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Vaga carne: a visão da voz

Vaga carne: the vision of the voice

Vaga carne: la visión de la voz

carne, Vaga. the vision of the voice

Resumo

Grace Passô é autora de Vaga Carne, lançado em 2018 pela Editora Javali. O livro é um marco pelos temas abordados e pela estrutura do texto, no crescente cenário da literatura contemporânea brasileira de publicações de dramaturgias. Nesse solo, Passô levanta questões sobre classe, raça e gênero. A autora escreve dramaturgia iluminada por vivências negro-brasileiras. Imagens, como uma voz invadindo um corpo, são a referência principal nesse livro.

Palavras-chave:
dramaturgia; voz; corpo

Abstract

Grace Passô is the author of Vaga Carne, released in 2018 by Editora Javali. The book is a landmark, due to the topics covered and the structure of the text, in the growing scenario of contemporary Brazilian literature of dramaturgical publications. In this solo, Passô raises questions about class, race, and gender. The author writes dramaturgy illuminated by black-Brazilian experiences. Images like a voice invading a body are the main reference in this book.

Keywords:
dramaturgy; voice; body

Resumen

Grace Passô es autora de Vaga Carne, publicado en 2018 por la Editora Javali. El libro marca un hito, por los temas tratados y la estructura del texto, en el creciente escenario de la literatura brasileña contemporánea de publicaciones de dramaturgia. En este solo, Passô plantea preguntas sobre clase, raza y género. La autora escribe dramaturgia iluminada por experiencias negro-brasileñas. Imágenes como una voz invadiendo un cuerpo son la principal referencia de este libro.

Palabras clave:
dramaturgia; voz; cuerpo

Vaga Carne, de Grace Passô, é uma obra marcante no cenário da dramaturgia contemporânea brasileira. O texto narra a história de uma voz que vaga por diferentes matérias e que descreve com detalhes o seu encontro e/ou existência (como voz) dentro do corpo de uma mulher negra. Peça solo de Grace Passô, que já publicou Por Elise (2004), Mata teu pai (2017), entre outras dramaturgias.

Vaga Carne é uma obra complexa que aciona o teatro em diálogo com a filosofia e a psicanálise para a exposição de discussões sobre a sociedade. “Não é tudo certo, mas é possível que não seja um acontecimento físico da matéria, mas, sim, ela, a matéria, invadida por vozes. Que existem. Vorazes. Pelas matérias” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 16). Nessa dramaturgia, a voz é o fio condutor de reflexão sobre o mundo. A publicação apresenta um exercício de exposição dessa voz, letras que invadem as páginas e que somem das páginas, produzindo na leitura um clima de assombro ao ver o surgimento da voz.

Em “Bordas”, o prefácio, Soraya Martins escreve que Vaga Carne aponta uma localização da “emergência do novo de onde se pode refletir sobre gênero, lugar de fala, questões raciais” (MARTINS, 2018MARTINS, Soraya (2018). Bordas. In: PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali, 2018. p. 7-8., p. 8). Temas pontuais ao nosso tempo que são envolvidos e desdobrados pela dramaturga de modo extraordinário.

O texto de Grace Passô apresenta palavras que gritam existências sociais enquanto abrem intervalos por entre as páginas. Essa dramaturgia é como uma “voz, corpo no texto” (MARTINS, 2018MARTINS, Soraya (2018). Bordas. In: PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali, 2018. p. 7-8., p. 7) que força a abertura de nossa visão para ver o corpo, que nesse contexto é uma mulher negra. Como apontou Soraya Martins, Vaga Carne, na sua complexidade em existir matéria, “desestabiliza e transcende a autorização discursiva branca e masculina” (MARTINS, 2018MARTINS, Soraya (2018). Bordas. In: PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali, 2018. p. 7-8., p. 7).

A dramaturgia de Passô constrói um diálogo de desdém com a pessoa que ausculta a voz da vaga carne. Criando uma relação estética de repulsa e atração. Composição marcada no livro pela frequência constante de espaços e parágrafos entre as falas. A vagueza da voz é um elemento dramático da ironia, posto que, no texto, a voz é exata, se coloca em lugar afirmativo de posição, ou seja, se posiciona. A voz é mulher. E num jogo de diálogo, coisifica aquilo que é, ou, ainda, aquela/aquele que a ouve/lê: “Ontem entrei em você, coisa” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 17).

A alteração da voz narrativa, a fala da própria voz, é marcada no texto por uma mudança de fonte, que funciona ainda como grifo de mudança do estado de ânimo da voz dramática. Apresentando, assim, alterações diretas, sendo estas marcadas pela estética do texto teatral e as alterações de cunho filosófico da voz que dizem respeito a um existir/vagar entre matérias. “Também não tenho começo, nem fim, nem começo” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 18). A voz que, ao ler a dramaturgia, vamos vendo vagar pelo livro é um tempo em distensão de se negar a ser o corpo de uma mulher negra e de aceitar ser o corpo de uma mulher negra. Um ponto de origem e não origem apresentado e constantemente questionado.

Como se existir voz dentro de um corpo fosse autoproteção do corpo e da voz. “Se eu virasse este corpo ao avesso, teria que encarar a fera lá fora” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 18). Existe um perigo no mundo. E ele olha para o corpo. O perigo é a sociedade em suas caixas de opressões de raça, classe e gênero. Ele, o perigo, é quem lê e qualifica o corpo, o texto. E é o próprio corpo da mulher que se silencia diante da fera. E/ou o que grita e se posiciona diante do perigo e das opressões.

Ao longo da dramaturgia, a voz que invade o corpo vai ganhando materialidade ao encontrar com o sangue (do corpo), que ganha densidade historiográfica quando é aproximado ao oceano, e a voz, a uma embarcação: “É como uma embarcação, estou erguendo uma vela gigantesca, é como mover um barco, como se estivesse numa tempestade e é meu som que move o leme” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 19).

Ao se aproximar essa navegação do contexto da história colonial americana, se pode inserir na dramaturgia um campo semântico que tratará de questões de raça relacionadas a estruturas coloniais. “Olá, bichos ferozes! Se virássemos o corpo desta mulher ao avesso, a pele desta mulher que vocês estão vendo, ela é que entenderia seu escuro de dentro, não vocês que ficam espiando, coitadinhos. Quem é você, mulher?” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 19).

A mulher é estrangeira ao próprio corpo. Pois seu corpo pode, em alguns momentos, ser a repetição a obediências do olhar de fora. O falar desse tema é marcado metaforicamente pela imagem de um projétil. Uma bala de revólver dentro do corpo. “Foguetinho triste que não consegue mais explodir!” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 20). Questões que se complexificam, por exemplo, no trecho: “Entrei um dia numa arma apontada para uma mulher, quando o projétil explodiu e o corpo dela caiu, eu fugi. Era você a mulher?” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 20). A bala que invade o corpo é o silenciamento da voz. A desvida do falar, do gritar origem, do viver. O cunho filosófico e psicanalítico é mantido em tempo integral na dramaturgia pelo jogo das interrogações.

A voz que invade a mulher cria vários ambientes dentro do corpo, um deles é a tensão entre o ser e o encenar ser. Por exemplo, nesse grito da voz contra o corpo invadido: “Quer que eu te ajude a ser a imagem que o outro quer ver?” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 22). Em ampliação, a essa tensão, a dramaturgia é recortada por silêncios, que existem no texto para a composição estética do esquecimento, da falta, da busca, do intervalo entre ser e desejar ser. Situações marcadas no livro por páginas e páginas em branco.

E quando o texto, a voz, reaparece, se coloca como um fluxo sonoro que questiona relações sociais que a definam como: mulher, filha, mãe, gorda, lésbica. “É o vazio. É como a imagem de uma luz num cômodo vazio. É o deserto. Esquecer é o deserto. Sustar a memória, que matéria! Eu te amo, esquecimento” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 37). Em sequência, a voz destaca que nos intervalos não existem silêncios, mas uma profusão de vozes. E a conclusão: “A contragosto. Eu sou uma mulher” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 48).

É inquietante a experiência da leitura silenciosa e solitária da dramaturgia Vaga Carne. Na ausência do palco, do corpo solo de uma atriz em cena, o corpo que é invadido pela voz é o corpo de quem o lê. Ao final da dramaturgia, a voz expõe o corpo invadido, ou apresenta este ao público, a cena dos que o leram: “Eu já sei quem ela é! Eu já sei! Ela é uma mulher, ela é negra…” (PASSÔ, 2018PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali., p. 52).

Publicado em 2018, pela Editora Javali, Vaga Carne provoca incessantemente questões da contemporaneidade, validando urgências e cutucando dores de nosso tempo. Esse é um livro assombroso que vale a leitura e que merece estudo. É profícuo o cenário de publicações de dramaturgias no Brasil, e Grace Passô é autora exemplar que tem muito contribuído para esse contexto. Que a dramaturgia no país alcance mais leitoras e leitores.

Referências

  • MARTINS, Soraya (2018). Bordas. In: PASSÔ, Grace. Vaga Carne Belo Horizonte: Javali, 2018. p. 7-8.
  • PASSÔ, Grace (2004). Por Elise Rio de Janeiro: Cobogó.
  • PASSÔ, Grace (2017). Mata teu pai Rio de Janeiro: Cobogó.
  • PASSÔ, Grace (2018). Vaga Carne Belo Horizonte: Javali.
Editores de Seção: Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    09 Set 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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