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A Cataguases de Luiz Ruffato: a experiência urbana no interior mineiro

Luiz Ruffato's Cataguases: the urban experience in the countryside of Minas Gerais

La Cataguases de Luiz Ruffato: la experiencia urbana en el interior de Minas Gerais

Resumo

Neste artigo, refletimos acerca do que entendemos por urbano na literatura de Luiz Ruffato. Desde a representação de São Paulo em Eles eram muitos cavalos, o autor tem sido considerado pela crítica literária um nome relevante para se pensar o espaço da cidade na produção contemporânea. Todavia, após o lançamento do romance, Ruffato passou a centralizar em suas obras o interior mineiro, em específico a cidade de Cataguases. Dessa maneira, a literatura do autor expande uma noção corriqueira de urbano, que limita a modernização no país às grandes metrópoles. Em nossa leitura, defendemos que certas características de uma literatura urbana, tais quais a desigualdade social, a marginalização de espaços de indivíduos pobres, as fronteiras rígidas que separam as diferentes classes sociais, estão presentes nas narrativas ruffatianas sobre Cataguases. Assim, concluímos que, ao se tratar da literatura de Luiz Ruffato, São Paulo e Cataguases compõem dois pontos de um mesmo fio temático que explora as agruras da implantação de um malfadado projeto de modernização no Brasil.

Palavras-chave:
Cataguases; urbano; Luiz Ruffato

Abstract

In this article, we reflect on what we understand by urban in Luiz Ruffato’s literature. Ever since the representation of São Paulo in Eles eram muitos cavalos, the author has been considered a relevant name by literary critics to think about cities in contemporary works. However, after the release of the novel, Ruffato began to focus on the countryside of Minas Gerais, specifically the city of Cataguases, in his writing. As such, the author's literature expands a common notion of urbanity that limits itself to considering modernization only in relation to large metropolitan areas. In our reading, we defend that certain characteristics of urban literature, such as social inequality, the marginalization of poor individuals’ spaces, the rigid borders that separate the different social classes, are present in the ruffatian narratives about Cataguases. Thus, we conclude that, when dealing with the literature of Luiz Ruffato, São Paulo and Cataguases compose two points of the same thematic thread that explores the hardships of implementing an ill-fated modernization project in Brazil.

Keywords:
Cataguases; urban; Luiz Ruffato

Resumen

En este artículo, reflexionamos sobre lo que entendemos por urbano en la literatura de Luiz Ruffato. Desde la representación de São Paulo en Eles eram muitos cavalos, el autor ha sido considerado un nombre relevante por la crítica literaria para pensar el espacio de la ciudad en la producción contemporánea. Sin embargo, después del lanzamiento de la novela, Ruffato comenzó a enfocar sus obras en el interior de Minas Gerais, específicamente en la ciudad de Cataguases. De esta manera, la literatura del autor amplía una noción común que limita la urbanización solo a las grandes metrópolis. En nuestra lectura, defendemos que ciertas características de una literatura urbana, como la desigualdad social, la marginación de los espacios de los pobres, las fronteras rígidas que separan las diferentes clases sociales, están presentes en los relatos ruffatianos sobre Cataguases. Así, concluimos que, al tratar la literatura de Luiz Ruffato, São Paulo y Cataguases componen dos puntos de un mismo hilo temático que explora las penurias de implementar un malogrado proyecto de modernización en Brasil.

Palabras-clave:
Cataguases; urbano; Luiz Ruffato

É sabido que as décadas de 1960 e 1970 foram um importante marco na literatura brasileira por representarem uma mudança de paradigma. A nação perdia posição como temática central de nossas letras e a escrita de grandes romances nacionais nos moldes de Iracema, Macunaíma e Grande Sertão: veredas não era mais uma preocupação. Nossa literatura voltava seu olhar para a cidade, em seu interesse de se apropriar do cenário urbano como reflexo de um Brasil onde a modernização avançava.

No século XXI, Luiz Ruffato talvez seja um dos ficcionistas mais significativos da vertente literária urbana no Brasil. Desde a publicação de Eles eram muitos cavalos (2001), a obra do autor mineiro tem atraído a atenção de pesquisadores que se debruçam sobre a temática da cidade. Discussões sobre a representação de São Paulo em Eles eram muitos cavalos, em específico, tem constituído uma considerável fortuna crítica. Entretanto, após o lançamento do romance sobre a vida na maior metrópole do país, Ruffato passou a centralizar outro espaço em sua produção: sua cidade natal de Cataguases, no interior de Minas Gerais. Assim, romances como Estive em Lisboa e lembrei de você (2009a), Inferno Provisório1 1 Importante pontuar que, antes de ser reeditado como um romance, Inferno Provisório foi primeiro concebido como uma pentalogia composta pelos livros Mamma, son tanto felice; O mundo inimigo; Vista parcial da noite; O livro das impossibilidades; e Domingos sem Deus. Contos de Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes) também foram revisitados. Neste artigo, utilizamos o romance único em nossa análise. (2016) e Verão Tardio (2019) são ambientados em Cataguases, enquanto outros, como De mim já nem se lembra (2007) e Flores artificiais (2014), mantêm algum laço narrativo com a região da Zona da Mata mineira, apesar de o espaço principal da trama ser outro. Diante desse fato, seria possível pensar que Ruffato deixou de se dedicar à questão do urbano em sua literatura após a publicação de Eles eram muitos cavalos, porém tal suposição seria um equívoco.

Neste artigo temos como objetivo ler Cataguases como um espaço urbano. Acreditamos que, na literatura ruffatiana, São Paulo e Cataguases compõem dois pontos de um mesmo fio temático, que explora as agruras da implantação de um malfadado projeto de modernização no Brasil. Nessa leitura, consideramos a Cataguases de Ruffato tão urbana quanto sua São Paulo. Para explorar esse assunto, iniciamos a discussão olhando para a relação entre cidade e literatura na produção literária brasileira, apontando para como as narrativas de autores como Lima Barreto e Rubem Fonseca destacam algumas características da experiência urbana no Brasil, tais quais os espaços segregados e a desigualdade social. A partir daí, lemos duas obras de Ruffato para pensar esses aspectos da urbe em sua produção sobre Cataguases: o conto “A solução”, presente no livro Inferno Provisório, e o romance Estive em Lisboa e lembrei de você.

A cidade na literatura brasileira

Reconhecer a centralidade da cidade na ficção brasileira contemporânea não significa negar sua presença na produção anterior à segunda metade do século XX. De fato, autores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Marques Rebelo, entre tantos outros, deixam claro que a presença da cidade no campo literário brasileiro é de longa data.

Ao tentarmos entender a vinculação entre a urbe e a literatura no Brasil, o Rio de Janeiro surge como ponto importante de discussão. A capital carioca tem um lugar ímpar na análise de nossa produção literária pelo viés da cidade. Antonio Candido (1989CANDIDO, Antonio (1989). A nova narrativa. In: CANDIDO, Antonio. Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática. p. 199-215.), por exemplo, destaca a importância do Rio nesse quesito ao indicar sua centralidade em uma vertente literária oitocentista anterior ao indianismo e ao regionalismo que encontrava na cidade uma forma de identificação nacional. Desde 1840, portanto, a capital fluminense estaria no cerne da exploração do espaço urbano em nossa literatura. Neste artigo, tomamos o Rio de Janeiro como fio condutor de nossa discussão sobre a relação entre cidade e literatura por acreditar que essa abordagem nos possibilita tocar nos pontos principais dessa vinculação e, assim, propicia a compreensão de como ela se dá na obra de Luiz Ruffato.

Em Todas as cidades, a cidade (2008), Renato Cordeiro Gomes aponta que o emblema “Cidade Maravilhosa”, criado pela francesa Jeanne Catulle Mendès em 1912, consolidou uma imagem do Rio de Janeiro concebida pelo projeto da Belle Époque em terras tupiniquins (Gomes, 2008GOMES, Renato Cordeiro (2008). Todas as cidades, a cidade: a literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco ., p. 112). Para o crítico, o epíteto aponta não só para a paisagem natural ligada aos mitos edênicos de textos produzidos desde a chegada dos portugueses a nosso território, mas também para a urbanização conduzida por uma elite brasileira que buscava, entre outras coisas, o reconhecimento da “civilização” europeia da época.

O projeto de modernização implantado seguiu, de acordo com Nicolau Sevcenko (1999SEVCENKO, Nicolau (1999). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense.), quatro princípios básicos:

a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense (Sevcenko, 1999SEVCENKO, Nicolau (1999). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense., p. 30).

Não vamos aqui explorar todas as facetas do “bota-abaixo” imposto naqueles anos, mas ele nos interessa devido ao “conflito essencial que aflora na sociedade e nas consciências nesse momento, e que os principais autores do período buscarão resolver, para o bem ou para o mal, nas suas obras” (Sevcenko, 1999SEVCENKO, Nicolau (1999). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense., p. 35). O conflito apontado por Sevcenko em Literatura como missão se refere às novas relações sociais refletidas pela emergente configuração da urbe carioca. Como o próprio pesquisador mostra, a “regeneração” da cidade tinha como foco seu centro, habitado por indivíduos vistos como insalubres e indesejados. Assim, os casarões arruinados ocupados pela população pobre foram demolidos, e uma paisagem urbana ao gosto francês, com avenidas amplas, praças e jardins, foi erguida em seu lugar. As barracas e quiosques varejistas, as carroças e carrinhos-de-mão, e os restaurantes populares também foram vítimas no processo de expulsão dessas pessoas da área central da cidade. O resultado foi a ida desses sujeitos para os morros e, consequentemente, o processo de favelização.

Para nós, Lima Barreto merece atenção particular dentre os autores da época por trazer para dentro de sua obra esse Rio de Janeiro partilhado. Seus textos, portanto, tocam na questão colocada por Regina Dalcastagnè e Luciene Azevedo (2015DALCASTAGNÈ, Regina; AZEVEDO, Luciene (2015). Apresentação. In: DALCASTAGNÈ, Regina; AZEVEDO, Luciene (org.). Espaços possíveis na literatura brasileira contemporânea. Porto Alegre: Zouk. p. 11-17.) de que, ao se pensar a cidade, “parte-se do princípio de que ela não é um espaço homogêneo, mas fragmentado e, sobretudo hierarquizado, marcado por interdições tácitas, que definem quais habitantes podem ocupar quais lugares” (Dalcastagnè; Azevedo, 2015DALCASTAGNÈ, Regina; AZEVEDO, Luciene (2015). Apresentação. In: DALCASTAGNÈ, Regina; AZEVEDO, Luciene (org.). Espaços possíveis na literatura brasileira contemporânea. Porto Alegre: Zouk. p. 11-17., p. 11-12). Eis o ponto de interseção entre a tradição da literatura urbana carioca e a escrita de Luiz Ruffato, relevante para se pensar a obra do mineiro: a representação de uma cidade e o tipo de indivíduo excluído de sua paisagem.

Ao analisar a literatura de Lima Barreto, Sevcenko discorre:

Durante todo esse mergulho vertiginoso na sombra da miséria, da insegurança, da abominação social, Lima Barreto deixou seus colegas de boêmia e academia pelos companheiros de bar e de desfortuna. Pôde encarar a ciência não como cientista, mas como paciente. Ver o centro da cidade embelezar-se durante suas idas e vindas para o subúrbio. Encarou o crescimento da concorrência da perspectiva do derrotado. Percebeu a vitória do arrivismo como quem perde uma situação duramente alcançada. Assistiu ao crescimento do preconceito social e racial como um discriminado. Sentiu a repressão e o isolamento dos insociáveis como vítima (Sevcenko, 1999SEVCENKO, Nicolau (1999). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense., p. 193).

Ao contrário de escritores - Olavo Bilac, por exemplo - defensores da modernização do Rio por encará-la como parte da elite aburguesada, Barreto via o processo da perspectiva do excluído. O forte caráter higienista da reforma colocava o autor do lado de fora do cartão postal visado pela classe alta. Dessa maneira, sua escrita será marcada por uma visão crítica da sociedade emergente, empenhando-se para mostrar como a nação não se limitava à imagem de um palacete burguês. Logo, seu olhar se volta para a população esquecida, colocando-a no cerne de sua literatura.

Ao representar o meio urbano, Barreto retrata o ostracismo sofrido pela população negra e pobre perante este novo projeto de nação. Sevcenko se refere, por exemplo, às dificuldades enfrentadas por Isaías Caminha para achar emprego devido à sua cor. Entretanto, para o crítico, é na justaposição entre os espaços burgueses e periféricos que a crítica do autor se torna mais pungente. Sevcenko opta por citar um trecho do livro Histórias e sonhos para exemplificar essa questão, porém para nós a descrição do subúrbio em Triste fim de Policarpo Quaresma (1997) também é representativa do pensamento de Barreto:

Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino. Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as nossas pequena e grande burguesias não podem adivinhar. Às vezes num cubículo desses se amontoa uma família, e há ocasiões em que os seus chefes vão a pé para a cidade por falta do níquel do trem (Barreto, 1997BARRETO, Lima (1997). Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Editora Globo., p. 79).

O Rio suburbano é um mundo diferente do Rio aburguesado. Enquanto este é composto por mansões e palacetes, aquele submete uma população esquecida à miséria. Os “caixotins” descritos por Barreto, nos quais pessoas vivem tumultuadas, umas em cima das outras, lembra um processo de favelização. A lista de profissões, por sua vez, indica a situação socioeconômica precária desses indivíduos. Assim, Barreto nos revela a existência de dois Rios de Janeiro. O oficial, arquitetado à imagem de Paris e vendido por uma elite aburguesada, e aquele mantido na escuridão e apagado da ideia de nação construída. Ao representar esse espaço excluído e escrever sobre os personagens que o ocupam, Barreto elabora uma obra a contrapelo, mostrando uma cidade fragmentada e hierarquizada.

É este ponto, as cidades dentro da cidade, que surge recorrentemente nas análises feitas em Todas as cidades, a cidade. Gomes vê essa questão não só na obra de Lima Barreto, mas também nas de João do Rio, Marques Rebelo e Rubem Fonseca. Para o crítico, os quatro autores, em menor ou maior grau, colocam em cena os historicamente excluídos da busca pelo progresso na capital carioca. João do Rio, por exemplo, mimetiza um cosmopolitismo de superfície com seu flâneur enquanto as suítes de Rebelo partilham o Rio em seus bairros e mostram aquilo deixado à margem pela modernização. Já o autor contemporâneo retoma a tradição da narrativa urbana carioca “para reciclá-la, como resistência ao esquecimento, ao descartável” (Gomes, 2008GOMES, Renato Cordeiro (2008). Todas as cidades, a cidade: a literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco ., p. 162).

A escrita de Rubem Fonseca recebe aqui atenção especial por fazer parte da mudança de paradigma nos anos 70 referenciada na introdução deste artigo. Em tempos em que os grandes temas nacionais não importam devido ao desgaste de um ideal de nação provado falso, há um “deslocamento”, nas palavras de Flávio Carneiro (2005CARNEIRO, Flávio (2005). Ficção brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco.), “dos grandes projetos para os projetos particulares, formulados numa perspectiva menos pretensiosa, em que o posto de missionário, porta-voz do novo, é preenchido pelo cidadão comum” (Carneiro, 2005CARNEIRO, Flávio (2005). Ficção brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco., p. 18-19). Nesse contexto, Rubem Fonseca surge com uma ficção que é inovadora não só devido à sua linguagem brutalista, mas também por apresentar algo diferente nos espaços contemplados. Segundo Karl Erik Schøllhammer (2009SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), a cidade, nos contos do autor, oferece-se “como realidade dividida, na qual a cisão simbólica, que antes se registrava entre ‘campo’ e ‘cidade’, agora se delineava entre ‘a cidade oficial’ e a ‘cidade marginal’” (Schøllhammer, 2009SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 28). A contraposição entre o meio rural e o urbano, presente, inclusive, na obra de Lima Barreto, não interessa a Fonseca. A urbe carioca, seja a burguesa ou a do submundo, está no cerne de suas narrativas.

Retornando à análise de Gomes (2008GOMES, Renato Cordeiro (2008). Todas as cidades, a cidade: a literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco .), o crítico identifica na ficção de Fonseca uma violência que vai além da cidade hierarquizada. De acordo com o pesquisador, o conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, por exemplo, não é construído com o mesmo grau de violência que “Feliz Ano Novo” ou “O cobrador”, mas isso não anula sua presença na história. Segundo Gomes, a contínua busca pela modernização no Rio resultou na perda da cidade compartilhada e, assim, a violência da narrativa está na corrosão do diálogo e na “discordância entre o ritmo da sensibilidade afetiva e o da metrópole” (Gomes, 2008GOMES, Renato Cordeiro (2008). Todas as cidades, a cidade: a literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco ., p. 165). Em outras palavras, o conto mostra não só o espaço físico segregado, mas também a perda da cartografia afetiva das pessoas - ambas situações oriundas de “um modelo econômico e social injusto e excludente” (Gomes, 2008GOMES, Renato Cordeiro (2008). Todas as cidades, a cidade: a literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco ., p. 165). Dessa forma, o protagonista do conto busca lutar contra a indiferença instaurada e pelo restabelecimento do diálogo com a cidade, mas seu esforço não rende frutos.

Em “A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca” (1996), Vera Lúcia Follain de Figueiredo também percebe tanto as divisões hierárquicas do espaço físico quanto a erosão do diálogo na obra de Fonseca. Sobre o primeiro ponto, a pesquisadora escreve:

O Rio de Janeiro, na ficção do autor, é apresentado com suas divisões de ordem sócio-econômicas - a zona Sul, predominantemente dos ricos, e a zona Norte, subúrbios em geral, onde vivem os pobres -, mas esta divisão tem as fronteiras relativizadas pela geografia do crime, que reagrupa os indivíduos segundo leis próprias, podendo aproximar os poderosos e os marginalizados pela sociedade. A aproximação se dá de várias maneiras. O marginalizado torna-se, muitas vezes, um assalariado do crime, servindo ao empresário que não quer sujar as mãos. Por outro lado, o mecanismo de exclusão existente, na cidade, gera um tipo de população que circula por todos os espaços, exatamente porque não tem, de fato, nenhum espaço. Os excluídos buscam a zona Sul para fazer suas cobranças, assaltando e matando. Vivem pelas ruas ou em núcleos de pobreza infiltrados nos bairros ricos - edifícios como aquele onde moravam os assaltantes do conto “Feliz ano novo” ou favelas. O crime ultrapassa qualquer fronteira ou limite, até porque Rubem Fonseca se nega a tematizar apenas a violência dos oprimidos. A geografia da violência se impõe a outros possíveis recortes da cidade, diluindo contornos, embaralhando as linhas do mapa (Figueiredo, 1996FIGUEIREDO, Vera Follain de (1996). A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca. Literatura e Sociedade, v. 1, n. 1, p. 88-93. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/684/692 . Acesso em: 2 dez. 2019.
http://www.revistas.usp.br/ls/article/vi...
, p. 89).

A citação do parágrafo em sua íntegra se justifica por ser um resumo conciso de como o espaço é concebido nos contos de Rubem Fonseca. Nas narrativas, a geografia física é reflexo da estrutura socioeconômica. Os diferentes núcleos se tocam de maneiras diversas: os homens de negócio da zona Sul contratam o marginalizado para fazer seu serviço sujo na penumbra; os excluídos cobram da burguesia o preço pela discriminação social através da brutalidade; e a violência atravessa todas as fronteiras, fazendo vítimas em todos os espaços, inclusive na linguagem. Através da análise do livro Lúcia McCartney, Figueiredo (1996FIGUEIREDO, Vera Follain de (1996). A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca. Literatura e Sociedade, v. 1, n. 1, p. 88-93. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/684/692 . Acesso em: 2 dez. 2019.
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) percebe que a violência em Fonseca está também na falta de comunicação, na palavra silenciada, na inexistência do diálogo. No conto que dá título ao livro, a prostituta, que recebe recados, cartas e mensagens amorosas de seu cliente burguês, é incapaz de respondê-los por não saber onde seu amado mora. “A solidão de Lúcia McCartney,” escreve Figueiredo, “se define pela impossibilidade de dar respostas, de criar um espaço recíproco onde sua palavra chegue verdadeiramente ao outro” (Figueiredo, 1996FIGUEIREDO, Vera Follain de (1996). A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca. Literatura e Sociedade, v. 1, n. 1, p. 88-93. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/684/692 . Acesso em: 2 dez. 2019.
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, p. 89).

As discussões sobre Lima Barreto e Rubem Fonseca nos possibilitam perceber algumas questões-chave sobre a literatura urbana no Brasil: a desigualdade social, a marginalização de espaços de indivíduos pobres, as fronteiras rígidas que separam as diferentes classes sociais, a cartografia afetiva corroída - todos pontos presentes na obra de Luiz Ruffato. Como dito, o autor é uma das principais referências de uma literatura brasileira urbana no atual século, principalmente devido às suas narrativas ambientadas em São Paulo. Defendemos, todavia, que o principal espaço urbano na ficção de Ruffato não é a capital paulista, mas o interior mineiro, em particular, a cidade de Cataguases.

Cataguases: cidade fracionada

Ao se pensar o lugar de Ruffato na literatura sobre o meio urbano, Eles eram muitos cavalos vem à mente de imediato. O livro, lançado em 2001, situou o autor no atual campo literário brasileiro e tem acumulado uma considerável fortuna crítica nas últimas duas décadas. Para nossa discussão, nos pautaremos no livro de ensaios dedicado à obra, organizado por Marguerite Itamar Harrison, Uma cidade em camadas (2007).

Eles eram muitos cavalos é composto por 70 fragmentos que podem ser lidos em qualquer ordem, mas não separadamente, uma vez que há um fio condutor atravessando as narrativas: as 24 horas do dia 9 de maio de 2000 em São Paulo. Em outras palavras, pode-se dizer que o espaço é traço unificador entre as diferentes narrativas, impedindo que elas sejam lidas separadamente como se pertencessem a um livro de contos. Contudo, como argumentado por Lúcia Sá (2007), isso não significa dizer que os diferentes fragmentos falem da mesma São Paulo:

os dramas que compõem os esquetes têm lugar em partes diferentes da cidade; tão diferentes, de fato, que a mera idéia de que possam fazer parte do “mesmo lugar” causa um inevitável estranhamento. Pois se alguns dos esquetes se passam em partes mais propriamente icônicas da cidade [...], a maioria ocorre em bairros anônimos, casas pobres ou condomínios luxuosos em ruas indefinidas. Os personagens envolvidos nunca cruzam o caminho uns dos outros, e jamais se relacionam. Cada um percebe a cidade à sua maneira, mas é ela que, de uma forma ou outra, determina o ritmo de suas vidas. A cidade é um conceito ao mesmo tempo onipresente e vago, impossível de definir, mas também de ignorar (Sá, 2007SÁ, Lúcia (2007). Dividir, multiplicar, repetir: a São Paulo de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte . p. 92-101., p. 96).

A cidade fracionada, versões distintas para os diferentes sujeitos que a ocupam, vem à tona na escrita de Ruffato assim como o faz em Lima Barreto e Rubem Fonseca. Não há uma imagem central para representar a urbe paulistana, mas inúmeras, de variados estratos sociais, que não se comunicam umas com as outras. Há várias São Paulos dentro da São Paulo de Ruffato. Além disso, Sá também afirma que a fragmentação é multiplicadora uma vez que os acontecimentos narrados “são apenas um pequeno número entre muitos outros possíveis, pois se passam em uma área urbana de aproximadamente vinte milhões de pessoas” (Sá, 2007SÁ, Lúcia (2007). Dividir, multiplicar, repetir: a São Paulo de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte . p. 92-101., p. 94-95). O corte temporal, por sua vez, também é multiplicador. Em sua leitura, a crítica aponta igualmente para como Ruffato cria a impressão de que as histórias do 9 de maio de 2000 poderiam acontecer em qualquer outra data. Os acontecimentos no livro, logo, não são únicos, mas pequenos recortes de um dia comum na quinta maior metrópole do mundo.

Já para Leila Lehnen (2007LEHNEN, Leila (2007). Os não-espaços da metrópole: espaço urbano e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte . p. 77-91.), a fragmentação da obra está ligada aos conflitos existentes em uma cidade onde indivíduos são adversários na disputa pelos não-espaços metropolitanos. De acordo com a crítica, “pelas suas narrativas fragmentárias/fragmentadas, o romance assinala a trama de discursos e práticas que cruzam o espaço urbano, produzindo, por sua vez, um território geográfico, social e epistemologicamente esfacelado” (Lehnen, 2007LEHNEN, Leila (2007). Os não-espaços da metrópole: espaço urbano e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte . p. 77-91., p. 88). A partir das teorias sobre não-espaço (Michel de Certeau) e não-lugar (Marc Augé), a autora defende que a metrópole não é mais unificada, prevalecendo um anonimato sociocultural e político promovedor de relações marcadas pelo silêncio e desconhecimento. O resultado dessa ordem é a escalada da violência e um espaço urbano marcado por variados tipos de conflitos. O último fragmento do livro, portanto, no qual um casal debate se devem ou não descobrir a origem dos gemidos que escutam na porta de casa, é representativo de uma cidade onde a violência corroeu a comunicação assim como a cartografia afetiva.

A São Paulo de Ruffato, assim sendo, é hierarquizada, demonstrando as diferentes camadas sociais que compõem a metrópole. A violência que rege esse espaço corrompe o diálogo entre cidadãos e danifica as relações afetivas. Desse modo, a existência da urbe não significa a vivência da polis - como colocado por Lehnen, Eles eram muitos cavalos “narra então a implosão da polis enquanto espaço de atuação do contrato social” (Lehnen, 2007LEHNEN, Leila (2007). Os não-espaços da metrópole: espaço urbano e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte . p. 77-91., p. 89). Contudo, por mais que Eles eram muitos cavalos seja um marco na representação da urbe na literatura mais recente, São Paulo não é a localidade chave dos livros de Ruffato. O espaço central na escrita ruffatiana é o interior de Minas Gerais, mais especificamente, sua cidade natal de Cataguases. Desde que declarou seu intuito de representar a classe média baixa urbana, Ruffato tem ambientado seus livros nas pequenas cidades da Zona da Mata mineira. Seria um equívoco, entretanto, encarar essa característica como indicativa de algum desvio temático na produção ruffatiana - a centralidade de Cataguases e região nos livros do mineiro nos mostra como escrever sobre o interior do Brasil no século XXI não significa abordar a experiência rural.

Andrea Saad Hossne (2007HOSSNE, Andrea Saad (2007). Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte. p. 18-42.) inicia sua análise de Eles eram muitos cavalos com um importante reparo sobre como a atual crítica literária aborda o tema da cidade na literatura brasileira: o perigo de associar o urbano somente às grandes metrópoles no sudeste brasileiro. “Urbano”, escreve a pesquisadora, “passa a ser tudo o que, de alguma maneira, enfoca o convívio metropolitano, seja de um ponto de vista irônico ou melancólico, seja na contrapartida da perspectiva periférica, não raro conjugada pelas modalidades da violência” (Hossne, 2007HOSSNE, Andrea Saad (2007). Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte. p. 18-42., p. 19). Falar da cidade para nossa crítica, portanto, limita-se muitas vezes a abordar o que está ligado com o espaço da metrópole. Dessa forma, obras situadas no Rio de Janeiro, São Paulo e outras áreas metropolitanas dominam o corpo de narrativas reunidas sob o rótulo “urbano”.

Partindo de dois livros de Luiz Ruffato, contudo, Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes), ambos com narrativas localizadas em cidades no interior de Minas Gerais, Hossne percebe como a literatura do autor decompõe essa visão, expandindo o conceito de urbano:

A literatura de Luiz Ruffato problematiza a questão na medida em que seu foco são menos as cidades - as grandes ou pequenas - e muito mais o fracasso de um projeto de modernização, de uma concepção de progresso que passa pelas agruras da urbanização, tomada em todas as suas variáveis semânticas (Hossne, 2007HOSSNE, Andrea Saad (2007). Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte. p. 18-42., p. 19).

Centrar suas histórias em Cataguases e outras pequenas cidades na Zona da Mata, assim sendo, não faz de Ruffato um ficcionista que escreve sobre a experiência rural. Esses espaços também foram afetados pela busca pelo progresso, seus habitantes vítimas de um malfadado projeto de modernização. Cataguases, em particular, é relevante para considerar esse ponto devido ao processo de industrialização pelo qual a cidade passou já na primeira metade do século XX.

Em um estudo sobre o lugar peculiar de Cataguases no Modernismo com a produção da revista literária Verde, Ruffato (2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto.) aborda brevemente a história de sua cidade natal. O autor discute como, perante a queda da monocultura cafeeira na Zona da Mata mineira no final do século XIX, a aristocracia cataguasense optou pela industrialização. Consequentemente, em 1910, a cidade já tinha se tornado um importante centro industrial, exportando produtos para outras regiões do país, com uma emergente configuração social: “A aristocracia agrário-exportadora,” escreve Ruffato, “pouco a pouco, se transformava em burguesia urbana, e, paralelamente, nascia o proletariado e a pequena-burguesia intelectual e liberal ocupava seu espaço na sociedade” (Ruffato, 2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto., p. 28-29). O poema “Revoltado”, de Ascânio Lopes, publicado na revista Verde, é usado pelo autor para exemplificar como a literatura produzida em Cataguases, no início do século passado, já revelava o efeito da industrialização na cidade. No poema (Lopes apudRuffato, 2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto., p. 31)2 2 Poema “O revoltado”: “A sirena apitou longamente / fazendo parar os teares e as máquinas. / Ele vestiu o paletó e saiu para o bairro pobre / onde mora, numa casa pobre. / As suas mãos estão calejadas. / O corpo dolorido anseia um descanso infinito / desconhecido. / Olha só para frente, sem se importar com quem passa. / Parou pensando uma coisa / e brilhou no seu olhar o ódio contido / faiscou rápido o desejo insatisfeito. / Pôs-se a andar / Os grandes olhos abertos, mas sem lágrimas” (Lopes apudRuffato, 2009b, p. 31). , o operário sai de seu trabalho cansado para ir “para o bairro pobre / onde mora, numa casa pobre”, dominado por um sentimento de revolta. As menções do apito da sirene, dos teares e das máquinas focalizam a modernização pela qual a cidade passava, mas sem deixar de denunciar a desigualdade causada pelo processo. A ira que borbulha na superfície dos versos, por sua vez, evidencia o ódio do operário perante sua exclusão social.

O tipo de literatura publicada na Verde mostra como o processo de modernização no interior mineiro é antigo. Por sobrevivência, essas pequenas cidades se industrializaram, muitas vezes usando o Rio de Janeiro como espelho. Em vista disso, ao se pensar o elo São Paulo-Cataguases, dominante na produção de Ruffato, podemos considerar os dois espaços como duas pontas do mesmo fio que registra as falhas na implantação da modernização no país. Hossne resume bem esse ponto:

Quem pretende tratar do urbano no Brasil há de, forçosamente, sob pena de um olhar iludido, entender urbanização como algo que não diz respeito apenas às metrópoles, mas também às consequências para a sociabilidade dos efeitos sofridos e gestados na transformação de zonas tradicionalmente rurais em cidades à margem na economia globalizada. A vida em torno da fábrica, o sonho do emprego e da ascensão social na cidade grande, o cortiço, nada disso faz do interior mineiro algo menos “urbano” que São Paulo ou Rio. Siderada pela projeção da imagem de progresso que emana de São Paulo e do Rio de Janeiro, a província, com seus remanescentes arcaicos, resquícios ruinosos de uma economia rural, alçada incompleta e precariamente à urbanização e à modernização, nutre o círculo de espoliação e exclusões, do qual, aliás, nem São Paulo e nem Rio tampouco escapam (Hossne, 2007HOSSNE, Andrea Saad (2007). Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte. p. 18-42., p. 21).

Seja nossa análise sobre São Paulo ou sobre Cataguases, na escrita de Ruffato, falar de uma ou de outra é sempre discutir os efeitos da urbanização forçada no território brasileiro. Dessa forma, as obras centradas no segundo espaço são tão urbanas quanto Eles eram muitos cavalos. Neste artigo, tomamos como objetivo analisar Cataguases como um lugar denunciador das consequências da “sociabilidade dos efeitos sofridos e gestados na transformação de zonas tradicionalmente rurais em cidades à margem na economia globalizada,” como posto por Hossne na citação acima. Para tal, abordaremos duas narrativas em específico como parte do maior projeto de representação de Cataguases, o conto “A solução”, presente no livro Inferno Provisório, e o romance Estive em Lisboa e lembrei de você.

Em Inferno Provisório, Ruffato visa representar o proletariado brasileiro na segunda metade do século XX. Nos contos, presenciamos indivíduos largando o meio rural pela fabril Cataguases e, mais tarde no percurso narrativo, Cataguases por São Paulo e outras metrópoles do sudeste. Desse modo, percebe-se que, por ser industrializada, a cidade natal de Ruffato emana promessas de ascensão socioeconômica para parte da população do campo. Assim, são com as imagens do poema de Lopes (apudRuffato, 2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto.) (a fábrica, a cidade fracionada, o trabalhador revoltado) que nos aproximamos de “A solução”. A narrativa conta a história de Hélia, uma jovem pobre de 17 anos da periferia de Cataguases que sonha poder frequentar os espaços elitizados da cidade. O conto se inicia na fábrica, com a protagonista esperando a colega que assumiria seu lugar no próximo turno:

Helia vigiava aflita a entrada da seção. Todos já haviam sido rendidos, E a Júlia que não chega! que ódio! que ódio! O avental de pano cru enrolado na mão direita, várias vezes levara a unha do fura-bolo à boca para roer, mas lembrava do esmalte [...] Onde foi parar aquela vaca? Vaca! Piranha! A zanga fumegava nos espasmos das suas pálpebras. Desgraçada! Ah, lá vem, cara lambida, como se o mundo fosse dela! (Ruffato, 2016RUFFATO, Luiz (2016). Inferno Provisório. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 74).

A revolta de Hélia pelo atraso da companheira se explica não só pela vontade de bater seu ponto e ir embora, mas também pela preocupação de perder o ônibus - o cataníquel - que a levaria para casa. Esse último acaba por acontecer e Hélia tem que fazer o caminho a pé:

O cataníquel passara e agora nem carona de bicicleta conseguiria mais. O negócio era ir andando até em casa, lençóis de nuvens brancas quarando ao sol das dez e vinte, fevereiro. O Clube do Remo deve de estar lotado. Ai, meu deus, quem me dera! Mas quem sou eu? Bem que podia me aparecer um moço louro bem forte, olhos azuis, montado numa vespa prateada, Oi, meu anjo, pra onde você está indo?, Ah, é meu caminho, Sobe aí , eu te levo, Segura bem pra não cair, heim! Que besteira! Vou ter que gastar a sola do tamanco novinho nesse paralelepípedo pegando fogo. Aí, meu Deus, como estou cheia disso tudo!, como estou cheia! (Ruffato, 2016RUFFATO, Luiz (2016). Inferno Provisório. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 74).

A abertura do conto de Ruffato, portanto, espelha o poema de Lopes (apudRuffato, 2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto.). Em ambos, temos trabalhadores revoltados com suas situações, caminhando em direção a suas casas pobres após um longo dia de trabalho na fábrica. O elemento novo em Ruffato é a referência à parte aburguesada da cidade, o Clube do Remo, e o desejo de Hélia de poder frequentá-lo. Para tal, todavia, a personagem precisaria daquele que ela chama ao longo da narrativa de seu príncipe encantado. Para Hélia, sua única chance de melhorar de vida é através da relação com algum homem de classe superior. Eis a solução a qual o título do conto se refere: a ascensão econômica através do casamento. Porém, em uma cidade fracionada, a possibilidade de isso acontecer não passaria de um sonho. A denúncia do elemento fantasioso do desejo da jovem vem na imagem estereotipada do príncipe encantado, usada ao longo da narrativa: louro, forte e de olhos azuis. O cavalo na comparação é substituído por uma vespa, que ganha igual valor fantasioso na justaposição feita com a bicicleta na citação, servindo como um indício da classe da personagem.

O espaço elitizado desejado por Hélia, o Clube do Remo, nunca aparece concretamente na narrativa, limitando-se a ser plasmado somente na imaginação da personagem. Os únicos locais que adentramos juntos ao narrador são aqueles frequentados pela protagonista: a fábrica e o Beco do Zé Pinto. Do primeiro, Hélia está farta e do segundo sente extrema vergonha, explicando como não permitia que seus namorados a deixassem em casa, pois “Se sonhasse que morava naquele correio de casas de parede-meia, tristes, perto do rio… E se caísse a cortina e descobrissem que a mãe era uma… lavadeira… e ainda por cima analfabeta… e que o pai não passava de um… biscateiro… Deus me livre e guarde!” (Ruffato, 2016RUFFATO, Luiz (2016). Inferno Provisório. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 76). Assim, Ruffato apresenta ao leitor as divisões que marcam Cataguases tanto física quanto socialmente, optando por explorar a cidade a partir da perspectiva do excluído. As relações afetivas de Hélia, uma adolescente pobre, com uma classe aburguesada, dependem do acobertamento do fato de ela morar na periferia. O fracionamento do espaço com base na classe social, assim, está refletido na cartografia afetiva.

Ao longo dos contos de Inferno Provisório, o Beco do Zé Pinto aparece como lugar central da precariedade de Cataguases. Hossne (2007HOSSNE, Andrea Saad (2007). Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte. p. 18-42.), por exemplo, examina o processo de favelização desse espaço em sua análise sobre a escrita de Ruffato, lendo-o como um exemplo do urbano na ficção do autor. Em “A solução”, essa precariedade também é aparente não só na forma como o Beco é descrito, mas também em como ele simboliza uma situação de pobreza inescapável para Hélia:

Colocou a sandália preta, o brinco de pressão de florzinhas vermelhas, passou batom [...] Tirou da caixinha preta o anel folheado com uma pérola solitária, presente de um dos namorados e o crucifixo de ouro que o pai encontrara no chão, perto da Prefeitura. Apagou a luz. Hélia está numa festa de debutantes no Clube Social. Caminha devagar, polinizando as mesas com sua graça e simpatia, atraindo olhares prenhes de inveja e de cobiça. Sussurros. Quem é essa moça? Nossa, como é linda! Flutua: dos pés à cabeça coberta de admiração. Um rapaz alto, louro, olhos azuis, levanta, puxa uma cadeira, convida-a para sentar. Obrigado. Meu deus, quem é você? De que reino você fugiu? Enlevada, ouve um berro, Vou te matar, desgraçada!, e gritos, e barulho de vasilhas desabando no chão, um tapa, outro tapa, a mulher corre para fora, as crianças choram, Larga a mãe, pai!, larga! É o Zé Bundinha! Acudam! Acudam, ele está me matando! Larga a mãe pai, larga ela! [...] Hélia corre para a janela, as pernas bambas, espia pela veneziana (Ruffato, 2016RUFFATO, Luiz (2016). Inferno Provisório. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 78-79).

O ápice da fantasia de Hélia no conto encontra-se no episódio acima. A personagem veste-se, apaga a luz e encena o encontro com seu príncipe encantado no Clube do Remo, a metáfora do conto de fadas continuando na pergunta sobre o reino de origem de Hélia. Entretanto, a fantasia é interrompida pela realidade do Beco do Zé Pinto. Uma briga de casal na qual vizinhos precisam se envolver para evitar um feminicídio implode, desmoronando a ilusão da personagem. Dessa maneira, Hélia é tirada de seus sonhos para encarar o futuro que a espera: ainda morando no Beco, mãe e, possivelmente, casada com um homem abusivo. A solução que ela via para escapar desse fim provada, de uma vez por todas, falsa.

O ocorrido desconcerta Hélia, resultando em uma doença. No final da narrativa, a protagonista se encontra na ponte que divide a cidade em uma cena na qual a fragmentação dos espaços sociais de Cataguases fica evidente. Na ponte, a personagem observa o mundo ao qual ela pertence, descrevendo a Cataguases marcada pela pobreza. Já atrás dela, do outro lado da ponte, está o almejado Clube do Remo e o universo da classe alta. Contudo, a protagonista não consegue encará-lo:

Na margem esquerda, o fundo dos quintais das casas da rua do Pomba. Na margem direita, mato, mato, mato. A Casa de Saúde. Ao fundo, a Pedreira, no alto pichado, Casas Pernambucanas. As águas barrentas. Se virasse para trás, não tinha coragem, veria moças e rapazes queimando nas piscinas do Clube do Remo. O sol quente torra sua cabeça, Não, nunca vai aparecer um príncipe encantado. Os olhos fixos nos redemunhos que se formam no meio do rio. O barulho líquido. Os redemunhos. A água barrenta. O sol. Não, nunca vou conseguir sair desse inferno. Os carros passam. Os cataníqueis. As bicicletas. Os redemunhos. A água. O sol (Ruffato, 2016RUFFATO, Luiz (2016). Inferno Provisório. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 79).

O tom de desalento no trecho indica a renúncia final de Hélia. A sua desejada ascensão socioeconômica é inconcebível em uma Cataguases tão fracionada. Como percebemos na citação, a cidade aburguesada existe ao lado da marginalizada, mas a segmentação social é profunda, a travessia da divisa de uma Cataguases para a outra - representada pela ponte - quase impossível. Como uma trabalhadora pobre, Hélia está autorizada a transitar somente por espaços como a fábrica e o Beco do Zé Pinto. O mundo da classe mais alta, simbolizado pelo Clube do Remo, plausível de existir somente como uma fantasia. Assim, é emblemático como o clube permanece fora de vista na cena acima: o universo cataguasense desejado por Hélia está tão distante que ele sequer aparece de maneira concreta para o leitor. Nosso único contato com esse mundo é através da imaginação da protagonista uma vez que, na narrativa, não há diálogo entre as duas Cataguases. A cartografia afetiva da cidade reflete, assim, as divisões sociais dos espaços. O conto termina com Maripá/Plínio, um pretendente que Hélia despreza por ser pobre e, de acordo com ela, um caipira, socorrendo a personagem e a levando de volta para o inescapável Beco. O destino da protagonista está posto.

Como dito, em Inferno Provisório Ruffato visa contar a história da classe trabalhadora brasileira interiorana ao longo da segunda metade do século XX. Nas narrativas iniciais, a Cataguases fabril emana promessas de ascensão econômica para as pessoas da zona rural. Dessa maneira, entende-se como o projeto de industrialização forçado no território brasileiro também perpassa a questão da migração. Gabriel Estides Delgado (2014DELGADO, Gabriel Estides (2014). A negociação social do espaço em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Qi6F6U . Acesso em: 1º dez. 2019.
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), em sua dissertação sobre o espaço em Inferno Provisório, mostra como uma série de personagens nas primeiras narrativas objetiva trocar o trabalho no campo pelas indústrias em Cataguases. Todavia, perante contínuos movimentos migratórios ao longo das décadas - do meio rural para Cataguases, de Cataguases para São Paulo - percebemos, segundo o crítico, a falência no projeto de modernização. “Em Cataguases ou em todas as outras pequenas cidades atingidas pelos ecos econômicos das capitais”, escreve Delgado, “é que começa a se desvelar o fracasso de uma modernização desigual empreendida no Brasil do século XX” (Delgado, 2014DELGADO, Gabriel Estides (2014). A negociação social do espaço em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Qi6F6U . Acesso em: 1º dez. 2019.
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, p. 36).

A partir do olhar para o fracasso da modernização em Cataguases, o romance Estive em Lisboa e lembrei de você ganha importância ao se pensar a migração de indivíduos em busca de melhores oportunidades de vida. Se Inferno Provisório trata da segunda metade do XX, Estive em Lisboa e lembrei de você aborda o período em sequência, ambientado em uma Cataguases nos primeiros anos do século atual. O protagonista do romance, Sérgio de Souza Sampaio - Serginho - é um operário desempregado que decide se mudar para Lisboa com o plano de acumular capital o suficiente para investir na compra de imóveis ao voltar para sua cidade natal. Todavia, esse plano não funciona, e o romance encerra com o personagem vivendo na clandestinidade em Lisboa, a possibilidade de retorno ao Brasil distante.

A ida de Serginho para Portugal se encaixa no contínuo migratório causado pela urbanização fracassada. Se, em Inferno Provisório, há o trânsito de pessoas pobres do meio rural para Cataguases, e desta para as grandes metrópoles, em Estive em Lisboa e lembrei de você, observamos o deslocamento de brasileiros para as grandes periferias globais. No atual século, a ida para as metrópoles no estrangeiro é encarada pela classe trabalhadora brasileira como possibilidade de ascensão socioeconômica. Hoje, não é só São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais que recebem indivíduos desamparados oriundos do interior do Brasil, mas também os bairros pobres de Nova York, Lisboa, Londres, entre tantas outras cidades globais.

Apesar de tratar da emigração de brasileiros para o exterior, a primeira metade de Estive em Lisboa e lembrei de você se passa em Cataguases e aborda os motivos que levam Serginho a sair do país. Ao olharmos para o espaço da cidade no romance, percebemos que o personagem principal pertence à periferia cataguasense, sua situação econômica precária. A descrição das mudanças ocorridas em Taquara Preta, o bairro de Serginho, ao longo do tempo, é significativa para entender o lugar do protagonista à margem:

fiquei ali acenando, receio de nunca mais retornar, uma saudade já daquela gente, criados tudo juntos, observando o adiantamento do bairro, cafundó pouco a pouco civilizado, o arruamento, a luz elétrica, as redes de água e esgoto, o asfalto, os botequins, as festas pra construção da igreja católica, o erguimento silencioso dos templos dos crentes, os shows no Clube do Cavalo, os comícios, as peladas no campo que tem um marco em ruína AOS VINTE E UM DIAS DE ABRIL DO ANO 1982 AQUI FORAM LANÇADAS AS BASES DO ESTÁDIO MUNICIPAL DE CATAGUASES, SENDO PREFEITO MUNICIPAL O EXCELENTÍSSIMO SENHOR etc. etc. e que sempre serviu de pasto pras criações do seu Nilto Leiteiro, as enchentes que ameaçam sorrateiras, as queimadas que sufocam as casas, a poeirama de agosto, a praga de pernilongos, escorpiões, carrapatos, a epidemia de gatos e viralatas, as desavenças, as uniões, os que nasceram, os que morreram, a bandidagem, os maconheiros, o pessoal da cocaína, a aids e, ultimamente, os mutirões contra a dengue (Ruffato, 2009aRUFFATO, Luiz (2009a). Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras., p. 36).

O longo trecho é narrado no momento de despedida de Serginho de Taquara Preta. A descrição feita apresenta ao leitor a história do bairro, estendendo do início até a sua atual situação. Assim, nos deparamos com o típico processo do surgimento de um bairro periférico. Primeiro, um “cafundó” onde não há água, luz, esgoto ou ruas asfaltadas, o advento desses direitos básicos acontecendo aos poucos. Com o passar do tempo, vemos os típicos “botecos” em contraste aos “pubs” da burguesia, o crescimento das religiões evangélicas entre a população, as enchentes, as doenças, os animais abandonados, e, por fim, a violência e o crime.

A representação de Taquara Preta no romance também deixa clara a posição da região na hierarquia social de Cataguases. Característica que vem à tona nos aspectos políticos ligados às relações amorosas na cidade. Ao sugerir que Serginho compre uma casa na avenida Humberto Mauro, onde os “picagrossas” e “bambambãs” moram, Ivan Cachorro Doido, amigo do protagonista, rotula o povo de Taquara Preta como “sem educação, sem modos nem compostura, desclassificado” (Ruffato, 2009aRUFFATO, Luiz (2009a). Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras., p. 33). A noção do preconceito ligado aos espaços da cidade intensifica quando o personagem questiona Serginho se ele já namorou alguma moça do Centro e este nega: “‘E por quê? O quê que aqueles filhinhos-de-papai têm que você não tem?’, concluindo por um problema de logística, ‘Você acha mesmo que elas vão sair com um sujeito de Taquara Preta, mesmo montado na grana?’” (Ruffato, 2009aRUFFATO, Luiz (2009a). Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras., p. 33).

A imaginada ascensão financeira de Serginho se torna irrelevante caso seu bairro não seja um espelho de sua posição econômica. Taquara Preta é periférico e, consequentemente, seus habitantes carregam o estigma de pobreza. Na perspectiva de Ivan, os moradores do Centro não aceitariam nem mesmo um habitante rico de Taquara Preta, pois fronteiras geográficas - a logística - definem como a população pode se relacionar. Aqui, podemos voltar à solução impossível encontrada por Hélia no conto de Inferno Provisório. Dentro das regras sociais da cidade, ela, como moradora do Beco do Zé Pinto, não pode se envolver com alguém de outra classe. Eis, então, a necessidade de esconder qualquer vínculo com o Beco. Algumas décadas separam a Cataguases de Serginho daquela de Hélia, mas as regras de convívio na cidade parecem continuar as mesmas.

Retornando ao diálogo de Ivan e Serginho, podemos também perceber como há uma hierarquia feita pelos dois a respeito das mulheres cataguasenses. Fica subentendido que as habitantes do Centro têm valor superior às que moram nos bairros de periferia. Para ambos, as primeiras parecem ser as parceiras ideais. A situação se torna mais intrincada quando Serginho, já em Portugal, vislumbra sua volta a Cataguases junto a uma europeia:

já-já achegou uma alemoa, mais comprida que eu, cabelo afogueado, olho azul-azul, corpo leitoso transbordando da roupa brilhante, pousou na cadeira, toda simpaticona, e estumei a conversa, declarei que era brasileiro, “Brazílian”, repeti, porque percebi que ela não manjava muito da nossa língua, empurrei um copo pro lado dela, mas ela preferiu uma beberagem colorida que custava os olhos da cara, e aquilo me enjerizou, desgramada!, mas, puxa vida, nunca em toda a minha vida tinha estado perto de uma mulher assim, tão, tão, sei lá, lembrava uma estrela de cinema, uma atriz de televisão, faria bonito na casa de qualquer rico do Brasil, e eu ali, encostado nela, já imaginando nós dois desembarcando, casados, em Cataguases, o povo em roda se empurrando pra avizinhar da gente, “Serginho, caralho, onde arrumou esse monumento?”, e eu, aborrecido por relatar mais uma vez a mesma história, “Paixonou comigo, largou tudo pra me acompanhar… Por mim, muita responsabilidade… Mas, fazer o quê?” (Ruffato, 2009aRUFFATO, Luiz (2009a). Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras., p. 59-60).

O corpo feminino é visto como uma ferramenta de status por Serginho e outros homens no romance. A mulher do Centro é mais cobiçada que aquela de Taquara Preta porque a primeira é símbolo de pertencimento a um mundo com maior prestígio. Dessa forma, a europeia da citação, mesmo sendo prostituta, supera ambas. Sua aparência estereotipada de anglo-saxônica - branca, loira de olhos azuis (mesmo fenótipo do príncipe encantado de Hélia, cabe apontar) - torna-a imediatamente um prêmio de valor mais alto para Serginho. Não há palavras para descrevê-la (“tão, tão, sei lá”), e as comparações a atrizes de Hollywood (“lembrava uma estrela de cinema”) e globais (“uma atriz de televisão”) demonstram que seu valor é maior de que qualquer um adquirido por uma nativa de Cataguases. Dessa forma, ela garante acesso a um mundo superior (“faria bonito na casa de qualquer rico do Brasil”), e Serginho, ingênuo, começa a se imaginar casado com a “alemoa”, seu status alçado entre os homens de Cataguases. A profissão da esposa fica esquecida e escondida, assim como o jogo de poder na primeira interação entre os dois, pois a cidadania europeia da amada já a remeteria ao universo socioeconomicamente cobiçado por brasileiros (do interior ou das capitais): o chamado primeiro mundo.

Muito se diz sobre a cidade ser o palco da literatura brasileira contemporânea, com o espaço de metrópoles como o Rio de Janeiro, São Paulo, entre outras, recebendo a atenção da crítica literária. Contudo, os efeitos do projeto de modernização implantado no Brasil não se limitam ao espaço metropolitano. É importante lembrarmos disso em um momento em que se fala de um movimento na produção literária mais recente em direção ao interior do país.3 3 Ver Gabriel (2022). Dessa maneira, evitamos abordar essa produção a partir de uma dicotomia limitante entre rural e urbano que muitas vezes só serve para reproduzir estereótipos sobre o Brasil fora das grandes metrópoles.

Neste artigo, defendemos que a Cataguases ruffatiana evidencia como a urbanização diz respeito também às pequenas cidades à margem das metrópoles, uma vez que elas similarmente sofreram os impactos da urbanização do país. Dessa forma, certos aspectos de uma literatura urbana explorados por Ruffato na representação de São Paulo em Eles eram muitos cavalos também estão presentes em suas narrativas sobre o interior mineiro. A desigualdade social, a marginalização de espaços de indivíduos pobres, as fronteiras rígidas que separam as diferentes classes sociais, todas essas questões aparecem de maneira contundente nas narrativas sobre Cataguases. O Beco do Zé Pinto e Taquara Preta pertencem à periferia da cidade, seus habitantes muitas vezes não transitam pelos espaços mais aburguesados. Essas fronteiras físicas também são reproduzidas no campo afetivo, havendo uma falta de diálogo entre as diferentes classes. O contato íntimo entre os dois mundos ocorre somente na imaginação dos personagens pobres. Assim, chegamos à conclusão de que, ao lermos as obras de Luiz Ruffato, é necessário expandir aquilo que historicamente entendemos como “urbano”, passando a lançar o olhar para essas pequenas cidades interioranas com o intuito de compreender que as sequelas da urbanização forçada no Brasil estão para além das capitais.

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  • SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • SEVCENKO, Nicolau (1999). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense.
  • 1
    Importante pontuar que, antes de ser reeditado como um romance, Inferno Provisório foi primeiro concebido como uma pentalogia composta pelos livros Mamma, son tanto felice; O mundo inimigo; Vista parcial da noite; O livro das impossibilidades; e Domingos sem Deus. Contos de Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes) também foram revisitados. Neste artigo, utilizamos o romance único em nossa análise.
  • 2
    Poema “O revoltado”: “A sirena apitou longamente / fazendo parar os teares e as máquinas. / Ele vestiu o paletó e saiu para o bairro pobre / onde mora, numa casa pobre. / As suas mãos estão calejadas. / O corpo dolorido anseia um descanso infinito / desconhecido. / Olha só para frente, sem se importar com quem passa. / Parou pensando uma coisa / e brilhou no seu olhar o ódio contido / faiscou rápido o desejo insatisfeito. / Pôs-se a andar / Os grandes olhos abertos, mas sem lágrimas” (Lopes apudRuffato, 2009bRUFFATO, Luiz (2009b). Os Ases de Cataguases: uma história dos primórdios do Modernismo. Cataguases: Instituto Francisca de Souza Peixoto., p. 31).
  • 3
    Ver Gabriel (2022GABRIEL, Ruan de Sousa (2022). De volta ao Brasil profundo: editoras apostam em obras de novos autores ambientadas no interior do país. O Globo, Rio de Janeiro, 26 mar. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/de-volta-ao-brasil-profundo-editoras-apostam-em-obras-de-novos-autores-ambientadas-no-interior-do-pais-1-25449040 . Acesso em: 12 maio 2022.
    https://oglobo.globo.com/cultura/livros/...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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