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Ecce Homo* * Artigo publicado no jornal A Imprensa. Rio de Janeiro, ano 06, N. 611, 22 de Agosto de 1909, p. 03.

Resumos

Artigo publicado em 1909, no diário A Imprensa. Nele, o autor o discorre sobre a recente autobiografia de Nietzsche, traduzida para o francês por Henri Albert. Ele se concentra em algumas partes do livro, destacando sobretudo aquelas nas quais o filósofo trata de sua alimentação e de suas distrações literárias.

Nietzsche; Ecce homo; França; Alemanha


Article published in 1909, in the daily newspaper A Imprensa. The author writes about the recently released Nietzsche's autobiography, translated to French by Henri Albert. He focuses on some parts of the book, emphasizing above all, those in which the philosopher talks about his eating habits and literary distractions.

Nietzsche; Ecce homo; France; Germany


É o título da última obra de Nietzsche, a qual conforme as próprias palavras do celebre filósofo alemão, deveria provocar um espanto sem limites; é testemunho do autor sobre a sua própria personalidade. Bastam estas palavras para sublinhar a importância e o valor da obra aludida. Nietzsche a escreveu febrilmente em poucas semanas. Causam-lhe sofrimentos o fato de não ser ouvido nem visto, consequência do desacordo "entre a grandeza do seu problema e a insuficiência dos seus contemporâneos". Ele revoltou-se contra esta injustiça e pegou na pena para "quem é ele. Ecce Homo!".

Em primeiro lugar Nietzsche não tem nada de comum com a espécie de homens até então venerada como modelo de todas as virtudes. "Preferia ser considerado antes a um sátiro do que a um santo". Ele não vem erigir ídolos novos. Toma conta, porém, dos antigos por terem pés de barro. E eles nos saberão resistir a esse destruidor de ídolos. Seu pensamento paira nas alturas mais elevadas, a sua filosofia vive acima do mundo material.

"A solidão é enorme; sejam, porém, com que tranquilidade tudo repousa a luz. Vejam como se respira livremente! Quantas coisas não se sentem abaixo de si".

O solitário de Sils Maria meteu nesta frase a serenidade vivificante, a pureza deliciosa dos planaltos e Engadina.

É preciso ser criado para atmosfera, acrescenta maliciosamente o filósofo; de outra maneira a gente arrisca-se muito a ficar gelada.

Mas entre todos os cumes para onde este intrépido alpinista da filosofia convida a acompanhá-lo, não há outro mais alto, mais escarpado, do que o seu orgulho.

Nunca ninguém falou de si mesmo com tamanho impudor.

A violenta modesta não cresce naquelas alturas: somente o "edelweiss" altivo eleva por ali a sua coroa.

Nietzsche proclama altivamente que o seu Zaratustra foi o mais belo presente, de todos os tempos, oferecido à humanidade.

Este livro domina milhares de anos, é a obra mais elevada que por ali há, o verdadeiro livro das alturas; é, também, o livro mais profundo, "nascido da mais secreta abundancia da Verdade, poço inesgotável, até onde desce vaso algum sem voltar à superfície transbordante de ouro e bondade.

Depois de tal prefácio, que não é nada um conto de humildade, Nietzsche aborda o seu assunto principal. O seu livro dividido em quadro partes, cujos títulos não têm nada de comum:

"Porque sou tão sábio"; "porque sou tão gênio"1 1 No texto aparece o vocábulo “maligno”, o qual tenta trazer assim a ideia de gênio maligno. Contudo, optamos por verter apenas por gênio, para evitar distorção. ; "porque escrevo tão bons livros"; "porque sou uma fatalidade".

Naturalmente num curto esboço não é possível seguir o filósofo em todo o desenvolvimento das suas ideias. Quem deseja saber os demais segredos de Nietzsche que aborde a leitura do seu livro, nos limite-nos a perguntar-lhe porque ele é tão gênio.

Em primeiro lugar, responde Nietzsche, porque nunca pensou e questões que não o são. Nunca foi desperdiçador.

Por exemplo, não conhece por experiência própria as verdadeiras dificuldades religiosas. Não sabe de maneira poderia "inclinar-se para o pecado", nem tão pouco conhece o remorso. Deus, a imortalidade da alma, salvação, a vida de além-túmulo, são tantas outras concepções às quais ele nunca prestou atenção mínima.

É por demais curioso, incrédulo e petulante, para permitir que se ofereça uma questão "grossa como um punho".

"Deus é uma questão grossa como um punho, uma falta de delicadeza para com os outros pensadores; mesmo uma grosseria como um punho: é proibido de pensar!". O que o interessa, o que mais ainda interessa a humanidade, o que assegura melhor a salvação da humanidade do que as disputas teológicas é a questão de alimentação. Como é preciso alimentar-se para atingir o máximo da força, da virtude no sentido que a Renascença dá a esta última palavra?

Nietzsche, demasiadamente tarde para si, ocupou-se desta questão.

Até o momento em que chegara a madureza completa ele tinha se alimentado muito mal.

Culpa disso cabe à cozinha alemã. "Quantas faltas não lhe pesam na consciência: sopa antes dos demais pratos, carnes cozidas, etc. Enfim, a necessidade animal de beber depois da refeição, explica a origem do espírito alemão, este espírito que vem dos instintos aflitos. O espírito alemão é uma indigestão..." Nietzsche não gosta de bebidas alcoólicas.

É lhe suficiente um copo de vinho ou de cerveja para que a vida se lhe transforme em vale de lagrimas.

É um Munique que habitam os antípodas. Ele prega a abstenção absoluta ao álcool.

Tem uma predileção declarada pelos povos de águas vivas.

Que erro de se dizer "In vino veritas!" Mais uma vez ele está em desacordo com o mundo inteiro. Para ele, o espírito paira por sobre as águas. O filósofo aplica o princípio de Sócrates:

"Conhece-te a ti próprio" ao estomago. É importante conhecer-se as suas dimensões. Nada de café, pois que ele enerva os intestinos; o chá saudável unicamente de manhã. É preciso ficar sentado por menos tempo possível. Os músculos têm direito à festa. "Todos os preconceitos provêm dos intestinos".

A questão do lugar e do clima é anexa a da nutrição.

A ninguém é permitido viver impunimente em qualquer localidade do globo.

O clima exerce sobre a natureza humana uma influência preponderante. Ele faz arregrar à "assimilação" e a "dissimilação" que se acha em relações com a mobilidade ou preguiça do espírito. Os países ricos em homens de espírito gozam de um ar maravilhosamente seco. Paris, Provença, Florença, Jerusalém, Atenas - estes nomes representam alguma coisa. Por ter faltado ao discernimento na questão da escolha do clima, diz Nietzsche, um espírito notável e com disposições livres, torna-se abatido, especialista e rosnador. E a vida de Nietzsche sob este ponto de vista não correu melhor do que sob o ponto de vista de alimentação: a maior parte dos seus anos ele passou em lugares pouco próprios para o desenvolvimento de espírito.

À escolha da alimentação e do clima é preciso unir a escolha de um modo de se divertir razoável. Qualquer erro nesta última maneira é nocivo no mais alto grau. Os limites do que é útil sãos os mais estreitos. Para Nietzsche, é a literatura que o diverte, que o separa dele mesmo, que lhe permite passear pelas almas estranhas, pela ciência, por aquele que ele "não mais está tomando a sério".

Nietzsche gosta só da leitura francesa. Ele lê Pascal, Montaigne, Molinère, Corneille, Racine, Paul Bourget, Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Guy de Moupassant.

Em suma, a escolha da alimentação, do clima, dos divertimentos constitui o grande princípio da "defesa do próprio". É preciso ficar sempre o mesmo, a tudo preso e evitar situações e condições em que seria necessário a um homem ver suspensas a sua liberdade e a sua iniciativa, para se tornar um simples órgão de reação. Eis porque a leitura não deve ser outra coisa senão um divertimento. A cultura de livro pode chegar a destruir o pensamento original. Evitemos ter necessidade dos livros, para pensarmos pessoalmente; ao contrário, os nossos espíritos seriam semelhantes a cabeças de filósofos, que precisam ser esfregados para que produzam as centelhas, as ideias. Tal é o regime para se tornar gênio.

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    Artigo publicado no jornal A Imprensa. Rio de Janeiro, ano 06, N. 611, 22 de Agosto de 1909, p. 03.
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    No texto aparece o vocábulo “maligno”, o qual tenta trazer assim a ideia de gênio maligno. Contudo, optamos por verter apenas por gênio, para evitar distorção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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