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Compondo temporalidades: o colonial e a ditadura nas narrativas brasileiras do século XXI

Composing temporalities: the colonial and the dictatorship in Brazilian narratives of the 21st century

Componiendo temporalidades: lo colonial y la dictadura en las narrativas brasileñas del siglo XXI

Resumo

Contar um período histórico está diretamente relacionado a questões políticas, sociais, históricas, culturais e temporais. No caso da ditadura militar brasileira, “o que foi” (ou o que é) ainda está sendo produzido, seja na historiografia ou na literatura. Muitas dessas histórias, entretanto, ainda não foram contadas e permanecem esquecidas, excluídas e/ou ignoradas. Neste artigo, atentaremos para os pontos cegos da história, observando a relação e composição das temporalidades coloniais e ditatoriais e discutindo quais histórias de violência e de resistência foram contadas, como foram escritas e mobilizadas, mesmo anos depois dos processos de justiça de transição e de reparação, no presente e na literatura, a partir das narrativas Nem tudo é silêncio (2010), de Sonia Bischain, a chamada Trilogia infernal, composta pelos livros Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração do homem (2017), e O amor, esse obstáculo (2018), de Micheliny Verunschk, em maior medida, e, em menor medida, as obras Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva, e Antes do passado (2012), de Liniane Brum.

Palavras-chave:
literatura contemporânea brasileira; ditadura militar; justiça de transição; colonialidade

Abstract

Narrating a historical period is directly related to political, social, historical, cultural and temporal issues. In the case of the Brazilian military dictatorship “what was” (or what is) is still being produced, whether in historiography or literature. Many of these stories, however, have yet to be told and remain forgotten, excluded or ignored. In this text, we will observe the blind spots of this history, observing the relationship and composition of colonial and dictatorial temporalities and seeking to observe which stories of violence and resistance were told, and how they were written and mobilized, even years after the transitional justice and reparation processes, in the present and in literature, looking at the narratives Nem tudo é silêncio (2010), by Sonia Bischain, the so-called Trilogia infernal, composed by the books Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração do homem (2017), O amor, esse obstáculo (2018), by Micheliny Verunschk, to a greater extent, and, to a lesser extent, the works Ainda estou aqui (2015), by Marcelo Rubens Paiva, and Antes do passado (2012), by Liniane Brum.

Keywords:
Brazilian contemporary literature; military dictatorship; transitional justice; coloniality

Resumen

Contar un período histórico está directamente relacionado con cuestiones políticas, sociales, históricas, culturales y temporales. En el caso de la dictadura militar brasileña se sigue produciendo “lo que fue” (o lo que es), ya sea en la historiografía o en la literatura. Sin embargo, muchas de estas historias aún no se han contado y siguen olvidadas, excluidas o ignoradas. En este texto examinaremos los puntos ciegos de esta historia, discutiendo la relación y la composición de las temporalidades coloniales y dictatoriales y observando qué historias de violencia y resistencia se contaron, y cómo se escribieron y movilizaron, incluso años después de los procesos de justicia transicional y reparación, en el presente y en la literatura, desde las narrativas Nem tudo é silêncio (2010, de Sonia Bischain, la llamada Trilogia Infernal, compuesta por los libros Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração do homem (2017), y O amor, esse obstáculo (2018), de Micheliny Verunschk, en mayor medida, y, en menor medida, las obras Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva y Antes do passado (2012), de Liniane Brum.

Palabras-clave:
literatura contemporánea brasileña; dictadura militar; justicia de transición; colonialidad

Em Formas de transição, Clara Ianni (2017IANNI, Clara (2017). Formas de transição. Intervenção na linha do tempo do Memorial da Resistência, São Paulo, 32 impressões UV em placas OS. Disponível em: Disponível em: http://claraianni.com/ Acesso em: 6 ago. 2020.
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) propõe uma intervenção no âmbito de um dos principais museus dedicados à ditadura militar brasileira, o Memorial da Resistência, em São Paulo. Em uma de suas salas centrais, há uma exposição permanente que organiza e situa linearmente e historicamente uma “linha do tempo” da ditadura, os gestos resistentes do período e a sua posterior democratização. Agora, junto dos dados anteriores - por vezes bastante conservadores em suas distinções entre um “antes” e “depois” - e simulando a própria estruturação do museu na forma de quadrados explicativos, Ianni (2017IANNI, Clara (2017). Formas de transição. Intervenção na linha do tempo do Memorial da Resistência, São Paulo, 32 impressões UV em placas OS. Disponível em: Disponível em: http://claraianni.com/ Acesso em: 6 ago. 2020.
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) insere outros 32 retângulos pretos em que adiciona os crimes cometidos pelo Estado ou por seus agentes que violentaram a população civil entre 1985, já ao fim da ditadura, e 2017, depois dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A intervenção propõe um gesto de contranarrativa do recorte feito pela instituição, demonstrando as persistências de um “estado de exceção” que não termina com o período ditatorial, como se convencionou dizer, em 1985. As chacinas de antes, durante e depois da ditadura, como Carandiru, Candelária, Vigário Geral, Urso Branco, os massacres de Corumbiara e do Eldorado dos Carajás, de Pinheirinhos, a que podemos adicionar a brutal e recente chacina do Jacarezinho de 2021, entre tantas outras, em grande parte esquecidas e de modo geral marcadas por um recorte de raça e classe, são colocadas lado a lado daquelas que têm suas vidas e tragédias, em geral, contadas, no que tange o período da exceção militar. Ao posicionar as violências posteriores em diálogo com o autoritarismo brasileiro da ditadura, o trabalho de Ianni (2017IANNI, Clara (2017). Formas de transição. Intervenção na linha do tempo do Memorial da Resistência, São Paulo, 32 impressões UV em placas OS. Disponível em: Disponível em: http://claraianni.com/ Acesso em: 6 ago. 2020.
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) demonstra como os valores que fundaram nossa ditadura já eram vigentes antes e depois, em um projeto de país continuamente colonial e genocida, um projeto que, infelizmente, não termina em 1985. Sem tampouco deixar de discriminar os tempos históricos, o trabalho da artista permite observar como a ditadura não foi (ou não é) uma exceção absoluta nessa história, mas parte de uma estrutura que se serviu de (e aprofundou) processos violentos que foram e são estruturantes da sociedade brasileira.

É verdade que há diferentes movimentos críticos das formas como se lê e se contam as histórias das ditaduras, a exemplo das várias comissões da verdade1 1 Além da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram instaladas comissões da verdade independentes em diversos âmbitos, institucionais ou não, a exemplo de comissões municipais, estaduais, em universidades e sindicatos. espalhadas pelo Brasil - em projetos inéditos de recuperação da verdade e da história da ditadura dos últimos anos -, que buscaram aprofundar, alguns mais do que outros, por diferentes enquadramentos, a história da ditadura, especialmente na tentativa de observar uma categoria de vítima mais abrangente. No entanto, a CNV, uma das principais políticas de memória no país, foi criticada, principalmente, pela incapacidade de articular a herança autoritária da ditadura no presente, de questionar as estruturas que persistem em nossa democracia, bem como, e especialmente, de promover uma abertura mais efetiva para as outras vítimas além das 434 nomeadas como centrais na construção do relatório - além de, claro, não conseguir mobilizar um discurso efetivo no que tange não só à memória, mas também à reparação e à justiça.

Apesar da inserção de “volumes temáticos”, não foram contabilizados no volume III, dedicado aos “perfis dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil”, nem os números de pelo menos 8 mil indígenas e 2 mil camponeses vitimados pelo regime, tampouco as inúmeras e não contabilizadas pessoas em situação de rua que também foram torturadas e mortas, entre tantos outros. A pesquisadora Jennifer Gallagher (2017GALLAGHER, Jennifer D. L. (2017). De muitas verdades a uma: histórias enredadas, memórias tuteladas e a Comissão Nacional da Verdade (1979-2014). Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3A3oPns . Acesso em: 6 ago. 2020.
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), nesse sentido, analisa os procedimentos da CNV e argumenta uma filiação universalista no recorte dos sujeitos a que os trabalhos da comissão atende e dos quais se ocupa: se o segundo volume do relatório da CNV é dedicado a “textos temáticos” assinados por comissionados sobre temas supostamente “específicos”, o terceiro é dedicado às ditas vítimas detalhadas pela CNV, aqueles 434 mortos e desaparecidos. Os capítulos sobre violência sexual, mulheres, crianças, camponeses, povos indígenas e homossexuais são separados daquele que seria o capítulo diretamente voltado “às vítimas contabilizadas” e nomeadas e cujas histórias são narradas mais detidamente no último volume.

Como propõe Walter Benjamin (1995BENJAMIN, Walter (1995). Obras escolhidas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho; Jose Carlos Martins Barbosa. 5. ed. São Paulo: Brasiliense.), em Sobre o conceito de história, articular historicamente o passado significa abrir-se a novas perspectivas de aproximação com o presente, em que se ilumina dialeticamente passado e atualidade. Trata-se também de formular aberturas para novas formas de contar e de dizer que levem em conta o fato de que, na construção de outro discurso histórico, é necessária uma articulação entre rememoração do passado e redenção do presente, essa enquanto rememoração histórica das vítimas, conforme define Michael Löwy (2005LÖWY, Michael (2005). Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant; Jeanne Marie Gagnebin; Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo.). No que tange à ditadura brasileira, isso significa perguntar, juntamente com o trabalho de Ianni: que histórias de violência e de resistência foram contadas, escritas, transmitidas e ainda mobilizadas mesmo anos depois dos processos de justiça de transição e de reparação? Para “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1995BENJAMIN, Walter (1995). Obras escolhidas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho; Jose Carlos Martins Barbosa. 5. ed. São Paulo: Brasiliense.), é imperativo dizer que não há uma história da ditadura, uma história da resistência, uma forma de transição, um espaço atingido, ou apenas um corpo ao qual a ditadura violentou. Não são apenas corpos violentados pela ditadura ou na ditadura, mas também e continuamente na e pela democracia brasileira pós-transição, estruturada na e pela ditadura, a qual, em muitos sentidos, permanece em nossa institucionalidade e em nossa subjetividade. O que está em jogo, portanto, diante da passagem do tempo, é questionar o que mudou (ou não), de que forma mudou (ou não) e, por fim, o que foi oferecido “em troca” na passagem para a democracia, que se apresenta como “promessa e ameaça”, nos termos de Cámara (2017CÁMARA, Mario (2017). Restos épicos: la literatura y el arte en el cambio de época. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Libraria.).

Se observamos a catalogação ampla de quase 80 romances e narrativas longas que recuperam o tema das ditaduras militares do Cone Sul, majoritariamente brasileira no século XXI (Cruz, 2021CRUZ, Lua Gill da (2021). Pretéritos futuros: ditadura militar na literatura do século XXI. 2021. 322 f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas (Instituto de Estudos da Linguagem), Campinas. Disponível em: Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642099 . Acesso em: 1º nov. 2021.
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), tampouco a categoria de vítima majoritária é muito distinta daquela apresentada pela CNV, ou seja, em grande parte, branca, de classe média, e com grau de ensino superior. As experiências de outros grupos subalternizados, como indígenas, camponeses, negros e negras, periféricos e periféricas, seguem, na maior parte dos casos, excluídos da grande maioria das narrativas da literatura contemporânea sobre a ditadura, e seguem também sub-representados no que tange à autoria.

Ainda assim, é preciso observar que há, timidamente nesse novo tempo uma abertura de reconhecimento para outras vítimas da ditadura, muitas vezes pelo que escapa a essas mesmas narrativas. Deslocadas temporalmente, algumas obras buscam outros atores políticos esquecidos no passado e nas políticas posteriores de reparação e justiça, recuperados, agora, no presente. Trata-se de uma literatura que tem aos poucos buscado atentar para outras perspectivas e vivências relacionadas à experiência repressiva, na ditadura e depois dela, e que permaneceram fora dos processos de justiça e de reparação. Agora, começam a ganhar espaço e tempo na literatura majoritariamente as mulheres2 2 Um dado que salta aos olhos nessa pesquisa é a informação de que, diferente da pesquisa realizada por Dalcastagnè em 2012, as mulheres assinam grande parte das autorias dos romances publicados no século XXI, no Brasil, sobre a ditadura militar. Dos 63 autores que a listagem apresentada em meu doutorado (Cruz, 2021) engloba, publicados entre 2000 e 2020, 31 são mulheres, ou seja, quase 50%, dado que é bastante diferente do exposto por Dalcastagnè em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012), em que no total de 258 romances analisados, publicados entre 1990 e 2004, 72,7% dos autores são homens. No que tange à relação com a ditadura e com o testemunho, esse também é um dado bastante distinto do apresentado por Vargas (2018), inclusive no que se refere à distribuição de gênero nas publicações testemunhais sobre a ditadura entre 1964 e 2017 (82,4% escritos por homens e 17,6% por mulheres). Vê-se uma mudança significativa e não descolada dos movimentos de mulheres e de feminismos que se espalham pelo Brasil nas diversas áreas do conhecimento, bem como da crítica estabelecida anteriormente por parte de mulheres, principalmente, da sua exclusão do mercado editorial. e, em menor grau, as pessoas LGBTQ+, indígenas, periféricas, negras, ou seja, uma série de personagens que exige que as experiências e perspectivas, multiplamente marcadas pela violência e repressão ditatorial, sejam inscritas no cenário histórico e artístico nacional. Sua história, entretanto, não foi ainda amplamente contada ou acolhida. Se os sujeitos não têm história, se não se nomeia a violência a eles infringida, também não têm direito à justiça, ontem e hoje. Se pensamos nas formas como a ditadura perseguiu e atacou os povos indígenas, organizou-se a partir de políticas desenvolvimentistas que desconsideraram espacialidades e povos, e reprimiu negros e negras em espaços periféricos, entre tantas políticas de repressão que violentaram ainda mais os grupos subalternizados, percebe-se a intersecção dos projetos da ditadura como intensificação e continuação dos projetos coloniais. Em adição a essas violências, agora, o apagamento simbólico dessas narrativas faz parte dessa história de dominação que, além de autoritária, segue colonial ou, nos termos de Casanova (2006CASANOVA, Pablo González (2006). Colonialismo interno (uma redefinição). In: BORON, Atilio A; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (org.). A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006. p. 431-458. Disponível em: Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/formacion-virtual/20100715073000/boron.pdf Acesso em: 18 fev. 2020.
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), uma expressão do colonialismo interno. Ou ainda, como define Frantz Fanon, “ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, [...] ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o” (1968FANON, Frantz (1968). Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio De Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 175).

Neste artigo, portanto, serão discutidos exemplos específicos das narrativas Nem tudo é silêncio (2010), de Sonia Bischain, a chamada Trilogia infernal, composta pelos livros Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração do homem (2017), e O amor, esse obstáculo (2018), de Micheliny Verunschk, em maior medida, e mencionarei, também, Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva e Antes do passado (2012), de Liniane Brum, textos em que se lê o período histórico da ditadura, da transição e das políticas de reparação, memória e justiça, e especialmente, das suas persistências no presente. Mais do que embarcarem na perspectiva teleológica de superação, ou fim, proposta pelos militares no início do que se convencionou chamar de “justiça de transição”, no Brasil, iniciada em 1979, com a Lei da Anistia, os textos percorrem as flechas do tempo em outras direções que não aquelas impostas pelas lógicas institucionais, construindo leituras históricas e literárias que reconhecem a coexistência de temporalidades, a relação entre passado e presente, democracia e autoritarismo, transição e persistência. Sobretudo, observaremos como, ao ler criticamente a ditadura e as temporalidades próprias dos processos de justiça, reparação e memória, as narrativas possibilitam uma leitura que relaciona e expõe diferentes temporalidades, sujeitos e histórias, antes, e agora, excluídos, esquecidos e desconsiderados desses processos, sujeitos e temporalidades que expõem as fissuras de supostas passagens temporais “progressivas”, seja do colonialismo, seja do autoritarismo da ditadura brasileira - mesmo que esses encontros se deem, de muitas formas, apenas a partir do que sobra, do que não se encara de frente e do que escapa nas suas frestas.

Nesse sentido, um dos textos mais relevantes para a discussão é o romance de Bischain (2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. ), cujo título, Nem tudo é silêncio, já aponta para uma oposição: narra o que parecia silenciado, invisibilizado. Nada linear e, em grande parte, bastante fragmentário, tanto em relação ao tempo narrado quanto em relação à forma, o romance abarca uma temporalidade longa da história de violência e exclusão no Brasil. Publicado no âmbito do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, desde a periferia de São Paulo, em um contexto de produção da chamada “literatura marginal”, há uma preocupação voltada para a construção de outros personagens e indivíduos, às margens, nas periferias, que sofreram a violência ditatorial e que, em geral, são esquecidos Em uma espécie de romance de formação do Brasil, voltando aos antepassados escravos que acolheram uma criança indígena, no final do século XIX, a história passa pela memória da ditadura militar brasileira como mais um passo e agravante da violência sistêmica e permanente que pessoas negras, pobres e de favelas experienciam e a que são constantemente expostas, a partir, principalmente, da história de quatro mulheres.

O início do romance intitula-se Tempo presente e, nele, temos acesso às condições precárias em que vive uma senhora, cercada de todo tipo de restos e de lixo. Ao seu cuidado, vai uma personagem que, depois de vê-la nessas condições, passa a morar junto dela. O contexto é bastante localizado e é dali que parte o relato: uma favela sobre a qual sobrevoa um helicóptero. Esse lugar, entretanto, não é apenas um lugar onde as pessoas são a todo momento violentadas, com cotidianos marcados pelo racismo, pela exploração de trabalhadores, pelas dificuldades de locomoção, pelo tráfico de drogas, pela violência policial, pela dificuldade do acesso ao aborto seguro, pelo feminicídio, pela violência médica, por crimes. Esse é, também, e principalmente, um espaço em que se demonstram as estratégias de luta e de resistência, antes, durante e depois da ditadura, às violências constantes impostas pela sociedade capitalista. Em seguida, a narrativa parte para o que seriam os “tempos primeiros”, quando duas escravizadas teriam encontrado e cuidado de uma menina filha de uma indígena e de um homem branco. Dela, nasceria Jaci, a matriarca de uma das famílias importantes na narrativa, mãe de Iara, com quem o romance inicia. Junto dela, está o núcleo familiar de Ritinha. É a partir das percepções da última, desde o contexto da periferia, que chegamos a muitos dos autoritarismos brasileiros, dentre eles, a chegada de dois policiais da “polícia técnica” que atiraram em um homem na frente da menina. Entre relatos dos contextos da favela, de violência sofridas, mas também de solidariedade de uns com os outros, e os relatos da família, os processos da política nacional se intercalam, aos poucos, localizando o leitor na cronologia dos eventos históricos.

É na saída para trabalhar que Ritinha se percebe como explorada: não consegue comer, não tem tempo para nada, leva muito tempo para chegar ao centro e ao trabalho, é revistada ao chegar e ao sair, além de sofrer racismo na empresa. É nesse processo que passa a conscientizar-se. E é assim que se aproxima de Henrique, irmão de Elisa, com quem milita e se casa. No contexto da ditadura, atuam junto à resistência ligada à Igreja Católica em atividades específicas: vão a manifestações, distribuem cartazes e panfletos e participam de piquetes com os sindicatos ou moradores do bairro. O texto se situa entre diferentes espaços, em relação um com o outro, fora e dentro da periferia, onde a violência deixa sua marca:

a construção da ponte Rio-Niterói está a todo o vapor. Os trabalhadores mortos por falta de equipamentos de segurança, sem registros oficiais, estão sendo devidamente cimentados em seus pilares (os pilares da ponte). [...] Em frente à minha casa [...] o esquadrão da morte continua matando homens no bambuzal, não sei se são ‘bandidos’ ou ‘terroristas’ (como eles chamam os executados). Os mortos não afundam na areia movediça, nunca afundaram (Bischain, 2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. , p. 100).

Diante da lógica desenvolvimentista do Estado na construção da ponte Rio-Niterói, a narradora contrapõe os dois tempos de assassinatos, os corpos dos operários mortos aos executados na favela. Há ainda muitas temporalidades em diálogo: continuam - uma realidade que atravessa o tempo - matando homens que seguem sem nunca afundar. Os corpos dos trabalhadores seguem cimentados nos pilares, ainda em construção, na época, mas sobre os quais ainda se passa hoje. Ali, são esses mesmos corpos mortos na mão do Estado que são deixados, sem diferenciação entre os “bandidos” e os “terroristas”. Ao final, não importa a designação do crime, dado que, mesmo agora, basta um enquadramento conveniente para explicitar-se a decisão do Estado sobre as vidas que importam. Aqui, fica clara a dificuldade das designações de “preso político” ou “desaparecido político” e o quanto são excludentes a priori. A pauta levantada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), já durante a ditadura, “todo preso é um preso político”, era uma estratégia que tinha como objetivo, de acordo com Pedretti (2020PEDRETTI, Lucas (2020). Violência de Estado e racismo em dois momentos das lutas políticas de memória no Brasil. In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan. Espectros da ditadura: da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária. p. 311-339.), questionar o estatuto político do que se entendia como violência comum, ou seja, “por um lado, inscrevia as lutas da anistia e da abertura numa temporalidade mais larga de lutas levadas adiante pelos negros em outros períodos históricos [...] por outro, buscava explicar a criminalidade tida como comum pela chave das desigualdades socioeconômicas e raciais, politizando as ações que levam os indivíduos a serem presos” (Pedretti, 2020PEDRETTI, Lucas (2020). Violência de Estado e racismo em dois momentos das lutas políticas de memória no Brasil. In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan. Espectros da ditadura: da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária. p. 311-339., p. 319). Ao posicionar as categorias lado a lado, o texto faz com que nos perguntemos: de que forma não seriam políticas as mortes de indígenas e camponeses durante a ditadura, por exemplo? Não seriam todas as prisões e desaparecimentos políticos, em alguma medida? De acordo com Azevedo (2016AZEVEDO, Desirée de Lemos (2016). A única luta que se perde é aquela que se abandona: etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/305070 . Acesso em: 6 ago. 2020.
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), a categoria de vítima trata de uma condição produzida (e produtora) de um campo social, e depende, portanto, de atores sociais e políticos que a entendam e reconheçam assim. Essa própria categorização, portanto, está sujeita à modificação ao longo do tempo, assim, ao indiferenciar as duas designações e juntá-las no seu argumento, o texto de Bischain (2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. ) questiona o estatuto e a definição da morte. Nomeia os mortos e as condições de precariedade do trabalho e do luto, mas não só. Demonstra também como há determinadas mortes que, apesar de não serem contadas imediatamente, não vão ou não podem afundar, mas agora, nessa areia movediça, é possível recuperá-las, dizê-las, relacioná-las temporal e espacialmente.

O que o texto também recupera, a todo momento, diz respeito a uma certa espacialidade na relação com a temporalidade na qual uma morte é aceita. De acordo com Mbembe (2018MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições.), o conceito da necropolítica pressupõe que a expressão da soberania se dá exatamente na capacidade de dizer “quem pode viver” e “quem deve morrer”. O poder, então, “apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições., p. 17), ao mesmo tempo em que trabalha também para produzir essas mesmas categorias de exceção, emergência e inimigo. O espaço tem um papel central nisso, já que a “ocupação colonial” estaria relacionada à demarcação e afirmação de um “controle físico geográfico”, para assim, portanto, “inscrever sobre o terreno um novo conjunto de relações sociais e espaciais” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições., p. 39). Ao que adiciona: “Essa inscrição de novas relações espaciais (territorialização) foi, enfim, equivalente à produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a subversão dos regimes de propriedades existentes; a classificação de pessoas de acordo com diferentes categorias” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições., p. 38-39).

No contexto das periferias, a designação do lugar onde se perpetua a violência torna clara a continuidade de uma decisão sobre vida e morte que se estrutura espacialmente: os corpos que atravessaram a fronteira são designados como “inimigos”, “bandidos” e, portanto, passíveis de morte, mesmo que sejam crianças. A “noção ficcional do inimigo”, de que trata Mbembe (2018MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições.), assume outros corpos, não mais dos “subversivos”, apenas, mas que parte de um recorte de classe e de raça. É o que acontece, até hoje, quando se mata, se tortura e se faz desaparecer, arbitrariamente, nas periferias do Brasil. As linhas nada imaginárias que separam as populações do Leblon e do Vidigal, no Rio de Janeiro, do Morumbi e de Paraisópolis, em São Paulo, entre tantas outras, é um dos aspectos que estrutura a diferença entre a decisão soberana da vida e da morte. A espacialidade e a raça, bem como a sua definição sobre a morte, vão ainda atravessar diferentes tempos da história brasileira. Para a jovem Ritinha que observa, desde a favela, e que se faz narradora no romance de Bischain, não se distinguem os “executados” entre “bandidos” ou “terroristas”. É o espaço que ocupam, em parte, na favela, que permite a indistinção da posicionalidade, mas também, no caso dos trabalhadores, é a sua posição de classe que faz com que não sejam registrados, seja no trabalho, seja na morte. E é nesse espaço que se atravessam essas temporalidades da precarização e da morte. Não há justiça nem para os “bandidos”, nem para “terroristas”, e tampouco para os trabalhadores.

O romance de Bischain (2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. ) dirige-se, então, para o período da ditadura, quando se situa majoritariamente e aprofunda a história de Henrique e Ritinha, principalmente na organização de movimentos na periferia em que se cobravam condições mínimas de existência. Os processos de mobilização do casal no romance, entretanto, são interrompidos por “tempos de medo”, quando, depois de anunciar uma abertura “lenta, gradual e segura”, o governo militar segue desaparecendo pessoas, o que se torna o caso de Henrique. A luta por justiça para seu companheiro, entretanto, persiste, mesmo depois da Lei da Anistia:

durante anos, procurei por Henrique, participei de comissões de familiares dos desaparecidos. Junto com essas comissões, abrimos processo contra a União. Nenhum Órgão oficial nos esclareceu o que aconteceu ou quais foram as circunstâncias da morte. Não pudemos velar nossos mortos, não tivemos acesso aos arquivos do Exército. Em vários Estados foram encontradas evidências de que documentos do Exército foram incinerados (Bischain, 2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. , p. 115).

O romance acompanha ainda o tempo do que se convencionou chamar de “justiça de transição”, demostrando os limites do período histórico no confronto com a necessidade de memória, mas sobretudo de justiça. Nesse processo de evocação do passado na passagem para a democracia, pouco se avançou na transição, ou na suposta “superação” do período anterior, de modo que os personagens não só não encontram o corpo de Henrique, como tampouco sabem as causas da sua morte, ou podem testemunhar processos de responsabilização jurídica pela sua morte. Menos que compartilhando uma lógica teleológica de “fim”, a narrativa demonstra como não só essa violência ainda persiste, mas como nessa suposta transição pouco mudou, especialmente no contexto da periferia e das precariedades das condições de vida. Mesmo a premissa do “nunca mais”, ou de “para que nunca mais aconteça” se enfraquece na narrativa visto que não há uma separação tão direta entre o antes e o depois. O que supostamente nunca mais deveria acontecer ainda existe na vida de grande parte da população brasileira. São tempos que se sobrepõem, portanto. Sem a “superação” ou a “transição”, a narrativa atenta para o que foi negociado para debaixo do tapete, excluído, apagado, negado e que persiste.

A morte de Henrique, portanto, não é a única violência a que estaria submetida a família. Iara ainda perderia os outros filhos. Elisa é morta no contexto de violência intensa que leva ao feminicídio; Lucas e Edson também desaparecem, um deles sem que Iara nunca conheça o seu destino e o outro, a princípio, morto por traficantes. Os processos de busca de Iara aparecem na temporalidade presente da narração que retorna à personagem, a qual passará os seus últimos dias buscando nas ruas pelo rosto do filho perdido. Em uma confusão que não separa presente e futuro, mas é marcada pela perspectiva de um trauma contínuo, atemporal, vivido, da perda dos filhos, a “louca” do início do romance é, na verdade, uma mãe em luto. Como afirma a narração: “Dinheiro nenhum vai curar a alma doente da velha [...]. Quem vai curar a dor que dentro dela quebrou o elo entre passado e presente e de nós roubou o futuro” (Bischain, 2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. , p. 116). O espaço incorporado por Bischain (2010BISCHAIN, Sonia (2010). Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa. ) e deslocado dos centros que, em geral, têm a sua história contada, retrata futuros impedidos, saqueados, em geral, pelas forças do Estado. Ali, não há reparação, não há justiça, não há reconciliação e muito menos fim. A violência perpetrada, antes e depois, e intensificada durante o regime militar, atinge pobres, periféricos e periféricas, indígenas, negros e negras. O texto não quer separar as temporalidades e a todo momento reafirma não ser possível contar a ditadura, e imaginar um projeto democrático presente e futuro, sem considerar o que permanece do nosso passado, próximo e longínquo, atentando para os corpos continuamente atingidos por essas persistências violentas.

Aqui me parece importante a teoria de Denise Ferreira da Silva (2018SILVA, Denise Ferreira da (2018). O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo. In: PEDROSA, Adriano et al. (Org.). Histórias afro-atlânticas. Antologia. São Paulo: Instituo Tomie Ohtake; MASP. v. 2, p. 407-411.; 2019SILVA, Denise Ferreira da (2019). A dívida impagável. Tradução de Pedro Daher e de Amilcar Packer. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons. Disponível em: Disponível em: https://casadopovo.org.br/wp-content/uploads/2020/01/a-divida-impagavel.pdf Acesso em: 18 fev. 2020.
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), que, contra a perspectiva teleológica moderna ocidental, aponta que o “evento racial” operaria nas questões jurídicas e econômicas, dado que a violência racial é condição para a existência do capital global, seja ele financeiro, industrial ou mercantil. Silva argumenta que há uma arquitetura jurídica e econômica que garante a expropriação da capacidade produtiva de corpos escravizados e das terras dos nativos e que não segue a lógica sequencial do tempo. Para a autora, essa lógica linear, progressiva, própria do pensamento colonial moderno, que surgiu junto com a colonização e o capital, ao separar espaço-temporalmente os eventos raciais de forma isolada, sem que sejam implicados nas suas reiterações, impõe uma separação ética:

o pensamento temporal (sequencial) corresponde ao repúdio do materialismo histórico ao significado das arquiteturas jurídicos-econômicas coloniais (como conquista, colonização e escravidão), das quais o elemento racial é um referente, para o capitalismo. O tempo não é a dimensão apropriada para “observar” o evento racial, pois o tempo exige uma liberação dos limites onto-epistemológicos do pensamento moderno, no qual a diferença racial (e sua par, a cultural), é um marco referente de outros tempos e de outro lugar (Silva, 2018SILVA, Denise Ferreira da (2018). O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo. In: PEDROSA, Adriano et al. (Org.). Histórias afro-atlânticas. Antologia. São Paulo: Instituo Tomie Ohtake; MASP. v. 2, p. 407-411., p. 408).

Em contraposição a essa lógica sequencial, seria necessário então pensar de forma “composicional”, de maneira a unir diferentes momentos de violência racial e desvelar a simultaneidade entre o momento jurídico e econômico. Ler, então, “sempre ‘o que acontece’” como um “já momento”, que constitui “o que aconteceu e o que ainda está pra acontecer” (Silva, 2018SILVA, Denise Ferreira da (2018). O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo. In: PEDROSA, Adriano et al. (Org.). Histórias afro-atlânticas. Antologia. São Paulo: Instituo Tomie Ohtake; MASP. v. 2, p. 407-411., p. 409). Para isso, o movimento ético em relação ao “evento racial” exige um olhar capaz de “imaginar o que acontece sem o tempo”, ou seja, ler os 500 anos de crimes a esses corpos e a essas terras como eventos que acontecem simultaneamente, isto é, percebendo uma contemporaneidade da escravização do negro, da ditadura militar, e do genocídio em curso.

Nesse sentido vai também a obra de Micheliny Verunschk, a Trilogia infernal, composta pelos livros Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração do homem (2017), e O amor, esse obstáculo (2018), que busca atravessar uma série de temporalidades da violência e da injustiça. Pensado inicialmente como um romance só, as narrativas, divididas em três e lançadas com um ano de distância, centram-se, principalmente, em dois personagens: Laura, jovem que perdeu a mãe e é filha de um ex-torturador da ditadura e atual xerife de polícia em uma cidade de interior; e um menino canibal que é levado à casa de Laura pelo xerife, e com quem ela perde a virgindade. O primeiro romance, Aqui, no coração do inferno (2016), narrado majoritariamente pela protagonista Laura em um tom bastante infantil, centra-se na vivência como filha de um homem extremamente autoritário e no encontro com esse outro, o menino canibal, história que desperta nela grande curiosidade. Se tudo que a envolve até o momento é um contexto de silêncio e de segredo sobre a morte da mãe, é a partir desse olhar infantil e curioso que a narradora passará, aos poucos, a se aproximar da verdade sobre o pai, a mãe e o menino canibal, especialmente a partir de documentos de identidade que encontra nas coisas do pai, dentre eles, o documento da mãe. Já O peso do coração de um homem (2017), tem como narrador Cristovão, o menino canibal que é levado para a casa de Laura pelo xerife, pai da menina, para protegê-lo de um possível linchamento. O cenário do interior, de extrema violência, é marcado por um abandono completo de Cristovão e do seu irmão, Gonçalo. O terceiro romance, O amor, esse obstáculo (2018), retoma a narradora, agora adulta, deparando-se com a morte do pai, possivelmente em uma queima de arquivo, depois do início dos trabalhos da CNV. É nesse romance que temos acesso aos processos de busca pessoal e coletiva, familiar e institucional, quando a personagem busca lidar com os efeitos e as consequências do espólio violento deixado pelo pai. A procura pela verdade e pela justiça, assim como a sua responsabilização diante disso, tornam-se centrais. São nos detalhes do que o pai conta sobre o seu passado, em comentários cheios de preconceitos, em sua relação e avaliação do Exército, na perspectiva ideológica que defende, no reconhecimento das reiteradas violências, que Laura pode aproximar-se de um entendimento sobre essa figura, no confronto e no amadurecimento

No caso da obra de Verunschk (2016VERUNSCHK, Micheliny (2016). Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá Editora.; 2017VERUNSCHK, Micheliny (2017). O peso do coração do homem. São Paulo: Patuá Editora . ; 2018VERUNSCHK, Micheliny (2018). O amor, esse obstáculo. São Paulo: Patuá Editora .), a questão do atravessamento temporal está também diretamente relacionada à espacialidade: volta-se às estruturas de poder capilarizadas no território e no tempo brasileiros e se demonstra como a ditadura ainda (ou simultaneamente) atinge aqui e lá, durante a ditadura e depois dela, Santana do Mato Verde, local onde a história acontece. Essa é a cidade de interior ficcional onde o pai de Laura, torturador, passa a atuar como delegado, tentando escapar das marcas do seu passado autoritário, deixado no “centro” do país. No deslocamento para essa cidade, Laura tenta perceber o que, afinal, significa esse lugar, o Brasil. O Brasil, esse lugar “longe demais” (Verunschk, 2016VERUNSCHK, Micheliny (2016). Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá Editora., p. 91), parecia uma palavra distinta, sem espaço, sem alcance, mas que recebe atributos e definições nos termos do pai, não por um acaso, cheio de religião, de censura, um lugar que “exigia demais” (Verunschk, 2016VERUNSCHK, Micheliny (2016). Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá Editora., p. 91). Foi nas aulas de português e história que passou a entender que esse Brasil, recebido pelo pai, podia ser alcançado; ou, pior, era mesmo aqui, no “coração do inferno” (Verunschk, 2016VERUNSCHK, Micheliny (2016). Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá Editora., p. 91).

Ainda: o “coração do inferno” era lugar marcado pela violência que tinha, na passagem do tempo e no delegado, o torturador, a sua possibilidade de justiça. É no segundo romance, especialmente, O peso do coração de um homem (Verunschk, 2017VERUNSCHK, Micheliny (2017). O peso do coração do homem. São Paulo: Patuá Editora . ), que a autora se dedicará a contar a história do menino canibal, com quem Laura quis perder a sua virgindade depois que seu pai o leva para casa para evitar o seu linchamento na cidade. A cena inicial do romance posiciona um cenário de um país marcado pela violência: “eles chegaram e tudo ficou vermelho, desde o céu em cima da gente até o chão embaixo dos pés [...]. Era um vermelho daqueles que sangram” (Verunschk, 2017VERUNSCHK, Micheliny (2017). O peso do coração do homem. São Paulo: Patuá Editora . , p. 13). A partir do olhar do menino, Cristovão, narrador em quase todo esse segundo romance da trilogia, observamos a chegada de assassinos à sua casa de infância, em uma zona rural distante, que matam os supostos pais e levam o menino e o irmão junto de si. É a partir desse olhar confuso, infantil, que se instaura um contexto de uma família adotiva isolada em uma fazenda e representante de um poder oligárquico que tudo decide e domina. É aí que podemos também, de alguma forma, entender o que aconteceu com o menino canibal e como se conformou o seu destino e as suas motivações, aspectos complementados pelo último livro da trilogia, em que Cristovão e Laura se reencontram. Laura o descreve: “era um homem castigado pelas coisas pelas quais passou e pelas quais escolheu passar, mas não era tosco, havia muito mais por baixo da rudeza” (Verunschk, 2018VERUNSCHK, Micheliny (2018). O amor, esse obstáculo. São Paulo: Patuá Editora ., p. 66). É a partir do espaço, esse lugar afastado de tudo e de todos, novamente, que podemos perceber o recorte dessa necropolítica que decide quais são as vidas que são enlutáveis.

A figura do canibal é importante porque trata das possibilidades da justiça, passado o período da ditadura, diante de “verdadeiros bandidos”. É um personagem que permite olhar para fora da oposição entre vítima e perpetrador. A consciência da presença do garoto, em Santana, mobilizou os seus moradores e os chocou: era preciso exterminar esse mal “pela raiz”. Cristovão, que tinha no adjetivo “canibal” uma designação, era monstruoso, demoníaco, desumano, uma ameaça para as famílias da cidade, “para a segurança pública, para o mundo civilizado” (Verunschk, 2018VERUNSCHK, Micheliny (2018). O amor, esse obstáculo. São Paulo: Patuá Editora ., p. 75). Em um jornal, uma testemunha conta a sua história e esclarece: “pouca gente sabe o que levou o rapaz a cometer essas misérias. Nem ele mesmo sabe de tudo. Ele errou e vai pagar [...]. Mas escreve aí que ele não nasceu um demônio” (Verunschk, 2018VERUNSCHK, Micheliny (2018). O amor, esse obstáculo. São Paulo: Patuá Editora ., p. 77). É nesse momento que a narração se questiona, então, como podemos definir um “monstro” e chega à conclusão de que, quem sabe, a explicação esteja na capacidade de causar espanto e mobilizar espetáculos. É o torturador, entretanto, “Capitão Garrote”, aquele que deve “respeitar a lei” e prender o menino. O criminoso punido e categorizado terá esse fim definido menos pelo crime cometido e mais por sua classe e sua origem.

O pai de Laura, branco, de classe média e torturador, não só nunca será punido como também será responsável pela suposta proteção e punição de outros. Não assombrará a cidade com a sua existência, não será motivo de espanto ou fúria, não mobilizará o desejo da morte, mas carregará consigo o bastião da moral e da justiça. O único assombrado é o tio de uma amiga de Laura, torturado por “Garrote”, que vive em sofrimento pelo reconhecimento do seu perpetrador. Ainda que em possível “queima de arquivo”, o pai de Laura morrerá sem que seus feitos se tornem públicos, sem ser julgado e com direito às homenagens do Exército. O tempo da justiça nunca o alcança. O livro, entretanto, tenta apontar esse deslocamento da justiça e a forma como permanece nas instituições democráticas: as instituições de “justiça” criam ambientes de impunidade, mas não só, pois criam também ambientes em que a violência de Estado é permitida, garantida, parte da estruturação e da arquitetura institucional do presente. O distanciamento temporal não desloca a figura da justiça, não a questiona, não repara. Não se trata tampouco de dizer que só cabe julgamento aos perpetradores da violência ditatorial, mas, sim, de questionar uma certa estrutura de mundo que deve ser modificada. De acordo com Benita Parry (2004PARRY, Benita (2004). Postcolonial studies: a materialist critique. London; New York: Routledge.), não é possível falar, então, em qualquer demanda de reconciliação que não passe, em primeiro lugar, por uma reestruturação radical das circunstâncias econômicas, sociais, políticas e culturais que tornaram possível, em primeiro lugar, as problemáticas do passado.

Fora das tendências e das imagens gerais produzidas pelas narrativas a que esta pesquisa se dedicou (Cruz, 2021CRUZ, Lua Gill da (2021). Pretéritos futuros: ditadura militar na literatura do século XXI. 2021. 322 f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas (Instituto de Estudos da Linguagem), Campinas. Disponível em: Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642099 . Acesso em: 1º nov. 2021.
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), quem sabe dois dos grupos mais silenciados, além de negros, negras, e LGBTQ+, por essas narrativas, sejam os indígenas e os camponeses. Se a literatura não é (e não deve ser) simulacro da Justiça, a arte, como fenômeno social, dialoga e responde aos momentos históricos, ou, como defende Ludmer (2013LUDMER, Josefina (2013). Aqui América Latina: uma especulação. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Ed. UFMG.), a literatura é parte de um contexto amplo de relações culturais e econômicas. Não apenas, mas atua, também, como defende Jelin (2002)JELIN, Elizabeth (2002). Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores; Social Science Research Council., como um dos “empreendedores da memória” das ditaduras. As produções culturais, portanto, apresentam enquadramentos possíveis, disputando o que foi/é ora esquecido, diminuído ou apagado. Como a história, a memória e outras formas de apresentação do passado, entretanto, são campos em disputa que podem mostrar, portanto, que não só importa o que se lembra - e o que não se lembra - mas que importa, também, como os acontecimentos são lembrados e, consequentemente, como são contados. A literatura recente, assim como os processos de reparação, memória e justiça, em geral, ainda não se deteve sobre as experiências desses grupos, ignorando parcelas da população constantemente atacadas e violentadas no Brasil, durante a ditadura e depois dela. Aqueles que os mencionam, em geral, o fazem de forma tangencial, a exemplo das narrativas de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui (2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara.) e de Liniane Brum, Antes do passado (2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.).

A resposta negativa e categórica de Spivak (2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty (2010). Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG.) à questão “pode o subalterno falar?”, parece-me essencial para pensar essas duas narrativas. A partir de uma conversa entre Deleuze e Foucault, a teórica critica o papel dos intelectuais em sua dificuldade de perceber como os seus discursos, em nome do subalterno, estão imbricados em perspectivas hegemônicas. O ensaio denuncia tanto o intelectual que acredita poder falar sobre o outro e construir seu discurso de resistência a partir de tal crença, quanto o que afirma que o outro dispensa a sua mediação, o que faz com que se mantenham as estruturas de poder e de opressões e que se continue praticando o mesmo ato de silenciamento que denuncia. O subalterno, definido exatamente pela impossibilidade de dizer e de ser escutado, esse que não tem agência ou espaço de ação reconhecidos, não consegue falar por si mesmo porque não encontra espaços de escuta. A sua voz acaba por ser mediada por alguém que se coloca na posição de reivindicar algo em nome deste outro. O conceito, assim, não trata de uma categoria fixa, mas se dá de forma relacional: é uma forma sem identidade que depende, antes, da posicionalidade (Spivak, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty (2010). Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG.). É necessário, então, questionar a categoria de “sujeito universal” e a violência advinda do discurso desta categoria e do silenciamento que provoca.

Por isso é também tão importante a crítica de Gallagher (2017GALLAGHER, Jennifer D. L. (2017). De muitas verdades a uma: histórias enredadas, memórias tuteladas e a Comissão Nacional da Verdade (1979-2014). Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3A3oPns . Acesso em: 6 ago. 2020.
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) - em que pese a não diferenciação, dado caráter radical de sua crítica, das limitações reais de atuação na época da constituição da CNV, o que a faz subestimar, de alguma forma, os avanços alcançados, ainda que limitados. Menos do que questionar a importância do terceiro volume e a necessidade de uma resposta para os familiares dos desaparecidos e mortos, a historiadora reconhece como problemática a decisão da comissão de 1) manter o número de vítimas em 434, dado que, por baixo, fala-se, por exemplo, em 8 mil indígenas assassinados; 2) separar a categoria dessas vítimas das anteriores. Ou seja, a historiadora questiona: “quais marcadores sociais da diferença aparecem explicitamente articulados nessa produção de história e quais restam negligenciados? Como se diferencia a construção de sujeitos/as separado/as por esses marcadores sociais? Quem são, afinal, os/as sujeito/as dos direitos humanos reconhecidos/as e constituídos/as enquanto tais pelo trabalho desta comissão?” (Gallagher, 2017GALLAGHER, Jennifer D. L. (2017). De muitas verdades a uma: histórias enredadas, memórias tuteladas e a Comissão Nacional da Verdade (1979-2014). Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3A3oPns . Acesso em: 6 ago. 2020.
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, p. 133). Ao separar esses grupos e suas violências, seria o caso, pois, de nos perguntarmos: o que essa história nacional e unificada sobre a ditadura quis dizer e com que corpos realmente se preocupou?

A narrativa de Paiva (2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara.) trata principalmente de um novo tempo da produção sobre a ditadura. Retornando ao tema do desaparecimento do pai mais de trinta anos depois de Feliz ano velho (1984), em tom memorialístico e autobiográfico, agora munido de outras informações, fornecidas não apenas, mas também pela CNV e pelo acesso a outros testemunhos, adiciona à história do pai deputado e da sua própria, a personagens central do livro, a sua mãe, Eunice Paiva, que em meio à dor e ao luto, se reinventa e passa a ser uma das militantes contra a ditadura militar. Ela denuncia a morte do marido e, posteriormente, passa a atuar na defesa de povos indígenas. A última luta de Eunice é contra o Alzheimer, sobre a qual o livro também se debruça, perpassando, a narração, a memória (ou a falta dela) e a tentativa de reconstrução da história familiar. O livro, apesar de tratar do que seria essa vítima mais diretamente relacionada ao período, o pai, objetiva também deslocar-se da história de uma vítima única. Busca apresentar o sistema ditatorial como uma estrutura de poder que se estendeu e marcou a vida de muitos brasileiros em diferentes aspectos: assassinato, desaparecimento, censura, tortura, mas afetou o país também em termos estruturais e financeiros. Localiza, por exemplo, perto da casa da família, a favela que foi incendiada e teve os moradores remanejados para outro lado da cidade, enquanto apartamentos foram construídos no mesmo local por e para militares em tempo recorde (PAIVA, 2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara., p. 68).3 3 Sobre este episódio, recomendo o trabalho da poeta de slam Maria Duda e o seu Favela da Praia do Pinto, no qual conta, a partir da perspectiva dos familiares que viviam na favela na época, o projeto da ditadura: https://www.you tube.com/watch?v=XEI5DFQ-lAE&ab_channel=FlupRJ. Acesso em: 15 out. 2020. Demonstra, assim, como o projeto neoliberal levado a cabo pela ditadura atingiu o país, a exemplo de: corrupção generalizada, produção de dívida externa, criação de condições para a formação do crime organizado, desmantelamento do ensino público e tortura como prática de Estado cotidiana.

É também, nesse sentido, a importante cena de tortura do pai, uma das mais potentes da narrativa, que é cortada, interrompida e sobreposta a outra temporalidade: 14 de julho de 2013, quando Amarildo4 4 Amarildo é um dos símbolos do desaparecimento por parte do Estado brasileiro na contemporaneidade. Em julho de 2013, o pedreiro foi levado por policiais militares para ser interrogado na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Depois da “averiguação”, Amarildo sumiu e nunca mais retornou. Seu corpo ainda não foi encontrado. é levado preso, e se torna um desaparecido, na UPP da Rocinha - projeto de extrema militarização do cotidiano das favelas, em que se organizou e se instituiu mecanismos de repressão e violência. Similarmente o faz com o episódio de tortura perpetrada contra quatro meninos, contemporâneo ao tempo da escrita, para que confessassem um crime que não tinham cometido. Esses episódios oscilam entre as temporalidades do presente e a temporalidade da tortura e desaparecimento do pai, fazendo questão, portanto, de atravessar essas temporalidades da violência da tortura e do desaparecimento, de antes e agora.

Há também uma importante recuperação do papel da mãe na luta pelo direito indígena. Para Eunice, havia pontos em comum entre a luta que bancava em relação ao marido desaparecido e a defesa desses povos: Eunice “viu semelhanças aí entre duas políticas de Estado, a da eliminação planejada e incontestável dos seus oponentes. Mataram deliberadamente os inimigos da ditadura. Deixam agora morrer os inimigos do progresso, do futuro, dos fazendeiros amigos do poder, poder instaurado por eles” (Paiva, 2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara., p. 205). Aqui, a narração dedica-se a demonstrar como a CNV recuperou massacres sistemáticos de aldeias, visto que houve prisão, tortura e desaparecimento de povos indígenas durante a ditadura, e insere, inclusive, documentos, testemunhos e arquivos organizados pela comissão. Uma das questões centrais na vida de Eunice Paiva, entretanto, não assume uma centralidade no texto, como era de se esperar, dada a natureza e a forma da proposta do projeto literário do autor.

Em Antes do passado, livro de Liniane Haag Brum (2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.), escrito alguns anos antes, há outro contexto de reparação. O livro conta a história da autora-narradora, afilhada de Cilon Brum, desaparecido durante a guerrilha do Araguaia. A partir de uma perspectiva familiar e autobiográfica, em uma espécie de autoetnografia, a narradora percorre o Brasil e vai até a região do Araguaia em busca de testemunhos e informações que possam ajudá-la a recuperar a história do tio.

No caso dessa narrativa, recuperar a figura do tio passa por entender o que o levou, em primeiro lugar, até o Araguaia. Passa por deslocar-se até lá e àquele povo. É de lá que envia uma carta à avó contando o que passaram essas pessoas: foram maltratadas, tiveram suas casas queimadas, roças destruídas. Se por um lado demonstra uma vontade de denunciar o contexto brutal que vivenciaram os moradores da região - e a consciência de que, para isso, é necessário também aproximar-se daqueles que lá estiveram e podem, agora, testemunhar -, por outro, o interesse não se desvia da figura de Cilon. A narradora, por vezes, é interpelada por uma perspectiva daqueles que ainda vivem naquele lugar e que são constantemente interrogados e posteriormente abandonados por essas figuras vindas do Sul. Mas, quando o relato escapa à figura de Cilon, é, de alguma forma, incapaz de ouvi-los. Por exemplo, afirma: “duvidei que daquela comunidade escorresse uma palavra que pudesse me interessar” (Brum, 2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial., p. 191), dado que não teriam o que contar sobre o tio. Isso também pode ser visto em “ia e vinha em detalhes de torturas, [...] dizia e repetia a palavra judieira. Mas parecia anestesiado pelo próprio efeito da repetição de relatos. Fui perdendo a concentração, perdendo meu olhar por entre a porta” (Brum, 2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial., p. 172), quando diante do Seu Pici, testemunha essencial daqueles tempos.

Assim como em Paiva (2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara.), os camponeses em Brum (2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.) também não conseguem assumir um papel importante na recuperação se não em função de uma história outra: a de um desaparecido, do Sudeste, branco - o que não deixa de ser legítimo, apesar de limitante nas possibilidades e sintomático das problemáticas coloniais que aí persistem. É também central, parece-me, o momento em que conta para a avó sobre uma mensagem que teria atravessado o tempo para chegar até eles: o fato de que Maria dos Anjos, a última testemunha que teria visto o seu tio vivo, teria contado da vontade de Cilon de retornar ao Sul para ver os sobrinhos e familiares. Nesse momento, pergunto-me, se, quem sabe, a mensagem que Cilon fez atravessar no tempo não tenha sido perdida, de fato, afinal, já que os subalternizados dos quais Spivak (2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty (2010). Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG.) falava não foram ou são, ainda, escutados. Explico: não há a possibilidade de entender o que moveu um grupo de jovens do Sul e do Sudeste em direção ao Norte do país, não apenas para se fazer ouvir, mas, principalmente, para construir e ouvir esses sujeitos, quando, depois de todo esse tempo, os repositórios dessas histórias - não apenas a de Cilon, mas de um povo que foi violentado - seguem, no presente, sem poder se fazer ouvir ou contar, sem ter o seu testemunho representado. De um povo que carrega consigo uma história proibida pela aniquilação daqueles que foram até lá construir, em conjunto, outro país. De um grupo que carrega consigo agora essa história que a quase mais ninguém interessa, não apenas a história dos “paulistas”, mas também a sua própria.

Se é verdade que os grupos minoritários sempre estiveram resistindo às violências e silenciamentos perpetrados, bem como, atualmente, têm conseguido acessar e aprofundar a ocupação de espaços públicos de debate, assim como, por exemplo, na produção artística, de muitas formas, esses povos foram e são, ainda hoje, vítimas da violência de Estado, ignorados nos processos de justiça e reparação, e, muitas vezes, seguem sem ter as suas histórias amplamente contadas na literatura. Os projetos coloniais, o autoritarismo da violência de Estado e a exclusão em diferentes espaços compõem as temporalidades das suas vivências. Não são poucos os indícios: entre outros, um genocídio em curso da juventude negra exterminada nas cidades e periferias, povos indígenas sendo brutalmente dizimados, o maquinário da morte que faz com que pessoas pobres e periféricas sejam as mais atingidas pela covid-19. Deslocar-se agora nesse tempo quer dizer acercar-se de outras histórias, ou seja, apontar para a necessidade de nos aproximarmos de outras subjetividades. Significa alcançar o tempo a partir de outros questionamentos e de outros olhares. Se esses sujeitos, nas narrativas de Brum (2012BRUM, Liniane H. (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial.) e Paiva (2015PAIVA, Marcelo Rubens (2015). Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara.), entre outros, não se tornam centrais, quem sabe esteja na abertura da possibilidade e da priorização de sua escuta um gesto importante, pois estão ali e o que fazemos da sua posição também é tarefa daquele que lê. As narrativas reconhecem, como argumenta Gordon (1997GORDON, Avery (1997). Ghostly matters: haunting and the sociological imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press.), uma presença que ainda nos interpela a observar o que permanece não resolvido e a cobrar, enfim, um posicionamento, no presente.

O que possibilitam, além disso, é demonstrar que ao debatermos os contextos dos processos de memória, justiça e reparação não se pode reescrever essa história sem considerar a importância ética de nomear os sujeitos cujas histórias foram apagadas, negadas e cujas existências são mais duramente atingidas, no presente, pela violência do sistema capitalista, em um regime dito democrático, que, apesar das diversas resistências, sempre fundamentais, continua relegando-os a uma vida de desigualdade e pobreza e negando seu acesso às condições básicas da existência.

Nesse sentido, parece-me claro que debater a história da ditadura pode, e deve conjugar e passar por uma compreensão mais ampla dos processos históricos e autoritários brasileiros. Como defende Rothberg (2009ROTHBERG, Michael (2009). Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the age of decolonization. Stanford, California: Stanford University Press. [Cultural memory in the present].), é possível olhar para essas memórias sem diminuir ou negar aquelas mais comumente lembradas, aproveitando da articulação entre elas e as histórias esquecidas, negadas, apagadas, lendo-as, portanto, de forma conjunta, “multidireccional”. Tratar do tempo da ditadura, hoje, deve significar uma mobilização em torno da preocupação da inscrição de outras vítimas no rol das vítimas da ditadura. Significa abandonar certas distinções (ou tentar, ao menos), e/ou olhar para outros lugares e outros grupos, mas, sobretudo, nesse deslocamento, reconhecer o quanto se imbricam diferentes temporalidades, ou seja, o quanto não se pode falar de passado e de presente sem o assombro pelo que esse passado que não passa produz no agora. Trata-se também de percebermos o quão prejudicial tem sido omitir determinadas partes dessa história quando se recupera o evento da ditadura. Quando não se atenta para esse recorte, perde-se de vista os pontos cegos dessa violência e a capacidade de mobilização em torno do assunto. Entender o Brasil contemporâneo perpassa por entender o quanto a construção da nossa democracia falhou em lidar com a sua herança.

Em “Past is evil, evil is past”, Berber Bevernage (2015BEVERNAGE, Berber (2015). The past is evil/evil is past: on retrospective politics, philosophy of history, and temporal manichaeism. History and Theory, v. 54, n. 3, p. 333-352. Disponível em: Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/hith.10763 . Acesso em: 6 ago. 2020.
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/...
) debate as contradições dos processos de reparação do que se chama hoje de “injustiças históricas”. Entre uma “política orientada para o futuro” e uma “política orientada para o passado”, o autor argumenta que as políticas retrospectivas tendem a operar cortes temporais que se filiam ideologicamente com uma perspectiva temporal dualista que separa muito fixa e claramente passado e presente. Para o autor, portanto, é essencial que questionemos essa estruturação “temporalmente maniqueísta” que aparta momentos de violência e é incapaz de perceber as suas relações. Nessa lógica, seria o passado o problema e o que há de verdadeiramente “mau”, mas não só isso, visto que estaria localizado na temporalidade anacrônica, pertencente a outro tempo, não contemporâneo, o horror; ou seja, não só o “passado é o mau”, mas também o próprio “mau” seria o passado.

Essa premissa permite absolver os problemas e as injustiças do tempo presente, no que o filósofo chama de um “alacronismo do presente”, em que se pretende alocar simbolicamente em outro tempo o que acontece “cronologicamente no presente”, ou seja, cria-se uma distância entre os crimes supostamente do passado com aqueles do presente. Essa visão constantemente empregada nos processos de justiça de transição explica como esse foco em “injustiças históricas” não fornece necessariamente um reconhecimento dos crimes, das violências e das injustiças, o “mau”, como responsabilidade nossa, do aqui e do agora. O que o autor (2015) propõe, então, diante dessa lógica dicotômica, é rever esse regime de temporalidade e resistir ao pensamento dualista que quer escolher entre restituição para “injustiça histórica”, ou “justiça para o futuro”, recuperando um olhar atento para as políticas retrospectivas para que se voltem ao presente e permitam não apenas que o passado produza efeitos éticos no aqui e no agora, mas que também se mobilizem elementos emancipatórios e utópicos para uma política “direcionada para o presente e para o futuro” (Bevernage, 2015BEVERNAGE, Berber (2015). The past is evil/evil is past: on retrospective politics, philosophy of history, and temporal manichaeism. History and Theory, v. 54, n. 3, p. 333-352. Disponível em: Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/hith.10763 . Acesso em: 6 ago. 2020.
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/...
).

Dito isso, aponto que a forma como se lê e como se julga atualmente ainda está em disputa. Aos donos do poder de hoje não interessa que se recupere a ditadura porque é um tema que pode organizar um debate crítico sobre o passado, mas, sobretudo, sobre o presente. Mais do que nunca pensar sobre políticas de reparação, justiça e memória quer dizer pensar sobre os futuros do país. Querem dizer que acabou, que não deixou herança, que agora estamos “em outra”, mas quem sabe resida na consciência da coexistência dessas diferentes temporalidades a nossa melhor estratégia. Daí a importância em pensar políticas de reparação e de memória que se voltem para o presente, mobilizando efeitos no aqui e no agora, preocupando-se, também, em construir o futuro. Para isso, não é possível pensar em reconciliação sem uma crítica radical da condição contemporânea, conforme demanda Benita Parry: “Isso significa que devemos recordar as longas histórias de injustiça, recordar os obstáculos na construção de uma sociedade justa e ter sempre em vista a perspectiva de um futuro. Pois nossa melhor esperança para a emancipação universal reside em permanecermos irreconciliáveis com o passado e inconsoláveis com o presente” (2004, p. 206).

Referências

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  • 1
    Além da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram instaladas comissões da verdade independentes em diversos âmbitos, institucionais ou não, a exemplo de comissões municipais, estaduais, em universidades e sindicatos.
  • 2
    Um dado que salta aos olhos nessa pesquisa é a informação de que, diferente da pesquisa realizada por Dalcastagnè em 2012, as mulheres assinam grande parte das autorias dos romances publicados no século XXI, no Brasil, sobre a ditadura militar. Dos 63 autores que a listagem apresentada em meu doutorado (Cruz, 2021CRUZ, Lua Gill da (2021). Pretéritos futuros: ditadura militar na literatura do século XXI. 2021. 322 f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas (Instituto de Estudos da Linguagem), Campinas. Disponível em: Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642099 . Acesso em: 1º nov. 2021.
    https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642...
    ) engloba, publicados entre 2000 e 2020, 31 são mulheres, ou seja, quase 50%, dado que é bastante diferente do exposto por Dalcastagnè em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte.), em que no total de 258 romances analisados, publicados entre 1990 e 2004, 72,7% dos autores são homens. No que tange à relação com a ditadura e com o testemunho, esse também é um dado bastante distinto do apresentado por Vargas (2018VARGAS, Mariluci Cardoso de (2018). O testemunho e suas formas: historiografia, literatura, documentário (Brasil, 1964-2017). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), inclusive no que se refere à distribuição de gênero nas publicações testemunhais sobre a ditadura entre 1964 e 2017 (82,4% escritos por homens e 17,6% por mulheres). Vê-se uma mudança significativa e não descolada dos movimentos de mulheres e de feminismos que se espalham pelo Brasil nas diversas áreas do conhecimento, bem como da crítica estabelecida anteriormente por parte de mulheres, principalmente, da sua exclusão do mercado editorial.
  • 3
    Sobre este episódio, recomendo o trabalho da poeta de slam Maria Duda e o seu Favela da Praia do Pinto, no qual conta, a partir da perspectiva dos familiares que viviam na favela na época, o projeto da ditadura: https://www.you tube.com/watch?v=XEI5DFQ-lAE&ab_channel=FlupRJ. Acesso em: 15 out. 2020.
  • 4
    Amarildo é um dos símbolos do desaparecimento por parte do Estado brasileiro na contemporaneidade. Em julho de 2013, o pedreiro foi levado por policiais militares para ser interrogado na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Depois da “averiguação”, Amarildo sumiu e nunca mais retornou. Seu corpo ainda não foi encontrado.

Editor de seção:

Leila Lehnen e Igor Graciano

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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