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Literatura e História na reeducação de imaginários e na produção de novos futuros

Literature and History in the re-education of imaginaries and in the production of new futures

Literatura e Historia en la reeducación de imaginarios y en la producción de nuevos futuros

Resumo

O presente texto busca ressaltar a potência da inter-relação entre literatura e História na produção de novos futuros. Para tanto, recorre ao afrofuturismo e à produção literária da luta anticolonial de forma a tensionar possibilidades de fabulação crítica da realidade e de ficção visionária.

Palavras-chave:
afrofuturismo; reeducação das relações étnico-raciais; História

Abstract

This text sought to highlight the power of the interrelationship between Literature and History in the production of new futures. To do so, it resorts to Afrofuturism and the literary production of the anti-colonial struggle in order to tension possibilities of critical fabulation of reality and visionary fiction.

Keywords:
afrofuturism; re-education of ethnic-racial relations; History

Resumen

Este texto busca resaltar la potencia de la interrelación entre Literatura e Historia en la producción de nuevos futuros. Para ello recurre al afrofuturismo y la producción literaria de la lucha anticolonial para tensionar posibilidades de fabulación crítica de la realidad y ficción visionaria.

Palabras clave:
afrofuturismo; reeducación de las relaciones étnico-raciales; Historia

INTRODUÇÃO

Literatura e história, pelo que se entende como premissa de cada uma dessas áreas do conhecimento, costumam ser consideradas formas de apreender o mundo que coexistem, mas de maneira apartada uma da outra. A ficção, por si mesma, canonicamente é entendida como ausência, ao menos parcial, de realidade. O fato histórico, por sua vez, traz em sua essência a ideia de verdade absoluta que, apesar de teoricamente defasada, ainda se impõe nas formas moderno/colonial de produzir ciência e conhecimento sobre as experiências do mundo e dos seres humanos.

Prender cada área de conhecimento em seu pequeno quadrado é, como nos lembra bell hooks (2017)HOOKS, bell (2017). Ensinando e transgredir: a educação como prática da liberdade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes., um modo de nos tornar sujeitos fragmentados com acesso a apenas uma parcela restrita e precária do que se pretende alcançar. No texto “Pedagogia engajada”, a autora afirma o seguinte:

Nesses vinte anos de experiência de ensino, percebi que os professores (qualquer que seja sua tendência política) dão graves sinais de perturbação quando os alunos querem ser vistos como seres humanos integrais com vidas e experiências complexas, e não como meros buscadores de pedacinhos compartimentalizados de conhecimento (hooks, 2017HOOKS, bell (2017). Ensinando e transgredir: a educação como prática da liberdade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes., p. 27).

Assim como os professores e alunos que a autora descreve, a academia, hegemonicamente masculina e branca, que produz e reproduz conhecimento numa lógica colonial, também dá graves sinais de perturbação quando atentamos contra a compartimentalização do conhecimento.

O pensamento e a produção de conhecimento realizada de forma cartesiana servem aos detentores do arquivo colonial, produzido cuidadosamente de maneira a estabelecer hierarquias de poder em que o que é moderno/colonial/branco/europeu ganha para si todo o status de humanidade, saber e poder. Esse arquivo colonial é ao mesmo tempo uma alegoria e uma realidade. Falo desse arquivo como História Oficial, produzida por uma série de práticas e procedimentos próprios da pesquisa historiográfica. História é com H maiúsculo, com base em uma lógica moderna e ocidental do que é conhecimento, mas falo também desse arquivo mobilizado por Saidiya Hartman (2020)HARTMAN, Saidiya. (2020). Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 3, p. 12-33. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
quando ela fala sobre Vênus — uma imagem que representa as silenciadas e violentadas mulheres negras do período da escravidão —, enquanto o arquivo físico, a fonte material, é carregada de falsidades, excessos, irrealidades e ficções:

Escândalo e excesso inundam o arquivo: os números brutos das contas de mortalidade, a sonegação estratégica e a desonestidade do registro do capitão, as cartas floridas e sentimentais despachadas de portos de escravos por mercadores com saudades de casa, as histórias encantatórias de violência chocante escritas por abolicionistas, os relatos fascinados de testemunhas oculares feitos por soldados mercenários ansiosos para divulgar “o que a decência os proíbe de revelar” e os rituais de tortura, os espancamentos, enforcamentos e amputações consagradas como lei. O investimento libidinal na violência é aparente em toda parte nos documentos, declarações e instituições que decidem nosso conhecimento do passado. O que foi dito e o que pode ser dito sobre Vênus tem como certo o tráfego entre fato, fantasia, desejo e violência (Hartman, 2020HARTMAN, Saidiya. (2020). Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 3, p. 12-33. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 20).

O ato criativo e potencialmente insurgente na inter-relação entre literatura e História está em misturar, apagar os limites, derrubar as fronteiras, ou ao menos navegar nelas, perfurando os compartimentos e potencializando a compreensão holística dos processos. Não basta fabular, no entanto, já que como veremos adiante a fabulação é um processo que já existe e que foi usado como ferramenta colonial. Faz-se preciso uma fabulação crítica, para que seja possível extrair dali possibilidades de existência que se buscou apagar.

Baseio-me na leitura e análise da produção de autores/revolucionários engajados na luta anticolonial e de entrevistas realizadas com sujeitos engajados na luta antirracista no Brasil, neste século. Por meio de uma bibliografia pós-colonial e afrofuturista, procuro explicitar a potência da articulação entre literatura e História, entre ficção e estratégia política, na disputa por imaginários sobretudo para a reeducação das relações étnico-raciais e para a produção de novos futuros.

A PRODUÇÃO DE IMAGINÁRIOS E SUA POTÊNCIA POLÍTICA

No que diz respeito ao próprio exercício de criar ficções em função da conformação de uma realidade político-social, essa não é uma novidade na história do mundo, nem ao menos na história das relações raciais. Narrativas ficcionais são usadas desde muito tempo no intuito de moldar imaginários com intenções políticas.

Aimé Césaire foi um dramaturgo, poeta, ensaísta e político, além de um dos grandes combatentes do colonialismo, especialmente o francês, do qual a Martinica, seu país natal, era colônia. Em seu texto Discurso sobre o colonialismo, publicado pela primeira vez em 1955, Césaire (2020) afirma o seguinte:

Não se pode dizer que o pequeno-burguês não tenha lido nada. Pelo contrário, ele leu tudo, devorou tudo. Acontece que seu cérebro funciona com alguns dispositivos digestivos do tipo elementar. Filtra. E o filtro deixa passar apenas o que pode alimentar a boa consciência burguesa. Os vietnamitas, antes da chegada dos franceses em seu país, eram pessoas de cultura antiga, requintada e refinada. Esse lembrete aborrece o Banco da Indochina. Façam a máquina de esquecimento funcionar!

Esses melgaxes, hoje torturados, eram, há menos de um século, poetas, artistas, administradores? Silêncio! Boca costurada! E o silêncio é profundo como um cofre forte!

Felizmente restam os negros. Ah, os negros! Vamos falar sobre os negros!

Bem, sim, vamos falar disso.

Impérios sudaneses? Bronzes do Benin? Escultura Shongo? Ótimo, será a oportunidade para escapar das tantas quinquilharias sensacionais que adornam capitais europeias. Música africana? Por que não?

E o que disse […] Frobenius? E vamos ler juntos:

“Civilizados até a medula dos ossos! A ideia do negro bárbaro é uma invenção europeia.”

O pequeno-burguês não quer ouvir mais nada. Com um movimento de orelhas ele afugenta a ideia.

A ideia, a mosca inoportuna.

Então, camarada, perceba — de maneira altiva, lúcida e consistente — como teus inimigos não [são] apenas os governadores sádicos e prefeitos torturadores, não apenas os colonos flageladores e banqueiros gananciosos, não apenas pomposos políticos lambendo cheques e magistrados a venda, mas, da mesma forma e da mesma maneira, jornalistas venenosos, etnógrafos metafísicos e dogonados, teólogos excêntricos e belgas, intelectuais tagarelas […] os amantes do exotismo, […] os mistificadores (Césaire, 2020, p. 38-39).

Observem que em seu texto mais famoso, acerca do colonialismo e da luta contra ele, Césaire (2020) evidencia que os inimigos a serem combatidos não são apenas personagens políticas evidentes, de uma política stricto sensu — governadores, prefeitos, colonos, banqueiros, políticos e magistrados —, mas também os construtores de imaginário — jornalistas, etnógrafos, teólogos e intelectuais —, os que fortaleceram o racismo científico e criaram narrativas perversas sobre raça. O filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), refletindo sobre o processo de colonização, indica que naquele contexto os europeus muitas vezes apresentavam como reais e exatos fatos inventados e estabeleciam com tais informações uma relação imaginária, produzindo realidades políticas nefastas que preenchiam de sentido equivocado signos como negro e África. Mbembe (2018)MBEMBE, Achille (2018). Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n1. denomina esse processo que cruza ficção e realidade para efeitos políticos de fabulação.

O processo de fabulação tem sido usado enquanto ferramenta de produção de imaginários que impacta a realidade e produz persistentes consequências políticas que se perpetuam no tempo. Nesse sentido, sujeitos que protagonizaram a luta anticolonial nos chamam a atenção para o fato de que precisamos estar atentos à luta que se trava no campo do imaginário. Isso porque a chamada luta política stricto sensu e a subestimada dimensão cultural capaz de produzir imaginários, na qual a literatura se insere, não são concorrentes; nenhuma delas é menor. Ambas caminham juntas, tão profundamente complementares, que incomoda a necessidade do uso de duas expressões distintas para comunicar a mesma ideia.

Analisar a produção literária de lideranças das revoluções africanas de forma articulada à sua luta política nos possibilita observar a importância da disputa de imaginários em um contexto não ficcional. Com a atenção à realidade como premissa, compreendendo que o povo não luta apenas pelo que está na cabeça dos homens, havia no movimento de lutas de libertação nacional a necessidade de mobilizar sujeitos para o universo de significados da luta anticolonial, prescindindo dos conceitos teórico-políticos tradicionais (Cabral, 1974CABRAL, Amílcar (1974). Guiné-Bissau, nação africana forjada na luta. Lisboa: Nova Aurora., p. 46). A própria produção intelectual deixada por esses sujeitos é testemunha dessa coletividade de narrativas implicadas na produção de um imaginário que mobiliza para a luta. Sua obra recorrentemente contém textos políticos, discursos, vestígios de suas estratégias diplomáticas, peças teatrais, poesias, entre outros. Na coletânea poética de Agostinho Neto1 1 Foi o primeiro presidente de Angola (1975–1979), após sua independência de Portugal. Nasceu em Bengo em meio a uma família metodista — seu pai era pastor, e sua mãe, professora. Envolveu- se com grupos anticolonialistas quando estudava medicina em Portugal. Em 1951, fundou, ainda em Lisboa, em parceria com Amílcar Cabral, Mario de Andrade, Marcelino dos Santos e Francisco José Tenreiro, o Centro de Estudos Africanos, orientado para a afirmação da nacionalidade africana. Poeta nacionalista, seus escritos foram proibidos e ele esteve preso de 1955 a 1957 e outra vez, já em Angola, de 1960 a 1962. Conseguiu fugir para o Marrocos e posteriormente fundou o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de tendência marxista. Conquistada a independência de Angola em 1975, o novo governo, dirigido pelo MPLA, contando com o apoio de Cuba, entrou em choque com grupos de direita, apoiados pelos Estados Unidos da América e pelo governo racista sul-africano (Agostinho Neto, 2009). , Sagrada esperança, Basil Davidson (1985)DAVIDSON, Basil (1985). Prefácio. In: NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A. p. 126. descreve esse sujeito em seu trânsito, enquanto poeta e “homem de ação”:

Este poeta não precisa ser apresentado como homem, pois o seu nome é respeitado em todo o mundo progressista. No entanto, o poeta é respeitado como homem de ação — eis como o mundo conhece Agostinho Neto, tanto o mundo progressista como o outro. Como porta-voz de um povo que luta pela liberdade, tornou-se figura simultaneamente amada e temida. É amado ou temido como chefe de uma luta pelo futuro, luta que tem de ser empreendida por todos os homens de todos os tempos e lugares, e também por todas as mulheres, repelido o passado e transformando o presente. O poeta é todas essas coisas, com uma pureza de objetivos e uma coragem que são inseparáveis do homem que foi e em que veio a transformar-se […] é na sua poesia, como acontece com a poesia de outros como ele, que encontramos as chaves para todo o resto (Davidson, 1985DAVIDSON, Basil (1985). Prefácio. In: NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A. p. 126., p. 4-5).

Sua poesia, descrita por Davidson (1985)DAVIDSON, Basil (1985). Prefácio. In: NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A. p. 126. como “chave para todo o resto”, contribui para a produção de imaginários na luta anticolonial, como podemos observar a seguir:

CRIAR

Criar Criar

criar no espírito criar no músculo criar no nervo

Criar no homem criar na massa

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

sobre a profanação da floresta

sobre a fortaleza impudica do chicote

criar sobre o perfume dos troncos serrados

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

gargalhadas sobre o escárnio da palmatória

coragem nas pontas das botas do roceiro

força no esfrangalhado das portas violentadas

firmeza no vermelho sangue da insegurança

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

estrelas sobre o camartelo guerreiro

paz sobre o choro das crianças

paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato

paz sobre o ódio

criar

criar paz com os olhos secos

Criar criar

criar liberdade nas estradas escravas

algemas de amor nos caminhos paganizados do amor

sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas

criar

criar amor com os olhos secos

(Neto, 1985NETO, Agostinho (1985). Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A., p. 100-101).

No poema, Agostinho Neto (1985)NETO, Agostinho (1985). Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A. evidencia a importância de criar mesmo diante do horror do processo colonial. Um horror por ele constatado na profanação da floresta, na violência representada pelo chicote e pela palmatória, além do choro infantil. O horror é ainda descrito mediante a repetição da ideia de “criar com os olhos secos”. Essa imagem indica que é chegado o momento em que não é mais possível apenas lamentar, já que as lágrimas secaram. Todavia, podemos perceber também sua ênfase na possibilidade de criar, palavra incessantemente repetida. Não à toa o texto se inicia com a ideia de criar no espírito, no músculo, no nervo, no homem e na massa. Antes de qualquer revolução, faz-se preciso afetar os sujeitos. O próprio poema é, antes de tudo, uma ferramenta para afetar esses sujeitos e possibilitar que o futuro, até então apenas imaginado, possa se realizar.

Já no texto a seguir, o poeta ressalta a importância de resistir diante da violência, principalmente valendo-se da construção imagética de uma onda que se levanta e continua a se levantar diante de quaisquer condições. Tal imagem ganha força quando percebemos que o autor/revolucionário escreve sobre se levantar e seguir a luta, de seu próprio cárcere na cadeia do Aljube, onde esteve preso em 1960.

LUTA

Violência

vozes de aço ao sol

incendeiam a paisagem já quente

E os sonhos

se desfazem

contra uma muralha de baionetas

Nova onda se levanta

e os anseios se desfazem

sobre corpos insepultos

E nova onda se levanta para a luta

e ainda outra e outra

até que da violência

apenas reste o nosso perdão

Cadeia do Aljube, Setembro de 1960

(Neto, 1985NETO, Agostinho (1985). Sagrada esperança. São Paulo: Ática S.A., p. 105).

Seja no estímulo à criação de futuros por meio da luta, seja no fortalecimento de uma “fonte inesgotável de coragem” ao escrever que “uma nova onda se levanta para a luta”, aqui podemos perceber que a produção de imaginários não apenas é política, como também mobilizada enquanto estratégia de luta contra o colonialismo por essas lideranças.

O movimento afrofuturista é vivo e está em franca expansão, como poderemos perceber adiante. Sua existência fornece-nos bases para que sejamos capazes de olhar para outras experiências e dali buscar tecnologias ancestrais que foram soterradas pelos arquivos coloniais. No caso deste trabalho, a tecnologia ancestral é o entendimento de que a cultura é um pilar da luta. Essa construção oferece-nos possibilidades de pensar sobre o presente e construir futuros antirracistas não apenas com base no arquivo colonial. Minha aposta é de que a literatura afrofuturista, entendida neste artigo como uma possibilidade de insurgência na realidade social, mas também como um caminho teórico-metodológico, tem o potencial de subverter o arquivo colonial no campo do ensino de história.

LITERATURA AFROFUTURISTA E A DISPUTA DE IMAGINÁRIOS NO SÉCULO 21

A destruição do racismo, estrutural na nossa sociedade, passa pelo seu expurgo em todas as dimensões. No século 21, assim como na luta contra o colonialismo — uma experiência transnacional, compartilhada, na qual o movimento negro brasileiro tem se inspirado de longa data —, todas as ferramentas devem ser utilizadas no sentido de descolonizar, por dentro e por fora. Uma dimensão necessariamente depende da outra.

Tatiana Nascimento dos SantosSANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade.2 2 Realizadora experimental em audiovisual, organizadora da Palavra Preta: Mostra Nacional de Negras Autoras e editora fundadora da Padê Editorial. (2018)SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade., doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, cantora, compositora, tradutora e poeta brasiliense, torna evidente sua perspectiva de que pensar política antirracista no século 21 unicamente com base em uma estrutura institucionalizada de luta política stricto sensu é, no mínimo, limitante:

A gente fez a primeira edição da mostra e foi grandiosa, maior do que a gente esperava, […] e acabou virando uma plataforma muito interessante desse ativismo no qual eu estou mais conectada hoje, que é a frente da cultura. Pensar de que formas a gente tem atuado nesse espaço de produção de imaginários, que é muito precioso e que é muito contaminado e dominado pelos discursos coloniais. […] Aí eu acho que eu saí da militância mais dura, mais formal, essa militância de coletivo lésbico, entidades negras, para esse espaço de produção de imaginários que para mim é muito interessante. Eu fico vendo, talvez vocês reparem isso também, quem tem mais de 35 anos consegue reparar isso com muita nitidez. Se antes você entrava no ônibus e 70% das pessoas eram mulheres negras, 90% [destas] tinha o cabelo chapado. Hoje você entra no ônibus e vai ter um monte de mina com o cabelão cabuloso. […] É outro lugar. A produção imagética, estética, artística, cultural está em um lugar de afirmação e de multiplicidade que alimenta um outro olhar (Santos, 2018SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade.).

No mesmo sentido da fala de Tatiana Nascimento dos Santos (2018)SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade., Ana Flávia Magalhães PintoPINTO, Ana Flávia Magalhães (2018). Ana Flávia Magalhães Pinto: entrevista [5 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília: Universidade de Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade.3 3 Articuladora da Rede de HistoriadorXs NegrXs e, na época da entrevista, 2018, organizadora do Festival Latinidades. (2018)PINTO, Ana Flávia Magalhães (2018). Ana Flávia Magalhães Pinto: entrevista [5 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília: Universidade de Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade., também brasiliense, professora da Universidade de Brasília, militante do movimento negro e que participava, à época, da organização do Festival Latinidades4 4 Criado em 2008, o Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, Latinidades, consolidou-se como o maior festival de mulheres negras da América Latina. Com 12 edições realizadas, o projeto tem sido um grande encontro da cultura negra produzida em África e diáspora e também uma plataforma de impulsionamento de trajetórias de mulheres negras nos mais diversos campos de atuação (Afrolatinas, 2021). , é questionada acerca das potencialidades do festival em afetar os sujeitos:

Entrevistador: A gente estava conversando sobre como popularizar as possibilidades de afetação dessas outras narrativas. O Latinidades vai muito nesse sentido, não é?

Ana Flávia Magalhães Pinto: Vai, não por minha responsabilidade. A responsabilidade disso está em Jaqueline Fernandes5 5 Fundadora do Instituto Afrolatinas e do Festival Latinidades, jornalista, pesquisadora, produtora e gestora cultural. Em 2015 e 2016 foi subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural, na Secretaria de Cultura do Distrito Federal, onde desenvolveu políticas, programas e projetos estratégicos voltados para a proteção e promoção da cidadania e da diversidade das expressões culturais tendo como foco grupos historicamente excluídos e em situação de vulnerabilidade. e Chaia [Dechen]6 6 Videomaker, fundadora da Griô Produções e idealizadora do Festival Latinidades. , ela é uma pessoa não convencional. Ela tem esse espírito afrofuturista e o mais louco é que ela fala: “Vamos!”, eu digo: “Deixa eu cuidar só dos livros”, e ela: “não! Bora”. Então eu digo: “Tá bom! Vamos”. A gente precisa disso. Eu não posso passar a minha vida com aquela experiência do EnegreSer7 7 Foi um coletivo de estudantes negros de diversos cursos da Universidade de Brasília que se engajou e teve importante participação na luta pelas cotas raciais na instituição. , que apesar de muito dinâmico era muito informado por estratégias já tradicionais de fazer movimento negro (Pinto, 2018PINTO, Ana Flávia Magalhães (2018). Ana Flávia Magalhães Pinto: entrevista [5 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília: Universidade de Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade.).

Pelo contato com o Festival Latinidades, o afrofuturismo emerge do campo como uma possibilidade de ocupação do espaço estético, enquanto reação produzida pela população negra às distintas dimensões de opressão sofridas por ela. Ana Flávia Magalhães Pinto (2018)PINTO, Ana Flávia Magalhães (2018). Ana Flávia Magalhães Pinto: entrevista [5 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília: Universidade de Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade. traz à baila a tensão, já antes apresentada por Tatiana Nascimento dos Santos (2018)SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade., entre as “formas tradicionais” e as “formas não convencionais” de fazer movimento negro. Diante da aparente oposição entre tradicional e não convencional, discutir o movimento afrofuturista parece-me um caminho frutífero para evidenciar a continuidade das tensões entre o que é político e o que não é e as potencialidades que residem na literatura produzida por afrobrasileiros, no sentido da produção de imaginários descolonizados.

A expressão afrofuturismo foi cunhada, pela primeira vez, na década de 1990 por Mark Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222., crítico cultural, ensaísta e autor branco e estadunidense num artigo chamado “Black to the future”, que compõe o livro Flame wars: the discourse of cyberculture. Nesse artigo, em entrevista com três artistas e intelectuais negros — Samuel R. Delany, autor de ficção científica; Tricia Rose, socióloga focada em discussões sobre hip-hop; e Greg Tate, músico, produtor e crítico cultural —, Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222. demonstrava sua preocupação acerca da presença de afro-americanos na literatura de ficção científica, gênero em destaque no período.

Muito embora o conceito tenha sido elaborado apenas na década de 1990, outros autores afrofuturistas, como Alondra Nelson (2002)NELSON, Alondra (2002). Introduction: future texts. Social Text, v. 20, n. 2, p. 1-15. https://doi.org/10.1215/01642472-20-2_71-1
https://doi.org/10.1215/01642472-20-2_71...
, por exemplo, chamam a atenção para o fato de que o movimento afrofuturista não se iniciou no artigo de Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222.. Tal artigo teria apenas dado nome a uma tradição já anteriormente existente, a exemplo da obra de Sun Ra8 8 Compositor de jazz, poeta e um dos pilares musicais do afrofuturismo, conhecido por sua filosofia cósmica e por suas composições musicais e performances. O filme Space Is The Place é bem representativo de sua filosofia cósmica. O filme de John Coney conta a história “oficial”, tal como escrita por Sun Ra, que assina o argumento. Realizado em 1974, começou a ser feito numa fase em que Sun Ra dava palestras em Berkeley sobre os negros e o cosmos. A convivência com estudantes universitários e intelectuais da contracultura criou as condições para fazer o filme, e nele Sun Ra, desaparecido desde 1969, mas a viver noutro planeta com a sua Arkestra, regressa a Chicago em 1943 e provoca um motim que dá origem a um jogo de cartas em que se decide o futuro da raça negra (Sanches, 2015). e do conto “The comet”, de W. E. B. Dubois (1920)DU BOIS, William E. B. (1920). Darkwater: Voices from within the Veil. Nova York: Harcourt, Brace and Company., que foram revisitados e redefinidos enquanto afrofuturistas.

A definição inicial de Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222. para o que é o afrofuturismo é a seguinte: “Ficção especulativa que trata temas sobre afro-americanos e aborda preocupações de afro-americanos no contexto da tecnocultura do século 20” (Dery, 1994DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222., p. 180 apud Souza, 2019SOUZA, Waldson G. (2019). Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira conteporânea. 102f. Tese (Doutorado em Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília., p. 32). Acontece que, como um conceito/movimento vivo e em franco desenvolvimento, o afrofuturismo tem sido debatido, reimaginado, reconstruído e redefinido ao longo do tempo. Outros autores, pensando com base em suas questões e realidades, elaboraram definições diversas. Para Ytasha L. Womack (2015WOMACK, Ytasha (2015). Cadete espacial. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. São Paulo: Caixa Cultural. p. 26-43., p. 30, grifos meus):

Tanto uma estética artística quanto uma estrutura para uma teoria crítica, o Afrofuturismo combina elementos da ficção científica, ficção histórica, ficção especulativa, fantasia, afrocentricidade e realismo mágico com crenças não ocidentais. Em alguns casos, uma reelaboração total do passado e uma especulação do futuro repleta de críticas culturais […], uma interseção entre a imaginação, a tecnologia, o futuro e a liberação.

Lisa Yaszek (2013)YASZEK, Lisa (2013). Race in science fiction: the case of afrofuturism. A virtual introduction to science fiction. Ed. Lars Schmeink. fala um pouco mais acerca da posicionalidade do afrofuturismo indicando que se trata de “ficção especulativa ou ficção científica escrita por autores afrodiaspóricos e africanos. É um movimento estético global que abrange arte, cinema, literatura, música e pesquisas acadêmicas” (Yaszek, 2013YASZEK, Lisa (2013). Race in science fiction: the case of afrofuturism. A virtual introduction to science fiction. Ed. Lars Schmeink., p. 1). Enquanto isso, Fábio Kabral (2019)KABRAL, Fábio (2019). Afrofuturismo: ensaio sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo. In: LIMA, Emanuel F.; SANTOS, Fernanda F. dos; NAKASHIMA, Henry Albert Y.; TEDESCHI, Losandro Antonio (org.). Ensaios sobre racismos, pensamento de fronteira. Cidade: editora. p. 104-115. afirma, conforme uma perspectiva do afrofuturismo literário brasileiro, da qual é um dos expoentes:

Afrofuturismo é esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da nossa própria ótica. […] Se me solicitassem uma definição mais concreta, poderia dizer que afrofuturismo seria a mescla entre mitologias e tradições africanas com narrativas de fantasia e ficção científica, com o necessário protagonismo de personagens e autores negras e negros (Kabral, 2019KABRAL, Fábio (2019). Afrofuturismo: ensaio sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo. In: LIMA, Emanuel F.; SANTOS, Fernanda F. dos; NAKASHIMA, Henry Albert Y.; TEDESCHI, Losandro Antonio (org.). Ensaios sobre racismos, pensamento de fronteira. Cidade: editora. p. 104-115., p. 106, grifo meu).

Com base nas diversas definições de afrofuturismo apresentadas até aqui, avisto alguns encontros. Inicio com aquele que se relaciona com a questão do tempo. Em seu livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008)FANON, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA. debate sobre as marcas produzidas na psiquê do sujeito negro fundamentado na psicogênese, mas também na sociogênese do racismo. Nesse contexto, o autor apresenta-nos, não de maneira fatalista, mas buscando visibilizar as entranhas do processo de colonização, a ideia de que, tanto psicológica como socialmente, numa sociedade colonizada e racista, “para o negro, há apenas um destino. E ele é branco” (Fanon, 2008FANON, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA., p. 28). Nesse futuro, especulado conforme a realidade política do momento, as projeções seriam ainda racistas e coloniais.

Samuel R. Delany, um dos três intelectuais entrevistados por Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222., apontou em sua entrevista, no ano de 1994, uma importante questão a respeito das temporalidades: como uma população que passou por um processo de destruição sistemática de seu passado, enquanto projeto nacional, consegue projetar perspectivas de futuro baseadas na ontologia de seu próprio ser (apud Dery, 1994DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222., p. 190-191)? É importante destacar que, ainda que Delany se referisse especificamente à população negra estadunidense, essa realidade é perfeitamente válida para outras populações negras em diáspora, que tiveram o embranquecimento cultural, por vezes até físico, como política de Estado, como é o caso do Brasil, por exemplo.

Ao refletir sobre as reelaborações do afrofuturismo ao longo do tempo, pensando nessa questão colocada por Delany e Dery (1994)DERY, Mark (1994). Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark (org.). Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham e Londres: Duke University Press. p. 179-222., Kênia Freitas, importante pesquisadora no campo do afrofuturismo no Brasil, e José Messias apresentam o seguinte:

Uma primeira reelaboração importante para o conceito está não em um texto, mas no documentário ensaístico Last angel of history (John Akomfrah, 1996). O filme segue um ladrão de dados que vem de um futuro indeterminado e inicia uma escavação arqueológica na cultura negra do século 20 em busca de respostas para a sua própria existência. Coletadas pelo ladrão de dados estão imagens de arquivo, diversas das tecnologias negras (africanas e diaspóricas) e entrevistas com teóricos e artistas negros construtores do movimento afrofuturista. O título inspirado em Walter Benjamin aponta para um anjo que olha fixamente o passado em ruínas, ao mesmo tempo em que o progresso o empurra ininterruptamente para frente. Essa apropriação benjaminiana feita por Akomfrah resume imageticamente uma das questões centrais que perpassam desde o texto inaugural de Mark Dery o debate afrofuturista: como a comunidade negra diaspórica que teve deliberadamente o nosso passado roubado e apagado pela escravidão consegue, sem esse acervo de imagens, vislumbrar futuros? (Freitas e Messias, 2018FREITAS, Kênia; MESSIAS, José (2018). O futuro será negro ou não será: afrofuturismo versus afropessimismo — as distopias do presente. Imagofagia, n. 17, p. 402-424, 2018., p. 406).

Kodwo Eshun (2015)ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., debruçando-se mais detidamente nessa questão, em seu texto “Mais considerações sobre o afrofuturismo”, de 2003, apresenta a importância vanguardista de autores como Fanon e Benjamin, no sentido de lidar com o acesso aos acervos históricos de modo a possibilitar novos futuros: “Na era colonial do começo à metade do século 20, vanguardistas, de Walter Benjamin a Frantz Fanon, se revoltaram em nome do futuro, contra uma estrutura de poder que se baseava no controle e na representação do arquivo histórico” (Eshun, 2015ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., p. 46).

Nesse texto, afrofuturista que é, Eshun (2015)ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97. desenvolve uma narrativa que condensa autores pós-coloniais como Homi Bhabha, Paul Gilroy e sua categoria de Atlântico negro com a construção de um futuro especulativamente imaginado, que intervém na narrativa no sentido de provocar reflexão. Eshun (2015)ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97. inicia sua explanação sugerindo um caminho pelo qual uma ficção científica, no presente, poderia tocar e influenciar o futuro:

A ficção científica pode ser melhor compreendida, nas palavras de Samuel R. Delany, como algo que oferece “uma distorção significativa do presente” (Last Angel of History, 1995). Para ser mais preciso, a ficção científica não está olhando para o futuro e nem é utópica. Antes disso, na expressão de William Gibson, a ficção científica é um meio pelo qual se pré-programa o presente (citado em Eshun, 1998). Olhando para trás, dentro do gênero, fica aparente que a ficção científica nunca esteve preocupada com o futuro, mas sim em articular trocas entre seu futuro preferido e seu devir presente (Eshun, 2015ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., p. 47-48).

Dessa maneira, se o futuro desenhado hoje é predatório, racista e colonizado/colonial, a intervenção na produção e na distribuição dessa dimensão temporal constitui, para o autor, um ato cronopolítico. A cronopolítica consiste, assim, numa percepção politizada do tempo, ou ainda numa ação política que busca intervir no tempo para criar outros futuros possíveis.

Criando complicações temporais e episódios anacrônicos que perturbam o tempo linear do progresso, esses futuros ajustam a lógica temporal que condena sujeitos negros à pré-história. Falando cronopoliticamente, essas historicidades revisionistas podem ser entendidas como uma série de poderosos futuros competindo entre si, que infiltram o presente em taxas diferentes (Eshun, 2015ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., p. 55).

É importante perceber que todo o tempo trato aqui não de uma construção direta da realidade, mas da produção de imaginários que têm o potencial de promover desestabilizações políticas nessa realidade. Se o monopólio colonial desse arquivo histórico provoca, no presente, realidades ainda coloniais e ainda racistas, concordo com o autor que, por intermédio do resgate de experiências que foram silenciadas:

O Afrofuturismo pode ser caracterizado como um programa para a recuperação das histórias de contra-futuros criadas em um século hostil à projeção afrodiaspórica e também como um espaço no qual o trabalho crítico de produzir ferramentas capazes de intervir no atual regime político pode ser levado a cabo. A produção, migração e mutação de conceitos nos campos do teórico e do ficcional, do digital e do sônico, do visual e do arquitetural exemplificam o campo expandido do Afrofuturismo, considerado como um projeto multimídia distribuído através dos nós, centros, anéis e estrelas do Atlântico Negro (Eshun, 2015ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., p. 59-60).

Assim como o ladrão de dados que voltara ao passado em busca de respostas na alegoria criada por John Akomfrah, a população negra tem inventado criativamente suas próprias “máquinas do tempo”, formas de “retorno ao passado”, por onde consigam elaborar um futuro. Não podemos assim imaginar o afrofuturismo enquanto um fenômeno no Brasil fora da cena literária afro-brasileira, apresentada por Conceição Evaristo (2021)EVARISTO, Conceição (2021). Narrativas de (re)existência. In: PEREIRA, Amilcar (org.). Narrativas de (re)existência: antirracismo, história e educação. Campinas: Editora da Unicamp. p. 23-48. na conferência de abertura do XIII Encontro Regional Sudeste de História Oral: Narrativas de (Re)Existências:

A busca do passado histórico pelos povos subjugados, ontem e hoje, tem sido um movimento marcante e de cunho emancipador. Como tal passado não se escreveu na história elaborada pelos dominadores, sofrendo um processo de apagamento — ou quando escrito, foi violentamente deturpado — o fenômeno literário surgido a partir desses sujeitos históricos vem de uma veia subterrânea na qual estão inscritos. História que aflora desafiando, questionando e transgredindo os relatos instituídos, oficializados por uma cultura hegemônica. Observa-se, pois, uma história e uma ficção que se volta para o interior de uma realidade própria circundando mundos específicos, trazendo um discurso próprio que revela a voz dos que, até então foram silenciados. Nesse sentido, pode se afirmar que a apropriação que os afro-brasileiros fazem do passado conflita com o registro da História oficial e tem servido como orientação para uma práxis política vivida através de várias modalidades da arte. Reunindo elementos culturais de matrizes africanas como forma de resistência e com isso buscando novas formas de intervenção no social, os afro-brasileiros promovem arte e política a partir da condição de subalternidade experimentada por eles (Evaristo, 2021EVARISTO, Conceição (2021). Narrativas de (re)existência. In: PEREIRA, Amilcar (org.). Narrativas de (re)existência: antirracismo, história e educação. Campinas: Editora da Unicamp. p. 23-48., p. 25, grifo meu).

Ao contar sobre o impacto da obra literária de Conceição Evaristo em sua própria poesia, Tatiana Nascimento dos Santos (2018)SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade. ressalta a possibilidade de aprender ali sobre a diáspora e reforça a própria afirmação de Conceição Evaristo, quando demonstra que esse aprendizado por meio da obra desta a influencia não apenas a falar, mas a construir “imageticamente, literariamente, ficcionalmente”, num exercício de práxis política, um mundo que, embora ainda não exista, já começa a ser desenhado:

A literatura pra mim é muito fundamental. Para mim, ler Conceição Evaristo é aprender sobre a diáspora, pensar a confusão existencial de um monte de gente junta em Becos da Memória. A pessoa está fazendo comida para alguém que ela não sabe se vai voltar, porque [essa pessoa] foi decidir se a terra vai ter um metro a mais ou a menos. Isso é uma disputa cabulosa. Até hoje as pessoas morrem muito no campo [por isso], e as pessoas pretas morrem mais. E é como a gente está falando, não é só reclamar do mundo que a gente está vivendo, que está ruim. Como a gente está construindo imageticamente, literariamente, ficcionalmente o mundo em que a gente quer viver? (Santos, 2018SANTOS, Tatiana Nascimento dos (2018). Tatiana Nascimento dos Santos: entrevista [7 jul. 2018]. Entrevistadores: Thayara de Lima, Amilcar Pereira e Jorge Maia. Brasília. Projeto Movimento Negro na Atualidade.).

PRODUZINDO NOVOS FUTUROS

O afrofuturismo, movimento reconhecidamente estético com uma veia particularmente forte na literatura, é, portanto, uma potente ferramenta na luta antirracista. Para Waldson Gomes de Souza (2019)SOUZA, Waldson G. (2019). Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira conteporânea. 102f. Tese (Doutorado em Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília., se Mbembe afirma que o discurso eurocêntrico sobre raça é uma ficção a serviço da branquitude — acrescente-se aí uma ficção que produz realidades —, o autor entende o afrofuturismo como uma forma de utilizar a própria ficção para se opor a esse discurso dominante.

Nesse sentido, podemos retomar aqui a ideia de uma fabulação crítica como ferramenta de contranarrativa, na conformação de imaginários que se deslocam da influência direta do arquivo colonial. Essa é uma categoria cunhada por Saidiya Hartman (2020)HARTMAN, Saidiya. (2020). Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 3, p. 12-33. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, que fala sobre suas potencialidades:

É possível exceder ou negociar os limites constitutivos do arquivo? Ao propor uma série de argumentos especulativos e ao explorar as capacidades do subjuntivo (um modo gramatical que expressa dúvidas, desejos e possibilidades), ao moldar uma narrativa, que se baseia na pesquisa de arquivo, e com isso quero dizer uma leitura crítica do arquivo que mimetiza as dimensões figurativas da História, eu pretendia tanto contar uma história impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada. A temporalidade condicional do “que poderia ter sido”, segundo Lisa Lowe, “simboliza adequadamente o espaço de um tipo diferente de pensamento, um espaço de atenção produtiva à cena da perda, um pensamento com atenção dupla, que procura abranger os objetos e métodos positivos da História e da ciência social e, simultaneamente, as questões ausentes, emaranhadas e indisponíveis pelos seus métodos” (Hartman, 2020HARTMAN, Saidiya. (2020). Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 3, p. 12-33. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 28).

É aqui que reside a matéria do contato entre a literatura e a História: a possibilidade de fabular criticamente e de reeducar imaginários que contribuirão para a produção de novos futuros.

Em 2015, Walidah Imarisha lançou, em parceria com Adrienne Maree Brown9 9 Vive em Detroit, Estados Unidos da América. Ela é redatora residente no Emergent Strategy Ideation Institute e autora de Holding change: the way of emergent strategy facilitation and mediation, We will not cancel us and other dreams of transformative justice, Pleasure activism: the politics of feeling good, Emergent strategy: shaping change e Changing worlds e coeditora de How to get stupid white men out of office. Ela é coapresentadora dos podcasts “How to Survive the End of the World”, “Octavia’s Parables” e “Emergent Strategy”. , o livro Octavia’s brood: science fiction stories from social justice movements. Esse livro, nomeado em homenagem a Octavia Butler, importante autora afro-americana afrofuturista, é uma coletânea de ficção científica radical composta de textos produzidos por articuladoras, lideranças políticas, transformadoras sociais e visionárias. Ao falar sobre a organização do livro e de suas crenças acerca das potencialidades do afrofuturismo, as autoras indicam o seguinte:

Nós começamos a antologia com a crença de que toda articulação política é ficção científica. Quando falamos sobre um mundo sem prisões; um mundo sem violência policial; um mundo onde todo mundo tem comida, roupas, abrigo, educação de qualidade; um mundo livre da supremacia branca, patriarcado, capitalismo, heterossexismo; estamos falando sobre um mundo que não existe atualmente. E sonhá-lo coletivamente significa que podemos começar a trabalhar para fazê-lo existir (Imarisha e Brown, 2020, p. 255).

No trecho a seguir, este que já compõe a obra citada, as autoras localizam a importância do que elas chamam de visionary ficcion para a descolonização do imaginário. Destrinchando as possibilidades de uso da “ficção visionária”, Imarisha e Brown (2020, p. 255-257) ressaltam:

A ficção visionária oferece aos movimentos por justiça social um processo por meio do qual explorar a criação de novos mundos (embora não seja em si uma solução — e é aí que entra o trabalho prolongado de organização comunitária). Eu propus o termo “ficção visionária” (visionary fiction) para abranger os modos de criação entre gêneros literários fantásticos que nos ajudam a elaborar esses novos mundos. Esse termo nos lembra de sermos completamente irrealistas em nossas organizações, porque é somente por meio da imaginação acerca do assim chamado impossível que podemos começar a concretamente construí-lo. Quando liberamos nossas imaginações, questionamos tudo. Reconhecemos que nada disto é fixo, que é tudo poeira estelar, e que nós temos a força para moldá-lo do modo que o fizermos. Para parafrasear Arundhati Roy: outros mundos não apenas são possíveis, mas estão vindo — e já podemos ouvi-los respirar. É por isso que a descolonização da imaginação é o mais perigoso e subversivo de todos os processos de descolonização.

Um exemplo de exercício especulativo que potencializa a descolonização do imaginário pode ser vista em “The comet”10 10 O conto “The comet” foi originalmente publicado como decimo capítulo do livro Darkwater, de Du Bois (1920). , conto afrofuturista escrito em 1920 pelo importante ativista pelos direitos civis afro-americanos W. E. B. du Bois (1920)DU BOIS, William E. B. (1920). Darkwater: Voices from within the Veil. Nova York: Harcourt, Brace and Company.. O que nos interessa aqui é perceber como a luta política stricto sensu e a luta no campo da construção do imaginário caminham juntas. Conforme descrito por Waldson Gomes de Souza (2019):

O conto “The comet” [O cometa], de W. E. B. Du Bois, foi publicado originalmente em 1920 e descreve uma catástrofe resultante da colisão de um cometa com a Terra. A princípio, Jim, um homem negro, pensa ser o único sobrevivente conforme vai andando por uma Nova York completamente destruída, deserta e repleta de corpos. Depois de um tempo vagando e lidando com o sentimento de estar sozinho no mundo, ele acaba encontrando uma mulher branca chamada Julia. O encontro dos dois é instantaneamente marcado por uma tensão racial e de classe causada pelo contraste entre a cor de suas peles e entre as roupas que usam. Julia jamais imaginou que justo um homem negro a salvaria, e Jim estava certo de que antes da catástrofe ela jamais o olharia duas vezes. Julia pensa nele como pertencente a outro mundo, quase um alienígena. “Não que ele não fosse humano, mas habitava um mundo tão distante do dela, tão infinitamente distante, que ele raramente entrava nos pensamentos dela. No entanto, quando ela olhou para ele com curiosidade, ele parecia bastante comum e habitual” (Du Bois, 2000 [1920], p. 9, tradução minha). Julia é forçada a olhar para Jim, realmente olhar, como nunca havia olhado outro negro antes, e apenas porque não existe outro ser humano para ser visto. Após um tempo juntos, ela se dá conta de que está acompanhada por um estranho, e o que é pior, um estranho em termos de sangue e cultura. Temendo os pensamentos que Jim pode ter, ela foge. Mas foge só por tempo suficiente para perceber que estar completamente sozinha é pior do que estar com Jim. Então ela desiste da ideia e retorna. A situação obriga Julia a permanecer com Jim, afinal são os últimos sobreviventes, o mundo todo foi destruído. No desenrolar da história, eles ficam mais próximos, raça e classe não importam mais, Jim passa a ser visto como humano. Eles são apenas homem e mulher, quase Adão e Eva, mas sem Éden. Não há paraíso, apenas destruição. Até esse momento é possível imaginar a humanidade sendo reconstruída pelos dois e se perguntar se existiria racismo nas gerações futuras. Entretanto, o conto elimina essa pergunta quando se encaminha para o desfecho e Jim e Julia descobrem que apenas Nova York foi destruída, não o mundo inteiro como haviam pensado. O pai de Julia e outros homens aparecem, um deles automaticamente perguntando se Jim fez algum mal a ela. No instante em que outros seres humanos aparecem, a raça de Jim volta a ser importante, ele passa a ser só mais um negro. Conforme relatos do acontecimento se espalham, há espanto no fato de apenas uma mulher branca e um homem negro terem sobrevivido em toda Nova York. E muitos duvidam que Jim cuidou de Julia e a manteve salva (Souza, 2019SOUZA, Waldson G. (2019). Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira conteporânea. 102f. Tese (Doutorado em Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília., p. 36-37).

Podemos perceber por meio da descrição analítica anterior a grande capacidade de Du Bois (1920)DU BOIS, William E. B. (1920). Darkwater: Voices from within the Veil. Nova York: Harcourt, Brace and Company. de, mediante um exercício especulativo, criar uma alegoria capaz de representar uma experiência subjetiva da população negra estadunidense diante do regime de segregação racial — conhecido como Jim Crown —, de maneira a torná-la palpável e inteligível para sujeitos que se encontravam fora de seu espectro de ação convencionalmente política. O afrofuturista Du Bois (1920)DU BOIS, William E. B. (1920). Darkwater: Voices from within the Veil. Nova York: Harcourt, Brace and Company. faz aqui uso do estranhamento, inerente à ficção científica, para gerar estranheza também no panorama sociopolítico racial. Kodwo Eshun (2015)ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97. lembra que no começo do século 20 o intelectual Du Bois

denominou a condição de alienação estrutural e psicológica como “dupla consciência”. [Para Eshun] A condição da alienação, entendida em seu sentido mais geral, é uma inevitabilidade psicossocial que toda a arte afrodiaspórica usa em sua própria vantagem, por meio da criação de contextos que encorajam um processo de desalienação (Eshun, 2015ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97., p. 56, grifo meu).

Imaginar mundos, especular possibilidades e sonhar novos caminhos pode parecer muito poético, lúdico ou não tradicional: “Interessante, mas acientífico; interessante, mas subjetivo; interessante, mas pessoal, emocional, parcial”, conforme critica Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada (2019). Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 55) ao refletir sobre a produção de conhecimento na relação margem / centro e o mito da neutralidade, no entanto projetos teórico-políticos profundamente relacionados a experiências sociais de luta por descolonização nos incentivam na direção de radicalizar nossa imaginação para produzir futuros e criar mundos descolonizados. Como afirma Kilomba (2019KILOMBA, Grada (2019). Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 68-69):

A margem se configura como um “espaço de abertura radical” (hooks, 1989, p. 149) e criatividade, onde novos discursos críticos se dão. É aqui que as fronteiras opressivas estabelecidas por categorias como “raça”, gênero, sexualidade e dominação de classe são questionadas, desafiadas e desconstruídas. Nesse espaço crítico, “podemos imaginar perguntas que não poderiam ter sido imaginadas antes; podemos fazer perguntas que talvez não fossem feitas antes” (Mirza, 1997, p. 4), perguntas que desafiam a autoridade colonial do centro e os discursos hegemônicos dentro dele. Assim, a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos. […] Como escrevi na Introdução, é preciso criar novos papéis fora dessa ordem colonial. Isso é o que Malcolm X chamou de “descolonização de nossas mentes e imaginações”: aprender a pensar e ver tudo com “novos olhos”, a fim de entrar na luta como sujeitos e não como.

A afirmação presente na obra de Fanon (2008)FANON, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA. de que “para o negro há apenas um destino. E ele é branco” se encontra com o título do artigo de Kênia Freitas e José Messias (2018)FREITAS, Kênia; MESSIAS, José (2018). O futuro será negro ou não será: afrofuturismo versus afropessimismo — as distopias do presente. Imagofagia, n. 17, p. 402-424, 2018. “O futuro será negro ou não será”. Ambos são, à primeira leitura, enganosamente opostos, no entanto pós-coloniais e afrofuturistas, autores de literatura e articuladores da luta de libertação, muitas vezes poetas e revolucionários, em uma mesma pessoa, abraçam-se no empreendimento de construir um futuro possível “utópico, ou ao menos positivo” (Freitas e Messias, 2018FREITAS, Kênia; MESSIAS, José (2018). O futuro será negro ou não será: afrofuturismo versus afropessimismo — as distopias do presente. Imagofagia, n. 17, p. 402-424, 2018., p. 409), para a população negra.

  • 1
    Foi o primeiro presidente de Angola (1975–1979), após sua independência de Portugal. Nasceu em Bengo em meio a uma família metodista — seu pai era pastor, e sua mãe, professora. Envolveu- se com grupos anticolonialistas quando estudava medicina em Portugal. Em 1951, fundou, ainda em Lisboa, em parceria com Amílcar Cabral, Mario de Andrade, Marcelino dos Santos e Francisco José Tenreiro, o Centro de Estudos Africanos, orientado para a afirmação da nacionalidade africana. Poeta nacionalista, seus escritos foram proibidos e ele esteve preso de 1955 a 1957 e outra vez, já em Angola, de 1960 a 1962. Conseguiu fugir para o Marrocos e posteriormente fundou o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de tendência marxista. Conquistada a independência de Angola em 1975, o novo governo, dirigido pelo MPLA, contando com o apoio de Cuba, entrou em choque com grupos de direita, apoiados pelos Estados Unidos da América e pelo governo racista sul-africano (Agostinho Neto, 2009AGOSTINHO NETO. Portal Geledés, 2009. Disponível em: https://www.geledes.org.br/agostinho-neto/. Acesso em: 3 jun. 2021.
    https://www.geledes.org.br/agostinho-net...
    ).
  • 2
    Realizadora experimental em audiovisual, organizadora da Palavra Preta: Mostra Nacional de Negras Autoras e editora fundadora da Padê Editorial.
  • 3
    Articuladora da Rede de HistoriadorXs NegrXs e, na época da entrevista, 2018, organizadora do Festival Latinidades.
  • 4
    Criado em 2008, o Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, Latinidades, consolidou-se como o maior festival de mulheres negras da América Latina. Com 12 edições realizadas, o projeto tem sido um grande encontro da cultura negra produzida em África e diáspora e também uma plataforma de impulsionamento de trajetórias de mulheres negras nos mais diversos campos de atuação (Afrolatinas, 2021).
  • 5
    Fundadora do Instituto Afrolatinas e do Festival Latinidades, jornalista, pesquisadora, produtora e gestora cultural. Em 2015 e 2016 foi subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural, na Secretaria de Cultura do Distrito Federal, onde desenvolveu políticas, programas e projetos estratégicos voltados para a proteção e promoção da cidadania e da diversidade das expressões culturais tendo como foco grupos historicamente excluídos e em situação de vulnerabilidade.
  • 6
    Videomaker, fundadora da Griô Produções e idealizadora do Festival Latinidades.
  • 7
    Foi um coletivo de estudantes negros de diversos cursos da Universidade de Brasília que se engajou e teve importante participação na luta pelas cotas raciais na instituição.
  • 8
    Compositor de jazz, poeta e um dos pilares musicais do afrofuturismo, conhecido por sua filosofia cósmica e por suas composições musicais e performances. O filme Space Is The Place é bem representativo de sua filosofia cósmica. O filme de John Coney conta a história “oficial”, tal como escrita por Sun Ra, que assina o argumento. Realizado em 1974, começou a ser feito numa fase em que Sun Ra dava palestras em Berkeley sobre os negros e o cosmos. A convivência com estudantes universitários e intelectuais da contracultura criou as condições para fazer o filme, e nele Sun Ra, desaparecido desde 1969, mas a viver noutro planeta com a sua Arkestra, regressa a Chicago em 1943 e provoca um motim que dá origem a um jogo de cartas em que se decide o futuro da raça negra (Sanches, 2015SANCHES, Isilda (2015). Sun Ra: jazz, extraterrestres e afrofuturismo. Máquina de Escrever. Disponível em: https://maquinadeescrever.org/2015/06/29/sun-ra-jazz-extraterrestres-e-afrofuturismo/. Acesso em: 20 maio 2021.
    https://maquinadeescrever.org/2015/06/29...
    ).
  • 9
    Vive em Detroit, Estados Unidos da América. Ela é redatora residente no Emergent Strategy Ideation Institute e autora de Holding change: the way of emergent strategy facilitation and mediation, We will not cancel us and other dreams of transformative justice, Pleasure activism: the politics of feeling good, Emergent strategy: shaping change e Changing worlds e coeditora de How to get stupid white men out of office. Ela é coapresentadora dos podcasts “How to Survive the End of the World”, “Octavia’s Parables” e “Emergent Strategy”.
  • 10
    O conto “The comet” foi originalmente publicado como decimo capítulo do livro Darkwater, de Du Bois (1920)DU BOIS, William E. B. (1920). Darkwater: Voices from within the Veil. Nova York: Harcourt, Brace and Company..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    27 Nov 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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