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Nietzsche e a fisiologia da arte

Nietzsche and the Physiology of Art

Resumo

O objetivo deste artigo é a exposição de uma interpretação sobre a fisiologia da arte tematizada por Friedrich Nietzsche. Nosso foco é oferecer ao leitor uma análise do tema em questão através da aproximação entre as obras O Nascimento da tragédia e Crepúsculo dos ídolos. Neste último, o autor nos apresenta uma tese a respeito da arte que transparece uma interligação estreita entre condição biológica do agente e a criação artística. No entanto, embora a fisiologia da arte ganhe destaque maior nas últimas obras de Nietzsche, semelhantes preocupações já podem ser identificadas em O nascimento da tragédia.

Palavras-chave:
arte; fisiologia da arte; Crepúsculo dos ídolos; O nascimento da tragédia

Abstract

This article is an exhibition of an interpretation about physiology of art discussed by Friedrich Nietzsche. Our focus is to offer to the reader an analysis of the subject in question by bringing together the books The Birth of Tragedy and Twilight of the Idols. In the last one, the author presents us a thesis about the art that evince a close interconnection between biological condition of the agent and the artistic creation. However, although the physiology of art had gained attention in last works of Nietzsche, similar concerns may already be identified in The Birth of Tragedy.

Keywords:
art; physiology of art; Twilight of the Idols; The Birth of Tragedy

Introdução

O homem, animal múltiplo, mentiroso, artificial e impenetrável, inquietante para os outros animais, menos por sua força que por sua astúcia e sagacidade, o homem inventou a boa consciência para desfrutar finalmente de sua alma como de uma coisa simples. Toda moral é uma longa, uma audaciosa falsificação, graças à qual um desfrute, diante do espetáculo da alma, se torna possível. Desse ponto de vista, há sem dúvidas mais coisas que se incluem no conceito de "arte" do que geralmente se acredita (JGB/BM 291, KSA).1 1 Tradução de Paulo César de Souza (doravante PCS).

De saída, é importante demarcar que em nenhum momento Nietzsche apresenta a arte como um mero deleite recreativo, como apenas arte pela arte, algo desinteressado e sem finalidade. Embora se exclua da arte sua prerrogativa moral, não se segue disso que ela careça de finalidade, de objetivo e de sentido. Para Nietzsche, é imprescindível que a atividade artística glorifique e destaque a vida, como também lhe é indispensável que conduza os viventes a tantas outras possíveis valorações da existência, pois "o essencial dessa concepção é a ideia da arte em relação com a vida: a arte é entendida, tanto no sentido psicológico como em seu sentido fisiológico, como o grande estimulante, como o que nos impulsiona eternamente a viver, a viver eternamente" (NACHLASS/FP 14 [23], KSA 13.228). É com Dioniso que inaugura sua maneira de filosofar, que busca afirmar a vida e escutar o modo como isso se dá através da humanidade. Por meio do dionisíaco, que eternamente se cria e se destrói, o filósofo entende qual o papel da arte na existência: "a arte é essencialmente dizer-sim, abençoar, divinizar a existência..." (NACHLASS/FP 14[47], KSA 13.241).

A filosofia de Nietzsche não acolhe uma definição convencional dos termos "arte" e "estética", nem se configura como uma filosofia da arte propriamente dita; tampouco toma a arte como objeto de contemplação, sempre dedicando-se a ampliar os termos da reflexão sobre a atividade artística, para que ela expanda sua incidência sobre todos os âmbitos da presença humana no mundo. O filósofo pretende uma justificação estética da existência e isso requer mais do que uma crítica direcionada ao que uma obra de arte produz em nós quando contemplada. A exigência é que, ao falar da estética, tenha-se em mente a atividade de dispor e imaginar um mundo no qual o que está em jogo é a afirmação das condições de existência e a criação da boa vida. Numa fórmula, a arte conduz ao amor fati:

Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (FW/GC 276, KSA 3.521, tradução de PCS).

Dito isto, o objetivo deste artigo é propor uma alternativa interpretativa acerca da trajetória do pensamento sobre a arte apresentada por Nietzsche, de modo a entendermos em que consiste o apelo, por parte do filósofo, por uma apreciação estética que parta por princípios biológicos, tal qual ele nos apresenta na obra Crepúsculo dos ídolos. Neste livro, Nietzsche utiliza uma terminologia aguçada pelo forte contato com o trabalho de biólogos de sua época, nela encontramos a ideia de Sócrates como raquítico e como decadente, a investida sobre os desdobramentos da degeneração fisiológica dos indivíduos e da cultura etc. É nesse contexto, junto à tentativa de acompanhar a mais recente situação da fisiologia, que o filósofo apresenta a complexa elaboração de uma análise da criação artística a partir das condições biológicas propiciadas pelo estado de êxtase. A essa análise da relação entre a pré-condição fisiológica do êxtase e a atividade artística, atribuímos o cerne da fisiologia da arte:

Para haver arte, para haver alguma atividade e contemplação estética, é indispensável uma precondição fisiológica: a embriaguez. (...) Neste estado, enriquecemos todas as coisas com a nossa própria plenitude: o que enxergamos, o que queremos, enxergamos avolumado, comprido, forte, sobrecarregado de energia. Neste estado, o ser humano transforma as coisas até espelharem seu poder - até serem reflexos de sua perfeição. Esse ter de transformar no que é perfeito é - arte (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 8-9, KSA 6.116, tradução de PCS).

Percebe-se nesses aforismos que a arte em geral é um fenômeno proveniente do âmbito fisiológico e sua existência está diretamente relacionada a uma determinada condição orgânica. Deste modo, o destaque que as condições fisiológicas recebem no modo como Nietzsche apresenta nesta obra o estatuto da arte poderia implicar, à primeira vista, que os valores estéticos da arte devessem ser explicados recorrendo-se unicamente à biologia. Assim sendo, poderíamos determinar que na medida em que o contato e o interesse pela pesquisa científica-natural se torna mais aguçado, juntamente com o favorecimento de métodos afins ao seu projeto de naturalização do homem, a sua tese, apresentada nos aforismos supracitados, revela, por parte de Nietzsche, uma completa mudança de apreciação, se colocarmos em relação O nascimento da tragédia, sobre o fenômeno arte? Em outras palavras, visto que o cerne da proposta de compreensão da arte apresentada em O nascimento da tragédia é a metafísica de artistas, a fisiologia da arte, na maneira em que é tematizada em Crepúsculo dos ídolos, é uma proposta inversa em relação à primeira?

Segundo Roberto Machado em O nascimento do trágico2 2 MACHADO, R. O nascimento do trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 279. , existem dois eixos centrais para a análise da retomada das preocupações filosóficas com a tragédia grega na Alemanha. O primeiro ponto consiste na diferenciação entre poética da tragédia e filosofia do trágico, isto é, há que se entender um gênero de análise "poetológica", remontando à Poética de Aristóteles, que considera a tragédia de um ponto de vista técnico-artístico, na especificidade do gênero trágico em relação, por exemplo, à epopeia. Já o segundo, denominado posteriormente de filosofia do trágico3 3 "Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar elementos da arte trágica; seu objeto é a tragédia, não a ideia de tragédia. (...) de maneira não-programática, ela atravessa o pensamento dos períodos idealistas e pós-idealistas, assumindo sempre uma nova forma". (SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2004, p. 25). , significa a apropriação filosófica da ideia geral do fenômeno do trágico, cuja originalidade consiste em interpretar o trágico ontologicamente, isto é, como capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana.4 4 "Winckelmann deu início, na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a um estudo dos gregos ou, mais precisamente, da arte grega, interpretação da Grécia em que está em jogo a construção da própria Alemanha; Lessing iniciou, na mesma época, uma reflexão sobre um teatro nacional independente do teatro clássico francês. Goethe e Schiller retomaram e aprofundaram essas questões. Shelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer vão além de seus antecessores, iniciando e desenvolvendo um pensamento sobre o trágico que forma a tradição ou a herança teórica que chegará finalmente a Nietzsche, uma de suas mais sublimes expressões". Roberto Machado, 2006, p. 48.

Machado sugere que há uma inter-relação entre arte e política cultural na Alemanha, no sentido em que as reflexões sobre a arte deixam um pouco de lado a busca por doutrinas normativas que definiriam o que eram os gêneros artísticos e os métodos de suas realizações, para a inserção das atividades artísticas em geral numa reflexão de conteúdo histórico.5 5 "Segundo Szondi, no final do século XVIII há uma transição da teoria aristotélica acerca de formas artísticas atemporais para uma reflexão filosófica sobre conteúdos determinados historicamente." SUSSEKIND, Pedro. In: Peter Szondi, 2004, p. 11. [prefácio] Neste contexto, acerca de Nietzsche - que se refere aos gregos como "nossos luminosos guias" (GT/NT 23, KSA 1.145) - o comentarista aponta que "além de reconhecer que foi com Winckelmann, Goethe e Schiller que o espírito alemão entrou na escola dos gregos, chega a lamentar o enfraquecimento desse projeto de imitação da cultura grega para a constituição da cultura alemã"6 6 Roberto Machado, 2006, p. 176-177. . O jovem professor Nietzsche se insere no debate de sua época perpetuando a ideia central dessa "volta aos gregos": enxerga na força civilizacional do espírito grego expressa nos mitos um elemento indispensável para formar uma cultura forte. No entanto, ele desloca um pouco o seu significado para a formação da cultura ao destacar que aquilo que a tragédia nos ensina, vem menos do antagonismo entre Apolo e Dionísio7 7 "A busca de outro princípio constitutivo do mundo grego - além da serenidade - não é originalidade de Nietzsche. É antes uma constante de toda a interpretação da Grécia desde o nascimento do trágico, isto é, desde a interpretação filosófica, ontológica, metafísica, da tragédia como apresentando uma visão de mundo trágica - o que se deu com o idealismo absoluto, no final do século XVIII. É assim, por exemplo, que a primeira interpretação ontológica de uma tragédia grega - a que Schelling dá, em 1795, de "Édipo rei" - se baseia na oposição e na reconciliação da liberdade e da necessidade. É assim também que a interpretação hegeliana de "Antígona" é feita a partir da oposição entre a família e o Estado. É ainda assim que Hölderlin interpreta "Édipo" e "Antígona" a partir da oposição entre a composição orgânica representada pela sobriedade e o tumulto aórgico originário. Se, portanto, o antagonismo de princípios marca toda a reflexão moderna sobre a tragédia, a originalidade de Nietzsche é formular essa oposição como sendo a do apolíneo e do dionisíaco considerados como princípios de uma estética metafísica". Roberto Machado, 2006, p. 177. do que da aliança entre esses dois princípios, que levava a multidão encantada até a fervura da embriaguez dionisíaca.

É através da mediação da arte, do impulso artístico, que o poder de ação do conhecimento é controlado. Ou seja, a consecução do projeto de renascimento da cultura alemã deve ter na arte o seu norte, pois, segundo Nietzsche, a força da cultura se concentra na capacidade que um povo tem de se abrir ao mito, na capacidade de recompor a existência através da criação de um "teatro" no qual ela possa ser apreciada, aclamada e celebrada. Deste modo, a "volta" aos gregos não figura como fuga do presente, como alienação das necessidades imperativas das lutas históricas, mas sim, como reconstituição do único solo possível para a emergência de uma cultura autêntica: a saúde do povo. É só no seio de um povo sadio que o filósofo acredita ser possível o surgimento de uma cultura forte, pois é a valorização do corpo, dos seus instintos e ritmos naturais, o elemento central para uma vida potente e vigorosa. Tal tese nietzschiana recebe um diagnóstico firme: a tentativa de atribuir sentido à vida sob a crença em certezas e segurança intelectual promove a degeneração das forças vitais, uma vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós se caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento.

O aspecto principal para o renascimento cultural da Alemanha que Nietzsche identificava no drama musical wagneriano é justamente o entrelaçamento da cultura popular expressa na literatura alemã com as questões germânicas, pois estas se baseavam principalmente nas lendas e mitos germânicos.8 8 "Na estrutura cênica dos seus dramas, Wagner buscava revitalizar os mitos germânicos a partir do espírito da música, objetivando apresentar aos espectadores as questões mais complexas e obscuras da existência de maneira compreensível, sem recorrer ao subterfúgio dos raciocínios Complexos". KIEFER, Bruno. O romantismo na música. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 225. O fundamental dessa atividade consistiria na revitalização do mito enquanto sustentáculo da saúde da cultura - tal como ele defendia haver ocorrido analogamente na Grécia arcaica - e na abertura para a construção do sentido da obra de arte por meio da intuição do espectador e não da elaboração abstrata. Segundo o filósofo, a saúde de uma cultura, de uma civilização, depende da adequada administração dos impulsos, de modo que uma civilização em que um impulso particular se sobrepõe aos demais encontra-se em processo de decadência, de doença - por isso defende que é impossível construir uma civilização, uma cultura, a partir do saber racional.

Vivemos, seguramente, graças ao carácter superficial do nosso intelecto, numa ilusão perpétua: temos então para viver, necessidade da arte a cada instante. A nossa visão prende-nos às "formas". Mas se somos nós próprios quem, gradualmente, educa esta visão, vemos também reinar em nós uma "força de artista". Mesmo na natureza se encontram mecanismos contrários ao saber absoluto: o filósofo reconhece a linguagem da natureza e diz: "Temos necessidade da arte" e "só precisamos de uma parte do saber" (NACHLASS/FP 19 [49], KSA 7.435).

Cabe ressaltar que há na Alemanha do século XIX, por um lado, uma demanda pela afirmação da arte como contra-modelo ao modo de vida burguês, um refletir sobre a atividade artística que visa formular uma estética de caráter emancipatório; por outro lado, existiram movimentos que buscavam conduzir a pesquisa sobre a arte através de métodos parelhos aos da pesquisa científica empírica. Dentre estes últimos, podemos destacar as teorias genéticas de Karl Moriz (1756-1793), nas quais a arte deriva de um excesso de força presente na forma de tendência necessária e irresistível que leva o homem ao movimento; e as teorias fisiológicas de Ernst Mach (1838-1916) que busca através da fisiologia encontrar o que torna possível a percepção rítmica.9 9 Cf. BAYER, Raymond. História da estética. Trad. José Saramago. Lisboa: Ed. Estampa, 1979. No entanto, apesar de podermos destacar as inúmeras referências à leitura e interesse de Nietzsche nas publicações afeiçoadas à chamada estética experimental alemã10 10 Bayer, 1979 p. 340 - 345. , sua inserção no debate ocorre a contrapelo dela com a publicação de O nascimento da tragédia.

Interessa-nos observar que, embora Nietzsche não só estivesse a par das abordagens científico-naturais da arte, como também utilizasse uma terminologia comum à biologia para abordar as questões estéticas, ele não dissimulava sua posição crítica a respeito da suficiência científica para questões relativas à arte. Não se trata de uma negação incondicional do valor explicativo dos conceitos científicos, e sim, da demonstração da insuficiência de uma explicação nesses termos quando erigida em forma explicativa única. Tal crítica aparece em O nascimento da tragédia, por exemplo, em: "por uma fraqueza peculiar de nossa capacidade moderna, tendemos a complicar o protofenômeno estético e a representá-lo de maneira muito complicada e abstrata" (GT/NT 8, KSA 1.57). Se a justificação última de um conceito se dá no âmbito da pura abstração, este não pode figurar como critério para as questões da arte porque, segundo Nietzsche, a arte diz respeito à vida entendida enquanto impulso, pulsão, instinto. A razão, o pensamento, a lógica, a consciência são de origem tardia e, por isso, menos significativos e menos expressivos.

Não cabe discutir neste artigo uma apreciação das razões que o filósofo apresenta para justificar sua crítica e sua proposta, mas sim ressaltar que tais ponderações apresentam a valorização do impulso como eixo central da proposta nietzschiana de interpretação da arte, sendo que suas reflexões, antes de expressarem uma descrença da sua parte na plausibilidade da explicação científica para as questões estéticas, apresentavam uma nova possiblidade de apropriação deste tipo de método. Essa perspectiva ressalta a tese de que o filósofo está a favor da atuação da filosofia como gênero político-cultural ativo, pois as tarefas da filosofia são retomadas na tragédia: a arte trágica sabe que a condição humana é desfavorecida e frágil, mas não se intimida perante isso, ao avesso, propõe a criação para aproveitar esse material, cria para honrar o espírito de luta dos homens, que preferem viver a sucumbir. Nessa criação, devolve o gosto bom de tudo, pois aprende e ensina que é infinitamente preferível poder existir ao invés de ser nada (FW/GC 370, KSA 3.619).

Não obstante, a formulação nietzschiana de uma fisiologia da arte não tem um desenvolvimento detalhado tanto nas obras publicadas quanto nos fragmentos póstumos e por isso seu estudo implica dificuldades metodológicas. Principalmente porque o uso do termo fisiologia por parte do autor não é inequívoco, pois se Nietzsche não deixa evidentes os limites da apropriação que ele faz do termo, tampouco fundamenta claramente a relação que faz entre a criação artística e a fisiologia, entendida enquanto ramo de estudo biológico. Neste sentido, o ponto a ser explorado pelo artigo é que "embora a 'fisiologia da arte' seja comumente associada com seus escritos tardios, uma tentativa de repensar a experiência estética e a produção artística como estados fisiológicos e afetivos pode ser atribuída já a "O Nascimento da tragédia"11 11 RAMPLEY, Matthew. Nietzsche, aesthetics and modernity. New York: Cambridge University Press, 2000, p. 173. , pois os impulsos apolíneo e dionisíaco, apresentados por Nietzsche neste livro, não são apenas modos de expressão artística do homem, mas "poderes artísticos que, sem a mediação do homem, irrompem da própria natureza" (GT/NT 2, KSA 1.30), donde "ambos estados estéticos, Nietzsche declara explicitamente, são acompanhados por 'fenômenos fisiológicos', pelo 'sonho' e pela 'embriaguez'".12 12 MOORE, Gregory. Nietzsche, biology and metaphor. New York: Cambridge University Press, 2002 p. 93.

Assim, mesmo que a fisiologia da arte seja tradicionalmente associada aos escritos tardios de Nietzsche, pode-se traçar desde a primeira obra seu interesse acerca da experiência estética como manifestação fisiológica. Na sequência da exposição, procuraremos delimitar os aspectos convergentes no pensamento de Nietzsche sobre estética, cotejando as abordagens que aparecem em O Nascimento da Tragédia (1871) e Crepúsculo dos ídolos (1888), para apresentarmos uma definição sobre a abrangência da relação entre fisiologia e arte na obra do pensador.

Considerações sobre a arte em "O Nascimento da tragédia" e "Crepúsculo dos ídolos".

Para tentar traçar uma continuidade a respeito do pensamento sobre a fisiologia da arte na filosofia nietzschiana, começamos por considerar a utilização de termos comuns em sua primeira obra publicada, que data de 1871, e em seus últimos escritos publicados em 1888. Isto porque a embriaguez, que aparece como elemento fundamental para a emergência da tragédia em O nascimento da tragédia, também é considerada imprescindível para que haja arte em Crepúsculo dos ídolos. De modo geral, nossa intenção é argumentar em favor da conjectura segundo a qual o abandono, no decorrer de suas obras, da reflexão metafísica correlata à "tese estética" de O nascimento da tragédia, não implica a falência dessa própria "tese estética". Ou seja, apesar das mudanças teóricas e contextuais que ocorrem após 1871, a intuição central do pensamento nietzschiano sobre a arte, parece se manter ao longo da obra e, por isso, podemos fazer o tema da fisiologia da arte retroagir até a primeira obra de Nietzsche.

Acreditamos que podemos defender esta hipótese através da análise da aproximação entre fisiologia e arte dentro daquilo que é exposto, principalmente, em O nascimento da tragédia, apontando, por sua vez, que o recurso a essa aproximação condiz com as condições impostas pelo ambiente teórico no qual Nietzsche é formado, destacando que a fisiologia já é, desde seus escritos de juventude, um conhecimento indispensável para a estética. Assim, o que chamamos aqui de "tese estética" é o que aparece no livro Crepúsculo dos ídolos: "para haver arte, para haver alguma atividade e contemplação estética, é indispensável uma precondição fisiológica: a embriaguez" (GC/CI, Incursões de um extemporâneo, 8, KSA 6.116) e, como pretendemos demonstrar, este elemento pode ser compreendido como central nos dois períodos em questão da obra de Nietzsche, de modo a evidenciar que a atividade artística, segundo o autor, surge de uma disposição para com a existência que tem suas origens no corpo.

Recorrendo à história e à fisiologia, o filósofo suprime o lugar onde se colocava a oposição entre corpo e alma e promove o conceito corpo como uma aglomeração de impulsos e instintos, formada por inúmeros seres vivos microscópicos que lutam entre si. O combate permanente entre uma pluralidade de adversários seria, então, a estrutura básica do corpo, através da qual o filósofo afirma que "a vida vive sempre a expensas de outra vida" (NACHLASS/ FP 2 [205], KSA 12.167). Isto ocorreria porque, justamente, a luta é seu traço fundamental. Segundo Scarlett Marton, "desse ponto de vista, a luta garante a permanência da mudança: nada é senão vir-a-ser"13 13 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010, p. 52. .

Não cansamos de maravilhar-nos com a ideia de que o corpo humano se tornou possível, de que essa coletividade inaudita de seres vivos, todos dependentes e subordinados, mas num outro sentido dominantes e dotados de atividade voluntária, possa viver e crescer enquanto um todo e subsistir algum tempo (NACHLASS/ FP 37 [4], KSA 11.576).

A luta é o que estabelece o arranjo hierárquico dos diversos elementos de modo a proporcionar integridade: uns se submetem a outros, que por sua vez se acham subordinados a outros ainda. Assim Nietzsche entende o corpo como unidade em que os processos contínuos de dominação e assimilação assemelham-se à própria vida. Portanto, pensamentos, sentimentos e impulsos, atividades que comumente são associados àquilo de mais humano que há na espécie, são descentralizados e disseminados pelo organismo. Na mesma medida, não faria sentido, fisiologicamente falando, conceber um aparelho neuro-cerebral responsável pelas atividades humanas relacionadas analogamente ao que seria uma vontade única. Tal como ele propõe em um fragmento póstumo:

O aparelho neuro-cerebral não foi construído com essa "divina" sutileza na intenção única de produzir o pensamento, o sentimento, a vontade, parece-me, bem ao contrário, que justamente não há necessidade alguma de um "aparelho", para produzir o pensar, o sentir e o querer, e que esses fenômenos, e apenas eles, constituem a própria "coisa" (NACHLASS/FP 37 [4], KSA 11.576).

Consentindo que tais atividades já se encontram presentes nas células, tecidos e órgãos, Nietzsche não se restringe a afirmar que a atividade artística teria apenas uma base neurofisiológica, mas, mais do que isso, procura abolir a distinção entre físico e psíquico. Isto porque deixando de ter sentido a ideia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, na mesma medida a atividade artística não poderia ser considerada uma atividade exclusiva do espírito, pois, o próprio trabalho do organismo já carregaria consigo uma espécie de valoração anterior ao agir. Um processo de interpretação e avaliação dos estímulos de modo a conferir uma forma para as ações que sejam interessantes ao próprio organismo, que manifeste o interesse daquele corpo em manter um determinado quadro ou a projetar sobre a realidade elementos que são criados para favorecer a sua própria configuração.

Essa perspectiva representa uma compreensão da arte plena de implicações metafísicas, formulada na juventude por Nietzsche. Mas, como ele próprio observa alguns anos mais tarde, a afirmação da "metafísica de artista" não era a preocupação central do livro, mas sim observar como "sintoma da vida" (GT/NT, Tentativa de autocrítica 1, KSA 1.11) o estabelecimento das formas de cultura da espécie: "Sim, o que é dionisíaco? - neste livro [O nascimento da tragédia] há uma resposta a essa pergunta" donde podemos afirmar que a resposta passa pela compreensão da "relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade" pelo qual, coube perguntar, "em virtude de que vivência de si mesmo, de que ímpeto, teve o grego de imaginar como sátiro o entusiasta e homem primitivo dionisíaco?" (GT/NT, Tentativa de autocrítica 4, KSA 1.15).

Desse modo, a preocupação de Nietzsche com a percepção e o sentido que os gregos da época das tragédias davam às suas experiências indica que ele procura erguer seu discurso tomando por base o caráter imanente daquilo que o homem projeta sobre a existência. Esta orientação filosófica, que serve como ponto de partida para a análise nietzschiana da tragédia ática, precisou em um primeiro momento da distinção de cunho schopenhaueriano entre vontade e aparência - representados por Nietzsche na dualidade entre Apolo e Dionísio - para mostrar que a imagem que o ser humano constrói diante do processo de vir-a-ser constante do mundo é diretamente ligada à sua postura diante das manifestações fisiológicas do seu corpo, pois há duas formas distintas de apreciação das mesmas.

O processo de construção da imagem daquilo que é o devir da existência ou do mundo é explicado por Nietzsche em O nascimento da tragédia através do recurso aos impulsos artísticos da natureza. Trata-se de um recurso metafísico, na medida em que apela para um processo transcendente de instauração da cultura humana, mas cabe insistir que não é o uso desse recurso o fundamental para aquilo que o filósofo compreende como criação artística. Tal como também aparece em Crepúsculo dos ídolos, "o ser humano transforma as coisas até espelharem seu poder (...) esse ter de transformar no que é perfeito é - arte" (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 9, KSA 6.116, tradução de PCS); em 1871 o filósofo expõe que a atividade artística é um meio necessário para o homem se apropriar daquilo que, na sua própria experiência, lhe é fugidio, dando-lhe uma bela forma:

Essa alegre necessidade da experiência onírica foi do mesmo modo expressa pelos gregos em Apolo: Apolo, na qualidade de deus dos poderes configuradores, é ao mesmo tempo deus divinatório. (...) A verdade superior, a perfeição desses estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacurnamente inteligível, seguida da profunda consciência da natureza reparadora e sanadora do sono e do sonho, é simultaneamente o análogo simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida (GT/NT 1, KSA 1.25)14 14 Tradução de J. Guinsburg (doravante JG) .

A nosso ver, a definição do que é a arte, exposta na última fase de sua produção filosófica, permite-nos propor que existe um traço central nas considerações estéticas de Nietzsche que nos ajuda a sustentar a "fisiologia da arte" como proposta filosófica mais adequada para a compreensão do fenômeno artístico como um todo. Pretende-se demonstrar que, em alguma medida, a dependência da atividade artística em relação às manifestações fisiológicas, que permanece no pensamento de Nietzsche sobre a estética até o final de sua obra, tem sua origem já no livro de estreia.

As preocupações gerais de O nascimento da tragédia buscam elevar o discurso tradicional da estética a reconhecer na arte algo além do que um divertido adorno. Nietzsche, alertando alguns leitores, diz que "ver um problema estético ser tomado tão a sério, caso não estejam em condições de reconhecer na arte mais do que um divertido acessório, do que um tintinar de guizos que se pode muito bem dispensar" (GT/NT, Prefácio para Richard Wagner, KSA 1.23, tradução de JG) poderia ser motivo de controvérsias entre os "homens sérios". Essa transformação do estatuto da estética em relação à existência não ocorre por meio de uma investida nietzschiana em outro modo de pensar a atividade artística, outrossim, junto à tradição da Estética como campo da filosofia que trata do conhecimento sensível - que pode ser percebido logo nas primeiras linhas de O nascimento da tragédia: "teremos ganho muito a favor da ciência estética..." (GT/NT, 1 KSA 1.25).

No início do livro, a origem da tragédia ática é enraizada na capacidade do povo helênico em unir a arte apolínea e a arte dionisíaca em um mesmo fenômeno cultural. É interessante observar que, segundo Nietzsche, a manifestação da capacidade grega é caracterizada como um ato metafísico da vontade helênica. "A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, (...) até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da vontade helênica, apareceram emparelhados" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG). Apolo e Dionísio são forças antagônicas que, em nível ontológico, são independentes e agem em conflito sem serem necessariamente vinculados ao indivíduo, de modo que não são os impulsos por si só que configuram a tragédia ática, mas a apropriação específica que o povo grego faz deles. Nietzsche, então, está propondo que mesmo que estes impulsos sejam independentes em relação ao aspecto subjetivo da reflexão consciente dos gregos, eles só construíram um gênero artístico a serviço de uma força exterior que advém daquilo que o filósofo denomina de vontade helênica.

Nesta conjuntura abre-se espaço para nos situarmos melhor em relação ao papel que a fisiologia tem no primeiro livro do filósofo. O ponto de partida de Nietzsche para a análise da tragédia é a avaliação de que existem diferentes posturas, entre os tipos de indivíduos, em relação aos dados objetivos que podemos conhecer daquilo que é a existência em sua completude. Ou seja, em relação às reações fisiológicas do organismo, cada ser humano exercitase para a vida de maneira diferente e cada maneira, por sua vez, carrega consigo suas peculiaridades. Assim nos fala Nietzsche em O nascimento da tragédia:

A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também, como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração (...) não há nada que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica temos ainda, todavia, a transluzente sensação de sua aparência: (...) em cujo favor poderia aduzir alguns testemunhos e passagens de poetas. O homem de propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta outra, inteiramente diversa, que portanto também é uma aparência. (...) Assim como o filósofo procede para com a realidade da existência [Dasein], do mesmo modo se comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; (...) pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base nessas ocorrências exercitase para a vida (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

Extrapola nossos limites discutir como o filósofo justifica essa descrição dos tipos de compreensão da realidade, o que interessanos ressaltar é que, após a descrição da condição imposta pelo estado onírico do sonho - liberdade em relação ao sensível, consciência de aparência das coisas, preferência em relação ao devir - e suas consequências em relação à tomada de posição sobre a existência que aquele estado fisiológico suscita, Nietzsche indica que é a partir da preferência (alegre necessidade) em promover as características concernentes ao sonho, como referência que torna a existência possível, aquilo que leva os gregos a darem a forma de Apolo à experiência onírica, "o fundo comum a todos nós, colhe no sonho uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade. Essa alegre necessidade da experiência onírica foi do mesmo modo expressa pelos gregos em Apolo" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

A descrição realizada pelo filósofo do caráter imanente da emergência de Apolo permite-nos compreender com mais clareza a presença central da aproximação entre fisiologia e arte em O nascimento da tragédia, pois é pela prazerosa sensação do estado fisiológico do sonho e a condição favorável à expansão da vida que a experiência onírica carrega consigo (crescimento, embelezamento, expansão das potências etc.), que Nietzsche acredita ser determinante para o estabelecimento da figura de Apolo como deus que "reina também sobre a bela aparência" (GT/NT 1, KSA 1.25). Isto é, os resultados fisiológicos que a experiência onírica traz servem de referência para a construção de uma cultura - e tudo que isso acarreta - na qual o crivo para o valor da sua existência é dado pela intuição que se faz da experiência do sonho, do mesmo modo que suas limitações também emergem daquela situação.

A condição de realidade que o estado onírico proporciona e a transposição para a realidade dos mesmos parâmetros estabelecidos na experiência onírica são explicitadas pelo filósofo através da promoção das condições favoráveis à vida, compreendida organicamente, que a égide de Apolo suscita. Isto ocorre porque, supostamente libertados da influência das "verdades sensíveis", toda criação é possível, tudo é prefeito e seguro na medida em que não recai sobre a experiência onírica a contrapartida trágica que a realidade sugere. Porém, "as imagens agradáveis não são as únicas que o sujeito experimenta dentro de si com aquela onicompreensão, mas, outrossim, as sérias, as sombrias (...) toda a divina comédia, desfila à sua frente" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG) o que, por sua vez, faz preferir um outro estado de consciência possível. Pois, "em meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos, por vezes tomaram-se coragem e conseguiram exclamar: é um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

Dado que toda compreensão, criação e construção de sentido para a realidade só pode ser erguida sobre a experiência que o corpo tem daquilo que o afeta, as experiências do dionisíaco e do apolíneo possuem o mesmo estatuto epistêmico. Desse modo, o que Nietzsche aponta como o cerne da maneira como foi possível para os gregos criarem a tragédia depende diretamente de uma atitude que se impõe entre os helenos e que é compreensível apenas fisiologicamente, pois "tampouco deve faltar à imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem onírica não pode ultrapassar, a fim de não atuar de um modo patológico, pois, do contrário, nos enganaria como realidade grosseira" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

Daí se infere que é a promoção das condições de vida que este estado suscita que faz emergir a confiança no princípio de individuação, "a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda sabedoria da 'aparência', juntamente com a sua beleza" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG). A palavra aparência é grafada entre aspas por Nietzsche porque, neste momento, a aparência é tomada como realidade, visto que ela completa os requisitos racionais para tanto.

Não acreditamos, com isso, analisar a pertinência do recurso à fisiologia pelo filósofo, apenas indicar que o uso do termo fisiologia aparece neste primeiro momento para explicar que os impulsos apolíneo e dionisíaco são independentes em relação ao sujeito, no sentido de que não operam na esfera da consciência, de maneira a esclarecer os dois níveis distintos em que, segundo Nietzsche, se baseiam as representações. Um que é o sonho, que significa não estar sob a influência e as limitações da sensibilidade; o outro é a embriaguez, que significa estar em êxtase com a sensibilidade e, por conseguinte, exposto à fragilidade e ao caráter perecível da vida. A condição necessária para que o estado apolíneo não seja patológico, então, é que, indiferente ao estímulo físico, aquela suposta condição de individuação, que concede individualidade e multiplicidade no seio do devir através do espaço e do tempo, não pode falhar. Pois, do contrário, o desespero pode bater à porta e colocar por terra as características que fazem do estado onírico uma opção favorável à vida.

Para Nietzsche, o rasgo no princípio de individuação proporciona a emergência de algo que provém do mais profundo do homem: "Schopenhauer nos descreveu o imenso terror que se apodera do ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG), e que, por sua vez, provocaria um grande êxtase naquele que experimenta tal dissolução, "se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, (...) sernos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que nos é trazido a nós, o mais perto possível, pela analogia da embriaguez" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

Nietzsche contrapõe Dionísio a Apolo porque fisiologicamente eles fomentam dois estados de consciência diferentemente opostas entre os viventes, ou seja, a experiência que se tem das condições da existência em ambos estados são conflituosas. Pois, enquanto Apolo se manifesta junto à experiência do sonho, pela qual o princípio de individuação é exaltado e a capacidade plástica de dar formas ao todo informe é senhora absoluta, Dionísio rompe com a soberania onírica na medida em que o antagonista, capaz de derrubar a pedra basilar da realidade apolínea, emerge para o vivente como condição necessária da existência.

Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. Espontaneamente oferece a terra as suas dádivas e pacificamente se achegam as feras da montanha e do deserto (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

A condição apolínea, que é perpetuada por favorecer a expansão e fortalecimento da vida, não pode ser abraçada indefinidamente, muito menos por seu caráter cognitivo de aparência do que por ser um movimento do espírito que nega um aspecto importante da composição do próprio homem. O frêmito da embriaguez dionisíaca traz consigo a consciência da ilusão que é o apolíneo, pois as ações pautadas pela individuação são subsumidas pela força da natureza e "o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte" (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG). A própria condição humana traz consigo o deslocamento do aparente distanciamento da natureza para um ser que está lutando a todo o momento pela criação de si como aquele capaz de suportar o turbilhão de contradições que a existência apresenta e, dependendo das condições fisiológicas que se projeta em troca, aproveitar e embelezar o fato de fazer parte deste todo, deste frêmito que engloba a vida.

Com isto Nietzsche não faz uma separação dos impulsos que irão compor a tragédia através de uma hierarquização de ambos por um recorte epistemológico, ontológico ou metafísico, mas pela experiência fisiológica que os diferentes estados suscitam. Donde podemos sugerir que a fisiologia é central para Nietzsche construir sua tese: a condição da embriaguez dionisíaca já é estabelecida, desde o início, como o elemento central para que haja a atividade artística. É a capacidade do homem em dar uma forma própria ao que é experienciado fisiologicamente que gera a arte.

Se se transmuta em pintura o jubiloso hino beethoveniano à "Alegria" e se não se refreia a força de imaginação, quando milhões de seres frementes se espojam no pó, então é possível acercar-se do dionisíaco. Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a "moda imprudente" estabeleceram entre os homens. (...) ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem (GT/NT 1, KSA 1.25, tradução de JG).

Deste modo, podemos afirmar que a aproximação ou o recurso à fisiologia como parâmetro de análise para a atividade artística é, para Nietzsche, tão importante em O nascimento da tragédia quanto em o Crepúsculo dos ídolos, pois é a promoção da sua fisiologia como crivo máximo para a compreensão que o homem tem da realidade, que permite ao filósofo atribuir à atividade artística, em ambos os livros, a sua dependência a uma determinada atitude ao nível fisiológico. Assim, acreditamos que esta hipótese é demonstrada no acompanhamento do enredo que Nietzsche concede ao aproveitamento que os gregos fazem dos impulsos apolíneo e dionisíaco, em O nascimento da tragédia, para a criação da tragédia ática e na definição de uma pré-condição fisiológica para a arte em O crepúsculo dos ídolos.

Referências Bibliográficas

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  • SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2004.
  • 1
    Tradução de Paulo César de Souza (doravante PCS).
  • 2
    MACHADO, R. O nascimento do trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 279.
  • 3
    "Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar elementos da arte trágica; seu objeto é a tragédia, não a ideia de tragédia. (...) de maneira não-programática, ela atravessa o pensamento dos períodos idealistas e pós-idealistas, assumindo sempre uma nova forma". (SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2004, p. 25).
  • 4
    "Winckelmann deu início, na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a um estudo dos gregos ou, mais precisamente, da arte grega, interpretação da Grécia em que está em jogo a construção da própria Alemanha; Lessing iniciou, na mesma época, uma reflexão sobre um teatro nacional independente do teatro clássico francês. Goethe e Schiller retomaram e aprofundaram essas questões. Shelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer vão além de seus antecessores, iniciando e desenvolvendo um pensamento sobre o trágico que forma a tradição ou a herança teórica que chegará finalmente a Nietzsche, uma de suas mais sublimes expressões". Roberto Machado, 2006, p. 48.
  • 5
    "Segundo Szondi, no final do século XVIII há uma transição da teoria aristotélica acerca de formas artísticas atemporais para uma reflexão filosófica sobre conteúdos determinados historicamente." SUSSEKIND, Pedro. In: Peter Szondi, 2004, p. 11. [prefácio]
  • 6
    Roberto Machado, 2006, p. 176-177.
  • 7
    "A busca de outro princípio constitutivo do mundo grego - além da serenidade - não é originalidade de Nietzsche. É antes uma constante de toda a interpretação da Grécia desde o nascimento do trágico, isto é, desde a interpretação filosófica, ontológica, metafísica, da tragédia como apresentando uma visão de mundo trágica - o que se deu com o idealismo absoluto, no final do século XVIII. É assim, por exemplo, que a primeira interpretação ontológica de uma tragédia grega - a que Schelling dá, em 1795, de "Édipo rei" - se baseia na oposição e na reconciliação da liberdade e da necessidade. É assim também que a interpretação hegeliana de "Antígona" é feita a partir da oposição entre a família e o Estado. É ainda assim que Hölderlin interpreta "Édipo" e "Antígona" a partir da oposição entre a composição orgânica representada pela sobriedade e o tumulto aórgico originário. Se, portanto, o antagonismo de princípios marca toda a reflexão moderna sobre a tragédia, a originalidade de Nietzsche é formular essa oposição como sendo a do apolíneo e do dionisíaco considerados como princípios de uma estética metafísica". Roberto Machado, 2006, p. 177.
  • 8
    "Na estrutura cênica dos seus dramas, Wagner buscava revitalizar os mitos germânicos a partir do espírito da música, objetivando apresentar aos espectadores as questões mais complexas e obscuras da existência de maneira compreensível, sem recorrer ao subterfúgio dos raciocínios Complexos". KIEFER, Bruno. O romantismo na música. In: GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 225.
  • 9
    Cf. BAYER, Raymond. História da estética. Trad. José Saramago. Lisboa: Ed. Estampa, 1979.
  • 10
    Bayer, 1979 p. 340 - 345.
  • 11
    RAMPLEY, Matthew. Nietzsche, aesthetics and modernity. New York: Cambridge University Press, 2000, p. 173.
  • 12
    MOORE, Gregory. Nietzsche, biology and metaphor. New York: Cambridge University Press, 2002 p. 93.
  • 13
    MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010, p. 52.
  • 14
    Tradução de J. Guinsburg (doravante JG)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2015
  • Aceito
    17 Set 2015
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