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As tendências políticas de Nietzsche* * Publicado na Revista Carioca. Rio de Janeiro, 1 de Julho de 1942, p. 40.

Resumo:

Consciente das tentativas europeias de apropriação política do pensamento de Nietzsche, Lafayette conclui em 1942 que o filósofo alemão não pode ser tomado nem como baluarte revolucionário de esquerda nem como expoente reacionário de direita. Gênio singular, seria mais apropriado considerá-lo como a "expressão superlativa das imensas contradições de sua espécie". Pensador antidemocrático, ele estaria, como Platão, preocupado em formar uma "elite dirigente", cuja hierarquia política deveria estar fundamentada na hierarquia intelectual.

Palavras-chave:
Nietzsche; Europa; política; gênio; hierarquia

Abstract:

Aware of the European attempts of political appropriation of Nietzsche’s thought, Lafayette concluded in 1942 that the German philosopher could not be considered neither the bastion of the revolutionary left nor the reactionary right-wing exponent. A singular genius, it would be more adequate to consider him the “superlative expression of the huge contradictions of his species.” An antidemocratic thinker, he would be, as Plato, worried in reforming a “guiding elite,” whose political hierarchy should be founded on the intellectual hierarchy.

Keywords:
Nietzsche; Europe; politics; genius; hierarchy

Teria sido Nietzsche um esquerdista? A questão não é nova. Na Europa o assunto tem sido causa de interessantes controvérsias, havendo autores que apontam o filósofo teuto como um dos baluartes dos princípios revolucionários da esquerda e não faltando inúmeros outros que, ao contrário, o consideram como um legítimo expoente do reacionarismo conservador.

Com quem estará a razão?

É claro que estamos em face de um desses debates destinados a se perpetuarem, sem que nunca seja possível firmar-se um ponto de vista definitivo. Discutir as tendências do pensamento de Nietzsche é o mesmo que discutir as mais emaranhadas questões da metafísica... São temas eternos, inesgotáveis, insolúveis. Todos os contendores encontrarão sempre, nos textos da obra nietzschiana, uma soma apreciável de argumentos em favor das atitudes queadotarem, nesse prélio.

E por quê?

Porque se parte de um ponto inteiramente errado.

Heinrich de Mann tem toda a razão quando, ao desenhar o retrato do autor de "Além do Bem e do Mal", diz que "Nietzsche se considerava único". Realmente, Nietzsche não é nem esquerdista nem reacionário, no sentido moderno dessas expressões. Não pertence a facções ou a partidos. É único. É puramente nietzschiano. O seu gênio foi grande demais para que se pudesse enquadrar nos limites tão estreitos do sectarismo político ou filosófico. Nietzsche é essencialmente humano e, por isso mesmo, é como uma imensa explosão, sem rumo, sem objetivos, inconseqüente, mas eternamente admirável, pois é a expressão superlativa das imensas contradições da sua espécie.

Em face de cada fenômeno, Nietzsche tem uma reação inteiramente pessoal, inconfundivelmente sua, sem nunca revelar a menor preocupação de coerência ou de criar um sistema. E é nesse arrebatamento, nesse poder formidável de expansão, nessa espontaneidade, nessa desordem, que está a força da filosofia nietzschiana.

É licito, sem dúvida, que se faça um exame comparativo das idéias de Nietzsche frente aos pontos de vista das atuais correntes das chamadas "esquerda" e "direita" e que se chegue a conclusões sérias, se bem que sempre muito discutíveis. Será, entretanto, um esforço estéril pretender classificar o seu gênio criador em qualquer sistema filosófico e político.

Por que a mania tacanha e tão requintadamente acadêmica de arregimentar-se os pensadores como se eles fossem soldadinhos de chumbo nas mãos de crianças caprichosas que os empurram para as mais diferentes combinações?

Antes de se procurar denominar Nietzsche como esquerdista ou anti-esquerdista, seria necessário definir o que é a esquerda. Quais as suas idéias fundamentais? Quais os seus princípios filosóficos? Haverá, realmente, uma "esquerda" homogênea, sob o ponto de vista cultural?

Não. A esquerda é uma combinação de forças políticas, é uma frente única que visa objetivos concretos, mas não será nunca, porém, uma síntese filosófica.

Mas dirão que a esquerda é um movimento político que visa, sobretudo, a radicalização da democracia, que é um ato de fé na capacidade das multidões para dirigirem o seu destino.

Neste caso Nietzsche foi essencialmente anti-esquerdista... Na verdade, ele defendeu o direito dos operários viverem de uma maneira mais digna, mais confortável e humana, enfim. Entretanto, nunca escreveu qualquer palavra que pudesse ser considerada como uma demonstração de que confiava em que as massas populares viessem comandar os negócios públicos. Tal como Platão, Nietzsche acreditava firmemente na necessidade de uma elite dirigente, de um grupo de privilegiados intelectuais, feito para o governo. Eis as suas palavras proféticas: "Os operários viverão um dia como vivem atualmente os burgueses; mas acima deles, distinguindo-se pela ausência de necessidades, viverá a casta superior, mais pobre e mais simples, dona, entretanto, do poder". Que é isto senão a negação formal de todas as tendências igualitárias, que é o objetivo final de certos blocos da esquerda?

Nietzsche via com medo o liberalismo parlamentar invadir o Velho Mundo. Dizia ele: "a democratização da Europa conduzirá à criação de um tipo preparado para a escravidão". E ainda: "a democratização da Europa constitui ao mesmo tempo uma preparação involuntária à eclosão dos tiranos". Neste assunto Nietzsche pensava de maneira muito semelhante ao grande filósofo Schopenhauer.

A idéia de uma hierarquia política fundamentada na hierarquia intelectual é um dos princípios basilares da filosofia nietzschiana. Como se vê, pois, do ponto de vista da estrutura estatal, Nietzsche não pode ser considerado um esquerdista, no sentido moderno da palavra.

Em relação aos grandes problemas de ordem meramente filosófica, a discussão torna-se mais difícil e de resultados muito duvidosos, pois seria necessário, antes de tudo, que se fizesse uma síntese das idéias fundamentais da esquerda. Acredito, porém, que os esquerdistas ficariam, então, eternamente discutindo entre si, sem nunca chegar a uma conclusão final.

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    Publicado na Revista Carioca. Rio de Janeiro, 1 de Julho de 1942, p. 40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
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