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Projetivismo dos valores em Nietzsche* * O presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a meta-ética nietzschiana, à qual o autor tem se dedicado nos últimos anos. Trata-se de um work in progress, cujos primeiros resultados foram publicados em STELLINO (2015). O objetivo deste artigo é focar a atenção especificamente sobre uma parte importante da meta-ética nietzschiana, a saber, seu projetivismo. O autor agradece ao público do XXXVIII Encontro Nietzsche: Colóquio internacional “Nietzsche, filósofo contemporâneo” (21 de setembro de 2016, USP e 26 de setembro de 2016, UNIOESTE) por suas questões e considerações, que permitiram aperfeiçoar o texto, e ao Prof. Wilson Antonio Frezzatti Jr., por sua excelente tradução deste artigo.

Projectionism of values in Nietzsche

Resumo

Este artigo tem por objetivo reivindicar o lugar da filosofia nietzschiana na tradição filosófica do projetivismo. Com efeito, como mostrarei, mesmo se Nietzsche é quase unanimemente ignorado nas obras dos especialistas nessa tradição, ele mantém, ao longo de seu desenvolvimento filosófico, uma posição que se pode com razão definir como “projetivista”.

Palavras-chave:
meta-ética; projetivismo; perspectivismo; valores

Abstract

The aim of this paper is to claim Nietzsche’s place within the philosophical tradition of projectivism. Indeed, as will be shown, although Nietzsche is almost unanimously ignored by scholars working on projectivism, during the whole development of his philosophical thought, he holds a position which can be reasonably defined as “projectivist”.

Keywords:
metaethics; projectivism; perspectivism; values

A decisão de focalizar a atenção sobre o projetivismo deriva-se do fato que, não somente no debate acerca da meta-ética nietzschiana, mas também nas obras e nos artigos dos estudiosos do projetivismo (em grande parte, anglo-americanos), o projetivismo de Nietzsche é quase unanimemente ignorado1 1 POELLNER (2007) e CLARK/DUDRICK (2007) representam exceções. . Entretanto, como eu mostrarei, a filosofia de Nietzsche se inscreve com pleno direito na tradição projetivista. Reivindicar o lugar da filosofia nietzschiana nessa tradição equivale a mostrar a possibilidade de inscrever essa filosofia no debate meta-ético recente e atual acerca do projetivismo, do ficcionalismo, da teoria do erro e da teoria da sensibilidade, ou seja, de inscrevê-la em meio às obras de autores como John Mackie, Simon Blackburn, John McDowell, David Wiggins e Richard Joyce, entre outros3 1 POELLNER (2007) e CLARK/DUDRICK (2007) representam exceções. .

A fim de introduzir o projetivismo, é necessário fazer referência brevemente ao perspectivismo nietzschiano. Frequentemente, quando os filósofos (especialistas ou não de Nietzsche) abordam o perspectivismo, eles têm a tendência de considerá-lo principalmente como uma questão da teoria do conhecimento. Nessa situação, o fragmento póstumo 7 [60], fim 1886-primavera 1887 é muitas vezes citado, embora seja frequentemente mencionado fora de seu contexto e reduzido à formula “não há fatos, apenas interpretações”3 3 Para uma leitura contextualizada desse fragmento póstumo, cf.GORI (2016: 59-100). . Esses mesmos filósofos parecem esquecer que se trata de uma nota póstuma, enquanto o próprio Nietzsche decidiu publicar alguns meses antes, em Além de bem e mal § 108, a máxima que resume seu perspectivismo. Todavia, essa máxima não faz referência a todos os tipos de fatos, mas exclusivamente aos fenômenos morais: “Não há absolutamente fenômenos [Phänomene] morais, mas apenas uma interpretação [Ausdeutung] moral dos fenômenos…”4 4 JGB/BM 108, KSA 5.92. .

Ao lado de um perspectivismo que poderíamos definir como “gnosiológico” ou “teorético”, é também possível identificar na filosofia nietzschiana um perspectivismo de tipo “moral” ou “prático”5 5 Para uma análise aprofundada, cf.GORI/STELLINO (2014). . No fragmento póstumo 2 [165], outono 1885-outono 1886, Nietzsche define claramente esse perspectivismo como seu “princípio maior6 6 Nachlass, FP 1885-1886, 2 [165], KSA 12.149. , e ele o reformula, dois anos depois, na seguinte passagem do Crepúsculo dos ídolos: “[…] uma conclusão que eu fui o primeiro a formular: aquela que não há fatos [Thatsachen] morais. […] A moral é somente uma interpretação [Ausdeutung] - ou mais exatamente uma falsa interpretação [Missdeutung] - de certos fenômenos [Phänomene]”7 7 GD/CI (Os “melhoradores”da humanidade, 1), KSA 6.98. .

A fim de esclarecer o sentido do perspectivismo moral nietzschiano, tomemos um fenômeno qualquer que consideramos moralmente relevante, como o roubo. Segundo Nietzsche, esse fenômeno não é intrinsecamente moral, nem imoral. É somente após ter lhe sido atribuído uma interpretação moral que esse fenômeno se torna moral ou imoral. Essa interpretação é, portanto, posterior, secundária, acrescentada; ela não pertence primordialmente ao fenômeno. Crer na existência de fatos morais equivale, assim, a crer na existência de uma quimera, de uma ilusão. A interpretação moral da realidade, isto é, a interpretação da realidade impregnada moralmente e que pressupõe a existência de fatos morais só pode ser uma interpretação errônea e falsa.

Na meta-ética contemporânea, existem diferentes critérios para avaliar uma posição meta-ética. Um desses critérios é a capacidade da posição de dar uma explicação plausível do fenômeno moral sob seus diferentes aspectos (ontológico, psicológico, epistemológico, semântico, etc.). Nesse sentido, a posição nietzschiana deve responder à seguinte questão: por que a realidade nos aparece impregnada moralmente quando ela não o é? O aforismo 301 de A gaia ciência fornece uma resposta a essa questão. Nietzsche escreve:

Nós, os pensantes-que-sentem [Denkend-Empfindenden], somos os que de fato e continuamente fazem [machen] algo que ainda não existe: o inteiro mundo, em eterno crescimento, de avaliações [Schätzungen], cores, pesos, perspectivas, degraus, afirmações e negações. Esse poema de nossa invenção é, pelos chamados homens práticos […], permanentemente aprendido, exercitado, traduzido em carne e realidade, em cotidianidade. O que quer que tenha valor [Werth] no mundo de hoje não o tem em si [an sich], conforme sua natureza [Natur], - a natureza é sempre isenta de valor [werthlos]: - foi-lhe dado, oferecido um valor, e fomos nós esses doadores e ofertadores! O mundo que tem algum interesse para o ser humano, fomos nós que o criamos!8 8 FW/GC 301, KSA 3.540. Cf. FP 1881, 14 , KSA 9. 624-625. Ao fazer referência à recorrência da temática do Schaffen (criação), mencionada no fim do aforismo 301, Paolo D’Iorio identifica, em um artigo recente, um “giro construtivista” na ontologia e na gnoseologia nietzschiana do verão 1881; cf. D’IORIO (2014). Para uma leitura do aforismo 301 no sentido de uma “response-dependence theory”, cf. SWANTON 2015: 28-30.

Segundo Nietzsche, a realidade, que é werthlos, ou seja, destituída de valor, aparece-nos impregnada moralmente porque o valor moral, que encontramos em toda a realidade, foi previamente introduzido ou projetado por nós mesmos no mundo. É precisamente devido a essa projeção que a realidade nos aparece impregnada moralmente enquanto ela é destituída de valor moral. A resposta que Nietzsche dá à questão mencionada anteriormente - ou seja, por que a realidade nos aparece impregnada moralmente quando ela não o é? - inscreve-se plenamente na tradição filosófica do projetivismo9 9 Sobre o projetivismo moral veja-se JOYCE (2009). .

A fim de investigar isso, comparemos o que Nietzsche escreve em A gaia ciência com a seguinte passagem do Tratado da natureza humana de Hume, filósofo considerado o fundador dessa corrente de pensamento:

Imaginai uma ação considerada como viciosa, por exemplo um assassinato. Examinai-o sob todos os aspectos e vede se conseguis descobrir a questão de facto e existência real a que chamais vício. De qualquer modo que o considereis, encontrareis apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não há outro facto no caso. O vício escapa-vos inteiramente enquanto considerais o objeto. Não conseguis encontrá-lo até dirigirdes a vossa reflexão para o vosso próprio coração e descobrirdes um sentimento de desaprovação que nasce em vós contra essa ação. Aqui está um facto: mas é objecto de sentimento e não de razão. Encontra-se em vós e não no objecto. Assim, quando afirmais que uma ação ou um carácter são viciosos, quereis simplesmente dizer que, em razão da constituição da vossa natureza, ao considerá-los, experimentais um sentimento de censura. Pode pois comparar-se o vício e a virtude aos sons, às cores, ao calor e ao frio os quais, segundo a filosofia moderna, não são qualidades dos objetos, mas percepções da mente [mind]. Esta descoberta em moral, como aquela em física, deve ser considerada um progresso considerável das ciências especulativas [..]10 10 HUME (2001: 542). .

A alusão à filosofia moderna é uma clara referência ao debate acerca da distinção entre as qualidades primárias e secundárias, debate no qual participaram, entre outros, Galileu, Hobbes, Malebranche, Descartes, Locke, Bayle e Berkeley11 11 Para uma análise aprofundada do debate histórico e contemporâneo acerca das qualidades primárias e secundárias, cf. NOLAN (2011). . Para citar o locus classicus sobre o assunto, a saber, o Ensaio sobre o entendimento humano de Locke:

Tudo o que acabo de dizer em relação às cores e aos odores pode aplicar-se também aos paladares, sons e demais qualidades sensíveis semelhantes, as quais, seja qual for a realidade que equivocadamente lhes atribuamos, não são, em verdade, nos objectos, senão potências [power] para produzir em nós sensações e dependem daquelas qualidades primárias que são, como disse, o volume, a figura, a textura e o movimento das suas partes12 12 LOCKE (1999: 160). .

Hume retoma a distinção entre qualidades primárias e secundárias (qualidades secundárias, que ele concebe, contrariamente a Locke, como “percepções do espírito”) e compara estas últimas qualidades aos atributos morais e estéticos. No ensaio O cético, Hume escreve:

Se podemos confiar inteiramente em algun princípio que aprendemos da filosofia, este, acredito, pode ser considerado como certo e inquestionável: Que nada existe que seja, em si [in itself], valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme; pois esses atributos resultam da estrutura e da constituição peculiares dos afetos e sentimentos humanos13 13 HUME (2004: 286). .

Em outros termos, segundo Hume, as características de um objeto provocam sentimentos específicos nos espectadores. Esses sentimentos, que são conformes à estrutura e à constituição do espírito do sujeito que avalia, são projetados no objeto e considerados propriedades intrínsecas do objeto. Em consequência, o objeto é visto como valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme em si mesmo. Portanto, esses atributos são sentimentos que pertencem ao sujeito e não são propriedades intrínsecas do objeto14 14 Para uma análise aprofundada do projetivismo humiano, cf.MACKIE (1980), STROUD (1993), KAIL (2007) et OLSON (2011). .

Há analogias significativas entre a explicação humiana das avaliações morais e aquela que Nietzsche elabora. Nos dois casos, nós temos um objeto ou um fenômeno que, intrinsecamente, nunca possui valor moral. Ao contrário, esse valor é o resultado de uma atribuição ou projeção, e sua especificidade depende da constituição do espírito ou, em termos nietzschianos, da perspectiva particular do sujeito que avalia. Como mencionado, é devido a essa projeção que o objeto ou o fenômeno em questão nos aparece impregnado de um valor moral.

Após essa análise, a tese que eu quero defender é, em primeiro lugar, que a filosofia de Nietzsche se inscreve com pleno direito na tradição projetivista, ainda que Nietzsche seja quase unanimemente ignorado nas obras dos especialistas (em grande parte, anglo-americanos) dessa tradição. Em segundo lugar, eu sustento que é possível identificar uma posição projetivista já no ensaio póstumo Verdade e mentira no sentido extramoral (1872); não é por acaso que Simon Blackburn começa o capítulo 6 de seu muito influente livro Spreading the Word (1984BLACKBURN, S. Spreading the Word. Groundings in the Philosophy of Language. Oxford: Oxford University Press, 1984.), capítulo intitulado “Evaluations, Projections, and Quasi-Realism”, com a definição que Nietzsche faz da verdade como “uma multidão móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos” em Verdade e mentira no sentido extramoral15 15 Cf. BLACKBURN (1984: 181). . Em terceiro lugar, eu proponho que, ao longo de todo seu desenvolvimento filosófico, Nietzsche nunca abandona essa posição projetivista.

Eis algumas passagens, dispostas em ordem cronológica, que corroboram as três teses mencionadas:

Toda a regularidade que tanto nos impressiona na trajetória dos planetas e no processo químico coincide, no fundo, com aquelas propriedades que nós mesmos introduzimos nas coisas [Eigenschaften […] die wir selbst an die Dinge heranbringen ]16 16 WL/VM 1, KSA 1.886. .

É porque nós, desde milênios, temos olhado o mundo com pretensões morais, estéticas, religiosas, com cega inclinação, paixão ou medo, […] que esse mundo pouco a pouco veio a ser tão maravilhosamente colorido, apavorante, profundo de significação, cheio de alma; ele adquiriu cores - mas somos nós os coloristas17 17 A metáfora das cores é tipicamente projetivista. Cf.HUME (2005: 172): “As diferentes fronteiras e funçóes da razão e do gosto são assim determinadas com facilidade. A primeira proporciona o conhecimento da verdade e da falsidade; o segundo proporciona o sentimento da beleza e da deformidade, do vício e da virtude. Uma descobre os objectos tal como estes existem realmente na natureza, sem acrescentar nem retirar nada; o outro é uma faculdade productora que, dourando ou manchando todos os ojectos naturais com as cores emprestadas pelo sentimento interno, provoca, de certa maneira, uma nova criação”. : o intelecto humano fez aparecer o ‘fenômeno’ e transpôs para as coisas [in die Dinge hineingetragen] suas concepções fundamentais errôneas18 18 MA I/HH I 16, KSA 2.36. Nesse aforismo, Nietzsche critica a tendência dos filósofos (especificamente de Schopenhauer, cf. FP 1876, 23, KSA 8.447-448) de se colocarem diante da vida (o mundo fenomênico) como diante de um quadro que bastaria ser bem interpretado para concluir acerca do ser que o produziu (o mundo metafísico, ou seja, a coisa-em-si ou o incondicionado). Nietzsche opõe a essa tendência o ponto de vista de Afrikan Spir, que, em seu Denken und Wirklichkeit, Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie, negava toda conexão entre o condicionado e o incondicionado. Entretanto, Nietzsche recusa também a interpretação de Spir. Com efeito, segundo Nietzsche, “de ambos os lados, não é levada em conta a possibilidade de que essa pintura - aquilo que agora, para nós homens, se chama vida e experiência - pouco a pouco veio a ser e, aliás, está ainda em pleno vir-a-ser e por isso não deve ser considerada grandeza firme, a partir da qual se pudesse tirar uma conclusão sobre o criador (a razão suficiente) ou sequer recusá-la” (MA I/HH I 16, KSA 2.36). Sobre a leitura nietzschiana de Spir, cf.D’IORIO (1993). .

Tudo tem seu tempo. - Quando o homen deu a todas as coisas um gênero, não acreditou estar brincando, mas haver obtido uma profunda compreensão: - apenas muito tarde, e talvez ainda não completamente, ele deu-se conta da enormidade desse erro. - De igual modo, o homem conferiu a tudo o que existe uma relação com a moral e revestiu o mundo de um significado ético [der Welt eine ethische Bedeutung über die Schulter gehängt]. Um dia, isso terá tanto valor quanto hoje tem a crença na masculinidade ou feminilidade do sol19 19 M/A 3, KSA 3.19-20. .

Em verdade, os homens se deram todo o seu bem e mal. Em verdade, eles não o tomaram, eles não o encontraram, não lhes caiu como uma voz do céu. // Valores foi somente o homem que pôs nas coisas [Werhe legte erst der Mensch in die Dinge], para se conservar; […] Estimar é criar: [...] e sem o estimar a noz da existência seria oca20 20 ZA/ZA I, Dos mil e Um alvos, KSA 4.75. .

Todos os valores com os quais nós temos até agora procurado tornar o mundo estimável [schätzbar] para nós, e com os quais precisamente o depreciamos, quando eles se mostram inaplicáveis - todos esses valores são, do ponto de vista psicológico, os resultados de certas perspectivas de utilidade, estabelecidas para conservação e para intensificar as formações humanas de domínio: e falsamente projetadas [projicirt] na essência das coisas. É sempre a ingenuidade hiperbólica do homem que o faz considerar a si próprio o sentido e a medida das coisas…21 21 FP 1887, 11 [99], KSA 13.49.

Resumamos as etapas principais do projetivismo moral nietzschiano. (1) Segundo Nietzsche, a realidade é destituída de valor moral. (2) No entanto, a realidade nos aparece impregnada moralmente. (3) Isso se explica pelo fato que o ser humano opera uma projeção de valor. Nós introduzimos no mundo um valor moral conforme nossa perspectiva avaliadora. Mais especificamente, nossos afetos avaliam o fenômeno x como moralmente bom ou mau. (4) Porque ignoramos esse fato ou porque, mesmo se acontecer de compreendermos esse fato, “nós o esquecemos novamente no instante seguinte”22 22 FW/GC 301, KSA 3.540. , consideramos x intrinsecamente moralmente bom ou mau. (5) Essa crença é, portanto, uma ilusão: x não é intrinsecamente moralmente bom, nem moralmente mau. Enquanto o senso comum se limita ao ponto (4), ou seja, a considerar x intrinsecamente moralmente bom ou mau, a explicação genealógica nietzschiana do fenômeno moral leva em consideração as cinco etapas mencionadas.

Conclusões

Como as passagens citadas mostram, Nietzsche mantém, ao longo de todo desenvolvimento de seu pensamento, uma clara posição projetivista. Do mesmo modo que o perspectivismo, esse projetivismo é tanto moral (ou estético) quanto epistemológico23 23 Além das passagens citadas, cf. os aforismos e os fragmentos póstumos seguintes: MA/HH I 215; NF 1881, 11 [208]; M/A 44 e 210; FW/GC 58 e 152; NF 1883, 24 [15]; NF 1885, 2 [149]; JGB/BM 21; NF 1886, 6 [15]; NF 1887, 9 [38], [91] e [121] ; NF 1887, 11 [73], [145] GD/CI, Incursões de um intempestivo 19. . A seguinte passagem de Crepúsculo dos ídolos é, nesse sentido, muito explícita: a mentalidade grosseiramente fetichista “acredita no ‘eu’, no eu como ser, no eu como substância, e projeta [projicirt] a crença na substância-eu sobre todas as coisas - somente com isso cria o conceito de ‘coisa’”25 23 Além das passagens citadas, cf. os aforismos e os fragmentos póstumos seguintes: MA/HH I 215; NF 1881, 11 [208]; M/A 44 e 210; FW/GC 58 e 152; NF 1883, 24 [15]; NF 1885, 2 [149]; JGB/BM 21; NF 1886, 6 [15]; NF 1887, 9 [38], [91] e [121] ; NF 1887, 11 [73], [145] GD/CI, Incursões de um intempestivo 19. .

No que concerne mais especificamente ao projetivismo moral, é necessário reconhecer que, se, por um lado, essa posição projetivista permite a Nietzsche explicar por que a realidade nos aparece impregnada moralmente quando ela não o é, por outro lado, enquanto teoria explicativa do fenômeno moral, o projectivismo nietzschiano é muito rudimentar. De fato, Nietzsche não entra nos detalhes de como supõe que a projeção de valor seja implementada.

Como vimos, existem analogias significativas entre o projetivismo de Hume e aquele de Nietzsche. Entretanto, é possível identificar características típicas que distinguem o último do primeiro. Em primeiro lugar, é fundamental colocar o projetivismo nietzschiano em seu contexto específico, a saber: (1) o debate pós-kantiano acerca da coisa em si; (2) a crítica nietzschiana da moral e da metafísica (em particular, da “metafísica da linguagem”); (3) a análise da emergência do niilismo (segundo Nietzsche, a tomada de consciência da falsidade dos valores morais e metafísicos, que nós projetamos no mundo, provoca uma desvalorização desse mesmo mundo).

Em segundo lugar, é necessário destacar que a posição projetivista de Nietzsche é estritamente ligada a sua concepção de razão como “razão poética” (dichtende Vernunft) e de homem como “sujeito artisticamente produtivo [künstlerisch schaffendesSubjekt]”. Além disso, Nietzsche explica a tendência projetivista do homem por meio de sua utilidade prática (ela é uma condição de existência [Existenzbedingung])25 25 Cf., por exemplo, NF 1887, 9 [38], KSA 12.353: “nós projetamos [projicirt] nossas próprias condições de conservação como predicados do ser em geral”; NF 1887, 11 [73], KSA 13.36: “não há unidades últimas duráveis, nem átomos, nem mônadas: aí ainda ‘o ser’ foi inicialmente introduzido [hineingelegt] por nós (por razões práticas, úteis, perspectivistas)”. . Ainda mais, ele interpreta essa tendência como expressão da vontade de potência do ser humano.

Essas características distintivas, que contribuem para dar ao projetivismo nietzschiano una caracterização muito particular e original, mostram que, embora a filosofia de Nietzsche possa se inscrever com pleno direito na tradição projetivista, ela preserva, entretanto, uma especificidade que evita que o projetivismo nietzschiano possa ser reduzido a uma simples reformulação ou redefinição do projetivismo humiano.

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  • *
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  • 1
    POELLNER (2007POELLNER, P. Affect, Value, and Objectivity. In: LEITER, B., SINHABABU, N., Nietzsche and Morality . Oxford: Oxford University Press , 2007, p. 227-261.) e CLARK/DUDRICK (2007CLARK, M., DUDRICK, D. Nietzsche and Moral Objectivity: The Development of Nietzsche’s Metaethics. In: LEITER, B., SINHABABU, N., Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press , 2007, p. 192-226.) representam exceções.
  • 2
    Cf.MACKIE (1977MACKIE, J. Ethics: Inventing Right and Wrong. Harmondsworth: Penguin, 1977.) e (1980), BLACKBURN (1984BLACKBURN, S. Spreading the Word. Groundings in the Philosophy of Language. Oxford: Oxford University Press, 1984.), (1985BLACKBURN, S. Errors and the Phenomenology of Value. In: HONDERICH, T., Morality and Objectivity. A tribute to J. L. Mackie, London: Routledge and Kegan Paul, 1985, p. 1-22.) e (1993BLACKBURN, S. Essays in Quasi-Realism. Oxford: Oxford University Press, 1993.), MCDOWELL (1998MCDOWELL, J. Mind, Value, and Reality. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1998.), WIGGINS (1987WIGGINS, D. Needs, Values, Truth. Oxford: Blackwell, 1987.) e JOYCE (2001JOYCE, R. The Myth of Morality. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.), (2006JOYCE, R. The Evolution of Morality. Cambridge (MA): MIT, 2006.) e (2016JOYCE, R. Essays in Moral Skepticism. Oxford: Oxford University Press, 2016.).
  • 3
    Para uma leitura contextualizada desse fragmento póstumo, cf.GORI (2016GORI, P. Il pragmatismo di Nietzsche. Saggi sul pensiero prospettivistico. Milano/Udine: Mimesis, 2016.: 59-100).
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    JGB/BM 108, KSA 5.92.
  • 5
    Para uma análise aprofundada, cf.GORI/STELLINO (2014GORI, P., STELLINO, P. O perspectivismo moral nietzschiano. Cadernos Nietzsche, vol. 34, n. 1, p. 101-129, 2014.).
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    Nachlass, FP 1885-1886, 2 [165], KSA 12.149.
  • 7
    GD/CI (Os “melhoradores”da humanidade, 1), KSA 6.98.
  • 8
    FW/GC 301, KSA 3.540. Cf. FP 1881, 14 , KSA 9. 624-625. Ao fazer referência à recorrência da temática do Schaffen (criação), mencionada no fim do aforismo 301, Paolo D’Iorio identifica, em um artigo recente, um “giro construtivista” na ontologia e na gnoseologia nietzschiana do verão 1881; cf. D’IORIO (2014D’IORIO, P. Ontologia e gnoseologia nell’estate del 1881. La svolta costruttivista di Nietzsche.Studia Nietzscheana, 2014. http://www.nietzschesource.org/SN/p-diorio-2014.
    http://www.nietzschesource.org/SN/p-dior...
    ). Para uma leitura do aforismo 301 no sentido de uma “response-dependence theory”, cf. SWANTON 2015SWANTON, C. The Virtue Ethics of Hume and Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2015.: 28-30.
  • 9
    Sobre o projetivismo moral veja-se JOYCE (2009JOYCE, R. Is Moral Projectivism Empirically Tractable? Ethical Theory and Moral Practice, n. 12, p. 53-75, 2009.).
  • 10
    HUME (2001HUME, D. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.: 542).
  • 11
    Para uma análise aprofundada do debate histórico e contemporâneo acerca das qualidades primárias e secundárias, cf. NOLAN (2011NOLAN, L. (ed.) Primary and Secondary Qualities. The Historical and Ongoing Debate. New York: Oxford University Press, 2011.).
  • 12
    LOCKE (1999LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian , 1999.: 160).
  • 13
    HUME (2004HUME, D. Ensaios morais, políticos e literários. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.: 286).
  • 14
    Para uma análise aprofundada do projetivismo humiano, cf.MACKIE (1980MACKIE, J. Hume’s Moral Theory. London/New York: Routledge, 1980.), STROUD (1993STROUD, B. “Gilding or Staining” the World with “Sentiments” and “Phantasms”. In: Hume Studies , vol. 19, n. 2, p. 253-272, 1993.), KAIL (2007KAIL, P. J. E. Projection and Realism in Hume’s Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007.) et OLSON (2011OLSON, J. Projectivism and Error in Hume’s ethics. Hume Studies, vol. 37, n. 1, p. 19-42, 2011.).
  • 15
    Cf. BLACKBURN (1984BLACKBURN, S. Spreading the Word. Groundings in the Philosophy of Language. Oxford: Oxford University Press, 1984.: 181).
  • 16
    WL/VM 1, KSA 1.886.
  • 17
    A metáfora das cores é tipicamente projetivista. Cf.HUME (2005HUME, D. Investigação sobre os princípios da moral. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2005.: 172): “As diferentes fronteiras e funçóes da razão e do gosto são assim determinadas com facilidade. A primeira proporciona o conhecimento da verdade e da falsidade; o segundo proporciona o sentimento da beleza e da deformidade, do vício e da virtude. Uma descobre os objectos tal como estes existem realmente na natureza, sem acrescentar nem retirar nada; o outro é uma faculdade productora que, dourando ou manchando todos os ojectos naturais com as cores emprestadas pelo sentimento interno, provoca, de certa maneira, uma nova criação”.
  • 18
    MA I/HH I 16, KSA 2.36. Nesse aforismo, Nietzsche critica a tendência dos filósofos (especificamente de Schopenhauer, cf. FP 1876, 23, KSA 8.447-448) de se colocarem diante da vida (o mundo fenomênico) como diante de um quadro que bastaria ser bem interpretado para concluir acerca do ser que o produziu (o mundo metafísico, ou seja, a coisa-em-si ou o incondicionado). Nietzsche opõe a essa tendência o ponto de vista de Afrikan Spir, que, em seu Denken und Wirklichkeit, Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie, negava toda conexão entre o condicionado e o incondicionado. Entretanto, Nietzsche recusa também a interpretação de Spir. Com efeito, segundo Nietzsche, “de ambos os lados, não é levada em conta a possibilidade de que essa pintura - aquilo que agora, para nós homens, se chama vida e experiência - pouco a pouco veio a ser e, aliás, está ainda em pleno vir-a-ser e por isso não deve ser considerada grandeza firme, a partir da qual se pudesse tirar uma conclusão sobre o criador (a razão suficiente) ou sequer recusá-la” (MA I/HH I 16, KSA 2.36). Sobre a leitura nietzschiana de Spir, cf.D’IORIO (1993D’IORIO, P. La superstition des philosophes critiques. In: Nietzsche-Studien, n. 22, p. 257-294, 1993. ).
  • 19
    M/A 3, KSA 3.19-20.
  • 20
    ZA/ZA I, Dos mil e Um alvos, KSA 4.75.
  • 21
    FP 1887, 11 [99], KSA 13.49.
  • 22
    FW/GC 301, KSA 3.540.
  • 23
    Além das passagens citadas, cf. os aforismos e os fragmentos póstumos seguintes: MA/HH I 215; NF 1881, 11 [208]; M/A 44 e 210; FW/GC 58 e 152; NF 1883, 24 [15]; NF 1885, 2 [149]; JGB/BM 21; NF 1886, 6 [15]; NF 1887, 9 [38], [91] e [121] ; NF 1887, 11 [73], [145] GD/CI, Incursões de um intempestivo 19.
  • 24
    GD/CI, A “razão” na filosofia 5, KSA 6.77.
  • 25
    Cf., por exemplo, NF 1887, 9 [38], KSA 12.353: “nós projetamos [projicirt] nossas próprias condições de conservação como predicados do ser em geral”; NF 1887, 11 [73], KSA 13.36: “não há unidades últimas duráveis, nem átomos, nem mônadas: aí ainda ‘o ser’ foi inicialmente introduzido [hineingelegt] por nós (por razões práticas, úteis, perspectivistas)”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2016
  • Aceito
    16 Mar 2017
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