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A contribuição de Nietzsche para a ética* * Este artigo foi publicado originalmente no volume editado por John Skorupski: SKORUPSKI, J. (ed.) Routledge Companion to Ethics. London & New York, 2010 (p. 204-216). Agradecemos ao editor da Routledge pela cessão dos direitos de tradução para o português, assim como à Professora Maudemarie Clark, que gentilmente aceitou nosso convite e negociou pessoalmente a cessão dos direitos de tradução junto a seu editor. Tradução: Ícaro Meirelles Figueredo. Revisão técnica: Rogério Lopes.

Nietzsche’s contribution to ethics

Resumo

O artigo procura mostrar que o escopo da crítica de Nietzsche à moralidade, seu autoproclamado imoralismo, não abrange a totalidade de nossa experiência ética, mas uma interpretação particular dela, que resultou de um construto histórico cujas principais etapas são objeto de uma narrativa genealógica de orientação naturalista. Defende-se de forma sucinta a tese de que a posição de Nietzsche não exclui a legitimidade de toda e qualquer categoria ética, nem recomenda a abolição de toda e qualquer regra para o governo de nossas relações interpessoais e sua internalização na forma de disposições que lhe confiram estabilidade.

Palavras-chave:
ética; moral; ascetismo; culpa

Abstract

The article intends to show that the scope of Nietzsche’s criticism to morality, his self-proclaimed immoralism, does not embrace the totality of our ethical experience, but a particular interpretation of it, arising from an historical construct whose main stages are object of a genealogical narrative of a naturalist orientation. Clark briefly take up the assumption, supported by her at other times, that Nietzsche´s position does not rule out the legitimacy of any ethical category, nor recommends the abolition of any rule to the direction of our interpersonal relations and its internalization in the form of dispositions that bring stability.

Keywords:
ethics; moral; asceticism; guilt

Este artigo se concentra em dois aspectos inter-relacionados da filosofia nietzschiana e que são os mais importantes para a compreensão tanto de seu lugar na história da ética quanto de sua relevância para a reflexão contemporânea sobre a moral: sua crítica à moral e a explicação naturalista que ele oferece de suas origens e de seu desenvolvimento.

A contribuição mais notável de Nietzsche para a ética consiste em sua autoproclamada “negação da moral”. Ao se apresentar como um “imoralista”, na verdade como o “primeiro imoralista”, ele não apenas nega que a moral disponha de uma boa razão para reivindicar nossa adesão, como também insiste que ela é nociva e deveria ser superada. Deste modo, ele nega tanto a autoridade quanto o valor da moral. É a articulação e defesa dessa postura imoralista que confere a Nietzsche um lugar de destaque na história da ética. Este será, por conseguinte, o foco de nosso interesse neste artigo. O segundo tópico principal de discussão aqui será a explicação nietzschiana das origens e do desenvolvimento da moral, pois questões relacionadas tanto ao escopo quanto ao conteúdo da sua crítica da moral são mais bem respondidas quando levamos em consideração essa explicação. Além disso, essa explicação é em si mesma relevante, na medida em que nos fornece uma ilustração bastante elaborada do que significa naturalizar a moral, que ao mesmo tempo contrasta com outras tentativas de mostrar que podemos entender sua existência sem recorrer a pressupostos sobrenaturais ou metafísicos.

O problema do escopo

A primeira coisa que precisamos saber acerca do posicionamento antimoralista de Nietzsche diz respeito a qual é seu objeto ou escopo. É de fato a moral mesma que o filósofo rejeita, ou seria apenas uma moral particular, a moral cristã? Alguns intérpretes têm optado pela última alternativa, pois é difícil imaginar como se poderia, de modo coerente, questionar o valor da moral. Se os valores morais são definidos como primordiais, como alguns têm defendido, então não se pode questioná-los ou rejeitá-los de forma coerente. Porém, em várias passagens relevantes, Nietzsche parece estar rejeitando a moral mesma, e ele deixa explícito em pelo menos uma passagem que o objeto de sua suspeita abrange “todas as morais” (GM/GM, Prefácio, KSA 5.247). Entre os intérpretes recentes de Nietzsche, Philippa Foot foi uma das primeiras a tomar sua afirmação ao pé da letra. Porém, como ele não se limita a afirmar que a moral carece de autoridade (que nós não temos razão para respeitá-la), mas insiste que ela representa algo ruim, Foot concluiu que ele devia estar argumentando contra a moral do ponto de vista de outra espécie de valores. Ao considerar que Nietzsche estaria disposto “a abrir mão da justiça no interesse de produzir um tipo de homem mais forte e mais esplêndido”, Foot (1978FOOT, P. “Nietzsche: The Revaluation of Values,” in Virtues and Vices, Berkeley, CA: University of California Press; originally published in R. Solomon (ed.) Nietzsche: A Collection of Critical Essays, New York: Doubleday, 1978/1973., p. 166) encontrou uma razão para tomar ao pé da letra sua afirmação de que ele seria um imoralista, ao invés de um “moralista de tipo peculiar”. Isso se justifica na medida em que para ela a justiça, mas não a produção de seres esplêndidos, está conceitualmente ligada à moral. Ela interpretou a admiração de Nietzsche por esse tipo de seres esplêndidos como análoga à valoração estética e seus correspondentes juízos de beleza e sublimidade. Entretanto, ao sugerir que o filósofo teria rejeitado o valor da moral a partir da perspectiva de uma “moral mais elevada”, Foot acaba por negligenciar a afirmação de Nietzsche de que “morais mais elevadas” são, ou deveriam ser possíveis (JGB/BM 202, KSA 5.124). Podemos, contudo, conferir sentido à sua pretensão de rejeitar “todas as morais” caso ele esteja usando “moral” em dois sentidos diferentes, e é exatamente isso o que ele dá a entender em Além de bem e mal 32 (JGB/BM 32, KSA 5.50), onde deixa explícito que é apenas a moral “no sentido estrito” que ele busca superar.

A distinção entre ética e moral proposta por Bernard Williams nos fornece um modo útil de formular a distinção nietzschiana implícita entre os sentidos amplo e restrito de “moral”. Alguns usam “moral” para demarcar parte do domínio mais amplo do ético, a saber, a parte que está relacionada com o dever e a obrigação, e acreditam que estão seguindo Williams ao procederem dessa forma. Porém, Williams trata a moral como uma instância e não como uma parte do domínio ético. O que conta como uma ética para Williams consiste em “algum esquema para regular as relações entre as pessoas que funciona por meio de sanções informais e disposições internalizadas” (Williams, 1995WILLIAMS, B. “Moral Luck: A Postscript,” in Making Sense of Humanity, Cambridge: Cambridge University Press , 1995., p. 241), disposições para aceitar a legitimidade das exigências feitas a alguém pelo sistema. A moral, por outro lado, é uma orientação ética particular, ou uma “gama” de tais perspectivas, que está “de tal modo conosco”, de acordo com Willians, que “a filosofia moral dedica muito de seu tempo discutindo as diferenças entre essas perspectivas, em vez de se ocupar do modo como elas se distinguem de tudo o mais” (Willians, 1985WILLIAMS, B. Ethics and the Limits of Philosophy, Cambridge, MA: Harvard University Press , 1985., p. 174). Contudo, todas essas diferentes perspectivas morais são variações de um tipo particular de orientação ética, acerca da qual Willians pensa que estaríamos “melhor sem”.

Esse é precisamente o posicionamento de Nietzsche. Ele considera que o que chamamos de “moral” (ou ao menos o que foi chamado “moral” quando ele estava escrevendo) está “de tal modo conosco” porque se apresenta como a única forma possível de uma vida ética. Ele é um “imoralista”, apenas se “moral” estiver sendo usada no sentido restrito; ele não rejeita todos os sistemas de regulação que se pautam em “sanções informais e disposições internalizadas”. Ainda que ele rejeite tanto a autoridade como o valor da forma de vida ética que atualmente atende pelo nome de “moral” e que, segundo ele, pretende ser a única forma de vida ética. Ao tentar fundamentar a posição nietzschiana por meio da prioridade dos valores estéticos, Foot deixou escapar a possibilidade de que sua rejeição da moral fosse parte da defesa de uma orientação ética alternativa. Pelo menos, ela não dá nenhum indício de ter cogitado que Nietzsche pudesse tomar a moral como apenas uma das possibilidades para a vida ética, talvez porque ela própria a tenha tomado como sendo a única possível.

Definindo a moral

O que nós precisamos agora é de uma definição ou especificação da moral, a forma de vida ética que Nietzsche busca superar. Infelizmente, isso não é fácil de fornecer, e Nietzsche nos diz por que as coisas são desse modo; segundo ele, é impossível definir qualquer coisa que carregue consigo uma história complexa. Alguém poderia tentar esquivar-se desse problema, abordando diretamente a crítica de Nietzsche à moral e construindo o objeto desta crítica a partir de suas objeções à mesma, como é o caso da influente tentativa de Brian Leiter. Leiter chama esse objeto de “moralidade no sentido pejorativo” (MSP), que ele propõe não como uma categoria histórica, mas heurística. Leiter constrói as normas que pertencem à MSP a partir dos “comentários críticos díspares do filósofo - sobre o altruísmo, a felicidade, a compaixão, a igualdade, o respeito kantiano pelas pessoas, o utilitarismo, etc.” (Leiter, 2002LEITER, B. Nietzsche on Morality, London: Routledge, 2002., p. 129). A MSP consiste, portanto, em um sistema ético que tem uma atitude positiva para com a felicidade, o altruísmo e a igualdade, entre outras coisas. Embora essa abordagem tenha certo apelo - afinal de contas, o que queremos saber diz respeito àquilo contra o que Nietzsche se posiciona -, ela também possui um aspecto negativo. Queremos ainda saber se é realmente a moral que Nietzsche está atacando, e a explicação de Leiter não deixa claro se as alegadas objeções nietzschianas à MSP são de fato objeções à moral. Leiter toma a objeção de Nietzsche à MSP da seguinte maneira:

uma cultura em que tais normas prevalecem como morais será uma cultura que elimina as condições para a realização da excelência humana - esta última exige, na visão de Nietzsche, o cuidado consigo mesmo, o sofrimento, certa indiferença estoica, um senso de hierarquia e de diferença, e coisas semelhantes (Leiter, 2002LEITER, B. Nietzsche on Morality, London: Routledge, 2002., p. 129).

O exemplo mais plausível de Leiter acerca de como isso pode se dar diz respeito à felicidade. Uma cultura permeada por atitudes positivas em relação à felicidade e atitudes negativas no que tange ao sofrimento tornará mais difícil para os seres humanos criativos, os grandes artistas e pensadores - os tipos elevados nietzschianos, segundo Leiter - a concretização de seu potencial: tolerar e mesmo acolher de bom grado o sofrimento necessário à realização daquela potencialidade ao invés de dissipar a si mesmo na busca da felicidade. Mas a moral, de fato, incorpora a felicidade como uma norma, ou produz uma cultura que o faça? Apesar de a cultura secular contemporânea adotar a felicidade como uma norma, isso parece ser a antítese de uma cultura moral, que promoveria antes o cumprimento do dever e o empenho para se tornar uma pessoa boa, e não a luta pela própria felicidade. Se assumirmos, então, que uma das mais importantes críticas de Nietzsche à moral diz respeito ao fato de que a mesma produz o desprezível “último homem” que se preocupa apenas com a felicidade, é difícil compreender, a partir da explicação de Leiter, como a moral poderia ser responsável por isso. Também é difícil compreender por que Nietzsche tem tamanho horror da moral. Mesmo que ela atue contra a existência de tipos elevados, isso não parece suficiente para explicar a percepção que Nietzsche nos transmite de que a moral é “contra a vida” e de que ela teria feito da humanidade uma espécie doentia e deteriorada.

A Genealogia da Moral de Nietzsche

Uma consulta à Genealogia da Moral (GM) de Nietzsche é o melhor caminho para compreender essas questões, pois ela fornece uma genealogia da forma de vida ética que ele procura superar. Ele faz isso, em parte, porque pensa que a genealogia é o único modo de esclarecer o conceito de moral, de tornar claro no que consiste uma forma de vida ética particular. Em um estado de desenvolvimento tardio, afirma ele, o conceito de qualquer prática que possua uma história envolverá “uma completa síntese de ‘sentidos’” que tenham “finalmente se cristalizado em uma espécie de unidade que é difícil dissolver, difícil de analisar, e - deve-se enfatizar - é completa e absolutamente indefinível” (GM/GM, II, 13, KSA 5.316). Mas se nós somos incapazes de “definir” a moral mediante o estabelecimento de condições necessárias e suficientes para que um determinado conjunto de práticas possa contar como um exemplo desse conceito, Nietzsche aponta um modo alternativo de analisá-la: olhar retroativamente para os estágios anteriores do seu desenvolvimento, nos quais “essa síntese de sentidos ainda aparece mais solúvel, também mais suscetível a deslocamentos” e se pode “ainda perceber” como os elementos da síntese mudaram a sua valência e, portanto, se reordenaram. O conceito é, então, como uma corda, que se mantém coesa através do entrelaçamento dos seus fios, de modo que analisá-la não é uma questão de isolar seu âmago ou essência, mas de desenredar seus vários fios para que se possa ver o que está de fato envolvido nela. Isso é o que Nietzsche se propõe a fazer na GM. Voltando-se para um “estágio anterior” ele pretende separar vários fios que se encontram reunidos em nosso conceito de moral, e explicar como eles vieram a ser reunidos dessa maneira.

A GM contém três dissertações, cada uma das quais conduz um fio particular do conceito de moral de volta a uma forma anterior. Em um cartão postal a seu amigo Overbeck (datado 4 de janeiro de 1888, Risse, 2001RISSE, M. “The Second Treatise in On the Genealogy of Morality : Nietzsche on the Origin of the Bad Conscience,” European Journal of Philosophy 9, no. 1, p. 55-81, 2001., p. 55) Nietzsche explica que na GM, “a título de esclarecimento, foi necessário isolar artificialmente as diferentes raízes da complexa estrutura que é denominada de moral”. Nietzsche, por conseguinte, indica que o objeto para o qual ele está tentando fornecer uma genealogia consiste em uma “estrutura complexa”, uma síntese de diversos elementos distintos, e que a GM lida com esses elementos desconsiderando seu entrelaçamento real uns com os outros no desenvolvimento da moral. O restante do cartão postal deixa claro que Nietzsche está bastante ciente de que a GM deixa de fora vários elementos que estão envolvidos na síntese que é a moral, em particular o “instinto de rebanho”, que ele proclama ser “o mais essencial”, e que ela não reúne todos esses elementos de modo a fornecer “uma explicação última da moral”. Isso tem importantes implicações no modo como devemos compreender a GM.

A rebelião escrava na moral

O primeiro tratado (GM, I) é polêmico por sua reivindicação de que a nossa moral é produto de uma “rebelião escrava” levada a cabo pelo ressentiment direcionado contra os nobres do mundo antigo. O termo francês “ressentiment” é próximo ao inglês “resentment”, o qual significa uma reação humana decorrente do sentimento de ter sido ofendido. De acordo com a análise nietzschiana, o ressentimento torna-se rancoroso e venenoso entre aqueles que são impotentes e, por isso, incapazes de simplesmente se livrarem da ofensa (ocasional) ou de descarregarem o ressentimento dela resultante, o que poderia ocorrer se pudessem se defender contra o ofensor e exigir o tratamento adequado ou acatá-lo de volta. A revolta escrava a que o filósofo se refere ocorreu em um longo intervalo de tempo, e foi conduzida originalmente não por escravos, mas por líderes religiosos, que consideravam a si próprios como bons, mas foram tomados de inveja e se sentiram lesados pelos nobres que os governavam com excessiva autoconfiança em sua própria superioridade. Incapazes de se afirmarem abertamente contra os nobres, eles os atacaram através do único modo que podiam, ou seja, destituindo-os de valor. O desfecho final é uma transvaloração - uma reversão - dos valores nobres. O miserável, o manso, o submisso é declarado “o bom”, e os nobres são considerados “os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, aqueles que serão eternamente desgraçados, amaldiçoados e condenados”. Nietzsche afirma que a revolta escrava começou com os judeus, mas culminou finalmente com a proclamação das beatitudes cristãs. Qualidades que os escravos precisaram desenvolver, como a mansidão e a humildade, passaram a ser vistas como virtudes (culminando afinal na visão de que o altruísmo é a essência da virtude), enquanto o orgulho, a virtude nobre por excelência (mesmo em Aristóteles), passou a ser vista como má, como a essência do pecado - isso se deu não pelo fato das virtudes escravas serem admiradas ou porque alguém quisesse encarná-las, mas por ódio e necessidade de vingança contra os nobres, pela necessidade de “derrotá-los”, mesmo que apenas imaginariamente.

Não obstante, é importante reconhecer que não é a nossa moral em sua totalidade - nossa noção de certo e errado - que Nietzsche toma como sendo produto da moral escrava, mas apenas nossas ideias de bondade e virtude. Na GM I, 2 argumenta-se, no campo etimológico, que “bom” originalmente era equivalente a “nobre” no sentido meramente político. Esse uso era feito por antigos grupos para designar a si mesmos como membros da classe política superior, em oposição aos plebeus e aos escravos. Nesse momento, não se tratava ainda de um termo ético, muito menos de um termo especificamente moral. Ele se torna um termo ético ao se transformar na noção de nobreza (superioridade) da alma, de modo que o termo que lhe serve de contraste passa a ser o equivalente a “ruim” em nossa acepção, e não meramente “comum”. Isso ocorre por conta da autoafirmação da nobreza, que se expressa através das palavras que eles utilizam para descreverem a si mesmos. Felizes com sua própria existência, era natural que eles experimentassem suas próprias vidas como superior às daqueles que eles dominavam. Desse modo, “bom” expressa inicialmente a sensação de sua própria superioridade, assim como os outros termos que eles usam para distinguirem a si mesmos dos plebeus. Por exemplo, eles não são apenas os “bons”, mas também os “ricos”, os “poderosos”. A concepção que os nobres têm daquilo que os distingue dos plebeus é deveras bruta a princípio, mas posteriormente passa a reunir traços de alma ou de caráter, como lealdade, veracidade e coragem. Eles são, por exemplo, “os verdadeiros”, em “distinção ao homem comum mentiroso” (GM/GM, I, 5, KSA 5.262). Nesse processo, alega Nietzsche, “bom” perde finalmente toda a conexão com a classe política e passa a ser uma noção estritamente ética, equivalente à virtude ou superioridade de alma. Não fica claro, porém, se se pretende que isso já tenha realmente ocorrido, ou se é apresentado como um possível desenvolvimento futuro da distinção bom/ruim. O que é claro é que bom/ruim não é visto por Nietzsche como uma distinção moral no sentido estrito. Chamar alguém de “ruim” é certamente qualificá-lo como uma pessoa ruim ou inferior, e não simplesmente um plebeu; trata-se, portanto, de um juízo ético. Mas não é o mesmo que chamá-lo de “moralmente ruim” ou “mau”.

Tendo em vista o brilhantismo da análise psicológica nietzschiana e o fato de que sua história revela os líderes da revolta escrava exibindo algumas das mesmas características que eles próprios condenam, torna-se tentador localizar sua crítica à moral em sua afirmação acerca das raízes da mesma no ressentimento. Mas isso seria um exemplo de falácia genética, que ele repudia (FW/GM, 345, KSA 3.577). Que a humildade tenha sido fomentada como uma virtude primeiramente pelos sacerdotes, que por sua vez estavam longe de serem humildes, ou que o amor tenha sido louvado pelo ódio, não revela que a humildade e o amor não sejam virtudes. E toda a abordagem de Nietzsche deixa claro que as virtudes cristãs poderiam ser valorizadas hoje por razões muito diferentes daquelas pelas quais elas o foram no início.

A revolta escrava desempenha um papel central na explicação nietzschiana acerca do desenvolvimento da moral porque essa cria uma concepção moralizada de uma boa pessoa e a ideia correspondente de uma “pessoa má” (GM/GM, I, 10, KSA 5.270), de uma pessoa que não é meramente ruim, mas má. Julgar que alguém seja “ruim”, no sentido em que Nietzsche faz uso do termo, diz respeito a julgá-lo como sendo inferior, mas isso não implica que ele seja responsável por ser inferior, muito menos que mereça punição por isso. A reação apropriada é a piedade ou o desprezo, não a condenação. Por outro lado, quando “ruim” é moralizado em “mau”, a pessoa é responsabilizada por ser o tipo de pessoa que é, e condenada por isso. Trata-se de como a virtude e o seu oposto tornam-se vinculadas à recompensa ou punição, o que faz sentido apenas na suposição de que nós na verdade escolhemos ser o tipo de pessoa que somos, consequentemente, de que temos livre arbítrio, o que Nietzsche chama “a superlativa acepção metafísica”, segundo a qual alguém é “causa sui”, a causa de si mesmo (JGB/BM 21, KSA 5.35). Esse é o aspecto da revolta escrava que o pensador alemão mais claramente critica. Quando ele exige que o filósofo “se coloque além do bem e do mal e deixe a ilusão dos julgamentos morais abaixo de si” (GD/CI, os “melhoradores” da humanidade, 1, KSA 6.98), ele está se referindo aos juízos a respeito de pessoas nos termos moralizados de bom e mau. E a sua razão mais óbvia para tomar esses juízos como envolvidos em “ilusões” é que esses pressupõem o livre arbítrio, em um sentido que ele considera absurdo, a saber, que nós somos causa sui (JGB/BM 21, KSA 5.35). Mas mesmo que seja verdade - e muitos filósofos negam que a moral requer um livre arbítrio nesse sentido - isso não explica por que Nietzsche nega o valor da moral, pois ele insiste que “mesmo que a moral tenha nascido a partir de um erro, a percepção desse fato não seria suficiente para tocar no problema de seu valor” (FW/GM, 345, KSA 3.577). Explicando que o valor do “tu deves” é independente de “opiniões sobre sua origem, sanção religiosa, da superstição do livre arbítrio, e coisas deste tipo”, ele conclui que “ninguém até agora examinou o valor do mais famoso de todos os medicamentos, que se chama moral: e o primeiro passo seria - pô-lo em questão. Muito bem, esta é justamente a nossa tarefa” (FW/GM, 345, KSA 3.577).

Crueldade e má-consciência

Devemos, portanto, escavar mais fundo na questão se quisermos compreender a crítica de Nietzsche à moral. Precisamos entender especialmente por que ele chama a moral de “medicamento”. O melhor texto para esse propósito é o segundo tratado da GM, que faz em relação às noções morais de certo e de errado o mesmo que a GM I faz em relação aos conceitos de bom e mal, conduzindo-os de volta à sua versão pré-moral. Nietzsche chama essa versão de “moralidade do costume” [Sittlichkeit der Sitte], que é um sistema de costumes e leis que regula o comportamento das antigas comunidades. Não se trata propriamente de um sistema ético, muito menos uma instância da moralidade, porque ele não funciona por meio do que Willians chama de “sanções informais e disposições internalizadas”, mas apenas através da punição e do medo em relação à mesma. Nietzsche assume que a disposição de obedecer a regras tem uma raiz mais antiga do que o medo da punição, a saber, o instinto de rebanho, a disposição de adequar o próprio comportamento ao que fazem aqueles que estão ao redor, que ele, no cartão postal citado anteriormente, considera o aspecto “mais essencial” da moralidade. Práticas habituais, assim, constituíram uma espécie de norma, mesmo antes da instituição das punições formais. A disposição de adequar o comportamento às práticas usuais, contudo, não conta como uma “disposição internalizada”, porque consiste estritamente em uma questão de instinto e ainda não traz consigo as ideias de autoridade ou legitimidade. Normas obedecidas por medo ou instinto não são ainda percebidas como normas morais por aqueles que estão dispostos a obedecê-las. A questão principal que Nietzsche persegue na GM II diz respeito a como essas normas não morais, leis e costumes, foram transformados em categorias morais.

Sua resposta básica é que isso ocorreu através do desenvolvimento da culpa. Normas e práticas têm o status de normas morais para aqueles que tomam os que as violam como sendo culpados. Mas o que é culpa? A intrincada resposta dada por Nietzsche tem dois lados, um conceitual, o outro explanatório, ou causal. Primeiro, ele argumenta por razões em parte etimológicas que “o grande conceito moral de culpa” se originou do “conceito muito material de ‘dívida’” (GM/GM, II, 4, KSA 5.297) - de fato, em alemão, o mesmo conceito [Schuld] é utilizado para ambos; segundo, ele rastreia o processo que transformou a dívida em culpa. Sua abordagem começa pelo lado conceitual. A relação entre a comunidade e os seus membros teria sido considerada análoga à relação entre o credor e o devedor. A obediência às normas necessárias à vida em comunidade era concebida como algo que se devia à comunidade, um débito que alguém teria contraído em troca das vantagens da vida na comunidade. Essa é a ideia original de obrigação. Essa é uma ideia ética primitiva porque está conectada com ideais de legitimidade e equidade, como expõe Nietzsche ao afirmar que aquele que desobedece às normas é concebido como “um devedor que não apenas falha no pagamento de seu credor, mas também é um causador de danos; portanto, não somente lhe serão confiscados todos estes benefícios e vantagens a partir de então, como é justo, - ele também será lembrado do quanto valem esses benefícios”.

O ódio de credor prejudicado, a comunidade, lança-o de volta à condição selvagem e sem lei da qual ele estava previamente protegido: afasta-o de si, e a partir de então, toda a espécie de hostilidade poderá se abater sobre ele. Nesse estágio da civilização, o “castigo” é simplesmente a cópia, mimus [reprodução] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, rendido, de quem foi retirado não apenas qualquer direito e proteção, mas também qualquer compaixão. (GM/GM, II, 9, KSA 5.307)

Este tipo de “castigo” (o dano infligido ao ofensor além do banimento) não é ainda encarado como algo que o ofensor mereça. É apenas o que é permitido fazer com aqueles que não são parte da comunidade. Isso ainda não nos diz que aquele que deixa de cumprir as normas da comunidade é culpado ou que ele mereça ser censurado e punido.

Essa ideia só começa a vir à tona quando a comunidade se torna forte, e consequentemente, a violação das regras não mais coloca em risco a “preservação da existência do todo”. Tornando-se “mais humano”, o credor encontra um meio de separar o criminoso de seu ato, permitindo a ele permanecer na comunidade na medida em que lhe oferece meios alternativos de pagar pelo seu débito. Assim como a lei permite a Shylock tomar uma libra de carne como compensação pela dívida que lhe é devida em O Mercador de Veneza, a comunidade extrai daqueles que violaram o pacto de obediência às normas um pagamento alternativo na forma de sofrimento imposto ao transgressor. O castigo não é mais uma mera explosão de hostilidade sobre um indefeso “inimigo do povo”, mas uma forma de quitar seu débito com a sociedade. Temos aqui o nascimento da ideia de que o agressor merece seu castigo, o que é também uma noção ética, por causa das suas ligações com as ideias de equidade e legitimidade. O agressor cometeu a infração ao transgredir as normas e não cumprir sua promessa; dessa forma, é justo que ele seja punido. Mas se por essa razão podemos dizer que ele é considerado culpado, trata-se de uma culpa primitiva, aquela que ainda pode ser resgatada, e não da noção moralizada de culpa cuja gênese interessa a Nietzsche explicar. Para compreendermos como ele pensa o processo de moralização da dívida ou da culpa, é necessário considerar o outro lado de sua história.

Notemos que a narrativa Nietzschiana sobre o castigo, como um modo de se compensar um débito, presume que o ser humano encontra satisfação no sofrimento alheio. Caso contrário não faria nenhum sentido que eles aceitassem o sofrimento de alguém como uma compensação pelo descumprimento das regras da comunidade. Este aspecto de sua teoria é geralmente relacionado à sua ideia de vontade de poder, mas o papel que essa noção desempenha em sua filosofia permanece como uma questão controversa (Clark 1990CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press, 1990.; Reginster 2006REGINSTER, B. The Affirmation of Life, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006.). Além disso, não há nenhuma necessidade de trazer essa noção à baila para a compreensão do que está em questão aqui. É difícil negar que a violência e a crueldade tenham desempenhado um papel importante na história humana, e a teoria de Nietzsche tenta explicar por quê. O ponto central aqui consiste no fato de ser impossível existir uma sociedade sem restrições na expressão dos impulsos agressivos. Como um produto da seleção natural pelas vantagens que eles conferem na vida selvagem, nas atividades de caça e no trato com predadores, esses impulsos agressivos não podem se voltar contra os demais membros da comunidade, pelo menos não em sua forma original. Nietzsche considera que as sociedades desencorajam esse comportamento tanto pela punição, quanto pelo provimento de canais alternativos para os impulsos agressivos. Entre esses canais encontram-se vários arranjos hierárquicos, incluindo organizações militares, atléticas, além de outras modalidades, e os esportes voltados para os espectadores na Roma Antiga, em que a propensão dos seres humanos à crueldade é particularmente evidente. Essa propensão à crueldade é o que confere sentido à ideia de que a dívida de um indivíduo com a sociedade poderia ser paga pelo seu próprio sofrimento. No entanto, Nietzsche não precisa afirmar que os seres humanos são cruéis por natureza, nem tampouco negar que eles tenham impulsos altruístas adquiridos por meio da seleção natural. O que ele pretende destacar é que impulsos cruéis se desenvolvem sob a influência da vida em sociedade em função das diversas coisas que sucedem aos impulsos agressivos - que os seres humanos também adquirem por meio de seleção natural - sob a pressão da necessidade de suprimi-los, e em função também dos estímulos adicionais que esses mesmos impulsos recebem através do desenvolvimento de modos alternativos para satisfazê-los. Essas são ideias que serão posteriormente desenvolvidas por Freud.

Nietzsche está particularmente interessado nos impulsos cruéis e agressivos, porque o direcionamento desses impulsos contra o “eu” é o outro lado da história que diz respeito ao desenvolvimento da culpa. Ele apresenta a má consciência, “a consciência de culpa” (GM/GM, II, 4, KSA 5.297), como tendo origem na repentina imposição a uma população antes nômade de restrições características de uma sociedade pacífica. Pelo fato de ter acontecido tão abruptamente, não houve tempo para o desenvolvimento de novos instintos através da seleção natural ou de novos meios para satisfazer os velhos instintos através da cultura. Houve apenas um meio de satisfazer esses instintos, ou seja, internalizá-los, voltá-los contra si mesmo. Nem toda interiorização dos impulsos hostis e agressivos envolvem um sentimento de culpa. “O animal que se fere nas barras de sua própria jaula” (GM/GM, II, 16, KSA 5.321) pode interiorizar impulsos agressivos, mas não necessariamente estar sentindo culpa ou exibindo uma má-consciência. É somente quando você internaliza a atitude hostil de quem pensa que você lhe deve algo e, mais especificamente, que você merece sofrer pelo que lhe deve (isto é, somente quando você adota contra si mesmo essa atitude hostil), que essa atitude começa a ser identificada como culpa. O processo que converte a dívida em culpa moral é aquele no qual os seres humanos aprendem a fazer uso da ideia de terem se tornado merecedores de castigo por não terem honrado uma dívida ou uma obrigação; um processo no qual aprendem a tomar posição contra si mesmos, a criticar a si mesmos e, consequentemente, a causar dor a si mesmos “quando a saída mais natural para esse desejo de causar dor foi bloqueada” (GM/GM, II, 22, KSA 5.331). Quando esse processo se completa, temos uma disposição internalizada para obedecer normas. Instalamos em nós mesmos uma faculdade crítica (como o superego de Freud), que está em guarda contra as violações das normas e que nos julga como culpados (no mínimo merecedores da culpa e da punição) se as violamos de algum modo. As normas têm o status de imperativos categóricos ou morais para aqueles que desenvolveram essa faculdade crítica. Eles estão motivados a obedecer às normas, não somente por mero instinto ou medo da punição, mas pelos valores que eles mesmos carregam.

Qual é então a objeção de Nietzsche à moral? Devemos lembrar que sua tarefa consiste em avaliar a moral como um “medicamento”, e que o seu imoralismo sugere que ele não considera esse remédio eficaz. Podemos entender isso nos seguintes termos: a “doença” para qual a moral é um remédio, é a má consciência, a necessidade de internalizar a agressão e a crueldade, a “vontade de maltratar-se” (GM/GM, II, 18 5.325). Essa internalização não acontece automaticamente; algum tipo de razão ou base para isso faz-se necessário. Na verdade, Nietzsche descreve aqueles que estão impedidos de expressar externamente os impulsos agressivos, mas que carecem de uma base para a internalização, como se padecessem de “depressão” e “apatia” (GM/GM, III,17-20, KSA 5.324-330). No caso em questão, para que eu possa criticar e me responsabilizar pelo meu comportamento, é preciso que haja um parâmetro para o comportamento correto, e isso é o que a moralidade fornece. Mas qual é então o problema? Por que a moralização da culpa não é um modo perfeito de prover um canal seguro para a expressão da agressividade, e mesmo dos impulsos cruéis, ao mesmo tempo em que fornece o incentivo necessário à obediência aos parâmetros da comunidade?

Se o “canal seguro” é aquele que não causa dano aos humanos e ao seu potencial, e se a moralidade fornecesse esse canal para a expressão dos impulsos agressivos, Nietzsche não teria nenhuma objeção. Contrariamente à impressão que desperta em alguns leitores, ele não deseja que nós retornemos ao estágio em que agíamos por instinto bruto. Ele afirma que a má-consciência é uma doença, “mas uma doença como a gravidez é uma doença” (GM/GM, II, 19, KSA 5.327), o que significa que ele anseia pelo novo nascimento a que essa possa conduzir, não pelo retorno ao estágio anterior. Mas ele acredita que a moralização da culpa produzida pela vontade de maltratar a si mesmo gera sofrimento gratuito em si mesmo e nos outros, e promove, de fato, um ciclo vicioso de agressão contra si mesmo e os outros, o que compromete a vitalidade e a criatividade, e impede os seres humanos de realizarem o seu mais alto potencial. Para se ter uma ideia de por que ele pensa desse modo, nós iremos considerar de modo conciso o papel do ideal acético em sua explicação da moralidade.

O ideal ascético

O ideal ascético apresenta a vida de autoabnegação como a vida ideal. Dedicando a terceira parte da GM a esse ideal, Nietzsche indica (como pudemos deduzir a partir do cartão postal mencionado anteriormente) que ele o considera um dos segmentos centrais da moralidade. Podemos compreender isso à luz de sua afirmação de que a moralização da culpa ocorreu através do “entrelaçamento da má-consciência com o conceito de deus” (GM/GM, II, 21, KSA 5.330), ou seja, se reconhecermos que o conceito de deus em questão é um conceito ascético, podemos compreender como seu uso permite voltar a agressividade contra si mesmo. Enquanto os deuses gregos eram o reflexo daquilo que os gregos valorizavam em si mesmos, de acordo com Nietzsche, o Deus judaico-cristão é a projeção de um valor que os seres humanos nunca podem chegar perto de atingir, um ser que é o oposto dos nossos próprios “instintos animais inevitáveis”. Essa concepção do divino reflete o ideal ascético e as funções de internalização da crueldade.

A ideia de Nietzsche é que os tipos contemplativos, originalmente os sacerdotes, são mestres na internalização dos impulsos agressivos porque sua própria natureza os indispõe contra a sua externalização. Desse modo, eles desenvolveram práticas de abnegação e crueldade contra si mesmos que ajudaram a evitar a depressão e a apatia que, de outro modo, segundo Nietzsche, os teria afetado. Entretanto, eles precisaram de uma razão consciente para adotar essas práticas, e a encontraram no ideal ascético. Este ideal promove a vida de abnegação com base no argumento de que a nossa vida enquanto animais, enquanto parte da “natureza”, não possui valor em si mesma; ela só adquire valor na medida em que “volta-se contra si mesma, negando-se a si mesma” (GM/GM, III, 11, KSA 5.361), tornando-se assim um mero meio para outro modo de existência, que é o seu oposto (nirvana, paraíso). A vida ascética não tem nenhum atrativo intrínseco para a maioria das pessoas. A sugestão de Nietzsche é de que os sacerdotes ascéticos ensinaram os tipos não-reflexivos, impedidos de dar vazão aos impulsos cruéis e agressivos quase que exclusivamente pelo medo da punição, a fazer uso da ideia de dívida para internalizar esses impulsos. Eles absorveram de sacerdotes não ascéticos, ou pagãos, o ensinamento de que possuímos uma dívida para com a divindade e devemos pagá-la com sacrifícios, ou correr o risco de terríveis consequências. Os sacrifícios exigidos são materiais, por exemplo, os melhores cortes da carne (dos quais os sacerdotes fazem um bom uso), embora as coisas possam ficar muito mais sérias, como quando Agamêmnon deve sacrificar sua própria filha para garantir o sucesso de sua frota. O ideal ascético não está em funcionamento aqui; não há nenhuma implicação de que o sacrifício seja exigido porque a natureza não tem nenhum valor, ou de que a sensualidade deva ser superada. Mas esta é uma conclusão que advém quando o sacerdote ascético insiste que devemos sacrificar nossa natureza enquanto seres animais e, portanto, desejantes. Os sacerdotes ascéticos utilizaram essa estrutura para explicar para as pessoas a fonte de seu sofrimento (que na verdade advém de não se possuir nenhuma maneira de organizar e descarregar os impulsos instintivos): Deus as pune por elas terem desobedecido a ele, por elas terem se rebelado contra ele. Sua rebelião é uma questão de afirmar seus “inevitáveis instintos animais”, pois Deus, como espírito puro, é o oposto de tais instintos. Ao afirmá-los, como nossa natureza nos inclina a fazer, nós estamos dizendo, com efeito, que não precisamos de Deus, que “esta vida” é suficiente, o que se constitui como orgulho, a essência do pecado. Por isso nós merecemos punição. Mas a dívida que deste modo contraímos não pode ser paga, mesmo por princípio, porque está enraizada na nossa própria natureza, e vinculada ao nosso valor como pessoas (Clark, 2002CLARK, M. “On the Rejection of Morality: Bernard Williams’s Debt to Nietzsche,” in R. Schacht (ed.) Nietzsche’s Postmoralism, Cambridge: Cambridge University Press , 2002., 1994CLARK, M. “Nietzsche’s Immoralism and the Concept of Morality,” in R. Schacht (ed.)Nietzsche, Genealogy, Morality: Essays on Nietzsche’s Genealogy of Morals, Berkeley: University of California Press, 1994.). Isso é o que caracteriza a culpa moral em oposição à culpa primitiva, ou à mera dívida. E uma dívida que não pode ser liquidada ganha proporção com a ideia de punição eterna, na qual Nietzsche vê

uma espécie de loucura da vontade na crueldade psíquica que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível a ponto de não poder mais ser expiado... sua vontade de erigir um ideal - aquele do “santo Deus” - e em vista dele, ter a certeza tangível de sua própria indignidade (GM/GM, II, 22, KSA 5.331).

Ao acrescentar “Oh, esta insana e triste besta que é o homem”, Nietzsche sugere que nossas ideias se tornam “bestiais” na medida em que somos impedidos de agir como bestas (GM/GM, II, 22, KSA 5.331).

Tendo em vista que a “autocrucificação” em questão aqui é triste e insana, ainda podemos nos perguntar se isso é realmente um problema para a moral, pois mesmo que o ideal ascético tenha atuado para moralizar a culpa, a moral secular contemporânea parece prescindir inteiramente desse elemento. A objeção de Nietzsche não diz respeito apenas a uma concepção de moral particular e antiquada, que demanda sacrifício dos nossos instintos naturais? Ele negaria isso. O ideal ascético parece estar ausente da moral secular porque esta não comporta certos elementos que pertencem apenas à aparência e ao exterior desse ideal - por exemplo, a crença em Deus, e uma explícita exigência de negação da sensualidade. Mas Nietzsche insiste que o próprio ideal ascético é responsável por essa situação, e que sua influência está longe de cessar quando esses elementos externos deixam de estar presentes. Uma crueldade cada vez mais aprofundada contra o “eu” e a exigência de autonegação, imposta pelo ideal ascético aos tipos mais elevados e mais espirituais sob a forma de uma “vontade de verdade” (GM/GM, III, 23-28, KSA 5.395-411) foi o que levou a “sacrificar tudo o que há de reconfortante, sagrado, curativo” no ideal ascético, “toda esperança, toda fé em uma harmonia oculta, em uma bem-aventurança e justiça futuras” (JGB/BM, 55, KSA 5.74), portanto, tudo o que atrai as pessoas menos espirituais. Tudo o que resta agora à cultura superior é dedicar-se a destruir mais e mais sua própria base, a qual, de acordo com Nietzsche, consiste no desejo pelos mais elevados estados de alma, o que, de fato, não pode ser fruído por todos. Ao se utilizar da concepção de virtude derivada da rebelião escrava na moral como a base para promover a internalização da crueldade, o ideal ascético se volta contra o desejo por distinção e a crença nela, privando a cultura superior de toda a sua capacidade de inspirar, e impedindo os tipos menos espirituais de acreditarem na possibilidade de um tipo humano superior ao que eles mesmos são. A cultura vulgar se desprende do ideal ascético, tornando-se mais crua e mais direcionada para as coisas materiais. A moral é agora reduzida à “moral de animal de rebanho”, baseando-se amplamente na prudência e na submissão. O reino do “último homem” torna-se uma ameaça porque agora perdemos qualquer ideal que pudesse nos inspirar o cuidado com algo que transcende nossa própria felicidade.

Nietzsche possui alguma alternativa em mente? Não há dúvidas. Sua crítica à moral, a tentativa de mostrar como ela e seus “medicamentos” têm nos lançado nessa situação deprimente, é apenas parte de seu projeto, a parte que diz não. Há ainda a parte que diz sim. Esta consiste na tentativa de nos fazer vislumbrar o ideal de uma nova vida afirmativa, que em um novo modo de vida ética viria a desempenhar o mesmo tipo de função que o ideal ascético teve na realização de uma forma moralizada. Tal ideal não pode, contudo, ser adotado por uma decisão arbitrária. Ele pode, entretanto, emergir a partir das novas maneiras de ver e sentir que resultam de uma reflexão aprofundada acerca do velho ideal e do papel que teve em nos tornar isso que somos hoje. Mas um novo ideal tampouco teria de criar uma nova forma de vida ética a partir do zero. A genealogia da moral oferecida por Nietzsche nos revela que há importantes recursos éticos com os quais ele poderia contar, por exemplo, noções pré-morais de virtude, obrigação e culpa. Parte importante de sua tarefa consistiria em sintetizar essas noções de uma nova maneira (uma tentativa de elucidar como isso se daria encontra-se em Clark, 2002CLARK, M. “On the Rejection of Morality: Bernard Williams’s Debt to Nietzsche,” in R. Schacht (ed.) Nietzsche’s Postmoralism, Cambridge: Cambridge University Press , 2002.), assim como nos indicar novas possibilidades de sublimação para lidar com os impulsos instintivos que o ideal ascético direcionou contra o “eu”. Este é um propósito fundamental dos livros de Nietzsche, e seria preciso percorrer um longo caminho para explicar por que ele escreve da maneira como o faz.

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  • *
    Este artigo foi publicado originalmente no volume editado por John Skorupski: SKORUPSKI, J. (ed.) Routledge Companion to Ethics. London & New York, 2010 (p. 204-216). Agradecemos ao editor da Routledge pela cessão dos direitos de tradução para o português, assim como à Professora Maudemarie Clark, que gentilmente aceitou nosso convite e negociou pessoalmente a cessão dos direitos de tradução junto a seu editor. Tradução: Ícaro Meirelles Figueredo. Revisão técnica: Rogério Lopes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2017
  • Aceito
    10 Ago 2017
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