica sempre idêntica a si mesma que paira sobre o mundo das coisas.

Nesse sentido, creio que o principal critério para avaliar a poesia marginal seja a sua materialidade. Mas qual a materialidade da poesia marginal? Antes de tudo, cumpre ressaltar que não se trata de uma marginalidade material, mas de uma materialidade marginal. Um dos poetas entrevistados por Carlos Messeder Pereira em Retrato de época diz: “Marginal quer dizer marginal à editora, à grande editora, ao grande sistema [...]. Marginal que eu vejo, pra mim, é isto: marginal às grandes editoras” (Pereira, 1981PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (1981). Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE., p. 42). É por estarem à margem do sistema editorial que esses poetas editavam, publicavam e vendiam os seus próprios livros, dispensando assim um mediador. Entre as causas, podem-se elencar tanto o desprezo histórico que o mercado editorial tem pelo gênero poesia quanto a censura promovida pela ditadura militar (1964-1985). O Decreto-Lei nº 1.077/1970, promulgado por Emílio G. Médici, dispunha sobre a censura de livros que ofendessem “a moral e os bons costumes” e tinha como justificativa uma suposta proliferação de publicações obscenas que estimulavam o “amor livre” e ameaçavam destruir os valores morais da sociedade brasileira (Brasil, 1970BRASIL (1970). Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de dezembro de 1970. Dispõe sobre a execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF. p. 577. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1077.htm . Acesso em: 6 set. 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
). Para Glauco Mattoso (1981MATTOSO, Glauco (1981). O que é Poesia Marginal? São Paulo: Editora Brasiliense., p. 68), a dificuldade de acesso dos novos poetas ao sistema editorial não se dava apenas pelo excesso de critérios de qualidade das editoras ou porque “poesia não vende”, “mas principalmente por um controle ideológico exercido sobre a literatura impressa na época: os editores simplesmente não queriam ver ‘seus’ livros barrados pela censura e apreendidos”. 430 títulos teriam sido censurados pelo regime militar no período, sendo ao menos 92 obras de autores brasileiros (Silva, 1989SILVA, Deonísio (1989). Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. São Paulo: Liberdade.). E vale lembrar que o poeta brasiliense Nicolas Behr, conforme atesta o processo do DOPS, foi preso em agosto de 1978 por ter em sua posse “escritos obscenos, de sua autoria, em formatos de livretos mimeografados” (Brasil, 1978BRASIL (1978). Polícia Federal. Auto de prisão em flagrante de Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr. Brasília: PF, 15 ago. 1978. p. 8-15. Disponível em: Disponível em: http://www.nicolasbehr.com.br/arquivos/processo_dops.pdf . Acesso em: 5 jul. 2019.
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, p. 8). Dessa feita, a autopublicação em “livrinhos” mimeografados não foi mera “contingência histórica”, mas a condição para que esses poetas pudessem escrever e publicar os seus poemas sem sofrerem as sanções de um governo autoritário.

Marginal significa também à margem do cânone. A personagem Orlando Tacapau, criada por Chacal em O preço da passagem, publicado originalmente em 1972, debocha da cultura letrada, simbolizada pela biblioteca:

com a loucura no bolso, orlando entrou na biblioteca estadual. foleou folhas estapafúrdias so- bre as idéias, a arquitetura, a descompostura dos homens. aí achou graça, aí ficou sério. aí riu. aí chorou demais. aí começou a tremer. sentiu o bolso furado. sentiu o corpo molhado. beto chegou a tempo de recolher num copo a poça d’água que corria pro ralo. orlando disse mais tarde: - não faço isso never more (Chacal, 2007CHACAL. Belvedere (1971-2007) (2007). São Paulo: Cosac Naify ; Rio de Janeiro: 7Letras., p. 337).

Além do plano temático, cujo assunto é a aversão da personagem pelo espaço da cultura oficial, destaca-se, no plano lexical, a recorrência de vocábulos cotidianos, ao rés do chão, bem longe do vocabulário hierático da poesia erudita: “foleou”, “aí”, “pro ralo”, e a dupla negação: “não faço... never”. Essa recusa da biblioteca condensa tanto o “comportamento desviante” dos poetas marginais, no que se refere ao suposto “anti-intelectualismo” dessa geração, quanto uma tomada de posição contra o elitismo do sistema literário e, mais especificamente, contra o paideuma dos concretistas. O poeta sai das bibliotecas e vai às ruas: semelhante ao poeta de “Perte d’auréole”, de Charles Baudelaire, entedia-se com a dignidade e compraz-se por ter deixado cair sua auréola no lamaçal. Isso é reafirmado por Ana Cristina Cesar e Ítalo Moriconi (1999CESAR, Ana Cristina; MORICONI, Ítalo (1999). O poeta fora da República: o escritor e o mercado. In: CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática . p. 224-230., p. 227) no artigo “O poeta fora da República: o escritor e o mercado”, publicado no jornal Opinião, em 25 de março de 1977: “a intervenção dos autores na circulação dos seus textos vem abalar a concepção do escritor como ser iluminado, a aura da obra escrita, a autoridade do texto impresso, e não apenas o literário”. A dessacralização da poesia ocorre tanto pela assunção de seu caráter transável (vendável) quanto pela negação da tradição. Nas palavras de Silviano Santiago (2000SANTIAGO, Silviano (2000). O assassinato de Mallarmé. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco. p. 188-199., p. 192-193), essa rejeição do valor cultural institucionalizado se dá porque esses poetas “acreditam que se possa desvincular, não só seu projeto existencial de um compromisso com a ‘ordem’ na sociedade, como também o projeto literário de um envolvimento com as formas ‘bibliotecáveis’ de literatura”. Em vez do “rasga-rasga” na Cinelândia promovido pelo grupo do poema-processo, os poetas marginais opunham-se ao cerebralismo das vanguardas poéticas por meio do questionamento do próprio sistema editorial, mas sem prescindir da forma-livro. Segundo Eucanaã Ferraz (2013FERRAZ, Eucanaã (org.) (2013). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: IMS ., p. 9), “a poesia marginal não fugiu dos livros. [...] Sem ‘muito dinheiro’, os autores inventaram meios de editar ao largo das editoras, pouco receptivos a um gênero nada comercial. O objeto falava por si mesmo. Havia algo de guerrilha, de panfleto”. Os livrinhos eram baratos, vendidos pelo “preço da passagem”, justamente porque eram precários. Ao comentar sobre O preço da passagem, de Chacal, Silviano Santiago (2000SANTIAGO, Silviano (2000). O assassinato de Mallarmé. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco. p. 188-199., p. 189) afirma: “Publicado em mil exemplares, Preço apresenta-se em péssimas condições gráficas, sobretudo se compararmos o produto final (31 folhas soltas, mimeografadas, dentro de um envelope amarelo onde se carimbou porcamente o título)”. Santiago (2000SANTIAGO, Silviano (2000). O assassinato de Mallarmé. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco. p. 188-199., p. 192) diz ainda que o “descuido” era a principal marca desses poemas; trata-se não apenas de uma precariedade material, mas também de um texto “pouco asseado e contraditório”. Adjetivações semelhantes às do crítico (“péssimas”, “porcamente”, “descuido” e “pouco asseado”) são a norma quando se avalia o aspecto material dessa poesia. Não à toa, a poesia marginal era designada na época como “lixeratura”, sobretudo devido à sua precariedade gráfica. Para Carlos Messeder Pereira (1981PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (1981). Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE., p. 38),

Estes livros - e aí a palavra livro engloba desde livros “de fato” até envelopes contendo folhas soltas, ou mesmo outros objetos com as mais diferentes formas e apresentando desde textos e fotos ou desenhos até os conteúdos os mais diferentes - apresentavam um forte caráter de improviso e de precariedade; o padrão de impressão, o padrão gráfico em geral não estavam, absolutamente, de acordo com os padrões nacionais e internacionais de “qualidade” e “bom gosto”.

A precariedade e o caráter de improviso derivam da forma como esses poemas eram copiados e impressos: pelo mimeógrafo. Não por acaso, os poetas marginais eram também conhecidos sob o epíteto de “geração mimeógrafo”. Se, em face da censura política e das barreiras do mercado editorial, a saída era a autopublicação, os poetas recorriam aos meios mais baratos disponíveis à época para a confecção de seus livrinhos, por isso, o uso do mimeógrafo. Frederico Coelho (2013COELHO, Frederico (2013). Quantas margens cabem em um poema? Poesia marginal ontem, hoje e além. In: FERRAZ, Eucanaã (org.). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: IMS. p. 11-35) destaca que o responsável pela introdução da técnica foi o professor de história Guilherme Mandaro - que era amigo de Chacal, Ronaldo Santos e Charles, os quais, ao lado de Bernardo Vilhena, integravam o coletivo Nuvem Cigana. Em 1971, Mandaro sugeriu aos poetas que utilizassem um mimeógrafo de um curso pré-vestibular em Copacabana. De acordo com Coelho (2013COELHO, Frederico (2013). Quantas margens cabem em um poema? Poesia marginal ontem, hoje e além. In: FERRAZ, Eucanaã (org.). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: IMS. p. 11-35, p. 28-29), “ligado a movimentos políticos estudantis da época, Mandaro sabia que o mimeógrafo era uma forma barata, rápida e eficiente para fabricar e distribuir panfletos e textos”. Contudo, o mimeógrafo não era a norma, uma vez que esses poetas se valiam também de impressão offset3 3 Segundo Eucanaã Ferraz (2013, p. 9-10), “muito embora esta última fosse a técnica empregada pelas grandes editoras, é fundamental observar que os poetas marginais continuaram mantendo algo daquela pobreza a que me referi: uso de grampos em vez de costura; envelopes e sacos em vez de encadernação; papéis de baixo custo e mesmo considerados toscos, como o kraft; impressão em, no máximo, duas cores; emprego de instrumentos estranhos ao meio editorial, como o carimbo, comum em escritórios e repartições públicas”. ou processos semelhantes. Mattoso (1981MATTOSO, Glauco (1981). O que é Poesia Marginal? São Paulo: Editora Brasiliense.) lembra que os “livros” apresentavam-se ora no formato de apostilas - O marginal e outros poemas, de Domingos Pellegrini -, ora como folhetos de cordel - os poemas de Marcelo Dolabela e Nicolas Behr. Ainda Mattoso (1981MATTOSO, Glauco (1981). O que é Poesia Marginal? São Paulo: Editora Brasiliense., p. 69), “com o tempo a produção se diversificou e apareceram em maior quantidade os envelopoemas, jornalivros, posters, brochuras e revistas em offset, tabloides, trabalhos em papelão e pano, em serigrafia, e assim por diante”.

A despeito do tipo de papel ou da técnica de impressão, o que importa evidenciar é o caráter artesanal dessa poesia e, sobretudo, o circuito paralelo criado desde a confecção até a venda, dispensando a intermediação das editoras e das livrarias. Com efeito, como afirma Mattoso (1981MATTOSO, Glauco (1981). O que é Poesia Marginal? São Paulo: Editora Brasiliense., p. 71), “a única característica comum, a identificar a coisa toda, está no fato de ser um produto extracomercial”. Cumpre um reparo: não se trata exatamente de um produto “extracomercial”, mas de uma recusa em participar do sistema comercial de produção e venda do livro no país, até porque os livros eram vendidos de mão em mão, muitas vezes pelo próprio autor, nas portas de cinemas, de museus, de teatros, em bares, restaurantes e mesmo em universidades. Assim, trata-se, como assinalam Ana Cristina Cesar e Ítalo Moriconi (1999CESAR, Ana Cristina; MORICONI, Ítalo (1999). O poeta fora da República: o escritor e o mercado. In: CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática . p. 224-230., p. 201), de “tomar posse dos caminhos da produção. Recuperar talvez um certo caráter artesanal, a lição do cordel”. O autor aproxima-se do público, transa diretamente com o leitor, e o livro assume o estatuto de objeto-mercadoria, isto é, “transável, passando de mão em mão com possível retorno monetário para quem o escreveu e o executou” (Santiago, 2000SANTIAGO, Silviano (2000). O assassinato de Mallarmé. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco. p. 188-199., p. 195).

Mas, além da dessacralização da figura do poeta - que sai do seu “gabinete” e vai às ruas -, a sua participação direta na venda dos livros implica uma profunda modificação na estrutura de divisão do trabalho. Nicolas Behr, por exemplo, atuava ao mesmo tempo como editor, impressor, ilustrador e poeta. Assim, o modo de produção passa a ser artesanal, e não mais industrial. Ana Cristina Cesar e Ítalo Moriconi (1999CESAR, Ana Cristina; MORICONI, Ítalo (1999). O poeta fora da República: o escritor e o mercado. In: CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática . p. 224-230., p. 201) interpretam essa “intervenção direta do escritor no processo global da obra” como um sintoma claro de que “a produção literária não se restringe à escritura”. “A literatura não existe na gaveta”, diz em outro texto Ana Cristina Cesar (1999CESAR, Ana Cristina (1999). Crítica e tradução. São Paulo: Ática., p. 162). Acrescento: não existe poesia in abstracto, fora dos suportes materiais, quer seja a forma-livro tradicional ou as plataformas digitais, quer seja a oralidade ou o códice, ou mesmo livrinhos mimeografados. Isso não significa preterir o autor ou o leitor em favor de uma close reading do texto literário, com o risco de recair nos vícios do formalismo ou do new criticism. Tampouco se trata de recorrer à sociologia da literatura ou à crítica genética, buscando reconstituir o processo de criação, por exemplo. Ao pressuposto de que a literatura não é uma entidade etérea, deve-se adicionar o fato incontornável de que a materialidade do texto e a textualidade do livro são indistinguíveis. Para Chartier (1991CHARTIER, Roger (1991). O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191., p. 182), investindo contra a ideia elaborada pelos estudos literários, “segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade, é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor”.

Chega a ser curioso que a poesia marginal, em que pese o aspecto artesanal de seus livrinhos, não tenha recebido até agora um tratamento que se dispusesse a refletir justamente sobre a sua materialidade. Não obstante os trabalhos fundamentais de Heloisa Buarque de Hollanda (2004HOLLANDA, Heloísa Buarque de (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70. 5. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano.; 2007HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.) (2007). 26 Poetas Hoje. 6. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano .), Teresa Cabañas (2009CABAÑAS, Teresa (2009). Que poesia é essa? Poesia marginal: sujeitos instáveis, estética desajustada...! Goiânia: Editora UFG.), Samira Campedelli (1995CAMPEDELLI, Samira Youssef (1995). Poesia marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione.), Carlos Messeder Pereira (1981PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (1981). Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE.) e Glauco Mattoso (1981MATTOSO, Glauco (1981). O que é Poesia Marginal? São Paulo: Editora Brasiliense.), a questão da materialidade da poesia marginal mal permanece esboçada. Enquanto Bosi admite a dificuldade de julgamento dessa poesia segundo critérios tradicionais, Luiz Guilherme dos Santos Júnior, em “Uma revisão da poesia marginal brasileira”, afirma que “na maioria dos estudos acadêmicos que analisou essa produção, fica a impressão de que poucos deles se aprofundaram teoricamente para entender o fenômeno poético da ‘marginália’” (Santos Júnior, 2014SANTOS JÚNIOR, Luiz Guilherme (2014). Uma revisão crítica da poesia marginal brasileira. Estação Literária, Londrina, v. 12, p. 217-228., p. 218). Isso porque a poesia marginal, sobretudo quando posta em comparação com as vanguardas estéticas do período,

ainda é encarada como um tipo de poesia que não merece destaque no âmbito dos estudos desenvolvidos sobre as manifestações literárias, mantendo-se, apenas, como ilustração nos manuais literários, que registraram esse momento da poesia brasileira como um mero “acidente” no contexto da década de 70, ou a rotulam como uma poesia “menor” e sem acabamento estrutural e poético (Santos Júnior, 2014SANTOS JÚNIOR, Luiz Guilherme (2014). Uma revisão crítica da poesia marginal brasileira. Estação Literária, Londrina, v. 12, p. 217-228., p. 218).

Nesse sentido, é preciso estabelecer parâmetros para o desenvolvimento de pesquisas que visem preencher as lacunas da crítica literária brasileira referentes à materialidade da poesia marginal.

“Corrimentos da matéria escrita”

A poesia de Ana Cristina Cesar, apesar do desejo de imediatez - aliás, de a-mediação -, como se expressa claramente no poema “33ª poética”: “estou farto da materialidade embrulhada do signo”/ [...] de supersignos ‘cabais’: ‘duro’/ ‘ofício’, ‘espaço em branco’, ‘vocábulo delirante’, ‘traço infinito’” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 325), demonstra claramente a preocupação com a materialidade não só da palavra, mas do livro. Por mais que sua poética aponte para um vínculo imediato entre poesia e vida numa dicção confessional, a materialidade da poesia impõe-se. Em “Cabeceira”, o eu-lírico diz: “Não quero mais pôr poemas no papel/ nem dar a conhecer minha ternura/ [...] Dito isto/ o livro de cabeceira cai no chão” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 106). Há a consciência da necessidade do medium para dar a conhecer a própria ternura, isto é, para materializá-la, sob a forma de poema, em uma folha de papel. Apesar de negar o poema, o desabafo se dá através de um poema. O livro de cabeceira caindo no chão chama a atenção para a concretude da literatura, opondo o intangível ao tátil, a ternura do eu-lírico à solidez do papel, do livro que cai. No poema “24 de maio de 1976”: “Escrevo in loco, sem literatura” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 374). Escrever sem literatura significa escrever sem mentira - “A poesia é uma mentira” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 148), ela escreve em “Mancha” -, sem oferecer um beija-mão ao cânone literário, sem a intervenção da palavra, como se vida e obra se confundissem num mesmo gesto. Porém, como lembra Franchetti (2007FRANCHETTI, Paulo (2007). Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê Editorial., p. 284), “escrever ‘in loco, sem literatura’ não é, portanto, uma declaração que aspira à descrição da verdade, mas um desejo de estilo. Um desejo de efeito de verdade. Ou seja, um ideal literário”. O desejo de imediatez não é mais que o desejo de uma experiência sem mediação, isto é, uma experiência na qual nos esqueçamos da presença do medium e de sua materialidade irredutível. Entretanto, esse desejo se choca novamente com a “realidade”, no conflito entre a poeta e o poema. Isso é nítido no primeiro verso de um poema sem título datado de 5 de fevereiro de 1969: “Tenho uma folha branca e limpa à minha espera:/ mudo convite” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 161). Mais do que o clichê do escritor diante da página em branco, no poema a folha branca apresenta-se como um suporte à espera da inscrição. O que se inscreve na página em branco não é a inspiração genial, mas palavras estruturadas em certa disposição tipográfica, ou seja, um corpo que permita identificar o poema como tal: “olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que não seja corpo” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 19). O poema não é uma forma etérea que, acidentalmente, foi fixada num suporte material; o poema só existe como formação de um corpo, como materialidade.

E embora Ana Cristina Cesar reivindique uma escrita in loco, uma experiência poética sem mediação, ela também percebe que a condição de possibilidade da poesia reside naquilo que esta tem de mais concreto. No poema “25 de maio de 1976”, questiona: “Penso na literatura que vivemos estudando. Será possível escrever com toda Consciência? Símbolo, alegoria, ou o que for?” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 375). Reformulo: é possível uma literatura que seja puramente consciência, símbolo, alegoria? A resposta é não: a materialidade da poesia, tal qual um livro de cabeceira caindo no chão, desperta-nos da narcose midiática e revela-se como o que há de mais próprio na poesia. Em “mandriagem”, a poeta (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 381) remete às “porosidades sugando a página” e aos “corrimentos de matéria escrita” e, em “Holocausto”, traz como subtítulo: “de um elogio tátil a uma elegia de Drummond” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 411). A tatilidade do poema (“elogio tátil”) reforça a sua concretude, os seus “corrimentos de matéria escrita”.

A poética de Ana Cristina Cesar, na medida em que apresenta o conflito agônico entre o desejo de imediatez de uma escrita in loco e a materialidade tátil do poema, serve como um bom exemplo de como a poesia marginal conseguiu unificar o poema ao seu suporte. Não seria, portanto, nenhum absurdo afirmar que a riqueza dessa poesia consiste precisamente na relação orgânica entre o poema e seu suporte “sujo”, “pobre”, “barato”. Daí é que, quando os poemas de Chacal, Cacaso, Ana Cristina Cesar e Nicolas Behr, por exemplo, são antologizados em edições limpas, em papel de boa qualidade, essa estética marginal perde sua razão de ser, uma vez que se abstrai a sua própria materialidade.

No capítulo “O espanto com a biotônica vitalidade dos 70”, do livro Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, resultado de sua tese de doutoramento desenvolvida na UFRJ na década de 1970, Heloisa Buarque de Hollanda (2004HOLLANDA, Heloísa Buarque de (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70. 5. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano., p. 111) faz um balanço sobre o seu trabalho de organização da antologia 26 poetas hoje:

vejo meu trabalho na organização desse material na antologia 26 poetas hoje como bom e mau. Bom, na medida em que divulgou essa produção nas esferas de legitimação institucional [...]. Mau, entretanto, porque assim “apropriados” num volume “limpo” de editora espanhola e sob o aval e atenção de uma professora universitária, promovi, de alguma maneira, alterações fundamentais na forma e no conteúdo dessa mesma produção, diminuindo a força contestatória de sua intervenção crítica.

Do saldo positivo, pouco resta a dizer, na medida em que, se a poesia marginal é ainda hoje lida e estudada, muito se deve ao trabalho de Hollanda. Quanto àquilo que ela enxerga de negativo, cumpre assinalar, acima de tudo, o que está entre aspas: “apropriados” e “limpos”. Limpo significa a domesticação tanto pelo sistema editorial quanto pela universidade do que havia de mais rebelde e contestador naquela poesia, que, até então, era considerada “suja”: uma “lixeratura”. Apropriado, por sua vez, não diz respeito ao fato de poemas esparsos terem sido recolhidos numa antologia; de certo modo, como sustenta Osvaldo Silvestre (2016SILVESTRE, Osvaldo (2016). Back to the future: o livro de poesia como crítica do livro em papel e do e-book. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida. Poesia contemporânea: voz, imagem, materialidades. Belo Horizonte: Editora UFMG. p. 107-154., p. 153), “o vínculo entre poema e livro está sempre por construir, como a reconstrução antológica tão espetacularmente demonstra”, ou melhor, todo livro de poesia é uma antologia. Apropriar significa, então, adequação e conformação ao sistema literário, ou seja, trata-se de uma espécie de adestramento daquela “energia terrível” de que Waly Salomão se dizia possuído. Entretanto, o apropriar-se se converte em desapropriação, porquanto retira aquilo que era mais próprio, a propriedade dessa poesia, a saber, o estar à margem, ser marginal.

Nesse sentido, a rusticidade do acabamento material reveste a pobreza da própria linguagem poética, o que, segundo Cacaso (1997CACASO [Antônio Carlos de Brito] (1997). Não quero prosa. Organização e seleção de Vilma Arêas Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. , p. 24), “assegura enorme homogeneidade de realização e atmosfera”. Na passagem do poema à antologia, perde-se tanto a identidade que esses poemas têm com seu suporte quanto o sentido de marginalidade advindo da sua forma de produção e distribuição. Mais do que isso: nos livrinhos em que foram primeiramente publicados, há a participação direta do autor, daí que são impregnados de “traços pessoais e afetivos, traços de intimidade” (Cacaso, 1997CACASO [Antônio Carlos de Brito] (1997). Não quero prosa. Organização e seleção de Vilma Arêas Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. , p. 24), ou, nas palavras de Heloisa Buarque de Hollanda (2004HOLLANDA, Heloísa Buarque de (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70. 5. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano., p. 108), “planejadas ou realizadas em colaboração direta com o autor, as edições de poesia apresentam uma face afetiva evidente”. Por um lado, esse aspecto “afetivo” diz respeito ao sentimento, ao humor, à emoção; logo, os traços afetivos dizem respeito à relação direta estabelecida entre leitor e autor; por outro, diz respeito a um estado produzido por uma influência, isto é, afetar adquire um sentido físico (ad-faciō), material. Decorre do primeiro sentido o fato de os livrinhos serem hoje artigos de colecionadores, uma vez que, dadas as pequenas tiragens, eles se tornaram verdadeiras raridades vendidas em casas de leilões: “vistos como precários e fugazes quando foram lançados, seus livros, mimeografados ou de coleções independentes, tornaram-se peças auráticas na trajetória de poéticas hoje maduras” (Coelho, 2013COELHO, Frederico (2013). Quantas margens cabem em um poema? Poesia marginal ontem, hoje e além. In: FERRAZ, Eucanaã (org.). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: IMS. p. 11-35, p. 25). Pouco importa que possamos ter acesso aos poemas em edições de luxo ou antologias publicadas por grandes editoras; a escassez produz valor também na economia de bens simbólicos.

Com isso em vista, não seria então temerário dizer que os livrinhos dos poetas marginais assumiriam, hoje, o status de livro de artista, a despeito de serem graficamente pobres. Os livros, como diz Julio Plaza (1982PLAZA, Julio (1982). O livro como forma de arte. Arte em São Paulo, São Paulo, n. 6, abr., n.p.), não são apenas objetos de linguagem, mas também matrizes de sensibilidade; daí é que, além de lidos, são “cheirados, tocados, vistos, jogados e também destruídos”. Os “livros” dos poetas marginais são livros de artista, porque o autor não se restringe a escrevê-los, mas participa de todos os processos de sua produção. Há a preocupação com o conteúdo e com a forma, de modo a torná-la “forma-significante” (Plaza, 1982PLAZA, Julio (1982). O livro como forma de arte. Arte em São Paulo, São Paulo, n. 6, abr.). Plaza (1982PLAZA, Julio (1982). O livro como forma de arte. Arte em São Paulo, São Paulo, n. 6, abr., n.p.) prossegue: “enquanto o autor de textos tem uma atitude passiva em relação ao livro, o artista de livros tem uma atitude ativa, já que ele é responsável pelo processo total de produção, porque não cria na dicotomia ‘continente-conteúdo’, ‘significante-significado’”. A jovem Ana Cristina Cesar já tinha essa atitude de artista do livro em relação à própria obra conforme se observa na figura 1.

Figura 1

O fato é que a poesia marginal está umbilicalmente ligada àqueles livrinhos, em que se fundiam o artesanal e o lúdico. O autor torna-se também o produtor, assume todas as etapas do modo de produção literário. Em vez de somente abastecer o aparelho produtivo, o poeta marginal propõe-se a modificá-lo. Ou seja, ele visa superar as esferas compartimentalizadas do processo de produção intelectual, as quais são fundamentais para a concepção burguesa; “além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas - a material e a intelectual -, erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente” (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). O autor como produtor. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense. p. 120-136., p. 129). O poeta torna-se, portanto, simultaneamente produtor de bens simbólicos e, mais importante, produtor de bens materiais. Isso não significa que o poeta toma de assalto os meios de produção, mas, sim, que ele cria à margem um outro sistema literário, questionando tanto o bom gosto estético quanto o bom gosto editorial: “a desierarquização do espaço nobre da poesia - tanto em seus aspectos materiais gráficos quanto no plano do discurso” (Hollanda, 2007HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.) (2007). 26 Poetas Hoje. 6. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano ., p. 10).

Aliás, outra questão que envolve a materialidade da poesia marginal é a sua oposição às vanguardas poéticas da década de 1960 e, em especial, ao concretismo. Isso porque o concretismo preocupar-se-ia com a materialidade do signo, com a visualidade da palavra escrita, enquanto os marginais não. No texto “Nove bocas da nova musa”, publicado em 25 de julho de 1976, no jornal Opinião, ao comentar sobre os poemas publicados nos números 42 e 43 da revista Tempo Brasileiro, Ana Cristina Cesar (1999CESAR, Ana Cristina (1999). Crítica e tradução. São Paulo: Ática., p. 161) assinala que essa nova poesia é “anticabralina por excelência” e que seus representantes são os “anticabralinos novíssimos”:

essa ausência de proposta. Num ponto apenas a revista esboça com unanimidade um pedaço, ainda que pelo negativo, de resposta: a nova musa não tem nada a ver com os “movimentos vanguardistas” (concretismo, neoconcretismo, práxis): ao contrário, distancia-se da não-discursividade, da quebra com a sintaxe, dos jogos ótico-verbais. Há consenso neste ponto: a nova musa proclama a falência das vanguardas (Cesar, 1999CESAR, Ana Cristina (1999). Crítica e tradução. São Paulo: Ática., p. 162).

Por seu turno, Cacaso, no poema “Estilos de época”, ironiza os irmãos Campos e Décio Pignatari, bem como sua poesia tautológica, decretando que o concretismo é coisa do passado. Em “Política literária”, Cacaso volta-se tanto aos concretos quanto ao “poeta processo”, dizendo que o poeta abstrato (do poema discursivo), alheio às discussões das duas vanguardas, limita-se a tirar meleca do nariz. As posições de Ana Cristina Cesar e Cacaso levaram os principais estudiosos da poesia marginal a aceitá-las sem o devido questionamento, tanto que Carlos Messeder Pereira (1981PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (1981). Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE., p. 38) afirma que essa poesia surgiu “em franca oposição à produção poética das vanguardas”, enquanto Heloisa Buarque de Hollanda (2004HOLLANDA, Heloísa Buarque de (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70. 5. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano., p. 112-113) contemporiza:

Apesar de serem sistematicamente apresentados como uma frente de oposição às vanguardas, essa oposição não se faz explicitamente consciente [...]. Nós [da academia] sim [...] identificamos nessa produção traços opostos ao experimentalismo vanguardista, inclusive pela rejeição manifesta pela técnica, pela busca do ‘novo’, pelo caráter programático ou militante representado pelos movimentos de vanguarda.

De qualquer forma, estabeleceu-se dentro da crítica literária, na abordagem da poesia brasileira entre as décadas de 1960 e 1970, uma cisão, ou melhor, uma cisma entre experiência e experimentação. É dessa cisma, aliás, que trata o célebre artigo de Marcos Siscar publicado na revista Sibila, em 2005SISCAR, Marcos (2005). A cisma da poesia brasileira. Sibila, v. 5, n. 8-9, p. 41-60., “A cisma da poesia brasileira”. Ao falar sobre a poesia brasileira da década de 1980, a despeito da diversidade de estilos e técnicas, Siscar (2005SISCAR, Marcos (2005). A cisma da poesia brasileira. Sibila, v. 5, n. 8-9, p. 41-60., p. 46) lembra que a nova geração carrega consigo uma pesada herança, que não é senão aquela baseada na “oposição entre a poesia concretista, semiótica, tecnológica, formalista de um modo geral, e a poesia do cotidiano, a poesia que busca inspiração na língua e na cultura popular, marginal editorialmente, crítica ao que concerne ao papel conservador da modernização no Brasil”.

Para Siscar, assim como para Carlos Messeder Pereira e Heloisa Buarque de Hollanda, a poesia marginal e o concretismo apresentam-se em polos distintos, sendo irreconciliáveis. Todavia, lançando o olhar sobre alguns poemas e mesmo alguns livrinhos da poesia marginal, observamos que, em muitos casos, os marginais chegaram a praticar poesia concreta. Não é a regra, claro; mas tampouco é a regra que a poesia marginal seja refratária ao concretismo. O caligrama, tão saudado pelos concretistas, por exemplo, é a forma poética a que Ana Cristina Cesar recorre em “Gota a gota” (figura 2).

Figura 2

Embora o caligrama escrito a mão assuma um caráter artesanal, distante dos trabalhos tipográficos dos irmãos Campos, o que importa salientar é que essa forma poética é exaltada no “plano-piloto para a poesia concreta”, “como visão, mais do que como realização” (1975, p. 156). Assim, o conteúdo do poema interessa pouco: o que chama realmente a atenção é sua visualidade, isto é, o formato de duas gotas, sendo uma com as linhas mais espessas. Joana Matos Frias (2013FRIAS, Joana Matos (2013). Um verso que tivesse blue. In: CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras . p. 480-490., p. 483) destaca que

Os jovens escritores não repudiavam de forma definitiva os jogos de palavras que os irmãos Campos e cia haviam já praticado até a exaustão, e que aliás estão bem presentes na poesia de Ana Cristina Cesar, mas optava por não os tornar gratuitos, mecânicos e previsíveis - os ludismos fonéticos surgiam agora na dose certa, uma colher de cada vez, mais remédio do que veneno.

Para ficar ainda com Ana Cristina Cesar, ressalta-se o poema “arte-manhas de um gasto gato”, em que artimanha é palavra-valise de arte-manha, e predomina a paranomásia. As repetições esvaziam a discursividade do texto num jogo em que o sentido emerge das assonâncias e aliterações: “ameaçado o nome de GATO/ ameaçado o nome de GASTO/ ameaçado de morrer na gastura de meu nome/ repito e me auto-ameaço” (2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 188). Não à toa, em “Psicografia”, Ana Cristina Cesar diz algo ao gosto dos concretistas: “e demito o verso como quem acena” (Cesar, 2013CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras., p. 193). Não que abandone o verso de todo, pelo contrário; mas Ana Cristina Cesar mostra ter também aprendido a lição dos concretos e descobre a materialidade da palavra. Com efeito, os poetas marginais não eram resistentes às vanguardas poéticas; o que recusavam era o seu dogmatismo: “Eu fiz poesia concreta, faço e farei. Agora a posição dos concretos é que eu discuto profundamente” Chacal apud (Monteiro, 2007MONTEIRO, André (2007). A sensibilidade poética dos anos 70: lições extemporâneas. In: FARIA, Alexandre. Anos 70: poesia e vida. Juiz de Fora: Editora UFJF. p. 25-42., p. 28).

Se o Plano-piloto de Brasília, de Lúcio Costa, inspirou os concretistas, a arquitetura algo futurista da nova capital da República também foi assunto da poesia de Nicolas Behr; entretanto, em vez do entusiasmo pelo progresso e pela técnica que atravessa a obra dos irmãos Campos e de Pignatari, a poética de Behr apresenta uma face crítica diante da modernização conservadora brasileira. Em Grande circular, publicado pela primeira vez em 1978, todos os poemas têm por tema a cidade de Brasília. Em um dos poemas, Behr apela ao baixo corporal a fim de rebaixar também a cidade, símbolo do poder político: “Brasília/ tu tens minha bosta/ incrustada no teu solo/ Minha urina irrigando/ teus verdes” (Behr, 2018aBEHR, Nicolas (2018a). Grande Circular. Brasília: Semim Edições. [Edição fac-símile], n.p). Todavia, a aproximação com os concretistas se dá pela visualidade de alguns poemas que são ilustrados com desenhos de Behr sobre a Praça dos Três Poderes (figura 3).

Figura 3

O poema consiste em apenas uma frase: “obs: o 7º erro é do desenhista”. Há um diálogo entre o título, que alude a um jogo popular, o desenho realizado pelo próprio poeta e a frase que mobiliza os elementos anteriores com o intuito de fazer o comentário crítico, isto é, de que os outros seis erros - nunca mencionados - foram perpetrados pela classe política. Em Bagaço, publicado em 1979, Behr vale-se novamente da relação entre desenho e palavra ao trazer uma mão desenhada (figura 4).

Figura 4

Discursivamente, o poema consiste basicamente nos dizeres: “grampeei meus dedos/ nesta folha de papel/ ai como dói/ ai como é gostoso”. A imagem reproduz justamente aquilo que é enunciado, isto é, uma mão cujos dedos estão grampeados. Mas, além da palavra e da imagem, destaca-se o fato de que os grampos não estão desenhados, são grampos realmente: procede-se a uma bricolagem. Ademais, o poema reflete tematicamente - ou melhor, metalinguisticamente - sobre o seu próprio procedimento, extrapolando o conteúdo semântico em direção à sua materialidade. Une-se o lúdico ao poético, o poema à sua materialidade.

De acordo com Carlos Messeder Pereira (1981PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (1981). Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE., p. 38), alguns poetas marginais “valiam-se de uma linguagem próxima daquela utilizada pelos concretos, atualizando portanto algumas de suas preocupações: buscava-se claramente uma exploração significativa do som, da letra impressa, da linha, da superfície da página e, mesmo da cor ou da massa”. Evidentemente, não houve consenso, da mesma forma que não há consenso sobre o que seja poesia marginal: enquanto Cacaso ironizava os irmãos Campos, Nicolas Behr, Paulo Leminski e mesmo Ana Cristina Cesar reelaboraram a visualidade do concretismo em favor de uma estética prosaica, cotidiana, em que a materialidade do signo é trabalhada de maneira artesanal. Tendo isso em vista, cumpre reafirmar que a poesia marginal relaciona organicamente o poema ao suporte material, é uma poesia que não deve ser pensada fora de sua materialidade, sob pena de empobrecê-la. É necessário, portanto, refletir sobre uma materialidade marginal.

Considerações finais

Como exposto anteriormente, as materialidades da poesia marginal assumem diversas formas: 1) a materialidade da literatura impõe-se ao poeta, como no caso de Ana Cristina Cesar, mostrando que não existe uma escrita sem suporte; 2) a antologização - aliás, a remediação - dos poemas em edições “apropriadas” e “limpas” chama a atenção para como o medium interfere na produção de sentido; 3) há um parentesco entre o livro de artista e os livrinhos artesanais dos poetas marginais; e 4) esclarece que a poesia marginal não é necessariamente refratária ao concretismo, desmistificando lugares-comuns da crítica literária. Com isso, tal visada teórica permite repensar a literatura, demonstrando a necessidade de relacioná-la não apenas ao suporte de inscrição, mas também aos seus modos de produção e distribuição. O estudo das materialidades proporciona, acima de tudo, um entendimento da literatura para além da tradição hermenêutica que domina os departamentos de estudos literários. Hermenêutica deve ser tomada aqui em sentido lato, isto é, enquanto teoria da interpretação, enquanto desvelamento do sentido. Para Hans Ulrich Gumbrecht (1998GUMBRECHT, Hans Ulrich (1998). Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 139),

As premissas do campo hermenêutico são muito simples; posso sintetizá-las em quatro principais. Primeira premissa: o que denominamos “sentido” tem sua origem no sujeito e não numa qualidade inerente aos objetos. A tarefa de atribuir sentido aos objetos cabe ao sujeito. Segunda premissa: a possibilidade de distinção radical entre o corpo e o espírito. Pensemos na tradição cartesiana e em seu corolário, segundo o qual é o espírito que de fato importa à comunicação e à autorreferência humana. Ninguém sabe exatamente o que se desejava designar por espírito, no entanto tal distinção era percebida como um dado natural. A terceira premissa é óbvia: o espírito conduz o sentido. Quarta premissa: neste contexto, o corpo serve apenas de instrumento que articula ou oculta o sentido. Aliás, um instrumento secundário.

O que Gumbrecht reclama é um paradigma analítico que leve em consideração as materialidades, não as relegando a um status acessório. Ou melhor, um paradigma que reconcilie essas duas instâncias. Assim é que propõe derrubar essa distinção entre corpo e espírito ou, no caso da literatura, entre o suporte de inscrição e aquilo que nele é veiculado. Conforme assinala David Scott Kastan (2001KASTAN, David Scott (2001). Shakespeare and the book. Cambridge: The University Press., p. 4), “literatura existe, em qualquer sentido útil, somente e sempre em suas materializações, e essas são as condições de seu significado em vez de meramente serem seu receptáculo. [...] Apenas quando os textos são percebidos materialmente é que o trabalho da imaginação se torna acessível”. O fato é que a linguagem não existe como uma idealidade pura, ela se realiza numa matéria concreta. Chamar a atenção para a materialidade da escrita implica considerar não apenas os diferentes suportes em que ela se efetiva, mas também a própria forma que a constitui: a fonte tipográfica, o idioma, o alfabeto, o paratexto (capa, título, subtítulos, prefácios, preâmbulos, apresentação, notas de rodapé, epígrafes, ilustrações, dedicatória etc.). Segundo Claus Clüver (2011CLÜVER, Claus (2011). Intermidialidade. Pós, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 8-23, nov., p. 13),

A escrita, por outro lado, é uma mídia separada e particular. Ela pode ficar transparente na leitura de um texto impresso convencionalmente: para muitos leitores a fonte e o tamanho das letras normalmente não influenciam na recepção e interpretação do texto verbal (mas podem influenciar no prazer da leitura). Mas, além de existir em muitas formas de representação da linguagem verbal - alfabética, ideogramática, hieroglífica, cuneiforme, etc. - a escrita, manual ou impressa, consiste de signos sui generis, com um grande leque de expressividade. A informação comunicada por um texto escrito à mão pode ser rica em relação à personalidade do indivíduo que o escreveu, como também à época e ao lugar onde foi escrito. A escolha das fontes e tamanhos, especialmente dos cabeçalhos e títulos, é um aspecto importante no layout e design de uma revista, em cartazes e na publicidade televisiva. A caligrafia tem um papel importante e variado em muitas culturas, mais ainda nas orientais e árabes do que nas ocidentais. Na produção das vanguardas encontramos muitas maneiras de exploração das formas das letras sem uma ligação direta com textos verbais, desde os futurismos italiano e russo e o dadá até a poesia concreta e visual.

Além da poesia concreta e visual, eu acrescentaria a poesia marginal, devido aos usos criativos da materialidade da escrita e do suporte. Contra o paradigma hermenêutico, “é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura” (Chartier, 1991CHARTIER, Roger (1991). O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191., p. 178). Isso porque um texto escrito em determinado suporte não é mais o mesmo texto em outro dispositivo de escrita e leitura. Partindo desse pressuposto, evitam-se os juízos generalizantes acerca dessa poesia, uma vez que se torna necessário analisar cada poema em sua relação com o suporte. Assim, mais do que um reparo às lacunas e leituras depreciativas da crítica, este artigo tem a intenção de oferecer uma nova maneira de se encarar a poesia marginal, qual seja, sob a perspectiva das materialidades.

Cumpre ressaltar, no entanto, que adotar tal abordagem não significa aderir às teorias da moda importadas da Europa, tal como os departamentos de Letras fizeram ao longo da segunda metade do século XX, ao abraçarem sem nenhuma hesitação o estruturalismo, a semiótica e o pós-estruturalismo. Em que pesem os esforços pioneiros de Friedrich Kittler, ainda na década de 1980, passando pela coletânea Materialities of communications (1994GUMBRECHT, Hans Ulrich; PFEIFFER, K. Ludwig (org.) (1994). Materialities of Communication. Stanford: Stanford University Press.), pelos trabalhos de Paul Zumthor e sobretudo de Gumbrecht, o estudo das materialidades da comunicação/das mídias é ainda incipiente. Porém, aos poucos, tem havido uma saudável mudança de ares. A criação do Programa de Doutoramento Materialidades da Literatura na Universidade de Coimbra, em 2010, atesta isso. Essas iniciativas são tentativas de solicitar do pesquisador da área de Letras que se atente para as materialidades da literatura, ou melhor, para o fato frequentemente esquecido de que não existe literatura sem um suporte de inscrição - e que esse suporte interfere na transmissão de sentido.

Referências

  • BEHR, Nicolas (2018a). Grande Circular. Brasília: Semim Edições. [Edição fac-símile]
  • BEHR, Nicolas (2018b). Bagaço. Brasília: Semim Edições . [Edição fac-símile]
  • BENJAMIN, Walter (1994). O autor como produtor. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense. p. 120-136.
  • BOSI, Alfredo et al. (1983). Rebate de pares. Remate de Males, n. 2.
  • BRASIL (1970). Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de dezembro de 1970. Dispõe sobre a execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF. p. 577. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1077.htm Acesso em: 6 set. 2019.
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  • 1
    Cf. Os Filhos do Barro (2013PAZ, Octavio (2013). Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify .).
  • 2
    Na conferência “Poesia e composição”, de 1952, recolhida na coletânea Prosa (1998MELO NETO, João Cabral (1998). Poesia e composição. In: MELO NETO, João Cabral. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 51-70.), João Cabral de Melo Neto traça um esquema segundo o qual a “inspiração” opor-se-ia “ao trabalho de arte. O texto de Cabral é uma espécie de crítica avant la lettre da poesia marginal, antecipando, por exemplo, alguns dos pontos levantados por Iumna Simon e Vinicius Dantas. João Cabral de Melo Neto (1998MELO NETO, João Cabral (1998). Poesia e composição. In: MELO NETO, João Cabral. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 51-70., p. 56) afirma que “[n]o autor que aceita a preponderância da inspiração o poema é, em regra geral, a tradução de uma experiência direta. O poema é o eco, muitas vezes imediato, dessa experiência”. Mais adiante: “[a] experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua transcrição é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. [...] O poema é um depoimento e quanto mais direto, quanto mais próximo do estado que o determinou, melhor estará. A obra é um simples transmissor, um pobre transmissor, o meio inferior que ele tem de dar a conhecer uma pequena parte da poesia que é capaz de vir habitá-lo” (Melo Neto, 1998MELO NETO, João Cabral (1998). Poesia e composição. In: MELO NETO, João Cabral. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 51-70., p. 58-59).
  • 3
    Segundo Eucanaã Ferraz (2013FERRAZ, Eucanaã (org.) (2013). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: IMS ., p. 9-10), “muito embora esta última fosse a técnica empregada pelas grandes editoras, é fundamental observar que os poetas marginais continuaram mantendo algo daquela pobreza a que me referi: uso de grampos em vez de costura; envelopes e sacos em vez de encadernação; papéis de baixo custo e mesmo considerados toscos, como o kraft; impressão em, no máximo, duas cores; emprego de instrumentos estranhos ao meio editorial, como o carimbo, comum em escritórios e repartições públicas”.

Editor:

Paulo Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2022
  • Aceito
    05 Abr 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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