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Assim falava Zaratustra * Artigo publicado no jornal carioca Diário de Notícias, em fevereiro de 1945.

Thus Spoke Zarathustra

Resumo

Artigo publicado em 1943, no jornal Diário de Notícias, no Rio de Janeiro. O texto apresenta características da filosofia moral de Nietzsche e mostra o filósofo alemão como aquele que buscou compreender o "querer-viver", a expansão da vida. Será a partir da obra Assim falava Zaratustra que o autor se baseia para seu artigo.

Palavras-chave:
Nietzsche; Zaratustra; super-homem; moral

Abstract

Article published in the Diário de Notícias journal, in 1943 in Rio de Janeiro. The paper presents characteristics of Nietzsche's moral philosophy and shows the German as a philosopher that sought to understand the "want-to-live", i.e. the expansion of life. Lúcio builds up his text exclusively on the basis of Thus spoke Zarathustra.

Keywords:
Nietzsche; superman; Zarathustra; moral

Nos textos, cada um lê o que quer. Melhor se diria: o que pode. Porque cada um só pode medir os outros com sua própria razão; e na irremediável "ausência do outro" está a insignificância do intelectual enfatuado da cultura personalista. Ninguém pode ver nos outros o que a si mesmo o excede. Foi assim que se vulgarizaram as mais baixas interpretações da mitologia por aqueles que não conhecem que "a poesia é indireta", entre símbolos, que são as imagens dos ídolos; e que o homem só se ama a si mesmo, nos seus deuses, indiretamente. Nietzsche viu-se esmagado e reduzido à plenitude dos seus comentadores quando não invertido na negatividade da sua altura de consciência. Até os boçais nazistas se dizem seus filhos espirituais! E o pior é, ainda, que uma crítica fútil os tomou a sério, até neste ponto. O que mais justamente se pode dizer dos alemães é que eles, educados como sempre foram na escola da escravidão à casta superior, são os negadores de si mesmos, negando os gênios da nacionalidade, incapazes de correrem com eles os riscos das alturas, e de se elevarem na consciência da nação, antes descendo fatalmente nos níveis da consciência humana aos vícios primitivos dos instintos de desforra e de reivindita vital (sic), e aos abusos da lógica, exercendo-se sobre claridades mal entrevistas. Entretanto, apesar deles, Zaratustra conserva a sua altura, e deve agora ser reabilitado.

A noção de vida, concebida como potência de expansão espontânea, colocara-se no primeiro plano das preocupações filosóficas nos anos que se seguiram à guerra de 1870 (sic). As teorias evolucionistas, desprezando a altura da revolução e da elevação do espírito, foram logo mal interpretadas como dando forros de princípio científicos à concorrência brutal, à seleção natural e sexual do mais forte, ao esmagamento dos fracos e a negação de toda espécie de direito. Spencer, numa construção maciça, atribuindo valor científico a premissas hipotéticas, procurou salvar a posição moral, conciliando-a com o utilitarismo, graças à perspectiva positivista do progresso necessário evoluindo espontaneamente para o altruísmo: mas pode-se dizer que as dificuldades do problema moral foram por ele mais ignoradas do que resolvidas. Entretanto, uma outra corrente se inspirou no mesmo motivo do renascimento da vida e atravessou o século promovendo um largo movimento de ideias em toda a Europa. Aprofundando as ideias de Guyau, com a profundidade de um espírito de crítica e de revolta, Nietzsche elevou-se acima do simples instinto de conservação e tentou fazer compreender o "querer-viver", essencial à vida, como uma necessidade de expansão, de domínio, a começar pelo domínio de si mesmo, como uma "vontade de poder", mas que é essencialmente a vontade de "ser capaz". É em função desta vontade que as coisas têm para nós diferentes valores, e ela é assim a fonte de todos os valores, compreendendo a moral e compreendendo a verdade. Nada mais ilusório, desde logo, do que a crença em valores universais absolutos: não porque não "existam", mas porque se transmudam diante da mediocridade dos homens. E devia ser um axioma que o Cristo não pode ser compreendido pelos medíocres. A moral, como a ciência, não é regra, mas experiência, não é a repetição do bem, mas a "busca do melhor", no futuro, e pelo futuro da vida. Os meios de "informação" moral são meios racionais, mas a invenção moral do ato de mérito, o voto de consciência que descobre e liberta o futuro da criação humana, forçando o acordo dos espíritos e o voto de confirmação, na consciência humana do povo, é um ato de irracionalidade do desinteresse pessoal, que realiza o acordo espiritual com os outros, um ato criador, e, propriamente, um ato de amor. Os que falham a esta força de decisão, que ao mesmo tempo os excede e os aumenta exponencialmente, passivos ou tiranos, são apenas, - jesuítas, e disfarçados, ou executores, e impudentes - os agentes de uma Santa Aliança; e, de qualquer modo, os serventuários dos interesses de opressão política de uma casta que se alimenta da fome de humanização dos pequenos e dos infelizes. Os valores valem o que vale a vontade de "ser capaz" que eles exprimem.

Assim falava Zaratustra: "Este é doravante o meu caminho, qual é o vosso?" E Zaratustra não se dispõe a mistificar ninguém indicando-lhe o caminho do "bem". Não é que não haja o bem e o mal, relativamente, mas muitos e vários são os caminhos. Não é o que se diz, correntemente, sobre o artista: que tem de ser ele mesmo, antes de tudo? Cada um com suas ideias: outras ideias poderão ser melhores, mas só quando as faça suas, e não impostas e aceitas de autoridade. Põe-se então o problema da hierarquia ou da confrontação das tábuas de valores. Toda a vontade de poder deve ir ao fim das suas possibilidades:

"exigir da força que ela se não manifeste como tal... que ela não seja uma sede de inimigos, de resistência e de triunfos, é tão insensato como exigir da fraqueza que ela se manifeste como força".

Os fracos, e são os fracos de caráter, fazendo-se escravos ou tiranos, utilizam esta crença em seu proveito e

"atribuem-se o direito de pedir contas a ave de rapina por ser ela ave de rapina", (em vez de deixarem de ser fracos, frente ao perigo, expondo ao perigo a coragem moral, serena e firme, que não conhece temores nem vinganças).

A constatação, pelo homem, de sua incapacidade:

"tomou as aparências pomposas da virtude que sabe operar, que renuncia e que cala, como se a fraqueza dos fracos fosse a realização livre de um poder, um desígnio voluntariamente escolhido, um ato de mérito".

Esta ilusão, esta troca da moeda feita da consciência, "este jesuitismo de mediocridade", enganou até os fortes, os resolutos comunicando-lhes, como uma doença e remorso, e fazendo-os decair pelo declive da "má consciência". É como uma "insurreição geral dos escravos" (mas estes escravos não são do povo, como se vê agora, na Europa, pela resistência do povo). "A moral é hoje na Europa uma moral de rebanho", dizia Nietzsche.

"Compreendi que essa moral da compaixão... era o sintoma mais alarmante da nossa cultura europeia... Dominam-te a ti próprio, em teu semelhante: que não te dizem, desde logo, um direito que tu podes conquistar... Nossa piedade é mais alta, tem mais vastos horizontes. Vemos como o homem se diminui, como vós o diminuis, e há momentos em que olhamos a nossa compaixão com uma angústia indescritível".

Devia ser um axioma que o Cristo não é para ser compreendido pelos medíocres, os quais adoram a rotina mortal e convertem a adoração do espírito na abominável adoração da morte. O cristianismo só pode ser compreendido em face de sua antítese, por espíritos poderosos, como uma tendência de divinização espiritual que se equilibra, na elevação do espírito, com a tendência contrária do Renascimento natural da vida. Para que viva o espírito, é forçoso que "viva a vida" e que se prolongue o crescimento da vida livre para além de qualquer modelo humanos do homem. Este dificílimo equilíbrio do espírito, na luz do qual cada um pode entrever a verdade sem contudo a poder guardar para si como coisa própria, aflige naturalmente os espíritos ornatos e subalternos que, por isso, exigem a subalternização. Entre os homens, como entre os animais, há um excedente de medíocres cultivados que querem reduzir os outros aos seus níveis:

"Quem eles mais odeiam? Aquele que quebra a tábua dos valores, o destruidor, o criminoso... Mas é esse o criador. A vontade é criadora, é isto que eu ensino: e só para criar vale a pena aprender"... É por estes caminhos que os homens avançam para o futuro (através das maiores lutas): é assim que me faz falar o meu grande amor"... A sociedade humana é uma tentativa, - e este o meu ensino - uma longa experiência de indagação e de descoberta... O que vale é o que ninguém viu ainda com os seus olhos, o fruto: é o fruto que protege e conserva e alimenta todo o nosso amor".

Bendito o fruto do vosso ventre, no futuro da criação humana: as novas infâncias de um mundo livre que avança para a libertação do homem. Há nisto a medida de uma nova nobreza individualista.

Mas esta nobreza alimenta-se do que é tragicamente humano e mais geralmente popular; e não é contra o povo que ela se volta, mas contra a massa gregária da "mediocridade reinante". E Zaratustra podia oferecer essa lição às Nações Unidas, lição aprendida, de resto, pelo pragmatismo, tanto na América como na Rússia moderna:

"Para os espíritos fortificados pela guerra e a vitória, a conquista (de realidades), aventura (humana), o perigo, as próprias dores tornam-se necessidades. Quase tudo o que chamamos cultura superior repousa sobre a espiritualização e o aprofundamento da crueldade. E esta crueldade pode, finalmente, ser virada contra ela própria... Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Que o vosso trabalho seja uma luta (pelo melhor), que a vossa paz seja uma vitória (e não a renúncia do muniquismo neutral) (sic). A importância de um progresso mede-se pela grandeza dos sacrifícios que ele exige".

O muito que vai além deste pragmatismo é altura de pensamento e é o preço da excepcionalidade do indivíduo: era tempo que a política deixasse de explorar com o que é o único bem próprio de cada um. Cresce com esta doutrina, página a página, a sublimação constante de generosidade, que foi a alma da Antiguidade e do Renascimento, sob as aparências da dureza heroica. Este "ascetismo entusiasta" revela o que melhor oculta. Por isso, é de esperar que se revele, na Inglaterra, a verdadeira alma da vida inglesa, depois da prova crucial do "ascetismo entusiasta", sobre os abismos da perdição, e nos dá uma nova imagem da Inglaterra que vá além do humanismo declamatório e convencional de Schiller, à moda inglesa, oferecendo-nos a nova flor da tradição helênica. O herói nietzscheano (sic) não sacrífica o seu egoísmo, nem a sua felicidade, nem o seu orgulho imperial, mas a alguma coisa que está ainda além de si mesmo, - no futuro da geração da vida e da regeneração do pensamento humano. O que ele recria acima de tudo, e ele tem razão, é a degeneração do humano nas formas da mediocridade avassaladora instalada no poder para sufocar o poder da vida de levar adiante o pensamento do mundo. Avança a vida e supera-se a figura do homem, no futuro sempre mais distante: o super-homem, mito da excepcionalidade do homem, e não caricatural representação de deus, entre os vivos, onipotente, onisciente, dominando sobre a superstição gregária, seja a do Império, a da lenda, ou a da ditadura eclesiástica. Zaratustra não se deixa iludir, ele tudo espera da libertação do futuro:

"Porque ele aprende num golpe de vista, tudo que se poderia tirar do homem..." A sua adesão entusiasta à obra criadora é ainda redobrada por sua extensão ao próprio sofrimento da vida, a preço da luta (...).

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    Artigo publicado no jornal carioca Diário de Notícias, em fevereiro de 1945.
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    Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos (1889-1950). Matemático, psicólogo e Filósofo lusobrasileiro. Coube a Gaston Bachelard a elaboração da única síntese dos dois volumes copiados de La rythmanalyse, enviados por Lúcio P. dos Santos do Rio de Janeiro ao filósofo francês, por volta de 1931, tidos hoje por perdidos. Após reiterados tentativas de publicação, o espólio seria queimado em acto empedocliano em frente da Imprensa Nacional pelo final dos anos 50, por sua viúva (não se sabe se por iniciativa própria, se por ordem do filósofo, conforme Rodrigo Sobral Cunha, em O essencial sobre a Ritmanálise). Motivados por esses incidentes biográficos e editoriais, estudos como os de Jorge Jaime e de Pedro Baptista sobre o autor da Ritmanálise o apresentam como o "filósofo fantasma". O artigo de Lúcio P. dos Santos sobre Nietzsche aqui transcrito foi em grande parte recuperado, faltando pequena parte da conclusão, uma vez que a fonte de acesso ao documento por nós encontrado está ligeiramente danificada, particularmente ilegível nas linhas finais do texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
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