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Análise de poesia em Libras com base na teoria de experiência estética de Jauss

Poetry analysis in Libras based on Jauss’s theory of aesthetic experience

Análisis de la poesia em Libras a partir de la teoria de la experiencia estética de Jauss

Resumo

Este artigo analisa o poema “Farol da Barra” tendo como base a teoria de experiência estética de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.). Também trazemos para a discussão as propostas teóricas de Figurelli (1988FIGURELLI, Roberto (1988). Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista Letras, Curitiba, n. 37, p. 265-285.), Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .), entre outros. A partir de um método de análise qualitativa, com a finalidade de legitimar a produção literária de e para pessoas surdas, propomos uma analogia entre as ideias defendidas pela estética da recepção, mormente partindo das propostas de Jauss, e as ideias evidenciadas pelo poema surdo “Farol da Barra”, criado por, Maurício Barreto, poeta surdo de Salvador/BA. Nesse sentido, concluímos que, assim como a literatura de não surdos, a literatura surda pode ser analisada e percebida conceitualmente pelo observador (leitor), além de possibilitar ao autor surdo construir fruição estética inerente à poesia em língua brasileira de sinais (Libras), de acordo com as três concepções de experiências fundamentais de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), que são poiesis, aisthesis e katharsis.

Palavras-chave:
estética da recepção; literatura surda; Jauss

Abstract

This article aims to analyze the poetry “Farol da Barra”, according to Jauss' theory of aesthetic experience (1994). We also bring to the discussion the theoretical proposals of Figurelli (1988FIGURELLI, Roberto (1988). Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista Letras, Curitiba, n. 37, p. 265-285.) and Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .). Then, based on a qualitative analysis method, to legitimize the literary production to and from deaf people, we propose an analogy between the ideas defended by the reception aesthetic, mainly based on Jauss’ proposals, and the ideas evidenced by deaf poetry “Farol da Barra” created by a deaf author, Maurício Barreto, from Salvador - Bahia. In this sense, we conclude that as well as the literature of the like non-deaf, the Deaf Literature can be analyzed and perceived conceptually by the observer (reader), besides that it allows the deaf author to build aesthetic fruition inherent to poetry in Brazilian Sign Language (Libras), according to the three conceptions of fundamental experiences of Jauss’s (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), which are poiesis, aisthesis, and katharsis.

Keywords:
aesthetics of reception; deaf literature; Jauss

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar la poesía “Farol da Barra”, según la teoría de la experiencia estética de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.). También traemos a la discusión las propuestas teóricas de Figurelli (1988FIGURELLI, Roberto (1988). Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista Letras, Curitiba, n. 37, p. 265-285.), Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .), entre otros. A partir de un método de análisis cualitativo, con el propósito de legitimar la producción literaria de y para sordos, proponemos una analogía entre las ideas defendidas por la estética de la recepción, principalmente a partir de las propuestas de Jauss, y las ideas evidenciadas por la poesía sorda. “Farol da Barra” creado por un autor sordo, Maurício Barreto, de Salvador - Bahia. En ese sentido, concluimos que, al igual que la literatura de los no sordos, la Literatura Sorda puede ser analizada y percibida conceptualmente por el observador (lector), además de permitir al autor sordo construir el goce estético inherente a la poesía en Señas Brasileña Lenguaje (Libras), según las tres concepciones de experiencias fundamentales de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), que son poiesis, aisthesis y katharsis.

Palabras-clave:
estética de la recepción; literatura sorda; Jauss

O avanço da tecnologia coloca-nos diante do desafio de estarmos sempre atentos às propostas inovadoras de análise que a pós-modernidade proporciona. Nessa perspectiva, a literatura produzida por autores surdos surge como mais um fruto desse desenvolvimento, ganhando cada vez mais espaço no meio acadêmico nacional e internacional. Por esta razão, propomos neste artigo uma análise da literatura surda valendo-nos, de modo mais específico, de alguns pontos teóricos desenvolvidos sob a ótica da estética da recepção.

Originada em 1967 na Universidade de Constança, Alemanha, a estética da recepção expandiu-se para o resto do mundo por meio dos estudos de Hans George Gadamer e Hans Robert Jauss (Zilberman, 1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .). Conforme Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .), este último trouxe novas e importantes reflexões para os estudos acerca das manifestações artísticas, principalmente para os estudos literários, visto que defendia uma teoria estética que concebia uma ruptura com o estruturalismo e possibilitava a mudança de foco na análise do texto como ferramenta principal, passando a considerar o leitor como o protagonista das novas propostas literárias.

Nessa perspectiva, propomos uma analogia entre as ideias defendidas pela estética da recepção, mormente partindo das propostas de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), e as ideias evidenciadas pela poesia surda, pois percebemos que o poeta surdo se apropria intencionalmente de recursos audiovisuais por ter como foco a recepção do leitor, seja surdo ou não surdo, e não somente aos que detêm o conhecimento da língua brasileira de sinais (Libras).

Nessa lógica, objetivamos analisar “Farol da Barra”, poema surdo que, de acordo com as categorias fundamentais de experiências estéticas de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), tem o intuito de defender a ideia de que a poesia surda, como qualquer outra manifestação literária, oferece ao espectador a oportunidade de um tipo de fruição estética análoga à que é proporcionada pelo texto escrito, embora a modalidade de produção dos significados seja diferente.

Desse modo, a fim de estruturar a proposta, destacamos a seguir alguns elementos das experiências estéticas fundamentais necessários para a sustentação de nossa hipótese.

As experiências estéticas fundamentais

Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.) apresenta um método de análise de forma sistemática, mas também livre, pois as experiências estéticas fundamentais propostas pelo autor não constituem modos teóricos estanques, categorias engessadas nas quais se poderia encaixar o espectador, visto que, dessa forma, elas se abrem a uma análise mais ampla e autônoma. Para tanto, ele recorre a termos gregos como poíesis, aísthesis e kátharsis,1 1 Adotamos neste artigo as regras de transliteração dos termos gregos propostas pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, disponíveis em: https://revista.classica.org.br/classica/article/view/123. conhecidos na tradição filosófica, adaptando-os para compor sua concepção de experiência estética. Logo, nos próximos itens, segue algumas definições inerentes a cada uma das “três funções da ação humana na atividade estética”, segundo Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática., p. 75).

Poíesis

Para Jauss:

Poiesis, entendida como capacidade poética, designa a experiência estética fundamental de que o homem, mediante a produção de arte, pode satisfazer sua necessidade universal de encontrar-se no mundo como em casa, privando o mundo exterior de sua indescritível estranheza, fazendo a própria obra, e obtendo nesta atividade um saber que se distingue tanto do saber conceptual da ciência como da práxis instrumental do ofício mecânico (2002, p. 42-43, tradução nossa).

A partir desse pressuposto, depreendemos que se trata de um importante conceito de que o autor se apropria para significar a fruição proveniente da produção de uma obra, ou seja, não se refere apenas ao ato de criação, mas ao poder criativo, inspiração e apreciação estética.

Nesse seguimento, Figurelli (1988FIGURELLI, Roberto (1988). Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista Letras, Curitiba, n. 37, p. 265-285., p. 269) define que poíesis significa “poder poético” no sentido de um “savoir-faire”. Em outras palavras, trata-se do prazer que o sujeito sente diante da construção da obra, desmistificando a ideia de criação ou produção centrada apenas na forma.

Corroborando com essa definição, para Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .), poiesis corresponde ao prazer de o leitor sentir que fez ou faz parte da produção da obra como se fosse coautor ou, de forma natural, identificar-se com as escolhas livres e criativas adotadas pelo criador da arte. Nesse sentido, essa função estética é centrada na consciência da atividade produtiva do homem que desperta no leitor outra função definida no próximo item, aisthesis.

Aisthesis

Nas palavras de Figurelli:

Jauss retoma o termo aisthesis, no contexto da experiência fundamental, para significar “essa fruição estética do ver que reconhece e do reconhecer que vê”. Inclui também no conteúdo de aisthesis a capacidade de renovar a percepção das coisas, perdida pela rotina do dia a dia (1988, p. 269).

Em virtude disso, para Cavalcante (2002CAVALCANTE, Nathalia S.; COELHO, Luiz A. L. (2002). O inferno são os outros. In: SIMPÓSIO LARS, 1., 12 e 13 ago. 2002, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: PUC-Rio. Disponível em: Disponível em: http://lars.dad.puc-rio.br/wp-content/uploads/2019/11/simposio2002_31.pdf . Acesso em: 8 jun. 2022.
http://lars.dad.puc-rio.br/wp-content/up...
), aisthesis seria a percepção do prazer estético perante o imitado. E, para Zilberman (1989ZILBERMAN, Regina (1989). Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática .), aisthesis é o conceito que fundamenta a arte contemporânea, fato que atribui a ela a finalidade de renovar a percepção.

Esses conceitos corroboram com o defendido por Jauss quando ele afirma que:

Aisthesis designa a experiência estética fundamental de que uma obra de arte pode renovar a percepção das coisas, embotada pelo costume, do qual resulta que o conhecimento intuitivo, em virtude da aisthesis, opõe-se novamente com pleno direito à tradicional primazia do conhecimento conceptual. (2002, p. 42-43, tradução nossa).

Dessa forma, aisthesis é uma função centrada na recepção do prazer estético e do reconhecimento dessa percepção, podendo culminar numa ressignificação da visão de mundo que circunda a obra, enfatizando as ideias aristotélicas, pois o autor não tem interesse em pregar um conceito original, mas utilizar os conhecidos e tradicionais conceitos a favor da teoria proposta.

Katharsis

Diferentemente da proposta conceitual da aisthesis e, apesar de se referir explicitamente a Aristóteles, Jauss percorre um caminho inesperado e bastante estimulador da identificação do conceito supracitado quando afirma que:

A katharsis designa a experiência estética fundamental de que o espectador, na recepção da arte, pode ser liberado da parcialidade dos interesses vitais práticos mediante a satisfação estética e ser conduzido também a uma identificação comunicativa ou orientadora da ação. (2002, p. 42-43, tradução nossa).

Seguido a isso, Zilberman conceitua katharsis:

A definição de catarse mostra-a como basicamente mobilizadora: o espectador não apenas sente prazer, mas também é motivado à ação. Esta característica acentua a função comunicativa da arte verbal, que, por seu turno, depende do processo vivido pelo recebedor: o de identificação. Esta é provocada pela experiência estética e leva o sujeito a adoção de um modelo (1989, p. 57).

Nesse sentido, por meio do processo de katharsis o leitor recebe e/ou percebe a liberdade estética do outro em sua obra, e somente a partir dessa percepção é que ele vai olhar para suas impressões iniciais, consolidá-las ou não às propostas estéticas da obra e gerar um horizonte de expectativas nas quais o leitor terá a liberdade de ressignificar seu juízo de valor estético. De acordo com Figurelli (1988FIGURELLI, Roberto (1988). Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista Letras, Curitiba, n. 37, p. 265-285., p. 269), Jauss utiliza o termo katharsis para significar, num plano social, a tarefa que as artes têm de “inaugurar, transmitir e justificar” as normativas da ação e de provocar o leitor, numa dimensão de arte autônoma, a se desconectar das amarras da experiência cotidiana, com a finalidade de situá-lo pela “fruição de si na fruição do outro”.

É importante frisar que essas três categorias fundamentais da experiência estética propostas pelo autor não devem ser vistas como partes isoladas de uma subordinação hierárquica estética, mas sim como uma relação de funções autônomas, pois, apesar de não serem subordinadas umas às outras, elas podem estabelecer uma relação de sequências, ou seja, é possível que o próprio artista percorra o caminho da poiesis à aisthesis enquanto espectador, assim como a katharsis, enquanto recebedor da obra que o motiva à ação.

Essas funções categóricas comunicativas da experiência estética de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.) são as que nos permitem observar a liberdade e a autonomia que possui o leitor diante do produto artístico, pois, mesmo de forma intencional, o autor não consegue limitar e impor a ideia introduzida na sua obra, devido à liberdade de pensamento e de significações que as imagens verbais e não verbais propõem a variados leitores. Assim, é com base nesse pressuposto, que nos propusemos a analisar a poesia surda, mas, para isso, faz-se necessário entendermos um pouco sobre literatura surda.

Literatura surda

Segundo Karnopp:

Nas últimas décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comunidades surdas, em diferentes espaços, especialmente o reconhecimento da cultura surda e a oficialização da língua brasileira de sinais (Libras). Além disso, investigações nas áreas da educação e da linguística apontaram a importância da língua de sinais na educação do surdo. Tais fatos tornaram fecundas as reflexões sobre a língua na educação de surdos e revelaram também trajetórias de lutas, diferentes concepções sobre surdo, língua de sinais, ensino, cultura e fazer pedagógico (2010, p. 156).

Nessa perspectiva, desde o reconhecimento governamental da língua brasileira de sinais como língua oficial das pessoas com surdez, vêm se fortalecendo cada vez mais a luta da comunidade surda2 2 “Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que mora em uma localização particular, compartilha as metas comuns de seus membros e, de vários modos, trabalha para alcançar estas metas. Portanto, em uma comunidade surda pode ter [sic] também ouvintes e surdos que não são culturalmente surdos” (Padden, 1989 apud Felipe, 2007). por meio de cobranças de direitos e ações de inclusão, as quais ocorrem em vários espaços da sociedade.

Dessa maneira, aliados ao avanço da tecnologia, surdos e não surdos que falam em Libras conquistaram mais espaço para compartilharem, entre vários aspectos, cultura, identidade e o modo visual de ver o mundo do sujeito surdo, em diferentes campos científicos, entre eles, o campo literário.

A tecnologia, nesse percurso, foi fundamental para propagação e fomentação das manifestações literárias surdas que, por muito tempo, foram praticadas e fortalecidas após o surgimento das comunidades surdas; segundo Sutton-Spence (2005SUTTON-SPENCE, Rachel (2005). Analysing sign language poetry. Basingstoke: Palgrave Macmillan.), se compararmos a história da literatura e a história dos surdos, perceberemos que até o século XVIII não havia comunidades surdas como as que existem atualmente.

Salientamos ainda que, de acordo com Porto e Peixoto (2011PORTO, Shirley; PEIXOTO, Janaína (2011). Literatura visual. In: FARIA, Evangelina M. B; CAVALCANTE, Marianne C. B. (Org.). Língua portuguesa e libras: teorias e práticas. João Pessoa. Editora da UFPB. v. 3, p. 167-196., p. 167), as formações dessas comunidades foram acontecendo a partir do progresso de um movimento “científico, social, educacional e cultural da Modernidade”. Nesse contexto, o surgimento desses grupos de pessoas envolvidas com a causa surda possibilitou troca de saberes, experiências e práticas que ajudaram as pessoas com surdez a desenvolverem uma consciência de identidade e cultura.

Desse modo, com o despertar dessa consciência, a partir do “século XVIII até a penúltima década do século XIX”, de acordo com Porto e Peixoto (2011PORTO, Shirley; PEIXOTO, Janaína (2011). Literatura visual. In: FARIA, Evangelina M. B; CAVALCANTE, Marianne C. B. (Org.). Língua portuguesa e libras: teorias e práticas. João Pessoa. Editora da UFPB. v. 3, p. 167-196., p. 168), os surdos compartilharam, de geração para geração, várias manifestações literárias. Conforme Mourão (2016MOURÃO, Cláudio (2016). Literatura surda: experiência das mãos literárias. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre. , p. 22), era o “jeito que antigamente as histórias eram passadas adiante, na forma de sinalidade”. Entretanto, infelizmente, muitas delas se perderam com a opressão oralista que os participantes desses grupos sofreram com o advento do oralismo em 1880.

Nesse período, não havia registros escritos nem equipamento para gravação de vídeo, porém isso não impediu o crescimento das produções literárias sinalizadas como forma de representatividade e luta das pessoas com surdez. Segundo Mourão (2011MOURÃO, Cláudio (2011). Literatura surda: produções culturais de surdos em língua de sinais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. , p. 73), “a literatura surda traz história de comunidades surdas, e essas histórias não interessam só para elas, mas também para as comunidades ouvintes, através da participação tanto de sujeitos ouvintes quanto de sujeitos surdos”. Nesse sentido, o autor afirma:

Não é fácil definir a literatura surda. Assim como não há uma única conceituação para literatura geral, também não há uma definição única para literatura surda. Quando se fala nela, especificamente, vemos que está relacionada às representações produzidas por surdos, em que se produzem significados partilhados em forma de discurso - sem eles, não há representação surda. Os significados são modificados dentro do círculo da cultura, e o sujeito não cria sozinho a cultura, já que sempre há o coletivo produzindo significados (2011, p. 73).

Diante desse excerto, podemos inferir que a literatura surda se refere às manifestações culturais e artísticas desenvolvidas na comunidade surda. Essas expressões literárias estão presentes no modo de narrar as histórias, adaptá-las e/ou produzi-las. Nessa perspectiva, Karnopp define que:

Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como falta, que possibilita outras representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente (2010KARNOPP, Lodenir Becker (2010). Produções culturais de surdos: análise da literatura surda. Cadernos de Educação, Pelotas, n. 36, p. 155-174, maio/ago. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Otj7iT . Acesso em: 5 set. 2019.
https://bit.ly/3Otj7iT...
, p. 161).

Atualmente, de acordo com Mourão (2016MOURÃO, Cláudio (2016). Literatura surda: experiência das mãos literárias. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ), podemos considerar três tipos de produções literárias sinalizadas de e para surdos, pois, segundo Sutton-Spence (2013 apudMourão, 2016MOURÃO, Cláudio (2016). Literatura surda: experiência das mãos literárias. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre. , p. 200), “é possível que o ouvinte, empenhando-se na língua de sinais, também a produza”. A primeira, literatura em Libras, acontece quando há uma tradução dos textos tradicionalmente conhecidos para a língua de sinais como os contos de Machado de Assis e outros. A segunda trata-se de adaptações dos textos clássicos à realidade dos surdos, por exemplo, a história da Cinderela Surda que foi adaptada a partir do conto famoso intitulado “Cinderela”. A terceira refere-se ao modo que acontece a maioria do resgate da literatura surda, como produção de histórias, humor, anedotas, narrativas, fábulas, poesias e vários gêneros.

Nesse sentido, a poesia surda, fruto desse último tipo de literatura surda, foi contextualizada e analisada, a seguir, neste artigo, sob a ótica da teoria da estética da recepção de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), pois, segundo Mourão (2011MOURÃO, Cláudio (2011). Literatura surda: produções culturais de surdos em língua de sinais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ), a literatura surda pode ser categorizada e analisada da mesma forma que outras literaturas, ou seja, assim como a literatura ouvinte, ela faz parte de um círculo de manifestação cultural em forma de discurso visual carregada de conhecimento, objetos culturais e imagens que transmitem significado.

Poesia surda

Antes do desenvolvimento tecnológico, a poesia surda era praticamente nula, segundo afirmam Sutton-Spence e Quadros (2006SUTTON-SPENCE, Rachel; QUADROS, Ronice Müller (2006). Poesia em língua de sinais: traços da identidade surda. In: QUADROS, Ronice Müller (Org.). Estudos surdos I. PetrópolisJ: Arara Azul. p, 112): “o registro poético era socialmente inconcebível e, enquanto permanecesse socialmente inconcebível, ele era linguisticamente vazio”. Embora já existissem manifestações poéticas em comunidades surdas isoladas, os criadores de poemas encontravam dificuldades para compartilhar sua produção, seja por falta de recursos financeiros, seja por ausência de meios para que isso fosse concebido.

Segundo Maestri e Ansay (2014MAESTRI, Rita de. C.; ANSAY, Noemi N. (2014). Literatura surda: tradução de poesia da língua portuguesa para língua brasileira de sinais. Curitiba: Editora UTFPR. [v.1].), o surdo, como um leitor visual e vivendo em ambientes bilíngues e multiculturais, necessita de materiais pedagógicos e/ou tecnológicos que apresentem os conteúdos literários por meio de imagens ilustrativas e/ou traduções de textos para Libras em DVD ou em vídeo. Nesse caso, o avanço da tecnologia não só propiciou um alcance maior de compartilhamento das inspirações poéticas como também ajudou a legitimar e/ou reconhecer inúmeras produções poéticas surdas.

Hoje, podemos encontrar vários meios de compartilhamento de manifestações culturais surdas, em especial, de poesia surda, apresentadas em canais como YouTube, aplicativos de celular, sites, blogs, fóruns e outros. Assim, foi de um blog intitulado “Cultura Surda” que coletamos o poema “Farol da Barra” (Eiji, 2012EIJI, Hugo (2012). Farol da Barra. Blog Cultura Surda, São Paulo, 9 set. 2012. Disponível em: Disponível em: https://culturasurda.net/2012/09/09/farol-da-barra/ . Acesso em: 23 de jan. 2021.
https://culturasurda.net/2012/09/09/faro...
) para analisarmos de acordo com a teoria de experiência estética de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.).

Optamos por retirar um poema surdo desse blog por se tratar de um espaço virtual estruturado e bastante conhecido entre as comunidades surdas, pois foi construído com a intenção de abrir uma oportunidade de compartilhamento de manifestações e produções culturais surdas de diferentes países. Nesse acervo, podemos encontrar artes plásticas, literatura, teatro, filmes, curta-metragem, projetos e músicas em língua de sinais. Dessa forma, ele se fez bastante útil para o desenvolvimento deste trabalho.

O poema “Farol da Barra” foi criado pelo autor surdo Maurício Barreto, de Salvador/BA. Segundo Peixoto (2016PEIXOTO, Janaína A. (2016). O registro da beleza nas mãos: a tradição de produções poéticas em língua de sinais no Brasil. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.), o poeta possui uma ampla e forte atuação na comunidade surda que abrange a área artística (produção de desenhos, poemas e outras artes), educacional (como instrutor de Libras numa escola) e religiosa (evangelizando surdos e produzindo material religioso em Libras).

Na área artística, ele já desenvolveu diversos poemas, mas, apesar de ter sido influenciado por dois outros poetas surdos - um da França e a outra do Brasil -, ele desenvolveu um estilo próprio, com um ritmo que nos remete a melodia de uma música, conforme Peixoto (2016PEIXOTO, Janaína A. (2016). O registro da beleza nas mãos: a tradição de produções poéticas em língua de sinais no Brasil. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.). Essas diferenças de estilo e de estética são comumente encontradas em qualquer manifestação poética, porém, quando se trata da poesia sinalizada, a poeta surda Fernanda Machado explica que:

A língua de sinais é carregada de elementos pertinentes somente a ela, tem estética e estilo próprios e cada usuário apropria-se da língua de maneira diferente. Nesse sentido, a língua de sinais não é somente uma vocação, mas sim uma construção que acontece por meio das experiências, por isso existem pessoas que sinalizam de modo mais brando e suave, enquanto outras, de modo mais firme e vibrante. Mesmo sendo toda a sinalização uma forma de inspiração, nunca será reproduzida no mesmo estilo, pois a língua é dinâmica (Machado, 2013MACHADO, Fernanda de A. (2013). Simetria na poética visual na língua de sinais brasileira. Dissertação. (Mestrado em Estudos da Tradução) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis., p. 59-60).

Nessa perspectiva, depreendemos que, diferente da poesia de não surdos, que é centrada na escrita, a poesia surda é expressa e construída por meio da sinalização, numa perspectiva visual que apresenta corporalidade e expressividade.

Desse modo, de acordo com Machado (2013MACHADO, Fernanda de A. (2013). Simetria na poética visual na língua de sinais brasileira. Dissertação. (Mestrado em Estudos da Tradução) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.), os surdos exploram a corporalidade e expressividade por meio de uma estrutura poética que respeita a sintaxe da Libras e que consiste na composição de estrofes fazendo uso de expressões faciais, ritmo, repetição, simetria ou assimetria, metáforas, entre outras características. Ainda segundo a autora, esses elementos que compõem a poesia surda são inerentes somente aos surdos, pois os intérpretes não surdos não vivenciam essas percepções, além disso, eles não passam por nenhum processo tradutório, porque são desenvolvidos diretamente na língua natural do surdo, Libras.

Dessa maneira, a poesia sinalizada, que tem crescido cada vez mais através do uso de tecnologias, é uma manifestação cultural surda muito importante para desenvolver a conscientização e o respeito da sociedade em relação à beleza e complexidade da Língua de Sinais. Ademais, ela também contribui para o aprendizado de crianças surdas, fortalece os valores identitários e criativos das comunidades culturais deles e, por meio de um constructo linguístico, ajuda os surdos a compreenderem mais sobre si, a expressarem suas emoções e sentidos e a provocar uma experiência de prazer estético no outro.

Análise da poesia surda

Nessa poesia, a poiesis - produção - é percebida de diferentes formas, visto que o processo de produção criativa que o poeta adotou não perpassa apenas pelo uso de expressões faciais e de imagens, mas também as escolhas lexicais, o ritmo e a melodia provocam no receptor um processo de ressignificação, que corresponde, segundo Jauss (2002JAUSS, Hans Robert (2002). Pequeña apología de la experiencia estética. Tradução de Daniél Innerarity. Barcelona: Paidós.), ao poder criativo, à inspiração e à apreciação estética.

Em outras palavras, provoca um prazer identificador entre o leitor e a obra, principalmente, nesse caso, quando o leitor pertence à comunidade surda. O prazer é um elemento muito importante da poesia em Libras que precisa ser considerado, pois está imbuído da expressão de diferentes ideias e significados que se fortalecem pela percepção visual e experiência subjetiva surda.

Na figura 1, a seguir, por exemplo, há uma sequência de imagens e informações, retiradas do vídeo do poema, que ilustram um momento provocador da fruição estética, visto que, na primeira figura, com a imagem do Céu azul ao fundo, o poeta executa o sinal referente a “Deus” (configuração de mão em “D”), eleva-o acima da cabeça para evidenciar a superioridade divina e, em seguida, em ritmo suave, a configuração de mão e a imagem ao fundo alteram-se como se a luz do sol forte fosse a materialização do poder divino sobre o homem. Dessa forma, o poeta constrói uma relação da sinalização com os elementos naturais - como o céu, sol, lua, mar e terra presentes no enredo poético - que transmitem a sensação de que nesse contexto há distintas possibilidades de interpretação e percepção.

Figura 1
Sequência de sinais no poema “Farol da Barra”

Nessa perspectiva, a observação de que, de forma criativa, o autor de “Farol da Barra” se preocupa em construir uma relação de imagens ao fundo com os sinais utilizados por ele no poema, permite-nos conjecturar que o poeta não quer atingir somente o receptor surdo, mas também o ouvinte que desejar conhecer melhor as expressões poéticas surdas.

A descrição e a interpretação desse recorte poético aqui propostas podem ser corroboradas ou não por outros receptores que tiverem contato com esse poema. Mas o fato é que essa produção poética - poesis - conduz o leitor a outra experiência estética, que é a aisthesis - recepção.

A segunda experiência fundamental, aisthesis, para Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática., p. 56), significa “essa fruição estética do ver que reconhece e do reconhecer que vê”, além de evidenciar a capacidade de renovar a percepção das coisas que comumente estão presentes na vida do homem, assim ampliando horizonte de expectativas dele. Ainda, conforme o autor, essas expectativas advêm da “compreensão prévia do gênero, da forma e da temática das obras anteriormente conhecidas e da oposição entre linguagem poética e linguagem prática” (Jauss, 1976JAUSS, Hans Robert (1976). La literatura como provocación. Tradução de Juan Godo Costa. Barcelona: Península., p. 169).

Nessa perspectiva, por apresentar um resgate a vários temas relacionados a contextos sócio-históricos presentes nas imagens por trás do autor surdo, o poema “Farol da Barra” possibilita que o receptor reconheça as ideias apresentadas e ressignifique o seu olhar interpretativo sobre o que é reconhecido, pois o leitor é levado a fazer uma associação do conhecimento de mundo dele com o que o poeta surdo expressa em língua de sinais, como se vê nos exemplos a seguir (figura 2).

Figura 2
Exemplos de sinais com referências históricas presentes no poema “Farol da Barra”

Na figura 2, o autor ativa poeticamente o conhecimento prévio do receptor que conhece a história do Brasil, pois a sequência de imagens - linguagem prática5 5 Segundo Jauss (1976, p. 169), as experiências estéticas poiesis, aisthesis e katharsis são desencadeadas e percebidas ao estabelecermos uma relação entre a linguagem poética - recursos estruturais e estilísticos utilizados para construção criativa do poema - e a linguagem prática - referências às representações do mundo ao nosso redor e de uso da linguagem comum sem alterações poéticas. Nesse sentido, durante as análises, usaremos os termos “linguagem poética” e “linguagem prática” para demarcar a qual tipo de linguagem pertence o trecho do poema que está sendo analisado. - em confronto com a sinalização criativa do poeta - linguagem poética - ilustra o momento histórico da chegada dos portugueses ao Brasil, mas, para além dessa informação, provoca no leitor uma experiência estética, aisthesis.

Em outro momento, o poema ativa novamente o conhecimento prévio do receptor quando resgata a referência inicial do poema (“Deus”), porém com uma luz noturna ao fundo e a configuração de mão em “r” - linguagem poética - e não em “D”, que seria a configuração de mão comumente utilizada para fazer o sinal de “Deus” em Libras - linguagem prática (figura 3). A escolha do poeta em utilizar a configuração de mão em “r”, nesse caso, mostra-se como um recurso analógico de expressão da linguagem poética para estabelecer uma relação entre a última letra da datilologia do nome da capital da Bahia, “Salvador” e o sinal que normalmente a comunidade surda usa para a palavra Deus (considerado no campo religioso como o Salvador) em linguagem prática.

Figura 3
Representação poética do poema “Farol da Barra”

Para Porto e Peixoto (2011PORTO, Shirley; PEIXOTO, Janaína (2011). Literatura visual. In: FARIA, Evangelina M. B; CAVALCANTE, Marianne C. B. (Org.). Língua portuguesa e libras: teorias e práticas. João Pessoa. Editora da UFPB. v. 3, p. 167-196.), todas as expressões culturais sofrem influências das concepções de homem, sociedade e mundo dos autores, e isso não é diferente em relação aos surdos, apesar de a poesia em língua brasileira de sinais dos surdos poetas-sinalizadores constituir-se de uma estética diferente da dos ouvintes. Contudo, do mesmo modo, ela provoca um horizonte de expectativa no leitor, pois envolve representações produzidas pelos surdos e carregadas de significados compartilhados em forma de discurso poético.

Ambas as figuras (2 e 3) provocam o prazer estético da recepção reconhecedora em confronto com o reconhecimento prévio perceptivo, que, segundo Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática., p. 65), é explicado por Aristóteles como a “dupla razão do prazer ante ao imitado”.

Dessa maneira, a poiesis e a aisthesis podem desencadear o processo de katharsis - experiência comunicativa -, que acontecerá no momento em que o poema desperta no receptor uma inspiração ou um sentimento de ressignificação de suas concepções de mundo, motivando uma mudança de atitude.

De acordo com Gomide:

A katharsis pode também acontecer como uma função empática, como uma identificação emocional do espectador com o herói. Como função social da katharsis, Jauss entende que ela pode, através da identificação com a trama ou personagem, gerar uma transformação no receptor levando-o a assumir novos modelos sociais (2012GOMIDE, Daniela D. (2012). A atualização literária no texto audiovisual sob o olhar da estética da recepção: uma análise do texto “Senhora” na série “Tudo o que é sólido pode derreter”. Vozes e Diálogo, Itajaí, v. 11, n. 1, p. 94-107, jan./jun. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/vd/article/view/3324 . Acesso em: 10 ago. 2019.
https://periodicos.univali.br/index.php/...
, p. 97).

Nessa perspectiva, depreendemos que, assim como o autor começou a produzir poemas a partir da identificação e influência de outros poetas surdos, sua arte, num processo de katharsis, também pode motivar outros surdos a fortalecerem a cultura surda com mais produções poéticas.

Além disso, pessoas não surdas podem ser incentivadas a estudarem mais sobre a Libras no sentido de contribuírem para a ampliação das comunidades surdas, visto que o poeta surdo optou por não usar o recurso de legenda em seu poema. Essa atitude legitima a concepção de desenvolvimento poético apenas em língua brasileira de sinais sem passar pelo processo tradutório e provoca no leitor reflexões mais profundas.

Para Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática., p. 80), a katharsis representa “o prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique”. Em suma, essa experiência estética é uma proposta de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.) de comunicar ao leitor informações como cultura, identidade, entre outras, que estão por trás da estruturação poética. Dessa forma, quando o receptor consegue compreender a discussão provocada pela poesia, ele é conduzido a uma autorreflexão, a ampliar a visão de mundo e a ressignificar conceitos fazendo uma distinção entre o ato receptivo e interpretativo.

Conclusão

Nesse meandro, a partir das análises realizadas neste trabalho, podemos conjecturar que a poesia surda pode ser analisada de acordo com a teoria de experiência estética de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.), pois, assim como outras manifestações poéticas em línguas orais, a expressão poética sinalizada também apresenta as experiências estéticas fundamentais, a saber, poesis, aisthesis e katharsis.

A poiesis acontece no processo de produção poética sinalizada, quando o poeta estabelece uma relação dialética entre leitor e obra a partir das escolhas estilísticas, que podem ser, segundo Machado (2013MACHADO, Fernanda de A. (2013). Simetria na poética visual na língua de sinais brasileira. Dissertação. (Mestrado em Estudos da Tradução) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.), a composição de estrofes, fazendo uso de expressões faciais, ritmo, repetição, simetria ou assimetria, metáforas, entre outras. Destas, por sua vez, estavam presentes no poema analisado o uso de expressões faciais, imagens, escolhas lexicais, ritmo, melodia, entre outros, que podem provocar um horizonte de expectativas no receptor surdo ou não surdo.

A aisthesis surge como complemento da experiência estética autônoma da poiesis, pois é a partir do horizonte de expectativas que o leitor se sentirá parte da obra quando ativar o conhecimento prévio relacionado à linguagem prática comum - como as imagens de lugares e fatos históricos presentes em “Farol da Barra” - e confrontá-lo com a linguagem poética transmitida pelo poema nos movimentos suaves, nas mudanças de configuração de mão dentro do contexto poético, na expressividade e na corporalidade.

A terceira e última experiência estética analisada foi a katharsis, que se trata do principal objetivo da expressão poética: transmitir uma mensagem. Essa mensagem por trás dos recursos poéticos de poesis e aisthesis pode ser de cunho cultural, social, crítico e/ou histórico. Nessa experiência, o leitor é provocado a realizar uma autorreflexão em torno do conteúdo comunicativo do poema, que foi identificado quando o poeta fez uso de informações culturais compartilhadas por surdos e não surdos sobre o processo histórico do Brasil e de desenvolvimento da Libras. Dessa forma, o autor torna-se referência como poeta surdo e motiva outras pessoas surdas e não surdas a buscarem o mesmo caminho com a finalidade de fortalecer a comunidade e a literatura surdas.

Essa literatura visual é representada por mãos literárias que produzem arte “visualiterária”,7 7 Conceito criado por Mourão (2016). constroem um universo de significados e proporcionam a dialética entre leitor e obra, colaborando para a conformação da cultura e da estética surdas. Desse modo, as experiências fundamentais da estética da recepção de Jauss (1994JAUSS, Hans Robert (1994). A história da literatura como provocações à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática.) foram aqui apresentadas como ferramentas importantes que contribuem para a análise das expressões literárias e poéticas surdas.

Referências

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  • 1
    Adotamos neste artigo as regras de transliteração dos termos gregos propostas pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, disponíveis em: https://revista.classica.org.br/classica/article/view/123.
  • 2
    “Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que mora em uma localização particular, compartilha as metas comuns de seus membros e, de vários modos, trabalha para alcançar estas metas. Portanto, em uma comunidade surda pode ter [sic] também ouvintes e surdos que não são culturalmente surdos” (Padden, 1989 apud Felipe, 2007FELIPE, Tanya A. (2007). Libras em contexto. 8. ed. Rio de Janeiro: WalPrint.).
  • 3
  • 4
  • 5
    Segundo Jauss (1976JAUSS, Hans Robert (1976). La literatura como provocación. Tradução de Juan Godo Costa. Barcelona: Península., p. 169), as experiências estéticas poiesis, aisthesis e katharsis são desencadeadas e percebidas ao estabelecermos uma relação entre a linguagem poética - recursos estruturais e estilísticos utilizados para construção criativa do poema - e a linguagem prática - referências às representações do mundo ao nosso redor e de uso da linguagem comum sem alterações poéticas. Nesse sentido, durante as análises, usaremos os termos “linguagem poética” e “linguagem prática” para demarcar a qual tipo de linguagem pertence o trecho do poema que está sendo analisado.
  • 6
  • 7
    Conceito criado por Mourão (2016).

Editor:

Paulo Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2022
  • Aceito
    28 Abr 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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