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Entre a eutopia e a outopia: testemunho, decolonialismo e uma antropologia do devir em Um rio sem fim, de Verenilde Pereira

Between eutopia and outopia: testimony, decoloniality, and an anthropology of becoming in Um rio sem fim, by Verenilde Pereira

Entre la eutopía y la outopía: testimonio, decolonialidad y una antropología del devenir en Um rio sem fim, de Verenilde Pereira

Resumo

Apresentado como parte de uma dissertação de mestrado da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, o romance Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira, para além de colocar em xeque as fronteiras que apartam o poético do discurso acadêmico-científico, logra construir um arcabouço decolonial sobre o qual se assenta uma posição de resistência às fantasias fundadoras da moderna ideia de utopia que, passados cinco séculos desde a chegada dos primeiros colonizadores, seguem vivas na região da Amazônia brasileira. No romance, o leitor depara com uma missão salesiana instalada no norte do estado do Amazonas, local que, comandado por um bispo italiano, vem a desnudar o que muitos talvez desconheçam ou prefiram ignorar: em algumas partes do Brasil ainda sobrevivem fantasias do Novo Mundo, sustentadas por ideais de modelos civilizatórios e racionalidades fundadas na perspectiva etnocêntrica. Sabendo que tais fantasias estão na raiz do sentido moderno de utopia e que a relação entre indivíduos e espaços é fundamental para a compreensão das subjetividades e relações sociais que se mostram na construção literária, parece-nos instigante e proveitoso observar e debater a maneira como o termo utopia se articula no interior de Um rio sem fim, com base nos desdobramentos originados nos deslizamentos propostos por Thomas Morus, entre eutopia, “o lugar onde tudo está bem”, e outopia, o “não lugar” (ou = não + topos = lugar). Para tanto, lançamos mão de reflexões amparadas em uma antropologia do devir, em articulação com os conceitos de testemunho e decolonialidade.

Palavras-chave:
Verenilde Pereira; Um rio sem fim ; Amazônia; antropologia do devir; decolonialismo

Abstract

Presented as a M.A dissertation at the University of Brasília (UnB), the novel Um rio sem fim (1998), by Verenilde Pereira, in addition to questioning the thresholds that separate the poetic from the academic-scientific discourse, manages to build a decolonial framework in which it establishes a position of resistance to the founding fantasies of the modern idea of utopia that, five centuries after the arrival of the first colonizers, still resist in the Brazilian Amazon region. In the novel, the reader comes across a Salesian mission settled in the north of Amazonas, a place that, commanded by an Italian bishop, reminds what many may be unaware of or prefer to ignore: in some parts of Brazil, fantasies of the New World still survive, supported by ideals of civilizing models and rationalities, both based on an ethnocentric perspective. Knowing that such fantasies are at the roots of the modern sense of utopia, and aware that the relationship between individuals and spaces is fundamental for the understanding of subjectivities and social relations shown in literary construction, it seems to be instigating and fruitful to observe the way in which the term utopia is articulated in Um rio sem fim from the displacement proposed by Thomas Morus, between eutopia, “the place where everything is ok”, and outopia, the “non-place” (Gk ou = not + topos = place). In order to do so, we draw on an anthropology of becoming in conjunction with the concepts of testimony and decoloniality.

Keywords:
Verenilde Pereira; Um rio sem fim ; Amazon; anthropology of becoming; decolonialism

Resumen

Presentada como disertación de maestría en la Universidad de Brasilia, la novela Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira, además de cuestionar las fronteras que separan el discurso poético del académico-científico, logra construir un marco decolonial sobre el cual se asienta una posición de resistencia a las fantasías fundantes de la idea moderna de utopía que, cinco siglos después de la llegada de los primeros colonizadores, siguen vivas en la región amazónica brasileña. En la novela, el lector verá una misión salesiana instalada en el norte del estado de Amazonas, un lugar que, comandado por un obispo italiano, pone al desnudo lo que muchos pueden desconocer o prefieren ignorar: en algunas partes de Brasil, aún sobreviven fantasías del Nuevo Mundo, sostenidas en ideales de modelos y racionalidades civilizatorias basadas en una perspectiva etnocéntrica. Sabiendo que tales fantasías están en la raíz del sentido moderno de la utopía, y conscientes de que la relación entre individuos y espacios es fundamental para la comprensión de las subjetividades y relaciones sociales en la construcción literaria, nos parece sugerente y fructífero observar y discutir la forma en que se articula el término utopía en Um rio sem fim a partir de las ramificaciones originadas en los deslizamientos propuestos por Thomas Morus entre la eutopía, “el lugar donde todo está bien”, y outopia, el “no lugar” (del griego ou = no + topos = lugar). Nos valemos de reflexiones que parten de una antropología del devenir, en articulación con los conceptos de testimonio y decolonialidad.

Palabras clave:
Verenilde Pereira; Um rio sem fim ; Amazonia; antropología del devenir; decolonialismo

INTRODUÇÃO

Em Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira, a personagem Dom Matias Lana aporta na fictícia região de São João das Cachoeiras, no norte do Amazonas, no início da década de 1950, “com toda volúpia física e espiritual canalizada para introduzir a civilização e modernidade através do catolicismo, após tentativas de várias missões anteriores que não conseguiram catequizar aqueles índios” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 7). Passados cinco séculos da chegada dos primeiros colonizadores europeus ao Brasil, a missão comandada pelo bispo italiano mantém o caráter proselitista de seus antecessores. Para além das ações que resultam no esfacelamento das tradições locais, os religiosos são também responsáveis pelo envio de crianças e adolescentes locais a Manaus (AM), para que lá se tornem “meninas civilizadas”, em um ressoar de Utopos, que, segundo o relato de Rafael Hitlodeu na Utopia de Thomas Morus (2011MORUS, Thomas (2011). A utopia. Tradução de Luís de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 69), “teve bastante gênio para humanizar uma população grosseira e selvagem”. Na capital amazonense, a tragédia completa-se quando as garotas são recebidas nas casas da alta burguesia local como filhas de criação, eufemismo usado para designar aquelas que são empregadas domésticas em condições análogas à escravidão.

Um olhar atento permite ao leitor perceber a maneira como Um rio sem fim constrói um arcabouço decolonial posto em diálogo com a ideia de utopia com base na outopia, o “não lugar” (ou = não + topos = lugar), e na eutopia, “o lugar onde tudo está bem” (Cuddon, 2013CUDDON, J. A. (2013). Dictionary of literaty terms & literary theory. Hoboken: Blackwell., p. 750), que viriam a dar origem ao termo fixado por Thomas Morus (2011)MORUS, Thomas (2011). A utopia. Tradução de Luís de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.. Tais articulações mostram-se, por exemplo, na chegada da personagem afro-indígena Maria Augusta Assunção, acompanhada das jovens indígenas Rosa Maria, Maria Rita e Maria Índia, a Manaus. Em contraposição à aldeia, a cidade é marcada pela decadência resultante “dos delírios dos coronéis da borracha empenhados em ajudar a construir uma Europa em plena selva” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 47).

Se o espaço é “resultado da ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações sociais que lhe deram origem” (Moraes, 2005MORAES, Antonio Carlos Robert (2005). Ideologias geográficas: espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Annablume., p. 15), a narradora ilumina as conexões entre as transformações da cidade cravada no coração da floresta e as intenções fundadas em interesses econômicos e de domínio. Ou seja, no romance, a cidade surge como local destituído de passado e sem perspectiva de futuro, “como eram também considerados sem futuro os ex-seringueiros miseráveis que espalhavam-se atônicos e fracassados, desnudando uma cultura cenográfica” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 47).

Assim, no deslocamento das personagens rumo a Manaus, Um rio sem fim dá a ver o movimento entre a eutopia como marca da aldeia às margens do Rio Negro, local onde as jovens seguiam conectadas às suas tradições e “ainda eram capazes de apontar os pajés, acompanhar cantos de cura, explicar que a humanidade nascera no bojo de uma cobra canoa onde viveram alojadas” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 52), e a outopia que caracteriza a cidade, que, “construída de costas para o Rio Negro” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 29), nega seu entorno e se constitui como não lugar.

Na elaboração de sua arquitetura decolonial, Um rio sem fim remete-se também diretamente ao fazer literário e às suas condições de possibilidades. Presa pelo assassinato, real ou simbólico, de Dom Matias Lana, no cárcere a personagem Maria Augusta Assunção recorre ao poder de criar realidades possíveis apenas pela fabulação, na esperança de que elas sejam capazes de vir a transformar não somente a brutalidade da cela, mas todo o povoado e até mesmo os responsáveis por sua prisão:

Não eram poucas pétalas nem todas as pétalas do mundo. Eram mais que todas as pétalas existentes na terra passando ávidas pela retina em claridades minúsculas que pousavam como estampidos no chão. Ela as pisoteava tanto que o cheiro perfumou as paredes, atravessou as grades da cela e invadiu o povoado, salpicando os quadros centenários com os olhos azuis pintados em esmero da sala de visitas de Dom Matias Lana; o cheiro invadira a casa do delegado que dormira preocupado com ela… invadira a consciência da juíza cheia de caprichos que ordenara sua prisão porque ouvira falar e não suportou os temas de suas histórias (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 14).

Essa utopia do “não lugar” da desumanidade (cela) e o “lugar onde tudo está bem” (fabulação), no entanto, não vem a equalizar a dinâmica posta em movimento pela narradora, haja vista que isso resultaria na aceitação de seus termos em perspectiva colonizadora e eurocêntrica. A inexequibilidade da conjunção surge então pela impossibilidade de narrar a personagem Maria Augusta Assunção:

Confesso que, ao tentar narrá-la, como agora, sua imagem se decompõe à minha frente; que é impossível reestruturá-la além da perfeição de suas intocáveis tranças. Ao tentar essa composição, o som do esfacelamento sobrepuja o da solidez e, a cada tentativa para isso, tudo se estraçalha novamente (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 49).

A confissão da narradora, jamais nomeada no romance, remete-se diretamente ao esfacelamento da também utópica crença na possibilidade de fixar no fenômeno literário o mundo e os seres, o que, se tentado fosse, resultaria em não mais que uma “produção do engodo” (Adorno, 2012, p. 57). Porém, uma vez que a impossibilidade de narrar não apenas pode ser observada por um um amplo campo de análises possíveis na teoria literária, mas coloca igualmente em xeque a própria teoria, dado que Um rio sem fim vem a pôr em jogo as fronteiras e os limites entre a voz ficcional e o discurso acadêmico, assim como a representação de grupos marginalizados e a literatura de testemunho, somos convocados a rumar por caminho contrário e diverso.

Financiado com recursos tirados do pequeno salário como professora e lançado em setembro de 1998 por uma pequena editora de Brasília1 1 Em junho de 2022, depois de artigo sobre Um rio sem fim publicado no jornal Folha de S. Paulo em 22 de maio de 2022, Verenilde Pereira assinou contrato com a editora Companhia das Letras para relançar o romance pelo selo Alfaguara. , Um rio sem fim foi escrito e apresentado como parte de dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília sob o título Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília.). No capítulo “Memória da criação”, apresentado como a “tentativa de explicar a apresentação de uma narrativa ficcional frente aos padrões acadêmicos” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 150), Verenilde Pereira (1995)PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília. põe em questão a possibilidade de abordar “um personagem desumanizado […] sem que os modelos teóricos culminem em forçadas e talvez reducionistas explicações ou mesmo em corretas redundâncias” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 151-152). O argumento é reforçado pela fala de Alexis, personagem de Marguerite Yourcenar em Alexis ou o Tratado do Vão Combate (1971). Em dado momento, na carta escrita pela personagem central à sua esposa, Mônica, ela pergunta: “Como um termo científico poderia explicar uma vida? Ele não explica nem mesmo um fato: designa-o” (Yourcenar, 1971 apud Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 152). Segundo Verenilde Pereira (1995)PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., uma vez que sua pesquisa se voltava a refletir sobre indivíduos pertencentes “a sociedades que não trabalham com categorias da ciência ocidental” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 156), sentiu-se obrigada a apresentar não dados formais de pesquisa, mas sim um trabalho de recriação poética: “Preocupava-me se termos do vocabulário ocidental, como razão, morte, desejo ou loucura — comumente restritos e direcionados — corresponderiam ou dariam conta de abranger emoções ou o ‘sentir’ do outro pertencente a uma cultura cosmogonicamente diferenciada” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 157).

A decisão final seria tomada quando, no natal de 1993, após coletar depoimentos de alguns antropólogos, indígenas e indigenistas para formular a proposta de pesquisa, Verenilde Pereira percorria a Rua Silva Ramos, em Manaus, e lembrou que ali uma criança indígena que catava papéis de balas, caixas de fósforos e embalagens de cigarros vazias tirou a vida ainda na adolescência. A memória levou-a a visitar duas casas onde a jovem vivera, uma delas então transformada em agência de turismo. Ao relatar sua busca a um funcionário da empresa, ouviu dele que aquilo, ou seja, ficar pensando em quem “escafedeu-se”, era algo “muito leza” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 159-160). Ali nasceu a dissertação da maneira como veio a se constituir.

Este trabalho deverá pensar como foi ser uma criança índia que colecionava embalagens vazias, suicidou-se por volta dos dezessete anos e surge numa lembrança isolada, nesta rua onde ninguém parece saber que isto ocorreu um dia. Pensava teorizar o trabalho como algo que levasse a uma “etnografia do sensível”, uma “etnografia do ser” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 160).

ANTROPOLOGIA DO DEVIR E CRIAÇÃO ETNOGRÁFICA

A procura de Verenilde Pereira por uma escritura que pudesse ultrapassar as fronteiras do discurso acadêmico, somada à sua busca pela elaboração de uma etnografia do ser e do sensível, nos faz encontrar eco às suas reflexões no pensamento de Biehl (2020)BIEHL, João (2020). Do incerto ao inacabado: Uma aproximação com a criação etnográfica. Mana, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1-33. https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n3a206
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, quando este pergunta: “Em que medida as abordagens teóricas estabelecidas iluminam — ou não — realidades político-econômicas e sociais emergentes?” (Biehl, 2020BIEHL, João (2020). Do incerto ao inacabado: Uma aproximação com a criação etnográfica. Mana, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1-33. https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n3a206
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, p. 3). Tal reflexão conduziu-nos ao alargamento do escopo teórico, adicionando à teoria literária uma antropologia do devir que se volta a pensar as criações etnográficas fundadas na indeterminação dos nossos interlocutores e na plasticidade de seus modos de vida (Biehl, 2020BIEHL, João (2020). Do incerto ao inacabado: Uma aproximação com a criação etnográfica. Mana, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1-33. https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n3a206
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, p. 3) e, segundo Biehl e Locke (2017BIEHL, João; LOCKE, Peter (2017). Unfinished: the anthropology of becoming. Durham: Duke University Press., p. xi, tradução minha), “exige mais do que o realismo plano que vem com as práticas padrão de contextualização e historicização, e não deve simplesmente mimetizar ou ecoar o determinismo sombrio que marca grande parte da teoria social”.

Dado que a antropologia do devir nos leva a “insistir no indispensável valor moral e analítico do micro, do singular e do parcial […]2 2 Outro feliz encontro entre a antropologia do devir e a escritura de Verenilde Pereira se vê na personagem Maria Augusta Assunção, que “se abastecia do mundo incomensurável contido nas coisas mais diminutas e triviais e que engolia o sabor consistente dos seres efêmeros” (Pereira, 1998, p. 25). , traçando as trajetórias das pessoas à medida que elas crescem para fora de si mesmas, se desdobram em exterioridades” (Biehl e Locke, 2017BIEHL, João; LOCKE, Peter (2017). Unfinished: the anthropology of becoming. Durham: Duke University Press., p. xi-xii, tradução minha), e mesmo sabendo que um texto literário não deve ser automaticamente dissolvido como reflexo de elementos da vida de seu autor, voltamo-nos para além de Um rio sem fim trazendo para a leitura também os aspectos biográficos de sua autora, acreditando, em estreito diálogo com o conceito de “escrevivência”, de Conceição Evaristo (2017)EVARISTO, Conceição (2017). Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas., que eles podem ampliar a dimensão de análise de sua escrita. Olhamos para a autora e para sua trajetória em suas múltiplas e mutantes facetas, seu inacabamento, sua plasticidade e contraconhecimentos ou, como diz ela própria, “contradiscurso” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 172).

Filha de mãe negra e pai indígena saterê-mauê, Verenilde Pereira nasceu em Manaus, no ano de 1956, e passou a infância em uma modesta casa espremida entre uma fábrica de sabão e a sede social de um decadente clube de futebol, na região central da capital amazonense. Nesse local, enquanto cuidava dos três irmãos, mais jovens, assistia aos choques interétnicos entre os pais, resultantes da pobreza e do desenraizamento cultural. Vítima do alcoolismo, o pai agia com violência contra a mãe, que, por sua vez, rebatia nas mesmas bases racistas, acusando o marido, pelas dificuldades com o português, de ser um índio que não sabia nem falar. Ainda criança, a habilidade nos manejos lexicais permitiu uma ruptura com o destino que a própria menina vislumbrava para si: escrito em uma redação, o substantivo amplexo substituiu abraço, para espanto dos professores do tradicional Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, e garantiu à menina acesso ao ensino até então reservado somente à elite manauara. “Para as freiras, naquele colégio de elite, foi uma descoberta. Uma menina suja, piolhenta, saber coordenar umas frases, e ainda mais escrever amplexo com ‘x’ e tudo” (Simon, 2022SIMON, Rodrigo (2022). Verenilde, pioneira da literatura afroindígena. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 maio 2022. Ilustríssima. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/quem-e-verenilde-pereira-pioneira-da-literatura-afroindigena-no-brasil.shtml. Acesso em: 3 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
, p. C7), relembra a autora, que só deixaria o colégio em 1974, aprovada no vestibular para o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Na UFAM, a prática da reportagem aliou-se à militância indigenista. Em 1981, Verenilde Pereira juntou-se à Operação Anchieta, grupo formado por missionários leigos dedicados ao trabalho de demarcação de terras e preservação da cultura indígena, logo depois de iniciar suas colaborações com o Porantim, primeira publicação brasileira exclusivamente voltada às notícias sobre questões indígenas e cujo título carrega imenso simbolismo. Na língua do povo de seu pai, saterê-mauê, Porantim significa remo, arma, memória, o que chamou a atenção do antropólogo Carlos Fausto (2022)FAUSTO, Carlos. Carlos Fausto: entrevista [22 maio 2022]. Entrevistador: Rodrigo Simon de Moraes. São Paulo, 2022. Entrevista inédita, concedida ao projeto de pesquisa, em nível de pós-doutorado na Universidade de Princeton, sobre a literatura de Verenilde Pereira.:

Esse instrumento é chamado porantim pelos Sateré, que dizem o ler. Verenilde é Sataré. E foi a escrita que lhe permitiu um acesso a outra educação e outra vida. Claramente, a ideia de que o porantim é lido faz parte da resistência ao processo colonial e o papel que a tecnologia da escrita teve. Nesse sentido, a Verenilde é a encarnação do porantim.

Seria impossível que, em suas várias dimensões, os longos anos de militância jornalística/indigenista não fossem incorporados à leitura de Um rio sem fim. Um registro fotográfico realizado no ano de 2017, na Universidade de Brasília, dá concretude às relações que se consolidaram nas articulações políticas e culturais ao longo da trajetória da escritora. Na imagem aparecem quatro amigos de juventude, unidos pela militância. Da direita para a esquerda, estão Ailton Krenak, que carinhosamente abraça a autora e lhe beija a testa, Davi Kopenawa e Álvaro Tukano, todos escritores e militantes indigenistas, tendo o último sido testemunha do mais dramático momento de décadas de militância.

Na metade do ano de 1986, a escritora estava na região de São Gabriel da Cachoeira, no norte do Amazonas. Contratada pelo jornalista Octávio Ribeiro, conhecido como Pena Branca — que aparece brevemente em Um rio sem fim (p. 30-31) —, fazia investigações para produzir reportagens sobre a invasão de terras indígenas por mineradoras clandestinas. Ao notar a ameaça que vinha de políticos e garimpeiros, pensou em fugir. A captura, no entanto, chegou mais rápido, decretada pela juíza Alzira Ewerton, que oito anos mais tarde se elegeria deputada federal e, sem conseguir a reeleição, se dedica, em 2022, a apoiar o presidente Jair Bolsonaro em suas redes sociais. Relembrados hoje, os quatro dias de cárcere e a fuga de São Gabriel da Cachoeira voltam à memória como uma experiência de “cem anos de horror” (PEREIRA, 2022PEREIRA, Verenilde (2022). Verenilde Pereira: entrevista [mar. 2022]. Depoimento. Entrevistador: Rodrigo Simon de Moraes. São Paulo, 2022. Entrevista inédita, concedida ao projeto de pesquisa, em nível de pós-doutorado na Universidade de Princeton, sobre a literatura de Verenilde Pereira.). Ferida pelos maus-tratos, ao deixar a prisão, Verenilde teve de sair da cidade às pressas, o que a levou a uma verdadeira saga através da floresta, até se ver totalmente livre das ameaças.

Álvaro Tukano recorda em detalhes o medo que viveu ao lado da amiga, a quem, apesar de discordâncias políticas atuais, ainda chama de irmãzinha. Foi ele o responsável por tirá-la da cidade logo após a liberação da cadeia. O problema foi que o antigo carro de Paulo Caroço, único motorista de táxi do local, não foi páreo para toda a lama da rodovia BR-307. Três horas depois de começarem a viagem rumo à aldeia do pai de Tukano, na terra indígena Balaio, já próxima do Parque Nacional do Pico da Neblina, o veículo falhou completamente, e a única solução foi voltar a pé, em meio à floresta, para São Gabriel da Cachoeira.

Eram 18h30 quando caiu o último parafuso do carro. Verenilde decidiu voltar. Ela era a mais franzina, mas a mais forte entre nós. Eu quase desmaiei de cansaço, mas ela não desistia. Chegamos depois de nove horas correndo pela selva. Amanhecendo o dia, ela pegou um voo para Manaus e depois outro para Brasília (Simon, 2022SIMON, Rodrigo (2022). Verenilde, pioneira da literatura afroindígena. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 maio 2022. Ilustríssima. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/quem-e-verenilde-pereira-pioneira-da-literatura-afroindigena-no-brasil.shtml. Acesso em: 3 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
, p. C7).

Verenilde Pereira conta ter chegado a Brasília (DF) pesando pouco mais de 40 quilos. Os dias na prisão a deixaram anêmica e fraca, e a longa jornada pela floresta fez com que suas pernas estivessem repletas de machucados. Na capital federal, o casamento com o antropólogo Stephen Grant Baines ajudou a aplacar as feridas físicas e psicológicas, mas não cessou o preconceito que a acompanharia na nova cidade: “Eu ouvia perguntas tais quais ‘como você tem coragem de transar com seu patrão?’, e comentários como ‘a faxineira que namora o professor’”3 3 Em conversa com a autora em 20 de março de 2022. .

Diante de tudo isso, e ainda que Um rio sem fim não seja o relato das vivências de sua autora, não podemos nos furtar de observar como a trajetória de Verenilde Pereira reverbera nas páginas do romance, afinal, como entende a própria escritora:

O autor sempre está de alguma maneira nos personagens, mais intensamente em alguns e menos em outros. Até porque cada personagem é formado por partículas de várias pessoas, vários seres que o autor junta e forma um sujeito fictício. Então, quem escreve, no mínimo toca em todos eles para essa formatação, não é? Portanto o autor está neles. Pelo menos comigo é assim4 4 Em conversa com a autora em 17 de junho de 2022. .

O TESTEMUNHO EM UM RIO SEM FIM

A marca da autora nas personagens se torna ainda mais significativa quando vista em conjunto com outros elementos presentes em Um rio sem fim, tais como os dilemas da narração, a vivência do trauma e a memória dos mortos e silenciados, posto que tais questões, reunidas, nos convocam a trazer para análise também a dimensão do conceito de testemunho como perspectiva que associa diretamente o debate a respeito da escrita à reflexão sobre exclusão social, articulando estética e ética como campos indissociáveis (Ginzburg, 2012GINZBURG, Jaime (2012). Crítica em tempos de violência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp., p. 52). O testemunho está vinculado à memória dos que não sobreviveram, sendo essa uma maneira de dar túmulo aos mortos e impedir que sejam esquecidos (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.) (2003). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora Unicamp., p. 55), além de vir também a transgredir a maneira como o modelo canônico propõe a compreensão da qualidade estética, ressaltando a dificuldade de narrar os acontecimentos ao se perceber ser a linguagem insuficiente para dar conta do ocorrido (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.) (2003). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora Unicamp., p. 382).

Assim, Verenilde Pereira estabelece um diálogo com o testemunho ao buscar, “além dos modelos teóricos, a linguagem adequada para valorizar os sussurros, o mutismo do sujeito despadronizado e sem habilidade para movimentar-se nos emaranhados […] do poder e cultura” (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 154). O mesmo acontece quando avança até a ruptura da fronteira que separa o discurso acadêmico do poético, impelida, pelas lembranças que insistem em assaltar sua memória, a pensar como foi ser uma criança indígena que se suicidou aos 17 anos (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 160). Se Rosa Maria “não age, não discursa”, está definitivamente morta, pois “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano” (Arendt, 1987 apud Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 151). Um rio sem fim estabelece-se, portanto, como uma maneira de não permitir que Rosa Maria se perca para sempre, constituindo uma tentativa de prolongar sua existência por meio da arte e da memória: “O que eu secretamente desejava era que Rosa Maria adentrasse uma universidade com seu pescoço caído para o lado, seu silêncio enlouquecido, seu cheiro de tantos desesperos, sua ‘indolência’ tão impura”5 5 Em conversa com a autora em 23 de janeiro de 2022. .

Encontramos, portanto, na jornada acadêmica, política e literária de Verenilde Pereira deslocamentos que circundam a utopia não como fantasia amparada nos preceitos coloniais e eurocêntricos, mas na busca por manter viva a jovem indígena. Rememorada em Um rio sem fim, Rosa Maria pode então transitar entre o outópico “não lugar” da desumanização e o eutópico “lugar onde tudo está (finalmente) bem”.

MULHERES E CORPOS DECOLONIAIS

Por fim, parece-nos importante apontar a aguda maneira como em Um rio sem fim Verenilde Pereira responde ao conceito de utopia de base colonialista e eurocêntrica por intermédio do papel da mulher e de seus corpos.

Em seu “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”, Aníbal Quijano (2020)QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264. chama a atenção para a maneira como a relação corpo e seu não corpo se transforma com a colonização do Novo Mundo e o consequente surgimento da perspectiva eurocêntrica. Como mostra o sociólogo peruano, a filosofia de René Descartes veio a sistematizar o processo de secularização burguesa do pensamento cristão, operando a radical separação entre razão/sujeito e corpo, sendo a primeira a única entidade capaz de alojar o conhecimento racional, enquanto ao corpo caberia ser o objeto do conhecimento. Uma vez estabelecida tal separação, as relações entre ambos devem ser vistas, então, como relações entre a razão-sujeito humano e o corpo-natureza humana, quer dizer, entre espírito/natureza. Esse novo e radical dualismo, aponta Quijano (2020)QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264., vem a afetar não somente as relações raciais de dominação, mas também as relações sexuais de dominação, fazendo com que, daí por diante, o lugar das mulheres, especialmente das mulheres das raças apontadas como inferiores, fosse estereotipado e tanto mais a raça fosse vista como inferior, mais próxima da natureza (Quijano, 2020QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264., p. 243), e, por conseguinte, distante da razão.

Em Um rio sem fim, a visão eurocêntrica dos indígenas como seres incapacitados para o conhecimento científico e livresco, exclusividade dos colonizadores europeus, é trazida a proscênio logo em seu primeiro parágrafo:

O bispo Dom Matias Lana tinha oficialmente 75 anos, seu rosto se mostrasse em indisfarçadas e impetuosas contrações. Muito poderia surgir do cansaço azulado dos seus olhos miúdos, inclusive uma certa pureza de quem não se maculava com a desordem irracional de homens sujos e pecaminosos. Homens ditos tão estúpidos e primitivos que foi necessário aos missionários católicos registrarem em livros e publicações o resultado de um teste aplicado entre aqueles milhares de índios que deveriam ser cristianizados sob a proteção austera de Dom Matias Lana. A constatação dos testes, aplicados por um cientista italiano, foi a de que a inteligência de um daqueles adultos correspondia a de uma criança europeia na faixa de oito anos. Ou menos ainda (Pereira, 1995PEREIRA, Verenilde S. (1995). Uma etno-experiência na comunicação: era uma vez… Rosa Maria. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília., p. 5).

Da mesma forma, as mulheres vêm à ribalta por meio de Maria Augusta Assunção, personagem a compartilhar da narração não apenas no plano da enunciadora em si, mas na maneira como a personagem dispõe de seu corpo, de modo especial quando este se conecta à natureza, como nas cenas de amor com o estrangeiro Michel (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 24-25), no desejo de “ficar olhando macacos e ficar tomando banho de chuva” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 32), ou na poética e sensual relação com o vento, que não perturba o pajé Lauriano Navarro, porém afronta Dom Matias.

Às vezes, sentava no meio da canoa sozinha, com o caixote de catecismo que eu fazia questão de tomar conta; eu abria as pernas, eu abria a boca e os dedos, deixava o vento entrar em mim. Era como se aquele ruído riscasse nos meus ossos o rosto de alguém, a voz, o nome, uma cor. Lauriano Navarro nunca se espantou que eu fosse assim porque ele também tinha o barulho das cachoeiras na garganta.

Naquele dia, Dom Matias ordenou que ele parasse a canoa no primeiro desvio onde havia um igarapé de águas mansas; os galhos das árvores dobravam de um lado e de outro e se entrecruzavam, formando um teto de folhas com avarentas brechas para o sol. O bispo conversou com as freiras e, após isso, segui a viagem ao lado de irmã Maria José; o vento rondava-me mas ela obrigava que eu puxasse o vestido. O vento aliciava-me e ela gritava que eu apertasse os braços e as pernas não cedendo quando me queixava de câimbras ou do mormaço, pois ela perguntava como era possível sentir calor com todo aquele vento (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 56).

Com Aníbal Quijano (2020)QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264., é possível perceber a maneira como, ao reforçar a posição colonial nas personagens, Verenilde Pereira habilmente faz de Um rio sem fim um arcabouço decolonial sobre o qual se assenta sua posição de resistência à visada eurocêntrica que sustenta fantasias, ainda nos dias de hoje, de um ideário utópico na Amazônia brasileira. Quijano (2020)QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264. relembra terem os europeus ocidentais se imaginado como culminância de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, assim como rememora a resistência intelectual latino-americana que sustenta ser a modernidade um fenômeno de todas as culturas, não apenas europeia ou ocidental. No entanto, se admitirmos que o conceito de modernidade se refere somente à racionalidade, à ciência, à tecnologia etc., não nos diferenciaríamos do que é proposto pelo eurocentrismo europeu e estaríamos limitados a uma disputa pela “originalidade e exclusividade da propriedade do fenômeno assim chamado modernidade, e, consequentemente, movendo-se no mesmo terreno e segundo a mesma perspectiva do eurocentrismo” (Quijano, 2020QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS, p. 219-264., p. 231).

Assim, ao jogar luz sobre o corpo que sofre, mas também goza, e ao conectar seus prazeres e saberes à natureza, Um rio sem fim recusa assumir os termos eurocêntricos e colonizadores e rejeita a utopia, que, passados cinco séculos desde que vimos “perpetrar-se o maior genocídio da história da humanidade” (Todorov, 2003TODOROV, Tzvetan (2003). A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes., p. 7), ainda grassa por aqui.

CONCLUSÃO

Elaborado como dissertação de mestrado da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, o romance Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira, para além de colocar em xeque as fronteiras que apartam o poético do discurso acadêmico-científico, logra também construir um arcabouço decolonial sobre o qual se assenta uma posição de resistência e resposta às fantasias fundadoras da moderna ideia de utopia que, passados cinco séculos desde a chegada dos primeiros colonizadores, resistem na região da Amazônia brasileira. Transitando pelas origens fundadoras do termo fixado por Morus (2011) e por uma etnografia do sensível e do ser em conformidade com uma antropologia do devir, que se volta a pensar as criações etnográficas que têm origem na indeterminação dos nossos interlocutores e na plasticidade de seus modos de vida, Verenilde acolhe em seu Um rio sem fim o testemunho dos subjugados e silenciados, em um movimento de resgate do não lugar da “morte social” (Biehl e Locke, 2017BIEHL, João; LOCKE, Peter (2017). Unfinished: the anthropology of becoming. Durham: Duke University Press., p. 1), de maneira especial das mulheres que, por intermédio de seus corpos, respondem às tentativas de dominação.

Em um tempo em que, como diz Baudelaire (2005BAUDELAIRE, Charles (2005). As flores do mal. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret., p. 142), “ao sonho a ação não é associada”, Verenilde Pereira fez de Um rio sem fim a culminância de uma trajetória de vida, luta e militância, sempre “amparada na escrita literária como alguém que se apoia em teias de aranha”6 6 Em conversa com a autora em 18 de maio de 2022. , mas sem perder de vista que, como diz um provérbio africano, “quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão” (Deus, 2021DEUS, Zélia Amador de (2021). Prefácio. In: MIRANDA, Danielle Santos de; COSTA, Marcilene Silva da (org.). Perspectivas afroindígenas da Amazônia. Curitiba: CRV, p. 9-12., p. 11).

  • 1
    Em junho de 2022, depois de artigo sobre Um rio sem fim publicado no jornal Folha de S. Paulo em 22 de maio de 2022, Verenilde Pereira assinou contrato com a editora Companhia das Letras para relançar o romance pelo selo Alfaguara.
  • 2
    Outro feliz encontro entre a antropologia do devir e a escritura de Verenilde Pereira se vê na personagem Maria Augusta Assunção, que “se abastecia do mundo incomensurável contido nas coisas mais diminutas e triviais e que engolia o sabor consistente dos seres efêmeros” (Pereira, 1998PEREIRA, Verenilde S. (1998). Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus., p. 25).
  • 3
    Em conversa com a autora em 20 de março de 2022.
  • 4
    Em conversa com a autora em 17 de junho de 2022.
  • 5
    Em conversa com a autora em 23 de janeiro de 2022.
  • 6
    Em conversa com a autora em 18 de maio de 2022.
  • ERRATA

    https://doi.org/10.1590/2316-40186707erratum
    No artigo “Entre a eutopia e a outopia”: testemunho, decolonialismo e uma antropologia do devir em Um rio sem fim, de Verenilde Pereira, com número de DOI 10.1590/2316-40186707, publicado no periódico Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 67, e6707, 2022, na página 1, seção:
    Onde se lia:
    LITERATURA E IMAGINAÇÃO UTÓPICA
    Leia-se:
    UTOPIA E IMAGINAÇÃO UTÓPICA

REFERÊNCIAS

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    » https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n3a206
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2022
  • Aceito
    27 Nov 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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