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Nietzsche, o grande solitário* * Publicado no Correio da Manhã. Rio de Janeiro, domingo, 10 de Novembro de 1935, p. 7. Publicado também no Correio Paulistano. São Paulo, Domingo, 17 de Novembro de 1935, p. 14.

Resumo

Buscando mostrar a importância que a solidão tinha para Nietzsche, a autora discorda da abordagem defendida por Édouard Schuré ‒ na obra Precursores e revoltados ‒ de que o filósofo conhecera a "embriaguez da solidão" mas também experimentara a sua "amargura até a última gota". Para ela, o mundo interior de Nietzsche teria lhe permitido "momentos de êxtase que só os profundos conhecem". Nietzsche, ademais, vivenciara uma solidão que somente começa a ser sentida por outros indivíduos após a guerra que abalou moralmente o mundo. Por esta razão, ele seria "o amigo de todos os atormentados" que procuram a felicidade e a verdade, embora elas jamais possam ser alcançadas.

Palavras-chave
Nietzsche; filosofia; solidão; moral; guerra

Abstract

In seeking to show the importance that solitude had to Nietzsche, the author disagree with the approach proposed by Édouard Schuré - in the work Precursores e revoltados -, according to which the philosopher had known the "intoxication of solitude", but had also experienced its "bitterness till the last drop". For her, Nietzsche´s inner world would have allowed him ecstasy moments that just the deep ones know about. Furthermore, Nietzsche had experienced a solitude that starts to be felt by other individuals after the war that morally undermined the world. For this reason, he would be "the friend of all the tormented ones" who seek the happiness and the truth, although they never can be found.

Keywords
Nietzsche; philosophy; solitude; moral; war

Homem algum, mais do que Frederico Nietzsche, viveu tão profundamente a vida, dentro de maior solidão. Qual as águias que habitavam os altos cumes, habitou ele, sempre isolado, o seu mundo interior, povoado de augusta e árida beleza, mundo este ao qual outros homens - nem mesmo Wagner! - jamais puderam sair, mundo maravilhoso e triste, trágico e encantador ao mesmo tempo, do qual ele nunca quis descer entre os mortais. E ali, nos altos cumes vazios que qualquer outra presença, que nem o amor nem a amizade puderam atingir, encontrou ele a felicidade? Não, por certo, e nem podia encontrar a mentira linda que ele sabia não existir. Procurou, porém, com toda a sede de sua alma ardente, a outra mentira mais cruel ainda talvez, e quando julgou encontrá-la, soçobrou na loucura! Tendo sido um gênio, um eterno atormentado do Ideal, foi por isto mesmo, um grande sofredor.

Sobre a estranha personalidade de Nietzsche, sempre tão discutida, tão pouco compreendida, escreve Édouard Schuré; este outro grande peregrino do Ideal:

- "Frederich Nietzsche personifica o individualismo em seus últimos excessos, mas com uma energia e uma certa grandeza que muito o eleva acima dos habituais diletantes do eu. Possui todos os defeitos do orgulho, mas também a sua qualidade suprema: o desprezo da popularidade. Conheceu a embriaguez da Solidão, mas bebeu-lhe também a amargura até a ultima gota."

Por certo, pouco deve ter importado ao gênio o fel sorvido, se com esse fel ele pode comprar os momentos de êxtase que só os profundos talentos conhecem, êxtase este alto e sagrado, que só a deliciosa e amarga embriaguez da solidão pode dar e da qual nem todos podem gozar.

Desprezando o mundo - porque bem o conhecia - Nietzsche teve um mundo maravilhoso, por ele criado e só por ele habitado, mundo este que ele sonhou partilhar com Wagner, aquele que ele elegera para amigo supremo, para irmão de alma. Sonho vão, como todos os pobres sonhos ideais que fazemos na terra.

Wagner não quis galgar com o companheiro os altos cumes solitários que lhe pareceram por demais áridos.

Porque apesar da simplicidade divina de sua música - que a mim sempre pareceu a própria negação da teoria amarga do materialismo - porque apesar de todo o misticismo de Parsifal - Richard Wagner nunca viveu pessoalmente acima da vida. Separou estranhamente a Arte da realidade - não foi neste ponto o discípulo bem-amado de Liszt - e conservou-se sempre "humain, trop humain ...".

"O caso Nietzsche - escreve ainda Schuré - é a doença dominante das jovens gerações".

Agora, depois da guerra que bem mais moral que materialmente abalou o mundo, o caso de Nietzsche é o próprio caso da humanidade.

Por toda a terra existe hoje uma trepidação de nervos, um anseio de almas, uma angústia de espíritos. Para que vivemos todos, a não ser os "simples" aos quais foi prometido o reino dos céus, na expectativa torturante de um mistério que se vai desvendar?

As verdades de ontem que davam paz e consolo, não mais nos bastam. E o que talvez nos desse hoje o consolo e paz, permaneceu na torturante angústia de uma eterna expectativa.

A vida pode ter sido outrora uma serena afirmação; hoje é uma interrogação dolorosa, a mais dolorosa de todas as interrogações!...

É por isto que Frederico Nietzsche será sempre o grande amigo de todos os atormentados que desejaram encontrar o caminho certo em meio de tantas sendas que enganam, de todos os pobres torturados que "par delà le bien et le mal" aspiram por um pouco de luz a iluminar-lhes a estrada onde tão feridas ficam os pés e os corações...

Mas a verdade não é como a estrela do pastor que levou os magos ao berço daquele que viera salvar o mundo.

Assim como a felicidade, a verdade não é talvez mais do que um mito e foge toda a vez que julgamos alcançá-la.

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    Publicado no Correio da Manhã. Rio de Janeiro, domingo, 10 de Novembro de 1935, p. 7. Publicado também no Correio Paulistano. São Paulo, Domingo, 17 de Novembro de 1935, p. 14.
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    Pseudônimo de Abiah Lopes (1895-1975). Jornalista, poetisa e trovadora. Autora de Fumaça do meu cigarro (1948).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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