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Ocupando espaços: legitimação de escritoras brasileiras contemporâneas

Occupying Spaces: Legitimation of Contemporary Brazilian Women Writers

Ocupando espacios: Legitimación de escritoras brasileñas contemporáneas

Numa época em que mais mulheres do que homens são agraciados com o Prêmio Jabuti no seu eixo literatura, como ocorreu na edição de 2022, uma mulher, ao escrever um texto sobre mulheres poetas no Google Docs, recebe mensagem do corretor do sistema para deletar “as” de “as poetas” e substituir por “os”. Apesar dos inegáveis avanços conquistados no meio literário nas últimas décadas, a suposta inadequação de mulheres escritoras, tão claramente ilustrada no episódio do corretor de texto, perdura. As mulheres continuam sendo menos publicadas, menos lidas e menos estudadas. “Na sociedade patriarcal brasileira”, segundo Eurídice Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 89), “a produção literária de mulheres ainda é vista com reticência conquanto elas estejam cada vez mais produtivas, reivindicando sua posição na cena pública”. É, pois, sobre o desejo de ocupar espaços e conquistar a cena pública que se delineia este dossiê temático, cujo objetivo se centra não só em ilustrar a prolífica produção de escritoras contemporâneas, um verdadeiro acervo em elaboração, mas também em legitimar, com base em leituras críticas, essas vozes, ainda preteridas na academia, como parte integrante da literatura brasileira da atualidade.

A respeito da fértil produção literária de mulheres na contemporaneidade, Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 11-12) destaca uma potente pluralidade temática na qual se observa uma abordagem de questões relacionadas ao corpo, à sexualidade e ao estatuto da mulher na sociedade brasileira, dentre outras. De fato, Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 12-13) afirma que, além de não ser possível especificar uma homogeneidade desse imaginário por conta da diversidade de vozes — há mulheres de todas as idades, etnias e regiões —, são observadas várias tendências na prosa contemporânea, tais como romance histórico, narrativas de filiação, romances de realismo bruto e formas autobiográficas em geral. No tocante à poesia, Heloísa Buarque de Hollanda (2021HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). (2021). As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras., p. 24) evidencia, na nova geração de poetas, uma poética que “passa a ser modulada por uma nova consciência política da condição da mulher”, levando, como aponta a estudiosa, a um desdobramento em linguagens, temáticas e dicções próprias. Pautando-se pelo “enfrentamento sistemático do cotidiano, dos desejos e dos custos de ser mulher”, as poetas contemporâneas não só propõem novos eixos temáticos, mas também questionam semântica e formalmente as regras do que se entende como boa literatura (Hollanda, 2021HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). (2021). As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras., p. 26-28).

No estudo de sugestivo título “Writing by Women or for Women? Either Way, You're Less Likely to Be Reviewed” (tradução livre nossa: “Escrita de mulheres ou para mulheres? De qualquer maneira, você tem menos chances de ser resenhada”), Kwan W. Kim e Phillipa K. Chong (2023KIM, Kwan K.; CHONG, Phillipa K. (2023). Writing by women or for women? Either way, you're less likely to be reviewed. Poetics, v. 96, 101737. https://doi.org/10.1016/j.poetic.2022.101737
https://doi.org/10.1016/j.poetic.2022.10...
, p. 3) refletem acerca da recepção dessa produção literária por leitores e críticos ao fazerem um apanhado de dados referentes a resenhas no meio literário estadunidense. As investigadoras concluem que a desigualdade de gênero na ficção, observada na atenção crítica concedida a homens e mulheres, provém de uma exclusão bipartida. Em primeiro lugar, ao ser considerada um subgênero “feminizado” da literatura e consequentemente detentora de menos status, a ficção produzida por mulheres é punida, fenômeno que as autoras chamam de punição da ficção de mulheres (women's fiction penalty), o que invariavelmente acarreta menos atenção da crítica. Em segundo lugar, existe a punição da escritora mulher (woman writer's penalty) que opera com base em uma exclusão da artista em si baseada no gênero, no sentido de que até mesmo escritoras que publicam em gêneros frequentemente resenhados têm menos probabilidade de ver os seus livros apreciados com resenhas pelo fato de serem mulheres. Apesar de o estudo ser específico a resenhas e não se referir diretamente ao contexto literário brasileiro, a reflexão tanto pode ser expandida a diferentes gêneros textuais críticos como pode estabelecer diálogo com a realidade que buscamos aqui delinear. Refletindo especificamente acerca do caso brasileiro, a falta de interesse crítico na produção literária de mulheres revela dois elementos significativos: escritoras marginalizadas (no sentido amplo do termo, como o emprega Regina Dalcastagnè, 2002DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77., o qual explicitamos a seguir) não costumam ser reconhecidas no seu labor literário; e homens, leitores e críticos, concedem menos atenção à produção literária de mulheres.

Por um lado, mulheres escritoras que publicam em editoras independentes, em coletâneas de coletivos e em editoras populares, na sua maioria autoras negras, indígenas, LGBT+ e da periferia, são especialmente excluídas do universo da crítica literária. Aqui adentramos um debate mais complexo que envolve o acesso à voz das camadas marginalizadas (e podem ser diversos os níveis de marginalização), abarcando grupos cuja identidade coletiva recebe valoração negativa da cultura dominante (Dalcastagnè, 2002DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77., p. 33-34). Importa mencionar o desdobramento da questão de gênero em camadas interseccionais, em outras palavras, estar à margem complexifica-se de acordo com a realidade de cada escritora. Em diálogo com o acesso à voz e a respeito da censura velada na sociedade brasileira como um todo, Dalcastagnè (2002DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77., p. 36) comenta que não se trata apenas da possibilidade de falar, “mas da possibilidade de ‘falar com autoridade’, isto é, o reconhecimento social de que o discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido”. O campo literário, por sua vez, também reforça e reproduz um sistema de valoração no qual alguns grupos falam com autoridade enquanto outros, apesar de falar, parecem não merecer escuta. Estaríamos diante, portanto, da punição da escritora mulher, ou seja, de uma exclusão da artista em si pelo fato de ser mulher.

Por outro lado, homens leem menos mulheres e, por conseguinte, estudam menos mulheres. A esse respeito, Figueiredo (2020)FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk. traz a voz de duas escritoras para ilustrar tal constatação. Enquanto Marina Colasanti (2016, p. 327 apud Figueiredo, 2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 86) afirma que os leitores homens se espantam e os críticos perdem o entusiasmo quando aparece o termo “mulher”, Teresa de Laurentis (1994, p. 232 apud Figueiredo, 2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 86, grifo do original) comenta que “não é que os homens não possam ler textos escritos por mulheres; é que eles não querem”. Não pretendemos aqui afirmar que não haja críticos que estudem mulheres, apenas apontar o seu número limitado. A título de ilustração, para este dossiê, enquanto quarenta e nove mulheres submeteram artigos (vários com duas ou três autoras), apenas quinze homens enviaram estudos. Dito de outra forma, mais de 76% dos artigos e resenhas recebidos foram de autoras e menos de 24% de autores homens. A pouca receptividade com relação a textos de autoras, sugere Figueiredo (2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 86), reside em os homens acharem “que se trata de assuntos que não lhes interessam”. Esse fenômeno seria ilustrativo da penalidade da ficção de mulheres, como abordamos acima, o que acarreta a falta de atenção dessa produção pela crítica especializada. É válido ressaltar que essencial neste debate é a capacidade de imaginação e de fabulação para se colocar no lugar do outro (Figueiredo, 2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 91), com o intuito de evitar um entendimento limitante do fazer literário e crítico, no qual mulheres somente falariam e estudariam mulheres, por exemplo, “o que é tudo o que o establishment masculino quer” (Figueiredo, 2020FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk., p. 91).

Dalcastagnè (2002DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77., p. 38) lembra que essa censura social velada, extensiva à literatura como importante produtora de sentidos, deve ser combatida com a democratização da sociedade, buscando-se minimizar desigualdades e incluir novas vozes no cenário nacional. No universo literário propriamente dito, e ainda refletindo com Dalcastagnè (2002DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77., p. 39), a democratização da literatura passa pela questão de legitimidade: “Neste sentido, a própria crítica e a pesquisa acadêmica não são desprovidas de relevância. Afinal, são espaços importantes de legitimação”. Tais considerações lembram-nos que precisamos aceitar o convite que a escrita de mulheres nos faz para pensar outros imaginários, enxergar outras potencialidades e idealizar outras formas de ver e agir no mundo. Com efeito, legitimar a produção literária dessas mulheres equivale a criar espaços (em grupos de leitura, na sala de aula, em eventos literários, em publicações especializadas) para que falem com autoridade, o que elevaria o seu capital simbólico (Bourdieu, 1989BOURDIEU, Pierre (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel., p. 15), contribuindo, assim, para o seu reconhecimento social e a sua valoração na cultura brasileira. Afinal, as suas múltiplas leituras do contemporâneo servem de mapeamento não só a subjetividades plurais, mas a outras visões de Brasil.

Diante dessas observações, os artigos que compõem este dossiê da revista de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea ilustram precisamente essa multiplicidade temática, mostrando que sonhar outros mundos não é só possível, mas imperativo. São dez artigos, uma resenha e duas entrevistas que contemplam prosa, poesia e livros de estreia, e também abordam temas diversos — tais como a relação entre memória e resistência negro-brasileira e indígena, memória e ditadura, decolonialidade, reflexões teórico-conceituais, vivências periféricas e corpo e subjetividade. As escritoras aqui apresentadas ilustram a heterogeneidade identitária mencionada acima por Figueiredo (2020)FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk.. Além de estudos críticos sobre a obra de mulheres negro-brasileiras, indígenas e periféricas, os artigos também sublinham vivências de personagens não hegemônicos e experiências de geografias múltiplas do Brasil.

Nos dois primeiros artigos do dossiê, as autoras trazem o tema da memória associado a questões político-sociais. Em “O autoritarismo da ditadura militar por perspectivas femininas contemporâneas: tempo e espaço em Liniane Brum, Luciana Hidalgo e Maria Valéria Rezende”, Patrícia Helena Baialuna de Andrade faz uma pertinente análise sobre a pós-memória em romances das escritoras citadas no título do artigo. Com foco em como os romances articulam deslocamentos espaçotemporais na (tentativa de) recuperação do passado e compreensão do presente, a autora propõe considerações instigantes sobre a perspectiva de mulheres com respeito à compreensão desse momento histórico. Regina Félix, por sua vez, em “Memórias que urgem a nossa (r)existência”: Eu sou Macuxi e outras histórias de Julie Dorrico”, discute o caráter político da obra de Dorrico, a qual a estudiosa considera uma auto-história de “dimensão poético-ficcional”. Após oferecer uma breve biografia de Dorrico, destacando tanto a obra literária quanto a obra acadêmica da autora, Félix tece considerações sobre a noção de autobiografia indígena, traçando alguns paralelos entre diferentes pontos das Américas no que diz respeito à história do gênero e à sua recepção crítica. Em seguida, destaca temas das várias histórias de Eu sou Macuxi e outras histórias, ressaltando as formas como Dorrico resgata uma identidade indígena ancestral conectada a outras experiências ameríndias e como a autora resiste por meio da afirmação de uma existência coletiva indígena.

Os quatro artigos seguintes podem ser lidos como reflexões críticas acerca de gestos e atos decoloniais. Em “Refazendo cabeças: a valorização da negritude nos contos de Cristiane Sobral”, Jordan Jones articula uma análise de quatro contos da autora negro-brasileira Cristiane Sobral: “Cauterização” (2009) e três contos seus publicados na coletânea Pretos em contos — volume 2 (2021). Utilizando o poema “Refazendo a cabeça” (2010) de Sobral como ponto de partida, Jones afirma que a escrita da poeta objetiva valorizar a negritude por meio da representação de crises externas e internas pelas quais passam seus protagonistas. A escrita de Sobral pode, dessa forma, suscitar crises de consciência nos leitores, desembocando em processos de “refazer a cabeça”. O artigo de JONES também ressalta o campo de atuação de Sobral no meio literário, uma vez que o seu livro Pretos em contos — volume 2, finalista do Jabuti em 2022, foi publicado pela Aldeia de Palavras, selo editorial lançado pela poeta em 2021.

Inspiradas nos conceitos de afroperspectividade e interseccionalidade, Michele Freire Schiffler e Mônica Alves Fernandes oferecem o artigo “Narrativas contestadas: representação feminina afro-brasileira em Maréia, de Miriam Alves” para demonstrar como a obra rompe com estereótipos relacionados à representação histórica de personagens negras na literatura brasileira. As autoras ilustram, na sua análise, como essa obra de Alves exalta outros modos de existência para personagens negras, revelando a possibilidade de representações plurais que contestem narrativas e territórios, preterindo narrativas hegemônicas.

Na sequência, somos convidadas a conhecer a obra de Laura Castro por meio do cuidadoso estudo de Milena Magalhães e Rosana Nunes Alencar, que trata brevemente da obra de Castro, de modo geral, visando demonstrar como corpus e corpo interagem na produção da artista. Essa premissa serve de bússola para todo o artigo e é, mais tarde, explorada quando as autoras se debruçam em duas obras específicas, O armarinho (2018) e Inês: pequena antologia do passado (2020). Nas primeiras seções, aprendemos mais sobre como a vida e a produção artística de Castro se entrelaçam, gerando materiais híbridos, além dos diversos projetos coletivos empreendidos pela autora que dialogam com a memória e o cotidiano das comunidades com as quais interage. Nas próximas seções, adentramos a análise das obras supracitadas e vemos os diálogos estabelecidos pelas autoras com críticos como Garramuño, bell hooks, Alessandra Devulsky e Munanga.

Karine Aragão dos Santos Freitas e Talita Rosetti Souza Mendes propõem uma análise apurada do olhar decolonial na obra de uma escritora indígena e três slammers negras em “Experiências decoloniais: Graça Graúna, Mel Duarte, Gabz e Stephanie Borges”. As autoras defendem que as experiências, a ancestralidade e a corporalidade indígena e negra, particularmente as de mulheres, são colocadas no centro da poesia das autoras em questão como forma de desafiar o colonialismo enraizado em abordagens eurocêntricas e acadêmicas de povos indígenas e da mulher negra, que tomam essas populações como objeto e não como sujeito das suas histórias. Por meio da palavra, Freitas e Mendes argumentam que Graúna, Duarte, Gabz e Borges operam “uma insurreição do corpo” tanto individual quanto coletiva, contra a colonialidade do poder.

Com base em possíveis entrelaçamentos teóricos e temáticos, o artigo sobre a poesia de Graúna e das três slammers dialoga com os dois textos críticos seguintes. “Inquietações teóricas, saídas poéticas: ferramentas barthesianas em algumas poetas brasileiras contemporâneas”, artigo de Paloma Vidal, analisa três poetas brasileiras — Leila Danziger, Aline Motta e Marília Garcia — para indagar de que modo a obra de Roland Barthes oferece instrumentos interpretativos de leitura que possibilitam abordar elementos trabalhados pelas poetas, a saber, o diálogo entre texto e imagem e a prática de escrita apoiada na materialidade do corpo e da subjetividade. Adicionalmente, o artigo de Vidal inova ao esboçar reflexões conceituais acerca dos usos da teoria nos âmbitos autobiográfico, metodológico e pedagógico. A teoria, de acordo com a estudiosa, estaria atrelada à construção afetiva de um lugar cujos sentidos ecoariam na nossa formação.

O texto poético também é o foco de “A poesia das autoras negras do slam: escrever e viver”, no qual Ana Paula Macedo Cartapatti Kaimoti examina como o slam enquanto poesia se constitui à margem do campo literário e se apresenta como um espaço de organização social. Para isso, trabalha conceitos como a gramática do cotidiano, de Conceição Evaristo, criando uma visão panorâmica do gênero. Depois, Kaimoti faz uma análise atenta do poema “O peso das palavras”, de Tawane Theodoro, indicando como o próprio poema apresenta aspectos do fazer poético, voltando-se para si mesmo, ao mesmo tempo em que também se empodera com a performance ao unir corpo e voz. Assim, de acordo com a investigadora, o ato de escrever é também o de viver, pois o exercício de fazer poesia, como o faz Theodoro, transforma-se numa estratégia coletiva para denunciar a pobreza e, ao mesmo tempo, sobreviver e resistir a ela.

Além do estudo de Kaimoti, os dois últimos artigos que figuram neste dossiê também ativam questões relativas a vivências periféricas. Um estudo sensível e detalhado sobre a representação do desejo de moradia e de narrar as experiências de maneiras diversas é apresentado em “O desejo de ocupar e narrar em Notas sobre a fome, de Helena Silvestre”, de Sophia Beal e Gustavo Pietro. Neste artigo, os autores argumentam que no livro de Silvestre há um impulso de procurar formas diferentes de contar histórias e de habitar espaços como meio de combater a desigualdade social e de cultivar solidariedade e comunidade com aqueles que são marginalizados no Brasil contemporâneo.

A representação do consumo na periferia e a sua relação com o cotidiano, no sentido lefèbvriano, é o foco da análise de Lígia Bezerra no artigo de título “Crescer consumindo na periferia: Um olhar sobre o consumo em No país da infância, de Cris Lira”. No seu livro de contos de 2019, segundo Bezerra, Lira lança mão de uma crítica esperançosa do cotidiano na sociedade de consumo, fenômeno analisado por meio do conceito de crises de Hans Ulrich Gumbrecht, as quais seriam pausas no cotidiano que a experiência estética com bens de consumo pode produzir. O estudo de Bezerra faz importante contribuição, já que, além de analisar a construção de narrativas afetivas acerca do espaço periférico brasileiro, também dá a conhecer o trabalho de uma escritora que publica com o coletivo feminista Mulherio das Letras, cuja produção literária ainda está por ser contemplada pela crítica.

A única resenha a compor este dossiê, de Gisele Meire Tita Nazário da Silva e Divanize Carbonieri, sobre Chão batido, livro de estreia de Juçara Naccioli, aborda tanto as diferentes vozes poéticas como o processo de hibridação de gêneros literários observados nos 57 poemas do livro. Segundo as autoras, as duas vozes poéticas constam, primeiramente, da voz de uma benzedeira preta-velha e, em segundo lugar, de uma possível descendente desta. A coexistência dessas duas vozes situa-se “no entrelugar entre os saberes tradicionais ancestrais e o conhecimento adquirido nas escolas e universidades”. Além disso, o livro inova tanto ao encadear poemas como episódios ou capítulos, seguindo uma sequência de eventos ficcionais, como ao apresentar um caráter teatral ilustrado no modo dramático empregado na escrita. Selecionado no Edital da Lei Aldir Blanc do Estado de Mato Grosso, Chão batido foi finalista do Prêmio Off Flip 2019 na categoria poesia.

Encerramos este dossiê de maneira simbólica, exercendo a escuta de vozes inspiradoras, a da poeta e multiartista negro-brasileira Cristiane Sobral e a da escritora e investigadora indígena Julie Dorrico. Em “Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência”, Cristiane Sobral dialoga com Jordan Jones acerca de assuntos relevantes no que tange às artes em geral e à literatura em particular. Dentre os tópicos abordados, por exemplo, estão o papel da arte e a sua relação com os direitos humanos e com questões identitárias, além de comentários críticos sobre a sua obra e sobre projetos futuros. Utilizando a expressão “pedagogia da convivência”, Sobral sublinha o caráter transformador da arte, espaço no qual outras humanidades podem se delinear. “A poética do eu-nós: uma conversa com Julie Dorrico”, por sua vez, traz um diálogo entre Julie Dorrico e Cecília P. X. Rodrigues. Enquanto o primeiro momento da entrevista é dedicado à interseção entre sociedade nacional e literatura indígena, no que concerne à sua publicação, divulgação e legitimação por parte do público leitor, o segundo momento concentra-se especificamente no fazer literário e crítico de Dorrico. Alguns dos assuntos discutidos incluem o seu trabalho de catalogação de obras e de autores indígenas, os seus esforços de divulgação dessa produção por meio de canais virtuais e, finalmente, questões teórico-literárias acerca da autoria indígena, que, segundo Dorrico, significa escrever junto aos seus ancestrais, à memória de sobrevivente ou de refugiada no seu próprio território.

Como reflexão final, avaliamos que os textos aqui apresentados não contemplam apenas a produção individual de escritoras contemporâneas, mas vão além ao estabelecer elos entre si, tecendo uma rede de diálogos e interconexões que refletem um encadeamento de vozes potentes e plurais. Deixamos aqui o convite a acadêmicas e acadêmicos para se juntarem a nós no trabalho de legitimar a prolífera produção de autoras brasileiras contemporâneas.

Referências

  • BOURDIEU, Pierre (1989). O poder simbólico Lisboa: Difel.
  • DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77.
  • FIGUEIREDO, Eunice (2020). Por uma escrita feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras Porto Alegre: Zouk.
  • HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). (2021). As 29 poetas hoje São Paulo: Companhia das Letras.
  • KIM, Kwan K.; CHONG, Phillipa K. (2023). Writing by women or for women? Either way, you're less likely to be reviewed. Poetics, v. 96, 101737. https://doi.org/10.1016/j.poetic.2022.101737
    » https://doi.org/10.1016/j.poetic.2022.101737
Editoras de Seção: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2023
  • Aceito
    25 Maio 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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