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O super-homem arrivista* * Texto publicado no periódico A.B.C. Rio de Janeiro, ano 06, N.301, 11 de Dezembro de 1920, p. 14

Resumos

Artigo publicado em 1920, no periódico carioca o A.B.C. Num primeiro momento, o autor volta-se para o contexto brasileiro, mais especificamente para a escola de Recife, em particular para o livro Ensaios de crítica estética, de Álvaro de Carvalho. Num segundo momento, critica enfaticamente a ideia nietzschiana do übermensch, apontando no super-homem (além-do-homem) um tipo de indivíduo ambicioso, que se vale da força para dominar socialmente, como um arrivista.


Article published in 1920 in the journal A.B.C., from Rio de Janeiro. At first, the author talks about the brazilian context, especifically the Recife school, in particular about the book Ensaios de Crítica Estética, by Álvaro de Carvalho. In a second moment, he emphatically criticizes the nietzschean idea of the übermensch, pointing in the overman (above man) a type of ambitious individual, that uses force to dominate socially, as an upstart.


A famosa escola de Recife, que tanta claridade difundiu outrora sobre o pensamento brasileiro, entrara há longos anos num período de decadência que parecia o anúncio do seu completo desaparecimento. Tudo, porém, indica atualmente que em vez de morrer ela rejuvenesce. Uma geração de pensadores vigorosos, formados espiritualmente na tradicional capital de Pernambuco, irradia do Norte por todo o país os clarões da sua inteligência. Nessa plêiade, em que há mentalidades como A. Chateaubriand, Joaquim Pimenta Mario Rodrigues Alves, Álvaro de Carvalho, organização robusta de publicita, ocupa um lugar distinto. A sua recente obra Ensaios de Crítica e Estética mais do que uma promessa, porque é a afirmação de um belo escritor, com percucientes faculdades analógicas. O capítulo seguinte, daquele livro, dá ao leitor a prova de que não exageramos:

Nunca me senti tentado a ler Nietzsche e talvez não o viesse a ler jamais, se o rebentar da guerra europeia não houvesse atraído a atenção para o lado moral da cultura germânica. Não é que me parecesse complicada demais a sua filosofia quase inacessível dos espíritos, como se afigura para a maioria dos seus leitores.

Mas é que o conhecia através das letras abundantes dos epígonos, dos zangões dos seus conceitos e isto bastou para gerar em meu espírito uma invencível simpatia à individualidade mental do desventurado escritor. E, assim, até que me voltei, com um interesse de psicólogo, para a face moral da gente de que ele é, pelo menos no meu pensar, um tipo representativo e, mais do que isto, a expressão viva das tenências que a dominam. Porque Nietzsche é, para mim, guardadas as devidas distancias e, pondo de parte os pendores espirituais de cada um, um tipo representativo da raça germânica ou, para melhor dizer, tão representativamente alemão, quanto Hugo o é da gente francesa. E é esse critério a cuja luz pode e deve ser ele estudado, porque Nietzsche em linha de conta a parte de sua obra onde se esboçam os pródromos da loucura que veio toldar os últimos dias de sua descompassada vida mental.

Na realidade o desventurado alemão não é um filósofo, e isto se colhe da mais notável das suas obras, senão da mais obscura delas, Assim falou Zaratustra, onde cria ele o arrivista que melhor traduziria o übermensch, tal como aparece nas suas arrojadas afirmações. Nem se vá daí concluir, como geralmente se pensa que o übermensch de Nietzsche é o homem representativo de Emerson ou mesmo o herói de Carlyle. O escritor alemão traduziu, inconscientemente talvez, a aspiração da mediocridade contemporânea por atingir, pela arrogância de uma filosofia moral profundamente anárquica, cínica, no sentido vulgar da palavra, aqueles cimos que até aqui só acessíveis aos grandes tipos da humanidade.

Os antigos valores morais que Nietzsche procura eliminar ou substituir são, ainda hoje, e será por muito tempo, a condição única da coexistência social humana.

A amoralidade do ceticismo contemporâneo transforma-se, na boca do grande escritor, na arrogância impertinente de uma filosofia social, profundamente desumana. E aí está por onde Nietzsche se me afigura antipático.

Essa filosofia do mais forte que parece dominar toda a sua obra, além de falsa, é antissocial, apriorística, feita de afirmações categóricas, de paradoxos; obra de poeta, se o quiserem, onde, não raro, cabeceiam os conceitos num alargar-se a perder de vista, na curva dialética de ilogismo patognômico - nunca, porém, trabalho de filósofo que parte dos fatos particulares, pesados, racionados e medidos, para atingir as alturas do pensamento generalizado. O mundo, a sociedade, o homem, não aparecem aí quais são, senão qual ele o deseja.

É por isto mesmo que Nietzsche, como todos os idealizadores de sistemas sociais, não logrou acrescentar uma única verdade ao rol das que formam a reduzida bagagem de leis sociológicas. Mesmo o conceito de forte que ele tanto abusa, carece de ser explicado, definido, precisamente limitado, como ponto de partida para o julgamento de sua obra. É que nunca se abusou tanto deste conceito como depois que a vitória do darwinismo pôs em voga técnica das ciências naturais. A palavra transformou-se na boca dos epígonos, sociólogos e magos de toda a casta e, não raro, saindo da esfera especulativa, baixou até gíria das camadas aventureiras cuja vida suspeita se desdobra e afirma no bas-fund das sociedades modernas.

Nietzsche foi um pagão, um poeta do paganismo, ressuscitado num século burguês, no seio de uma raça jovem, cheia de excelências de suas qualidades dominadoras. E é sob este aspecto que o considero um tipo representativamente alemão.

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    Texto publicado no periódico A.B.C. Rio de Janeiro, ano 06, N.301, 11 de Dezembro de 1920, p. 14

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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