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Fronteiras da alteridade: os animots de Milton Hatoum em Relato de um certo Oriente

Frontiers of otherness: Milton Hatoum’s animots in Tale of a certain Orient

Fronteras de la alteridad: los animots de Milton Hatoum en Relato de un certo Oriente

Resumo

Publicado em 1989, o romance de estreia de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente, marca-se por diversos descentramentos que se revelam no enredo da obra. Este artigo tem o objetivo de examinar esses descentramentos, especialmente no que respeita às relações entre o ambiente urbano e o ambiente selvagem, como representadas em Manaus, cenário do livro. Em um aprofundamento do exame das relações de fronteiras, serão investigadas, mais especificamente, as relações entre humanos e animais, bem como a própria animalidade expressa na obra. O episódio do arbusto humano, personagem que teve lugar no sexto capítulo do romance de Hatoum e despertou controvérsias entre os críticos, será analisado segundo uma perspectiva que reconheça a importância estrutural do personagem e sua adequada integração à obra. Por fim, à luz do pensamento de Jacques Derrida, em seu ensaio O animal que logo sou, propõe-se um novo questionamento das fronteiras da individuação, sugerindo um complexo entrelaçamento entre os personagens e retomando as noções de alteridade.

Palavras-chave:
Relato de um certo Oriente; Milton Hatoum; animalidade; O animal que logo sou

Abstract

Published in 1989, Milton Hatoum’s debut novel, Tale of a Certain Orient, is marked by several decenterings that are revealed even in the plot of his book. This work aims to examine these decenterings, especially with regard to the relationships between the urban environment and the wild environment, as represented in Manaus, the setting for the book. In an in-depth examination of border relations, the ones between humans and animals will be investigated, more specifically, and the animality itself expressed in the work. The episode of the human bush, a character that took place in the sixth chapter of Hatoum’s novel and which aroused controversies among critics, will be analyzed from a perspective that recognizes the structural importance of the character and his adequate integration into the work. Finally, in the light of Jacques Derrida's thought, in his essay, The Animal That Therefore I Am, a new questioning of the boundaries of individuation will be proposed, which suggests a complex intertwining between the characters and resumes the notions of alterity.

Keywords:
Tale of a certain Orient; Milton Hatoum; animality; The Animal That Therefore I Am

Resumen

Publicada en 1989, la novela debut de Milton Hatoum, Relato de un cierto Oriente, está marcada por varias descentralizaciones que se revelan incluso en la trama de la obra. Este artículo tiene como objetivo examinar estas descentralidades, especialmente con respecto a la relación entre el entorno urbano y el entorno salvaje, como se representa en Manaus, el escenario del libro. En un examen en profundidad de las relaciones fronterizas, se investigará la relación entre humanos y animales, más específicamente, y la misma animalidad expresada en el trabajo. El episodio del arbusto humano, un personaje que tuvo lugar en el sexto capítulo de la novela de Hatoum y que suscitó controversias entre los críticos, se analizará desde una perspectiva que reconoce la importancia estructural del personaje y su integración adecuada en la obra. Finalmente, a la luz del pensamiento de Jacques Derrida, en su ensayo, El animal que luego estoy si(gui)endo, se propondrá un nuevo cuestionamiento de los límites de la individuación, que sugiere un enredo complejo entre los personajes y vuelve a las nociones de alteridad.

Palabras-clave:
Relato de un cierto Oriente; Milton Hatoum; animalidad; El animal que luego estoy si(gui)endo

Eflúvios tropicais de um oriente descentrado

De que oriente nos fala Milton Hatoum em seu romance de estreia, Relato de um certo Oriente? Em que consiste propriamente o relato que dá nome ao livro? Não foram poucas, nas últimas três décadas, as proposições que objetivaram responder essas perguntas; a maior parte das hipóteses dos comentadores, no entanto - pelo menos as mais comuns -, parecem-nos pouco razoáveis ou mesmo insatisfatórias.

Publicado pela primeira vez em 1989, o livro Relato de um certo Oriente introduz a história de uma narradora inominada que retorna a Manaus para pacificar-se com seu passado e com suas memórias, no momento de uma não explicada confluência que também levará à cidade outros personagens, no afã de se encontrarem com a matriarca Emilie, mãe adotiva da narradora. Os personagens, no entanto, se frustrarão em seus intentos, uma vez que Emilie morrerá horas antes do ansiado encontro. O livro divide-se em oito capítulos que dão voz a cinco narradores: Hakim, Dorner, o marido inominado de Emilie, Hindié e a narradora inominada, que também chamaremos principal, inclusive por responder pela curadoria dos relatos dos demais narradores com o objetivo - revelado somente ao fim do livro - de informar seu irmão que vive em Barcelona - verdadeiro destinatário do relato - da morte de Emilie.

O romance se fará marcar por diversos descentramentos, como a própria narradora dará a entender, no último capítulo da narrativa - quando revelará com certa vagueza haver estado internada em uma “clínica” -, ao admitir a dificuldade que havia encontrado para dar forma ao relato, para conferir-lhe a mínima ordem que o fizesse inteligível (Hatoum, 2012, p. 165). Embora o romance sugira a tentativa da narradora inominada de reconciliar-se consigo mesma em seu retorno à terra de sua infância, Manaus, e proponha o relato, dirigido ao irmão da narradora, dos eventos que permeiam a viagem, ao fim da narrativa alguns personagens ganharão vulto e se destacarão dos demais, como poderemos perceber na figura de Emilie, estrela maior do cosmos do relato, em torno da qual orbitarão os restantes personagens. Não nos parecerá, portanto, infundado perguntar se o relato do retorno da narradora a Manaus, na tentativa de apaziguar-se com suas memórias, não representará, na verdade, uma tentativa de recompor a história não da narradora, mas, sim, de Emilie.

Sem prejuízo da importância da história de Emilie - imigrante libanesa que, ainda jovem, radicou-se no norte do Brasil - no tempo em que viveu em sua pátria de origem, parece-nos possível afirmar, no entanto, que os fatos mais marcantes da vida da personagem deram-se em terras brasileiras: o suicídio do irmão em condições misteriosas; o casamento com outro imigrante libanês; o nascimento dos quatro filhos e a adoção de outros dois; a gravidez da filha, Samara Délia, permeada pelo escândalo do desconhecimento do pai da criança; o nascimento da misteriosa neta, Soraya Ângela, surda e muda; a condição de isolamento de Samara e Soraya dentro da casa e a hostilidade dos parentes para com as duas; a morte precoce da neta em condições violentas; e a curiosa diáspora dos parentes que a deixam em uma condição de quase completa solidão. A carga dramática dos acontecimentos, portanto, parece-nos fazer infundadas as suposições de que o nome do livro de Hatoum faça referência aos fatos vividos pelos imigrantes em suas origens, antes de emigrarem para o Brasil.

A obra Relato de um certo Oriente parece-nos mesmo pôr em questão o problema dos limites, das fronteiras e da interculturalidade, seja pela enunciação direta dos personagens, seja pelas imagens literárias e marcas verbais que se engendram na obra, de forma que nos parece necessário evocar o pensamento de Edward Said1 1 É notório o conhecimento do autor, Milton Hatoum, da obra de Edwad Said, de quem traduziu Representações do intelectual (2005) para a língua portuguesa. As edições de Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (Said, 2007), publicadas pela editora Companhia das Letras, contam ainda com uma menção elogiosa de Hatoum à relevância da obra. que problematiza a noção de oriente, tomando-a como invenção cultural do ocidente (Said, 2007SAID, Edward W. (2007). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras .). Assim, parece-nos mais razoável a hipótese de que o oriente de Hatoum se deva mais a um influxo decolonial que inverta as perspectivas, as noções consagradas dos hemisférios, e disponha o Amazonas predominantemente ao norte e, consequentemente, em um novo oriente. O livro, portanto, trata em perspectiva das relações limítrofes: as zonas periféricas de Manaus a partir do ponto de vista do centro, assim como a própria natureza amazônica vista na perspectiva humana, e se valerá de sua poética para evocar, por meio de uma problematização sutil, a questão das fronteiras (Bhabha, 2003BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG. ): “ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 71). A obra é, assim, rica em referências aos limites: os limites da cidade, os limites entre o exterior e o interior das casas e até o limite entre a vida e a morte, expresso pela evocação dos mortos e mesmo pelo velório de Emilie, que principiará, estranhamente, quando ela ainda estiver viva: “alguns levavam ramalhetes de flores que exalavam o aroma de uma morbidez antecipada, pois lá no sofá da sala Emilie ainda respirava” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 143). No entanto, para além de todas as tensões que se estabelecem nas áreas de contato entre as múltiplas culturas que coabitam a região amazônica, mesmo para além da tensão polar que se põe entre o cristianismo de Emilie e o islamismo de seu marido, há uma relação que, embora possa se furtar a um leitor menos atento, mostra-se especialmente digna de atenção no romance de Hatoum: a relação que se dá entre os habitantes da cidade e a natureza selvagem que os circunda.

A cidade cercada: a floresta e seus prolongamentos

O romance de Milton Hatoum dá conta da insólita realidade de uma grande metrópole, situada no centro da maior floresta tropical do mundo, na confluência de alguns dos também maiores rios do mundo. Assim como o texto sugere, por vezes de forma indireta, alguns personagens parecem suspeitar das fronteiras que separam a urbe dos espaços naturais:

Lembro também de suas exaustivas incursões à floresta, onde ele permanecia semanas e meses, e ao retornar afirmava ser Manaus uma perversão urbana. “A cidade e a floresta são dois cenários, duas mentiras separadas pelo rio”, dizia. Para mim, que nasci e cresci aqui, a natureza sempre foi impenetrável e hostil (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 82).

O relato do fotógrafo Dorner, recontado por Hakim, toma a cidade como um espelhamento da floresta, um espelhamento mediado pelo rio. O mesmo fotógrafo argumentará em favor das relações dos nativos com a floresta como o único exercício possível de liberdade: “Dorner relutava em aceitar meu temor à floresta, e observava que o morador de Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de uma prisão singular: aberta, mas unicamente para ela mesma” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 82). A imagem que melhor representará a continuidade entre a selva tropical e as áreas urbanas nos será dada pela narradora ao final do romance:

Nada anuncia o fim da longa travessia aérea: bruscamente, como as luzes de um gigantesco transatlântico a flutuar num oceano que separa dois continentes, uma constelação terrestre e aquática te adverte que a floresta ali muda de nome, que o rio antes invisível agora torna-se um caminho iluminado, e também suas margens, seus afluentes, os braços dos afluentes e até mesmo a floresta, em pontos esparsos são pontilhados de luz. Essa claridade disseminada por toda parte te faz pensar que a cidade, o rio e a selva se acendem ao mesmo tempo e são inseparáveis; que o avião, ao navegar naquele espaço que se projeta sobre a linha do equador, divide duas abóbadas incandescentes (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 164, grifo nosso).

A intricada relação entre a cidade e a floresta ganhará, no entanto, a sua expressão mais insólita por meio de um recurso poético engendrado com notável perícia pelo autor, recurso esse que, por meio das estratégias do texto (Iser, 1996ISER, Wolfgang (1999). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Ketschmer. São Paulo: Ed. 34. v. 2.), o autor manterá oculto até o final do capítulo cinco. O leitor de Relato de um certo Oriente já haverá certamente experimentado o estranhamento proporcionado pelas adjacências do casarão em que Emilie e o marido haviam se instalado após a consolidação do sucesso da loja, A parisiense: dotado de uma fonte circundada por quatro estátuas, tanques, viveiros para aves e um variado número de espécies de animais, alguns deles pouco comuns para o ambiente domiciliar, como macacos e ovelhas. Pois, somente ao fim do capítulo cinco, Hakim acrescentará jacarés ao rol da fauna da casa de Emilie, revelará ainda a origem de plantas anteriormente mencionadas nas descrições do pátio: o jardim da matriarca também se compõe de talhões de plantas originárias da floresta amazônica em mistura com outros, de plantas ornamentais. O narrador confessará, ainda, que as plantas da floresta, com o passar do tempo, haviam atraído cobras que eventualmente matavam as galinhas de Emilie, para o espanto de um leitor atento que se lembrará de que as crianças da casa brincavam livremente por entre essas mesmas plantas. Por fim, o narrador explicará o motivo da coexistência de elementos tão díspares: os animais e as plantas representavam as dádivas que os moradores da cidade ofertavam a Emilie nas verdadeiras procissões que passaram a acompanhar suas homenagens anuais ao irmão morto, ocasião em que a matriarca era reverenciada como uma verdadeira santa. O casarão de Emilie, portanto, contém em si células da floresta amazônica. A complexidade do arranjo sugere que a casa mesma é também uma célula, por sua autonomia, como se representasse também um mundo à parte, que reúne nele mesmo uma síntese do ambiente externo. A casa de Emilie por vezes parece mesmo dotar-se dos atributos de uma mônada:

Cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim repleto de plantas e como um lago repleto de peixes. Porém, cada ramo de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores é ainda um jardim ou um lago (Leibniz, 2009LEIBNIZ, G. W. (2009). A monadologia e outros textos. Organização e tradução de Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. São Paulo: Hedra., p. 38).

A complexa montagem da casa de Emilie parece também evocar os agenciamentos deleuzianos, bem como as ideias de rizoma e linha de fuga (Deleuze; Guattari, 2017DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2017). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 . v. 1.), de forma que cidade e floresta revelam, nesse espaço em especial, uma intricada tessitura: a selva amazônica prolonga-se por dentro dos espaços da casa e, por vezes, parece brotar de seu interior. No entanto, e ainda no que tange a questão das fronteiras, os eventos relatados no romance parecem consonar com o pensamento de Homi Bhabha, para quem as identidades se construiriam justamente nas bordas, nas fronteiras de diferentes realidades - é nos entrelugares (Bhabha, 2003BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG. ) que se darão algumas das mais importantes revelações do livro: nos instantes que antecedem o clímax da obra, a narradora principal se confessará finalmente pronta para conhecer as comunidades marginais da cidade, com as quais a cultura familiar havia vedado qualquer possibilidade de contato; decidirá ela, então, chegar ao centro de Manaus por um caminho diferente, busca, assim, uma nova perspectiva:

decidi retornar ao centro da cidade por outro caminho: queria atravessar o igarapé dentro de uma canoa, ver de longe Manaus emergir do Negro, lentamente a cidade desprender-se do sol, dilatar-se a cada remada, revelando os contornos de uma massa de pedra ainda flácida, embaçada (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 124).

A narradora devolverá a cidade aos seus primórdios e a reinaugurará, pelo menos para si; percorrerá lugares marginais, de nomes impronunciáveis, que não constam nos mapas, mas para os quais a narradora reivindica a legitimidade, posto que, para ela, a própria vida pulsante da cidade os afirmaria (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 125); percebe a confusão dos limites do fim da cidade e da margem do rio: é nessa zona de tensões que a cidade própria da narradora - cidade esta que lhe causa um vertiginoso estranhamento -, se dará a ver em sua expressão mais singular, pois “esses ‘entrelugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (Bhabha, 2003BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG. , p. 20).

A mudança de perspectiva e o contato com a periferia proporcionarão à narradora algumas de suas experiências mais insólitas, revelará uma cidade até então desconhecida.

O passeio da manhã da morte de Emilie não representará, no entanto, o único evento que marca os influxos das bordas no romance de Hatoum. Um dos principais diálogos do livro também se dará nas bordas, nas fronteiras da casa de Emilie, dado que a narradora está na varanda da vizinha, Hindié, quando diz imaginá-la

sozinha, vagando na fronteira diminuta, quase apagada, que separa a morte da noite, e a memória da morte. Imagino-a também no silêncio daquele domingo, com os olhos fixos na paisagem emoldurada: a metade da árvore e uma parte da casa: o plano fechado da fachada sem sombras, sob o sol que divide o dia (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 156, grifo nosso).

As maiores tensões do livro, no entanto, furtam-se em regiões ainda mais nebulosas: fazem surgir nos limites das diferenças a desconfiança das fronteiras que separam o homem da própria animalidade.

Os bichos, no limite do humano

A criança muda, Soraya Ângela, parece mesmo dotar-se de um valor estrutural para a composição de Relato de um certo Oriente, especialmente por seu caráter furtivo, por sua natureza enigmática. A figura de Soraya deixará seus rastros nas memórias afetivas de todos os personagens, como testemunhará a narradora principal ao recordar a infância do irmão: “sentias a falta de Soraya Ângela rastejando contigo, as duas cabeças roçando o solo à caça de saúvas, farejando a trilha quase infindável das formigas de fogo, escolhendo ao acaso uma fileira em movimento que sumia ao pé do tronco de uma árvore” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 23).

O insólito comportamento de Soraya, a menina que rasteja junto aos insetos e interage com os bichos, pode representar um despistamento que se vale do enredo para ocultar uma condição liminar. A afinidade da menina com os animais se justificaria pelo preconceito de crianças e adultos para com ela, em função de seu mutismo e da condição indigna de sua mãe, respectivamente: “Lembro que era rejeitada pelas crianças da vizinhança e ela mesma percebia isso porque resignava-se a brincar com os bichos e fazia diabruras com eles, montando nas ovelhas e torcendo-lhes as orelhas ou enodando o rabo dos macacos” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 13, grifo nosso).

As razões sociais da exclusão de Soraya poderiam, no entanto, falsear a condição própria de sua animalidade, a natureza de um ente que se coloca em uma região limite, entre o humano e o animal: é com os bichos que ela melhor se dá; seus gestos revestem-se de uma suposta brutalidade que também não prescinde de um componente de inocência, e por isso também causam espanto; falta-lhe a linguagem humanizadora. O modelo que propomos para Soraya talvez não se sustentasse se não fosse ratificado por diversos outros elementos que o confirmam na estrutura da obra: ela não é a única personagem que se põe em uma condição liminar entre homens e bichos - o romance faz referência a uma negra órfã que de tristeza e fome esquecera o próprio nome e “só se comunicava por gestos e suspiros” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 26) - além disso, a órfã ainda se identificará justamente com o papagaio da casa, com o qual experimentará um não explicado conflito; no episódio do desaparecimento de Emir, Emilie reagirá com berros incompreensíveis e contorções selvagens, além de dispor-se “na posição de um caramujo” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 65) e de permanecer, ela e seu irmão, “encasulados” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 66); o marido de Emilie se revoltará contra o comportamento bestial dos filhos inominados e dirá que “um filho seu não pode escarrar como um animal no corpo de uma mulher” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 87). Essa animalidade, com efeito, poderá se justificar, inclusive, pela já citada noção de entrelugar como formulada por Bhabha: os personagens estarão em condição liminar à medida que se encontrarem - ainda que provisoriamente - em uma condição subalterna. Ribeiro (2015RIBEIRO, Claudio de Oliveira (2015). A contribuição das noções de entre-lugar e de fronteira para a análise da relação entre religião e democracia. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 15, n. 2, jul./dez. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/26193/18855 Acesso em: 6 mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/index.php/reve...
, s.p.) sustenta que:

O conceito entre-lugar, formulado por Bhabha, está relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e como realizam estratégias de empoderamento. Tais posicionamentos geram entre-lugares onde aparecem com maior nitidez questões de âmbito comunitário, social e político.

Essa condição ficará evidente quando Hakim revelar o caráter ambíguo de Emilie, tantas vezes representada como uma mãe protetora, mesmo para os menos favorecidos; a verdade, no entanto, é que destina-se aos empregados da casa e a seus familiares uma comida inferior, dispensa-se a eles um tratamento que os aproxima dos animais: “Eu presenciava tudo calado, moído de dor na consciência, ao perceber que os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao lado do galinheiro, nas horas da refeição” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 86, grifo nosso). Tal tratamento não será ignorado pelo alemão Dorner, para quem as condições de humanos pobres e animais é análoga: “Aqui reina uma forma estranha de escravidão [...] A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 88). Podemos apontar ainda o exemplo de Anastácia, que demonstra familiaridade com os animais por sua habilidade para imitá-los:

falava horas a fio, sempre gesticulando, tentando imitar com os dedos, com as mãos, com o corpo, o movimento de um animal, o bote de um felino, a forma de um peixe no ar à procura de alimentos, o voo melindroso de uma ave (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 91, grifo nosso).

A mediação entre as condições humana e animal pode, no entanto, conduzir a experiências mais radicais que configurem um caminho sem volta. O suicídio de Emir reveste-se de mistério a ponto de permitir questionar se ele de fato deliberou pelo fim da própria vida: francamente entristecido, Emir já houvera despertado a preocupação de Dorner quando de seu encontro; na ocasião, o suposto suicida apegava-se a uma orquídea com a qual mesmo conversava; dirige-se então às docas do porto e simplesmente desaparece. Não há um relato objetivo que testemunhe sobre o ato. Um corpo, encontrado em um igarapé, será atribuído a Emir, semanas após seu desaparecimento, e Emilie mesmo questionará a identificação do cadáver com o seu irmão, de forma que Emir parece apenas haver se dirigido ao rio e partido para sempre, em um estranho devir peixe (Deleuze; Guattari, 2007DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2007). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. v. 2.) pelas águas dos rios amazônicos. A descoberta do corpo introduzirá, inclusive, um curioso personagem: Lobato Naturidade, ou Tacumã -, um índio que se reveste dos atributos de um xamã, por fazer a mediação entre os dois mundos: a cidade e a floresta; o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

O borramento das fronteiras destinadas a separar o homem e o animal, no entanto, pode ser tomado segundo uma perspectiva diferente que, conforme entendemos, não conflitará com o pensamento de Bhabha: a despeito de todas as tensões periféricas, o autor compreende a fronteira como o espaço propenso ao surgimento do novo (Bhabha, 2003BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG. ); referimo-nos à perspectiva da alteridade, espaço a que o fotógrafo Dorner se referiu como “o delicado território do álter” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 83). Quando a narradora principal decide percorrer a desconhecida periferia da cidade para, a partir dela, pautar um novo caminho até o centro, vivenciará a mais radical experiência de alteridade.

A vertiginosa continuidade do homem-árvore

O sexto capítulo de Relato de um certo Oriente, conduzido pela narradora principal, introduz aquele que, certamente, representa o maior estranhamento da obra, seja pelo seu significado próprio, seja pela forma como está disposto na estrutura da narrativa. Após dirigir-se à periferia da cidade, espaço que ainda não conhece, para traçar um novo caminho até o tão conhecido centro, a narradora parece devolver a cidade ao caos inicial; espanta-se com o grotesco da periferia, que parece apenas prenunciar a apoteose do surgimento de um homem, entrelaçado por diversos animais, que ela comparará a um fauno e chamará arbusto humano:

Na parte mais elevada da praça em declive, e bem em frente da porta da igreja, uma cena rompeu o torpor do meio-dia. O homem surgiu não sei de onde. Ao observá-lo de longe, tinha a aparência de um fauno. Era algo tão estranho naquele mar de mormaço que decidi dar alguns passos em sua direção. Nos braços esticados horizontalmente, no pescoço e no tórax enroscava-se uma jiboia; em cada ombro uma arara, e no resto do corpo, atazanados com a presença da cobra, pululavam cachos de saguis atados por cordas enlaçadas nos punhos, nos tornozelos e no pescoço do homem. Quando ele deu o primeiro passo, pareceu que o arbusto ia desfolhar-se: os símios multiplicaram os saltos, a jiboia passou a ondular nos braços, e as araras abriam e fechavam as asas (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 125-126).

O estranhamento proporcionado pelo trecho chega às vias de questionar-se a criação poética do autor por comentadores que sugerem apresentar o trecho um descolamento relativo em relação ao restante do romance, como atesta Albuquerque (2010ALBUQUERQUE, Lindalva Alves de (2010). Um relato oscilante: a Amazônia de Milton Hatoum, em Relato de um certo Oriente. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Universidade de Brasília, Brasília., p. 76):

O relato da aparição súbita e espetacular de um “arbusto humano” parece constituir uma ação externa que não se aglutina corretamente à evolução dos conflitos íntimos, pois insere informações aparentemente desnecessárias e desvinculadas da ação em torno da qual gravita o romance, colocando em xeque a verossimilhança. Então, cabe analisar o fenômeno, a fim de apreender sua coerência com as intenções do autor.2 2 Cumpre destacar que, embora reconheça o descolamento da passagem do arbusto humano, Albuquerque não subestima a poética de Hatoum, antes, mostra-se interessada nas justificativas da disposição do trecho, inclusive no que respeita as intenções do autor.

O episódio do fauno de Relato de um certo Oriente, no entanto, conforme o entendemos, não só não se apresenta descolado do restante da narrativa, como assume um papel estrutural: é ele a imagem síntese do descentramento e da (con)fusão das fronteiras de individuação propostos pela obra de Hatoum: estranho que reúne em si múltiplas singularidades, singularidades essas que divergem e convergem segundo o devir de bordas que lhes conferem um destino partilhado. O surgimento do estranho homem, como seria natural de se esperar, despertará um intenso alvoroço nos passantes da praça que, por sua vez, assumirão um comportamento selvagem, quase convulsivo. Tal estranhamento, curiosamente, parece dar conta da perplexidade despertada pelo outro, conforme a descreve Octavio Paz (2012PAZ, Octávio (2012). O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify., p. 136, grifo nosso):

O outro é algo que não é como nós, um ser que é também o não ser. E a primeira coisa que a sua presença desperta é a estupefação. Pois bem, a estupefação diante do sobrenatural não se manifesta como terror ou temor, como alegria ou amor, mas como horror. O horror inclui o terror - o ir para trás - e a fascinação que nos leva a fundir-nos com a presença. O horror nos paralisa. E não porque a Presença seja ameaçadora em si mesma, mas porque a sua visão é insuportável e fascinante ao mesmo tempo.

O surgimento do homem é em verdade um evento marcante na praça, embora revele apenas uma perspectiva daquilo que as pessoas em geral não podem ver: o fauno representa uma imagem especular do todo à sua volta, a complexidade e a repugnância da cidade com suas cores e seus monturos. As falas da narradora, por vezes, mostram-se conflitantes, por outras, complementares: em dado momento ela cuidará lembrar que, em perspectiva, visto de cima, o homem - centro das atenções na praça - poderá desaparecer; em outro momento, afirmará que “O arbusto humano ocupava todo o espaço da praça” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 126, grifo nosso): a estranha afirmação da narradora perderá, inclusive, a sua dimensão absurda se considerarmos o episódio segundo a ideia de um questionamento das fronteiras da individuação, segundo a ideia de que o fauno representa uma projeção das imagens de seus concidadãos, dos turistas que dão lugar a impulsos selvagens, como os de rastejar no chão ou trepar em árvores, no intuito de fotografar o fauno (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 126). Assim, os cidadãos que enchem a praça da igreja, e que antes haviam se mostrado espantados com as feras que se prendiam ao corpo do estranho homem, revelam-se muito mais temíveis do que essas:

E o seu relutante equilíbrio engendrava nova saraivada de agressões a que outros aderiram: soldados, carregadores, vendedores ambulantes, pescadores. E, então, as lentes das câmeras volteavam, faziam piruetas, ciclopes circulando reluzentes, porque agora a multidão era quase tão estranha quanto o arbusto humano; de contemplado passara a ser perseguido, e depois agredido, castigado, a ponto de me amedrontar, não o homem, os animais, os saltos e serpenteios, mas a multidão insana, inflamada de ódio, sob o sol (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 127-128).

O modelo do fauno de Relato de um certo Oriente poderá, assim, servir a uma investigação sobre os próprios limites da identidade do humano, identidade esta que se revela pelas bordas (Bhabha, 2003BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG. ), manifesta-se no entrelugar, na tensa fronteira entre o humano e sua outridade; outridade que encontra sua expressão excelente na figura do animal. Em sua obra O animal que logo sou, fruto do terceiro colóquio de Cerisy, o filósofo francês Jacques Derrida parte do relato de um evento trivial de seu dia a dia - haver se encontrado nu diante do olhar perquiridor de seu gato(a) - para refletir sobre as fronteiras que separam o homem e o animal: “nada me terá feito pensar tanto sobre essa alteridade absoluta do vizinho ou do próximo quanto os momentos em que eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato” (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp., p. 28, grifo nosso).

Em sua investigação sobre a natureza própria do animal, Derrida mencionará a tradição segundo a qual a animalidade estaria imbuída de uma melancolia e de uma tristeza que se deveriam propriamente ao seu mutismo, à sua incapacidade de linguagem (2002, p. 41); menciona, portanto, características nas quais podemos reconhecer os traços de Soraya Ângela. O reconhecimento das diferenças, para o autor, também passaria pela necessidade de um reconhecimento das bordas: “Tudo o que direi consistirá sobretudo em não apagar o limite, mas em multiplicar suas figuras, em complicar, em espessar, em desfazer a linearidade, dobrar, dividir a linha justamente fazendo-a crescer e multiplicar-se” (2002, p. 58).

Sob o risco de se interpretar a passagem do animal ao homem como uma passagem contínua, o autor será terminante em reafirmar a complexidade das fronteiras que separam o homem de sua alteridade absoluta (2002, p. 28). Assim, para ele:

A discussão merece começar quando se trata de determinar o número, a forma, o sentido, a espessura filiada desse limite abissal, dessas bordas, dessa fronteira múltipla e redobrada. A discussão se torna interessante quando, em vez de se perguntar se existe ou não um limite descontínuo, procura-se pensar o que se torna um limite quando ele é abissal, quando a fronteira não forma mais uma só linha indivisível mas linhas, e quando, em consequência, ela não se deixa mais traçar, nem objetivar nem contar como uma e indivisível. Que são as bordas de um limite que cresce e se multiplica em se nutrindo do insondável? (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp., p. 59-60).

O fauno do romance de Hatoum parece-nos, assim, uma curiosa resposta à perspectiva de Derrida, quando sugere que a designação genérica o animal, marcada, inclusive, pelo artigo definido, possa decorrer da impossibilidade humana de acolher os outros viventes como seus semelhantes, seus próximos, seus irmãos (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 65): o personagem parece-nos responder ao pensador francês na medida em que os animais que compõem a estranha colônia que se apresenta na praça da igreja podem partilhar, fatalmente, até um mesmo destino.

Para marcar a multiplicidade animal, e contra o gesto simplista com que a filosofia tentou inscrever toda essa multiplicidade em um termo genérico, Derrida propõe um novo termo que afirme essa pluralidade: animot (2002, p. 70). Para o autor, o animot teria “sempre o dono sobre suas costas” (2002, p. 74), assim como o fauno de Hatoum, que curiosamente carrega sobre as suas costas diversos animais. Parecem-nos coerentes as indagações: o animot inscreveria o homem? O fauno de Relato de um certo Oriente é um animot? - O personagem de Milton Hatoum parece-nos mais uma vez representar uma resposta ao protesto de Derrida, dado que parece reafirmar a complexidade das fronteiras, bem como a multiplicidade própria dos animais:

Ecce animot. Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma irredutível multiplicidade vivente de mortais, e mais que um duplo clone ou uma mot-valise [palavra entrecruzada], uma espécie de híbrido monstruoso, uma quimera esperando ser morta por seu Belerofonte (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp., p. 77-78).

Iniciamos nosso ensaio pela problematização das relações que se dão entre o homem e a natureza, especialmente no que tange às fronteiras, por vezes equívocas, que separariam a cidade da floresta e dos rios; consideramos que, no romance de Hatoum, estas tensões ganham especial expressão nos entrelugares que se põem entre humanos e animais; destacamos, então, a controversa imagem literária do fauno que surge na praça da igreja como imagem síntese das relações interespecíficas; perguntamos, por fim, se o estranho personagem faria justiça ao animot de Derrida. O pensamento de Derrida, por sua vez, terá a propriedade de nos obrigar a um novo e arriscado passo que aprofunde a questão: sem prejuízo do reconhecimento das fronteiras interespecíficas e de sua complexidade própria, podemos afirmar que, não só o homem da praça e os animais que compõem sua colônia, como todos os entes representados em Relato de um certo Oriente, encontram-se atados por um mesmo fio do destino.

Espelho da natureza - o destino partilhado e o salvamento pela linguagem

A despeito de toda controvérsia que permeia a imagem literária do fauno engendrado por Milton Hatoum em Relato de um certo Oriente, mesmo por parte dos críticos que atribuem ao evento do capítulo seis um descolamento da narrativa, afirmamos que a passagem se liga à estrutura profunda da obra. Queremos nos permitir ainda afirmar que tal imagem literária não está de todo isolada no livro: lembramo-nos do episódio, ocorrido no natal, em que o marido de Emilie se revoltara definitivamente contra Hindié e seus modos, quando a mulher havia adotado um modo inovador para matar os perus que serviriam à preparação do banquete - após forçar as aves a ingerir cachaça, atou-lhes, uns aos outros, pelos pescoços com um fio e pôs-se a observar, com êxtase e aplausos, a agonia dos animais que sufocavam-se uns aos outros à medida que saltavam, no ímpeto de salvarem as próprias vidas. Os animais que compõem a colônia do fauno também estão atados por fios; os saguis agitam-se de medo, impedidos de fugir da sucuri que representa, para eles, uma ameaça; o próprio homem que carrega os animais é, ele mesmo, um alimento potencial para a cobra. Os animais atados por fios, sejam eles fios visíveis ou invisíveis, são uma imagem recorrente no romance de Hatoum, que sugere a comunhão de todos na fragilidade, no destino comum que nos levará à morte. A narrativa parece por vezes mesmo sugerir que todos comungam na morte, “como se o desaparecimento trágico de alguém dissesse respeito a todos” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 98), e que o que separa, em verdade, os indivíduos, é apenas um lapso de tempo:

Fiquei surpreso com essas coincidências, mas, afinal, o tempo acaba borrando as diferenças entre uma vida e um livro. E, além disso, o que surpreende um homem hoje deverá surpreender, algum dia, toda a humanidade. Pensando também na fotografia de Emir, cogitei que aquela imagem protegida por uma lâmina de cristal pode evocar um morto de Manaus e os do mundo inteiro (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 80).

Também comungam na morte, como os animais atados pelo trágico fio do destino, os dueladores Kasen e Anuar Nonato, fortuitamente mencionados por Hakim, que, após combaterem, morrem abraçados, feridos, cada um, pela mão do outro, na praça da matriz (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 98), ponto central da cidade que aplaudia a violência da mesma maneira de Hindié, exultante com a agonia dos perus. Na verdade, todos os supliciados do livro - Emir, Kasen e Anuar, Selmo, Soraya e, por último, Emilie - parecem atados por um mesmo fio trágico: a criança muda, Soraya, conforme a entendemos, também poderá ser tomada como uma imagem especular de Emilie, ambas com as cabeças rachadas por um acidente fortuito que termina por levá-las à morte. O fio que ata a neta à avó, no entanto, parece tramar ligações mais complexas: antes de encontrar Emilie caída, no dia de sua morte, Hindié encontrará a última assinatura da matriarca sobre o casco da tartaruga Sálua, a quem ela chamava seu “espelho vivo”3 3 Parece-nos importante destacar, no que respeita às rachaduras nas cabeças das duas personagens, que, nos dias que antecedem a sua morte, Emilie dedica-se a tapar rachaduras no casco da tartaruga Sálua com cera de abelha (Hatoum, 2004, p. 152). (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 152); sobre o casco do animal encontram-se as gotas vermelhas do sangue de Emilie, no mesmo lugar em que, anos antes, sua neta, surda e muda, assinalara o seu nome, com giz também vermelho, para o espanto de todos (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 13), como a dizer a quem pertenceria o animal, como a informar quem ele representaria.

A comunhão na morte poderá nos conduzir a uma última expansão das fronteiras da alteridade, que ultrapasse o reino dos animais - nossa alteridade absoluta (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp., p. 28) -, atravesse o reino vegetal e nos leve mesmo ao mundo mineral. Cumpre destacar que, em uma de suas primeiras referências ao fauno, a narradora o chamará de “arbusto humano” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 126); dirá ainda que ele caminha como se a cada passo desenraizasse os pés do chão (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 127). A colônia de animais, portanto, também guardará a sua dimensão de planta. Queremos destacar também que a flor com a qual Emir conversa nos instantes que antecedem o seu desaparecimento - uma orquídea rara - coloca-se também no limite dos reinos por representar a família mais evoluída de todo o reino vegetal; além disso, o cadáver de Soraya, em uma repulsiva mistura com peixes, legumes e verduras, sugere uma vertiginosa (con)fusão de reinos. Essa última expansão, inclusive, também parece consonar com o pensamento de Derrida:

Para além da borda pretensamente humana, para além dela mas de forma alguma sobre uma única borda oposta, no lugar do “Animal” ou da “Vida-Animal”, há, de antemão, uma multiplicidade heterogênea de viventes, mais precisamente (Pois dizer “viventes” é já dizer muito ou quase nada) uma multiplicidade de organizações das relações entre o vivente e a morte, das relações de organização e de não-organização entre os reinos cada vez mais difíceis a dissociar nas figuras do orgânico e do inorgânico, da vida e/ou da morte. Ao mesmo tempo íntimas e abissais, essas relações não são jamais totalmente objetiváveis. Elas não permitem nenhuma exterioridade simples de um termo em relação ao outro (2002, p. 60-61).

A narrativa de Relato de um certo Oriente parece, por fim, em meio a tantos descentramentos e despistamentos, sugerir uma perspectiva panteísta em que reconhecemos o pensamento de Baruch de Espinosa, para quem “os atributos que existem na Natureza não são senão um único ser, e de nenhuma maneira seres diversos” (2014ESPINOSA, Baruch de (2014). Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. São Paulo: Autêntica., p. 58), como sugere a narradora principal no último capítulo do livro, ao intuir ligações múltiplas e universais:

O olhar parece dialogar com algo semelhante à noite, com objetos abandonados na escuridão, com os passos lentos que povoam uma casa, um mundo: os pátios, a fonte e seu entorno, a flora que une o céu à terra, os animais que desconhecem a clausura e animam-se ao ouvir a voz de Emilie (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 155).

Assim, o livro que propõe falar do drama da narradora em sua volta a Manaus termina por ceder à gravidade da estrela maior, Emilie, e, ao fim, põe em dúvida os limites da individuação e sugere uma estranha continuidade entre os entes. Conta, assim, a história de todos os homens; homens que “Se parecem como duas pérolas de um mesmo colar” (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 154), pérolas unidas pelo mesmo fio que as levará a uma morte que parece repetir-se no tempo:

Talvez por isso, o pesar doloroso que nos envolve, não sabemos discernir se é fruto da perda de alguém ocorrida ontem ou há muito tempo, de modo que outros corpos sem vida reaparecem com intensidade na nossa memória, ampliando o seu horizonte melancólico (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 157).

O livro conta, assim, a história da morte dos homens, e a indissociável história da morte dos animais, seus irmãos (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp.).

Em seu ensaio, O animal que logo sou, Jacques Derrida denuncia o parentesco oculto entre o animot/Quimera - monstro que se compõe de partes do corpo de outros animais, em quem reconhecemos traços do arbusto humano - e Belerofante, seu matador e seu irmão. O autor faz-se um moderno Adão para revisitar o Éden, nu, diante de seu gato: retoma o mito da criação e aventa a ideia de que “dar o nome seria então sacrificar o vivente a Deus” (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp., p. 79) - sugere então que o influxo vivo da linguagem, que insiste em renomear, é uma via de salvação da morte. Talvez também por isso - e principalmente por isso? - o pensador francês haja criado o termo paradoxal animot, mais um termo singular que enuncia, no entanto, em sua própria origem, a multiplicidade. Devolve então o gato, ao pensador francês, a sua imagem refletida no espelho da alteridade: influxos edênicos de um moderno apartamento de Paris. Nu diante do súbito desvelamento de sua outridade, Derrida se deixa ver - e rebatiza para salvar da morte, ou para adiar uma morte inevitável, como a princesa Sherazade, inspiradora dos heróis de Hatoum. O trabalho do escritor amazonense não nos parecerá diferente: conjura a palavra contra o desalento do silêncio - vale-se de sua poética contra as fronteiras que se levantam em um mundo esfacelado (Paz, 2012PAZ, Octávio (2012). O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify., p. 266); escreve para nos consolar da morte e para revelar a perspectiva de uma vida possível.

Referências

  • ALBUQUERQUE, Lindalva Alves de (2010). Um relato oscilante: a Amazônia de Milton Hatoum, em Relato de um certo Oriente. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Universidade de Brasília, Brasília.
  • BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2007). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. v. 2.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2017). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 . v. 1.
  • DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora da Unesp.
  • ESPINOSA, Baruch de (2014). Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. São Paulo: Autêntica.
  • HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras.
  • ISER, Wolfgang (1999). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Ketschmer. São Paulo: Ed. 34. v. 2.
  • LEIBNIZ, G. W. (2009). A monadologia e outros textos. Organização e tradução de Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. São Paulo: Hedra.
  • PAZ, Octávio (2012). O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify.
  • RIBEIRO, Claudio de Oliveira (2015). A contribuição das noções de entre-lugar e de fronteira para a análise da relação entre religião e democracia. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 15, n. 2, jul./dez. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/26193/18855 Acesso em: 6 mar. 2020.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/26193/18855
  • SAID, Edward W. (2005). Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras .
  • SAID, Edward W. (2007). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras .
  • 1
    É notório o conhecimento do autor, Milton Hatoum, da obra de Edwad Said, de quem traduziu Representações do intelectual (2005SAID, Edward W. (2005). Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras .) para a língua portuguesa. As edições de Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (Said, 2007SAID, Edward W. (2007). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras .), publicadas pela editora Companhia das Letras, contam ainda com uma menção elogiosa de Hatoum à relevância da obra.
  • 2
    Cumpre destacar que, embora reconheça o descolamento da passagem do arbusto humano, Albuquerque não subestima a poética de Hatoum, antes, mostra-se interessada nas justificativas da disposição do trecho, inclusive no que respeita as intenções do autor.
  • 3
    Parece-nos importante destacar, no que respeita às rachaduras nas cabeças das duas personagens, que, nos dias que antecedem a sua morte, Emilie dedica-se a tapar rachaduras no casco da tartaruga Sálua com cera de abelha (Hatoum, 2004HATOUM, Milton (2004). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras., p. 152).

Editor:

Paulo Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2022
  • Aceito
    26 Maio 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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