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Nietzsche e Léon Bloy* * Publicado na Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, domingo, 17 de Novembro de 1940, p. 3.

Resumo

Confessando sua admiração por Nietzsche e Léon Bloy, o autor busca traçar um paralelo entre ambos para mostrar que tanto o filósofo alemão como o romancista e ensaísta francês atribuíam a si mesmos uma importância e uma grandeza que também será objeto de reconhecimento pela posteridade, ou seja, revelariam por antecipação a segurança de serem os dois maiores autores do século XIX.

Palavras-chave
Nietzsche; Léon Bloy; genialidade; coragem; semelhanças

Abstract

In confessing his admiration for Nietzsche and Léon Bloy, the author seeks to draw a comparison between them to show that both the German philosopher and the French novelist and essayist assigned to themselves an importance and a greatness that will be object of appreciation by the generations to come, that is to say, it would disclose in advance the sureness to be the two greater authors of the XIX century.

Keywords
Nietzsche; Léon Bloy; geniality; courage; similarities

Homens como Michelangelo ou Beethoven, como Nietzsche ou Léon Bloy, só são lealmente avaliáveis pela opinião que formam sobre si mesmos. Para os homens comuns, valem e têm sentido as pequenas críticas e os pequenos senões. Exige-se mesmo a mais absoluta modéstia. Critica-se desse ângulo e não se sorri quando alguém, para castigá-los de pretensões absurdas, invoca a paranoia, ‒ explicação última de opiniões por demais ridículas.

Os grandes homens, os que, como Nietzsche ou Léon Bloy, rompem em todos os pontos os quadros comuns, escapam evidentemente a essa pequena política dos críticos. E, quando têm consciência do seu valor, atribuem-se eles próprios a importância e a grandeza com que a posteridade os vai ver. Classificam-se sem auxílio de ninguém e a nós cabe apenas, com a grande humildade dos que sabem admirar ilimitadamente, ir aprender deles a coragem de ser sincero para consigo mesmo e de não trair, nem por omissão, nem por palavras de falsa modéstia, o dom incomensurável recebido de Deus.

Homens assim privilegiados valem realmente o que julgam, e será traição querer admirá-los sem concordar de modo integral com o julgamento que formam sobre si mesmos. Dar-lhe menos - ainda que seja muito - é negar-lhes tudo. É reincidir na incompreensão que os tomou toda vida e é, de certo modo, negar que possam ser levados a sério. Uma vez aceitos, uma vez conquistada a nossa admiração, não é possível regatear-lhes nada do que pedem. Ou a recusa inicial ou a adesão sem restrições. Porque, do bloco único, nada é possível arrancar sem destruir imediatamente o todo. Nietzsche, como Léon Bloy, tem a consciência de um valor e é porque os acompanhamos nesses julgamentos, por mais longe que vão - e nunca ninguém caminhou tanto... - que ousamos falar deles.

Confessemos mesmo: poucas coisas admiramos tanto neles, como a coragem que afirmam no mais alto dos tons, o que descobriram valer e representar para o Mundo. Como um Michelangelo, como um Beethoven, como um Byron, como um Dostoievsky, como um Lawrence, Nietzsche e Léon Bloy, ‒ que quero isolar aqui porque, em pleno século XIX, se assemelham como o abismo se assemelha ao outro abismo, que ele chama, segunda as Escrituras, ‒ Nietzsche e Léon Bloy proclamam, e o mais alto que podem, a grandeza que trazem dentro de si e a importância que o seu pensamento têm ou vai ter para a humanidade, visceralmente ferida, ameaçada de morte.

"Eu sou um acontecimento", proclama Nietzsche. "Divido em dois períodos a história do Mundo". E adiante: "É em mim que fica situado o ponto culminante do pensamento e do esforço moral da Europa e de muitas outras coisas ainda. Talvez ainda chegue o tempo em que as próprias águias levantem timidamente os olhos para mim". (Nietzsche - Cartas). E ainda: "Eu sou, sem comparação, o homem mais terrível que já existiu" (Nietzsche, Ecce Homo, pag. 164).

Em ousadia, Léon Bloy não se deixa bater. Sua voz tem mesmo um não sei quê de resposta a Nietzsche, quando declara: "Eu sou o único de minha espécie", (Léon Bloy - La Porte des Humbles). E em mais de uma ocasião se proclama o grande pensador do Cristianismo, o maior dos escritores de sua terra, o único que devia ser meditado, estudado, ensinado aos outros homens. Chega mesmo a dizer, falando de suas obras: "decididamente esse livro é por demais belo para os contemporâneos. Tenho receio que um dia me sejam pedidas contas desse desperdício ante porcos" (Léon Bloy - La Porte des Humbles).

Como Léon Bloy, para quem os seus livros são todos extraordinários, "feitos para alguns que são chefes aos olhos de Deus, e que podem conduzir o rebanho", (Léon Bloy - L'Invendable), Nietzsche considera os seus decisivos, fundamentais para o destino do Mundo, os mais profundos que já se escreveu. E todos revelam-no, a ele que é uma "fatalidade para a história dos homens" (Nietzsche, Ecce Homo). Também uma fatalidade se considerava Léon Bloy. "É esmagador, confessa ele no fim da sua vida, saber que recebi um tão grande poder de me assenhorear das mais nobres almas" (Léon Bloy - Au seuil de L'Apocalypse). E adiante lamenta: "Há homens com fome do pão que eu poderia lhes dar e nem mesmo sabem que eu existo. Estão me descobrindo aos poucos, muito dificilmente" (Léon Bloy - La Porte des Humbles).

A mesma lástima ecoa durante toda a vida de Nietzsche. Mas, nenhum dos dois duvida de que venha a ser descoberto, compreendido, venerado. - "Conheço o meu destino, declara Nietzsche. Um dia se ligará o meu nome à lembrança de alguma coisa formidável, - à lembrança de uma crise, como não houve nunca nenhuma na terra". (Nietzsche, Ecce Homo). É o que Léon Bloy também pensa do seu nome. A um cientista, seu amigo, escreve: "Acabarás por confessar, chorando e coberto de cinzas, que fui eu que disse a última palavra da ciência e que eu ganhei a batalha de Waterloo". (L. B. - Au seuil de L'Apocalypse).

Viam-se desse modo, ou, digamos melhor: reconheciam-se assim com tanta segurança e nitidez as duas maiores figuras do século XIX...

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    Publicado na Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, domingo, 17 de Novembro de 1940, p. 3.
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    Otávio de Faria (1908-1980). Crítico, ensaísta, romancista e tradutor brasileiro. Autor de Maquiavel e o Brasil (1931) e Tragédia burguesa (edição em 4 volumes publicada em 1984-1985).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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