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Friedrich Nietzsche e a crítica dos paradigmas culturais nas preleções da Basileia* * Tradução Eduardo Nasser. Revisão Vinícius de Andrade.

Resumo

Quando pensamos na Grécia, o “lugar dos sonhos” (Wunsch-Ort) dos alemães, e especialmente na relação de Nietzsche com a Grécia, muitas coisas podem com razão chamar nossa atenção. Grécia pode ser interpretada de diferentes maneiras na obra de Nietzsche. Mas todos podemos talvez concordar que, para Nietzsche, o mundo grego é uma ferramenta de valor crítico insuperável. Eles são testemunhas da diferença que os separa de nós. Eles são uma alternativa cultural inalcançável (unerreichbare) e inalcançada (unerreichte), para a qual é permitido orientar-nos, mas da qual, frequentemente e mais facilmente, podemos nos separar. Nietzsche serve-se do mundo grego a fim de aprofundar a crise da cega confiança etnocêntrica do homem moderno. Como historiador e filólogo, Nietzsche usa a literatura grega para lutar contra o absolutismo científico (há apenas um mundo, apenas uma ciência, uma única ratio, a minha) do mundo moderno. Sua crítica almeja falsificar as categorias científicas modernas, prosseguindo com um estudo genealógico que deve “transvalorar” as bases da cultura ocidental moderna.

Palavras-chave
literatura; oralidade; escrita; filologia

Abstract

When we think of Greece, the “Place of Desire” (Wunsch-Ort) of the German, and especially of the relation between Nietzsche and Greece, many things could indeed come to our attention. Greece could be interpreted in many different ways in Nietzsche’s work. Although we can all agree that, to Nietzsche, the Greek world is a tool of insurmountable critical value. They are spectators of the difference that separates them from us. They are an unattainable (unerreichbare) and unattained (unerreichte) cultural alternative, which allows us to orient ourselves, although from which, frequently and most easily, we can draw apart from. Nietzsche uses the Greek world in order to deepen the blind ethnocentric confidence crisis of modern man. As a Historian and Philologist, Nietzsche uses Greek literature to fight against scientific absolutism (there’s only one World, only one Science, only one ratio, mine) of modern world. His criticism aims to falsify the modern scientific categories, proceeding with a genealogical study, which should “transvaluate” the basis of the modern western society.

Keywords
literature; orality; writing; philology

Uma preliminar consideração metodológica

Quando pensamos na Grécia, o “lugar dos sonhos” (Wunsch-Ort) dos alemães, e especialmente na relação de Nietzsche com a Grécia, muitas coisas podem com razão chamar nossa atenção. Grécia pode ser interpretada de diferentes maneiras na obra de Nietzsche. Mas todos podemos talvez concordar que, para Nietzsche, o mundo grego é uma ferramenta de valor crítico insuperável. Os gregos - quer os autênticos, quer os ideais, os gregos de Winckelmann, de Goethe ou aqueles do dionisíaco - permanecem sempre extemporâneos. Eles são testemunhas da diferença que os separa de nós. Eles são uma alternativa cultural inalcançável (unerreichbare) e inalcançada (unerreichte), para a qual é permitido orientar-nos, mas da qual, frequentemente e mais facilmente, podemos nos separar. Nietzsche serve-se do mundo grego a fim de aprofundar a crise da cega confiança etnocêntrica do homem moderno. Como historiador e filólogo, Nietzsche usa a literatura grega para lutar contra o absolutismo científico (há apenas um mundo, apenas uma ciência, uma única ratio, a minha) do mundo moderno. Sua crítica almeja falsificar as categorias científicas modernas, prosseguindo com um estudo genealógico que deve “transvalorar” as bases da cultura ocidental moderna.

Os gregos sem literatura

No início de seu curso acadêmico mais longo e melhor redigido na Basileia, que leva o título de História da Literatura Grega, Nietzsche questiona a autorização do próprio título: “A palavra literatura é dúbia e guarda um preconceito” (História da Literatura Grega, KGW, II / 57). Em primeiro lugar, temos de lidar com uma espécie de anatopismo. A palavra “literatura” não é grega, mas latina. O uso da palavra provém de Tácito e Quintiliano, significando o alfabeto ou a gramática. O significado da palavra, como a conhecemos hoje, tem sua origem em um estranho incidente que aconteceu na transmissão de um texto de Cícero. Cícero diz de César: “Fuit in illo ingenium, ratio, memoria, litterae, cogitatio, diligentia” (Cic. Phil., II, 116). Litterae aqui significa que César estava na companhia de livros, isto é, que ele era um homem culto. No entanto, uma variante contida em um Codex1 1 Codex Vaticanus Basilicanus (H25(V)), 8.-9. Jh. do Vaticano diz algo ligeiramente diferente: “fuit in illo ingenium, ratio, memoria, litterae cura” (Cuidado). A palavra Litteratura originou-se da crase entre Litterae e Cura (História da Literatura Grega, KGW, II/5, 9: Adnotatio, I. A palavra literatura).

Dessa breve digressão etimológica, Nietzsche imediatamente extrai uma tese histórico-cultural. Se a literatura tem a ver com o Litterae e seu estudo, necessariamente pressupõe um repertório de escritos em que o homem exercita seu gosto e para o qual dirige seu cuidado (cura). O “preconceito” mencionado na citação anterior seria assumir a existência de um fenômeno na Grécia comparável ao nosso uso atual do termo literatura. “Mas deve-se manter o pensamento de escrever e ler o mais distante possível da parte mais valiosa da literatura grega; não que faltasse a escrita - mas servia apenas ao artista verbal, que se apresentava à audiência como narrador ou cantor” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 7).

Com este paradoxo de uma literatura que não requer Litterae, surge uma série de contradições entre cultura moderna e antiga: tradição escrita contra uma oral, leitores contra ouvintes e espectadores, os artistas verbais contra os escritores, leitura e escrita contra fala, canto, escuta. Não apenas o uso de uma palavra em vez de outra está em jogo, mas a legitimidade em geral da abordagem da antiguidade empreendida pela modernidade. Não é suficiente nomear as coisas de maneira diferente; há, antes de tudo, um problema cultural. Se falta a palavra, falta também a coisa. Nietzsche tenta cunhar uma nova palavra para nomear essa antiga “literatura” que emerge, desenvolve-se e transmite-se no solo da oralidade. Mas ele não encontrará nada melhor do que uma perífrase (“arte da linguagem”) que descreve um fenômeno sem poder identificá-lo. “Poder-se-ia chamar de uma degeneração (Entartung) quando toda a literatura tornou-se uma literatura de leitura: mas agora vivemos em tal degeneração e, por essa razão, trazemos muitos falsas medidas e pressuposições para a história grega: da qual, infelizmente, possuímos apenas obras de leitura” (História da Literatura Grega, KGW II, 5, 7).

No caso de uma literatura que deixa os palcos da oralidade e que, por meio da transmissão de escritos de literatura transmitida, transforma-se em “autêntica”, falar de uma degeneração não é uma tese original no panorama cultural alemão do século XIX. Desde a época de Herder, e depois nos estudos científico-linguísticos dos irmãos Grimm, a maioria dos linguistas está convencida de que a fixação de uma língua em uma gramática estruturada - o que só é possível quando existe uma literatura estabelecida e assentada na escrita - provoca um enfraquecimento da dinâmica de desenvolvimento interior habitualmente muito viva das línguas orais2 2 A tese de que a linguagem experimenta a degeneração e a esclerotização de suas fontes mais íntimas de formação por meio da fixação escrita e limitação dentro de estruturas gramaticais e sintáticas, é considerada por Nietzsche nas preleções sobre gramática latina (LatG, KGW, II, 2, 187-188). Ali, Nietzsche discute as teses sobre a origem da linguagem de Immanuel Kant, Johann Gottfried Herder, Friedrich Schelling e os Irmãos Grimm, que ele conhecia graças à mediação de HARTMANN, E. von. A filosofia do inconsciente. . “Assim como o antigo erro gramatical era começar pela letra e não pelos sons, também é o antigo erro da história literária pensar primeiro nos escritos (Schriftentum) de um povo e não na oralidade artística (kunstmäßige Sprachtum), i.e., começar a partir de um tempo em que a obra de arte linguística é apreciada apenas pelo leitor” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 7). Mais do que a “morte” da literatura e seu poder mitopoiético, que teria causado as condições mutáveis do desenvolvimento literário, Nietzsche parece aqui referir-se à distração daquele tipo específico de sensibilidade que permite o gozo e a prática da arte linguística antes do advento da escrita e o estabelecimento de um cânone literário. Não apenas as condições do surgimento de uma literatura são bastante diferentes hoje, mas também o modo de sua percepção psíquica e sensorial impede que o homem moderno sinta-se como os homens da antiguidade e compreenda seus fenômenos literários mais profundamente.

Oralidade: uma arca de Homero

O torpor (entendido como surdez seletiva e dirigida), o embotamento dos sentidos do homem moderno, é a causa do preconceito, dos padrões e pressuposições que o filólogo traz consigo para seu estudo do mundo grego. Um exemplo claro disso, no entendimento de Nietzsche, está na famosa “questão homérica”. “Quanto esforço é necessário para não considerar Homero como um produto literário” (Enciclopédia da filologia clássica, KGW, II, 3, 373). O filólogo clássico Friedrich August Wolf, o famoso autor de Prolegomena ad Homerum (1795WOLF, F. A. Prolegomena ad Homerum: sive de operum Homericorum prisca et genuina forma variisque mutationibus et probabili ratione. Halle: 1795.), estimado por Nietzsche por sua inteligência, intuição, probidade científica e severidade crítica, é também por ele reprovado por ter medido os poemas homéricos com as equivocadas unidades de medida do sentimento moderno. Seu etnocentrismo teria levado a fazer as perguntas erradas sobre os poemas. Um problema parece a Wolf insolúvel: o problema da composição da complexa máquina narrativa da poesia. Obras tão longas e desafiadoras apresentam duas essenciais dificuldades. O primeiro problema, o problema da escrita, poderia ser expresso da seguinte maneira: quem poderia compor e recitar uma epopeia como aquela quando a escritura poderia ter existido, mas não era comum? Como nós podemos imaginar um “escritor Homero”?

O segundo problema diz respeito ao público dos poemas. A formulação deste segundo problema é oferecida diretamente por F. A. Wolf.

Não havia público que pudesse apreender um poema tão grande e planejado como um todo. (…)Mesmo se Homero, equipado com um excesso de memória, de força, de visão global e de voz, tivesse recitado e declamado a Ilíada e a Odisséia para o contexto (Umfang) de sua atualidade, estas se assemelhariam, pela falta de suportes literários contemporâneos, a um grande navio que alguém teria construído em terra firme, nos primórdios da navegação, sem ter rolos e máquinas para impeli-lo para a água, onde poderia mostrar sua utilidade (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 40, 294)3 3 A citação não é tirada diretamente do Prolegomena de Wolf, que foi traduzido somente muito mais tarde para o alemão (WOLF, F. A. Prolegomena zu Homer) e que, portanto, Nietzsche só poderia ter conhecido em latim. As citações de Wolf nas Vorlesungen über die Geschichte der grieschichen Litteratur, bem como os parágrafos que comentam essas citações, são de fato longos excertos de F. Nutzhorn, Die Entstehungsweise der homerischen Gedichte (Esta citação específica pode ser encontrada na página 83). A tese apresentada é, portanto, a tese de Nutzhorn; mas muitas das intervenções diretas de Nietzsche permitem-nos concluir que ele geralmente concorda. Além disso, encontramos trechos de Nutzhorn duas vezes nessas preleções (p. 40 e p. 294) e em ambos os casos são as mesmas longas passagens sobre Homero: Nietzsche parafraseia-os e interpola-os com suas observações pessoais, de modo que esses excertos tornam-se quase parte de seu raciocínio e conclusão. Lê-se na citação de Wolf original em latim : “Id Homerus efficere non potuisset decem linguis, ferrea voce et aeneis lateribus; (…) Quid? quod, si forte his instructus, unus in saeculo suo, Iliada et Odysseam hoc tenore pertexuisset, in ceterarum opportunitatum penuria similes illae fuissent ingenti navigio, quod quis in prima ruditate navigationis fabricatus in loco mediterraneo, machinis et phalangis ad protrudendum, atque adeo mari careret, in quo experimentum suae artis capere” (F. A. Wolf, 1795, XXVI, 112, p. 67). .

Essa maravilhosa imagem de uma nova Arca de Noé que fica no meio da terra firme e que confronta a indignação ou o riso com sua existência impossível poderia, no entanto, voltar-se contra o próprio argumento de Wolf. Basta lembrar o que aconteceu com aqueles que riram da arca de Noé e não compreenderam a sua utilidade. Wolf parte da premissa de que um autor genial, com uma extraordinária memória e um tremendo fôlego robusto (Atemkraft), bem como um público muito sábio e paciente, são duas quimeras, e que sua impossibilidade é uma prova imediata da inconsistência da tese acerca da unidade da poesia homérica.

Certamente ninguém poderia escutar esses poemas do começo ao fim, assim como ninguém poderia concebê-los em sua forma atual. É por isso que só poderíamos negar a sua unidade. “Portanto: como ocorre a um poeta construir tal totalidade, se seus ouvintes só podem apreender partes e detalhes? Wolf quer dizer: a unidade é impossível desde o início: e se ambos os poemas exprimem unidade de composição, é porque somos guiados justamente pela aparência (Schein). Isso é o que precisamente Lachmann quer provar mais tarde, a composição é aparência, i.e., erro e preconceito, e que para o observador crítico tudo desmoronava em pedaços” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 40, 294).4 4 Citação de Nutzhorn, 1869, p. 84. Nietzsche propõe aqui um experimento de pensamento que pode reverter essa última questão. Tentemos não duvidar dos poemas desde o primeiro momento. Porque existem poemas tão longos e complexos, imaginemos que eles foram compostos por alguém. E se alguém os escreveu desta forma, devemos também imaginar que havia algum público que os pudessem escutar! Da questão do público decorre, assim, a prova da unidade dos poemas homéricos:

Nas longas noites no átrio do rei, havia sempre ocasião para recitar até mesmo a mais extensa epopeia. Mais tarde, com a queda da monarquia, a grande epopeia perde seu público natural, aqueles ouvintes calmos e sedentários que permanecem fiéis a um cantor por semanas, porque este vivia com eles. Mais tarde, origina-se o rapsodo, que se apresenta antes do panegírico, podendo recitar sempre somente uma única peça; agora, não é mais possível poetizar a Ilíada com uma composição uniforme: o rapsodismo é incapaz de capturar a Ilíada e a Odisseia como um todo, preferindo apenas partes que podem ser recitadas de uma só vez com impacto específico (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 36, 294).

Para uma psicologia do autor

Mas Wolf estava certo quando reconheceu o problema do público como um dos caminhos de entrada para a questão homérica. Qual público para qual obra de arte? Essa é a questão que Nietzsche coloca nos cursos da Basileia. Mas, a rigor, essa questão estará sempre presente em todo seu trabalho, e ele também a colocará para si-mesmo, por exemplo, nos novos prefácios. Para qual público um autor pensa quando escreve? Para qual público o seu trabalho será apropriado? A concepção, mas também a recepção de uma obra, são completamente diferentes, dependendo do tipo de audiência que o autor tenha imaginado. Entre uma obra destinada à leitura e outra destinada à escuta, as intenções, os meios de expressão escolhidos pelo autor, mas também o tipo de atenção e reação do público mudam.

Escritores, que escrevem para os leitores, pensam num público ideal, que logo estará aqui, logo ali, e pode aparecer muito depois da morte do autor; esse é o verdadeiro apelo da escrita, o estímulo sem o qual ninguém se esforça - pense-se em jornalistas, uma possibilidade exuberante do efeito (Wirkung), do efeito posterior (Nachwirkung). Em contraposição, é deplorável o mímico, voltado para o instante (Augenblick), cuja arte não tem posteridade (Nachwelt) (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 277-278).

Com uma clara consciência (Bewusstsein) do que hoje chamaríamos de psicologia do autor, Nietzsche levanta a questão do tipo de projeção que o autor lança sobre a literatura moderna e sobre o que nela pode corresponder à literatura antiga. Lembremo-nos do que Nietzsche escreve em Humano, demasiado humano:

O livro quase tornando-se homem - Todo escritor fica surpreso que o livro, tão logo dele se separe, continua vivendo uma vida própria; sente-se como a parte de um inseto que se solta e toma um caminho próprio. Talvez ele quase se esqueça disso, talvez ele se eleve acima das opiniões expressas nele, talvez até ele não o entenda mais e tenha perdido aquelas asas nas quais ele voou no momento em que ele fez aquele livro; enquanto isso o livro procura por seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, cria novas obras, torna-se a alma de intenções e ações - em suma, vive como um ser equipado com espírito (Geist) e alma (Seele), sem, contudo, ser homem. (MA I/HH I 208, KSA 2.171)

O escritor moderno tem, de fato, uma relação íntima com sua obra (como um relacionamento pai / filho, efetivamente), mas não tem controle sobre sua influência continuada; só pode imaginar seu leitor ideal, a fim de tentar alcançá-lo para além do espaço e do tempo.

Mas Nietzsche compara o autor antigo, o poeta, com o mímico: uma figura anônima cuja individualidade nunca se destaca da obra. Suas composições são improvisadas, únicas, concebidas e realizadas em uma oportunidade muito determinada e limitada, sem reivindicar uma posteridade fora do alcance. Enquanto o leitor de um romance possivelmente não dispõe de conhecimento sobre o autor, seu tempo, o contexto de seu trabalho, o antigo espectador estava profundamente envolvido com o contexto em que ele desfrutava da obra de arte. Se o leitor moderno é curioso e gosta de ser surpreendido, o ouvinte antigo não esperava nada de novo no campo da ação. Uma ação muito complicada, uma mudança inesperada, distrai a atenção. Além disso, o autor e seu público são muito próximos uns dos outros: são todos cidadãos da Polis, inter pares. Eles sabem exatamente o que podem esperar um do outro. A apresentação de uma obra requer sua participação: o autor atende às expectativas de seu público e o público reconhece na obra de seu autor o que procura. Este encontro entre autor e obra de arte ocorre em uma ocasião particular: no festival, no symposion, na campanha militar. É sempre um contexto tradicional, fortemente codificado, que pressupõe uma distância entre autor e público como pessoas individuais; mas, ao mesmo tempo, representa a única possibilidade de que ambos possam falar uma e a mesma língua.

Medidas por parâmetros modernos, as clássicas obras gregas, que não foram dadas à escrita, parecem ser fenômenos efêmeros. “Se, num sentido estrito, sempre tivesse sido composta somente para uma ocasião única e para um público muito fixo, se a poesia sempre tivesse um caráter momentâneo, não monumental, se fosse como folhas da floresta, que precisam sempre desaparecer (vergehen) para criar um lugar para as novas, não teríamos nada dos poetas gregos e quase nada saberíamos sobre eles” (História da Literatura Grega, KGW, II / 5, 296). E isso é parcialmente correto. Como Nietzsche nos lembra, muito se perdeu5 5 Sobre o fatum libellorum, ver também PHG/FT, KSA, 1, 811; VPP, KGW, II, 4, 214. Este provérbio vem de Terenciano Mauro, De litteris, De syllabis, De Metris, 1286: “pro capitol lectoris habent sua fata libelli”. . Embora milhares de obras de arte tenham-nos sido transmitidas desde a antiguidade, elas representam apenas uma pequena porção daquelas obras que desapareceram por uma variedade de razões (poetas locais, baixas de guerra, o simples esquecimento, ausência de registro num cânone).

“Mais branco do que mármore pariano”. Sobre valor e efeito da poesia.

Apesar de seu inegável caráter efêmero e atrelado a ocasiões específicas (anlassbezogenen), a poesia antiga era estimada como “mais durável do que o mármore” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 293.)6 6 A metáfora do mármore, que deveria designar a monumentalidade da poesia, foi introduzida pela primeira vez por Simónides e, mais tarde, tomada de empréstimo por Píndaro. (Pind. N. IV, 80) . Com esta expressão, Simónides e Píndaro pensavam no caráter monumental de uma obra poética, por exemplo, um hino (Hymnus). Então, assim como do vencedor da Olimpíada se faz uma estátua do mais precioso mármore, da mesma forma os epinícios, que descrevem a vitória, a casa, o clã, a polis do atleta, sua semelhança com os deuses, podem reivindicar valor monumental. Aliás, o preço era o mesmo, quer você quisesse fazer uma estátua de si mesmo ou ter um poema dedicado a você. E mais: o mármore pode ser entalhado. E mais: o mármore pode ser entalhado. Mesmo naquela época as inscrições em mármore eram comuns e deveriam fazer lembrar eventos importantes. De fato, o lema de Píndaro nos diz muito sobre a concepção da poesia na antiguidade. Um hino, uma música, mesmo se não tivessem sido escritos, valem mais do que se fossem entalhados duradouramente em mármore.

Se na Grécia a palavra é mais durável do que o mármore, em que se entalha uma inscrição, qual é o estatuto da palavra e da escritura? A cultura moderna é impensável sem a escrita, sem as práticas do ler e escrever. Sustenta não apenas nossa criatividade literária e cotidiano (contratos, comunicações, etc.), mas também toda a nossa formação. Aprende-se com os livros. A cultura moderna é, segundo uma definição do próprio Nietzsche, uma cultura altamente literária, uma cultura baseada em livros e que se desenvolve através de livros. Imaginemos um erudito (Gelehrten) trancado em um quarto sem livros. Sua autonomia seria muito mais fraca do que a performatividade (Performativität) que ele poderia revelar se estivesse sentado em sua biblioteca (ou, alternativamente, tente-se tomar o computador de um pesquisador de Nietzsche: restaria, então, ver se, mesmo sem dispor de uma ferramenta de busca de verbete, ele conseguiria recordar precisamente um fragmento da obra de Nietzsche). Livros (computador) são a memória dos homens modernos. O uso maciço da escrita no campo cultural permitiu ao homem multiplicar seu conhecimento, acumulá-lo, de modo que agora ele pode abrir mão de alguns desses conhecimentos, avançando com maior rapidez e facilidade em direção ao progresso.

A cultura antiga, por outro lado, não estava fundada no estudo de textos ou na aprendizagem através de livros. Não que faltasse a escrita; mas tinha apenas um uso limitado e periférico. Mesmo sem os inegáveis benefícios mnemônicos da escrita, os homens antigos podiam controlar vastas massas de informação. Basta pensar nas epopeias homéricas! A atenção estava mais alerta, mais exercitada e abrangente; o hábito de ouvir estava enraizado; a memória, flexível. “Nos tempos em que ainda se vive muito em meio ao som, deve-se sentir uma aversão ao que está escrito; lê-se com muito mais dificuldade, enquanto se compreende facilmente o que é ouvido, o que é declamado oralmente” (História da Literatura Grega, KGW, II / 5, 280). Quando Platão, no Fedro, ao contar o mito de Theuth responsabiliza a escrita por tornar a memória preguiçosa, na medida em que facilita sua tarefa, Nietzsche vai mais longe: para um povo que vive no som a escrita deve parecer uma complicação inútil. Em completa contraposição a isso, hoje em dia se demanda clamorosamente o texto escrito, quando não se é possível acompanhar um discurso.

Assim, quando o historiador moderno se dedica aos textos da antiguidade, ele precisa abandonar seus hábitos e preconceitos associados ao texto escrito, seu exclusivo meio de comunicação. Mas encontramo-nos aqui mais uma vez diante de um paradoxo:

Como a transmissão geralmente reduz-se à escrita, então devemos aprender a ler novamente. Temos que aprender a ler de novo: pois desaprendemos, dada a superioridade do texto impresso. Em suma, o principal é reconhecer que ler, para a literatura antiga, é apenas uma substituição ou uma lembrança. As tragédias, por exemplo, não são dramas para serem lidos (Lesedramen) (Enciclopédia da filologia clássica, KGW, II, 3, 373).

Em O drama musical grego, um dos textos preparatórios para O nascimento da tragédia, Nietzsche faz a provocação de que Sófocles e Ésquilo, os maiores trágicos, são conhecidos por nós apenas como “libretistas” (GMD/DM, KSA, 1.517). Ele aponta para o Libretto d'Opera, ou seja, para um texto qualitativamente muitas vezes bastante modesto, que subjaz às grandes obras-primas, à ópera italiana em particular. Tentemos, apenas, imaginar o que significaria julgar uma ópera de Puccini apenas por seu libreto. Os melômanos entendem exatamente o que está sendo dito aqui.

Se nós, modernos, somos capazes de desfrutar meros 5% dos grandes autores do passado, da herança literária ilimitada da antiguidade (esse percentual pode ser atribuído de forma aproximada ao libreto do valor artístico de uma ópera de Puccini), então dos restantes 95% não se perdeu apenas a memória, mas também a sensibilidade para perceber seu conteúdo. A obra de arte da linguagem na Grécia era uma composição de música, palavras e muitas vezes dança. Essas artes estavam tão intimamente ligadas que não poderiam sobreviver sozinhas. Nós não falaremos aqui sobre a unidade das artes. Nietzsche trata extensivamente desse tema em O nascimento da tragédia, tomando como referência Anselm Feuerbach em O Apollo do Vaticano (Nuremberg, 1833) e Wagner em A arte e a revolução e A obra de arte do futuro (ambos de 1849, onde ele usa o conceito de obra de arte total). Ainda gostaria, contudo, de mencionar alguns elementos. Nos cursos da Basileia, o que interessa a Nietzsche na unidade das artes é, novamente, o ponto de vista da recepção do lado do público. O problema, em sua opinião, é sempre um problema da transformação das estruturas perceptivas7 7 “Quando deparamo-nos com a apresentação da música de um poeta, com os tons de um compositor, quase nunca entramos no sentimento geral, mas, ao invés disso, aproveitamos o musical por si mesmo e o poético por si mesmo; também não é incomum que a música ofusque em muito o texto. Acabamos acostumando-nos a apreciar de duas maneiras o texto durante a leitura - por causa disso não confiamos em nosso julgamento quando escutamos um poema lido em voz alta e demandamos o livro - e a música enquanto ouvimos” (Lírica grega, KGW, II, 2, 168). Não só isso: “Para os gregos, no entanto, o texto e a música pertenciam-se tão intimamente que, um e o mesmo artista, sem exceção, cria ambos. A propósito, isso também não é incomum: lembremo-nos dos trovadores, dos Minnesänger, até mesmo, mais propriamente, do Meistersinger”. (Lírica grega, KGW, II, 2, 108). , que decorre de uma mudança de costumes na elaboração de uma obra de arte. Da obra de arte total dos gregos ao absolutismo das artes, temos que imaginar um longo desenvolvimento e interação que mudou as condições da obra de arte, as obras de arte mesmas e suas audiências.

O segundo elemento a ser lembrado é a dimensão performativa da antiga obra de arte. Nas preleções sobre os líricos gregos, Nietzsche usa uma diferença categorial, que remonta a Dionísio Trácio8 8 Dionysios Thrax, Alexandriner, 2. Jh. v. Chr.. É muito provável que Nietzsche conheça a diferença entre as duas categorias de R. Westphal & A. Rossbach, 1867/68, vol. I, p. 3-7. Também é possível que ele estivesse diretamente familiarizado com o escólio do trabalho de Dionísio Trácio (techne grammatikè [Ars grammatica]), publicado em BEKKER, I. Anectoda graeca, vol. II, pp. 653 ss. , a saber, entre os gêneros apoteléstico e prático.

Mas onde quer que observemos um curso regular no desenvolvimento da lírica, a canção é, para nos servirmos da terminologia antiga, praktikòn, isto é, ela carece ainda da atividade especial da recitação e não se encontra pronta quando o poeta termina de redigi-la. Os gregos distinguiam entre artes apotelésticas e práticas: as primeiras se perfazem com o ato criador do artista, a saber, as obras de arquitetura, escultura e pintura. As segundas ainda precisam ser apresentadas, as obras da orquestra, poesia e música. A lírica grega exige, portanto, o recital e, sobretudo, o recital musical. (Lírica grega, KGW, II, 2, 107-108)

Com base nessa antiga categorização, quase se poderia dizer que um romance moderno, como produto final impresso, estaria mais próximo da arquitetura e da escultura do que de seu precursor grego, o poema épico. Na Grécia, não há poesia fora de sua recitação. Quando um poema é escrito, pode-se no mínimo dizer que ele é ineficaz se ninguém o ler. Na verdade, Nietzsche diz mais do que isso. Um poema não é completado até atingir sua fase final, a fase do recital e a performance na frente de um público. Antes desta última fase performativa, permanece “letra morta”.

Entre deuses e homens: poesia oracular

A poesia, especialmente a lírica, a unidade mais elementar de palavra e música, é, segundo Nietzsche, a arte mais antiga. Longe da consideração atual das artes como entretenimento, o grego vê na poesia um fenômeno de importância primordial para a vida na Polis, um fenômeno que tem uma força civilizatória e deve, portanto, ser controlado e subordinado à legislação. Da mitologia grega, Nietzsche retira numerosos exemplos de um efeito quase mágico sobre as almas e que pode ser atribuído às figuras do cantor mítico9 9 Como, por exemplo, no mito de Orfeu e Árion. e, a partir do tempo histórico, ele enumera evidências da presença da música e do canto com fins de reconciliação e com efeitos extraordinários em momentos particularmente importantes. Os muros de Tebas foram construídas graças ao som mágico da lira de Amphion e destruídos pelo som de flauta de Alexandre, o Grande, como já acontecera aos longos muros de Pireus por obra do general espartano Lisandro. É relatado por Empédocles que ele curou uma pessoa possuída com seu canto, assim como Damon, um jovem que sofria de uma doença de amor. As práticas dos Corybantes são bem conhecidas, curando doenças mentais através da música e da dança. O melhor exemplo disso, mencionado várias vezes por Nietzsche, é o do poeta Terpandro, que colocou fim a uma insurreição em Esparta ao estabelecer um novo conjunto de regras musicais (História da Literatura Grega, KGW, 2, 5, 285).

As razões para essa concepção “ativa”, quase “mágica”, da poesia, encontram-se em sua relação original com o culto dos deuses. O nascimento da poesia pode ser considerado como resultado da observação da força efeitual (Wirkungskraft) da música e, especialmente, do ritmo no campo religioso. O uso da música e do ritmo no culto tinha, segundo Nietzsche, metas mágicas e redentoras baseadas na observação dos efeitos do ritmo sobre o homem. Acreditava-se que os mesmos efeitos poderiam também ser suscitados nos deuses. Admitiam-se quatro tipos desses efeitos: 1) um efeito coercitivo (“Acreditava-se que, pela música, os deuses eram constrangidos, do mesmo modo como o homem sentia-se constrangido”), 2) um efeito de “descarga” (“Acreditava-se que eles estavam “purificando” e descarregando seus afetos muito violentos”), 3) um efeito mnemônico (“Incutem-se neles a memorização dos rogos humanos, quando apreendidos ritmicamente: esse é um meio mnemônico”), e, finalmente, 4) um efeito comunicativo (“Acreditava-se que poderiam falar com eles mais claramente e por distâncias mais longas”) (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 284). 10 10 Com variações interessantes FW/GC 84, KSA, 3.440.

Eu analisei em detalhes os quatro efeitos do ritmo que Nietzsche examina nos cursos sobre História da Literatura Grega, mas também em A gaia ciência.11 11 C. Santini, 2016, p. 113-142. Neste caso, gostaria de me concentrar apenas em alguns dos aspectos que melhor mostram a importância dessa fenomenologia do ritmo em conexão com o problema da crítica oral/literária nas preleções da Basileia. O efeito mais importante para a nossa discussão é possivelmente o terceiro, o efeito mnemônico. Nós já mencionamos quão importante era a memória para os poetas, como Homero. A memória é a principal força dos poetas, que tiveram que dominar grandes quantidades de materiais e motivos sem a ajuda da escrita. Mas a perspectiva mnemônica é invertida nessas citações. Agora é a própria estrutura poética, organizada em metros e ritmos, que permite que uma informação seja melhor lembrada. Também no caso da epopeia encontra-se a estrutura rítmica subjacente à fórmula poética que permite aprender de cor (auswendig) até mesmo a epopeia mais longa. A memória é uma questão de forma, de estruturas rítmicas, que orientam e facilitam a apresentação.12 12 Nessa direção, cinquenta anos depois, Milman Parry, independentemente de Nietzsche, continuará sua pesquisa e descobrirá resultados inacreditáveis para o estudo da fraseologia da poesia homérica. M. Parry, 1928; A. Parry, 1971.

Também é interessante para nosso estudo atual a menção do primeiro efeito do ritmo, o efeito coercitivo, que repousa sobre a consideração fisiológica de que o corpo tem uma tendência a imitar e convergir a um ritmo, ou que, ao menos, ele sofre por uma forma de desequilíbrio que pode ser remediado pelo ritmo.13 13 Cf. H. Helmholtz, 1863. A forma mais antiga de poesia no culto, o hino, é na verdade nada mais que uma oração, uma maneira de se comunicar com os deuses (quarto efeito) e pedir algo a eles. O ritmo na música do hino atua, assim, como um exercício mnemônico (terceiro efeito), como um reforço para a oração, a fim de alcançar mais facilmente o objetivo de comunicar-se com o deus e de ter sua prece atendida. A divindade não é assim simplesmente convencida ou persuadida pela oração rítmica, mas na verdade seduzida, subjugada e fisicamente compelida (primeiro efeito) a dar ouvidos ao homem, oferecendo-lhe ajuda. Segundo Nietzsche, os gregos inventaram a poesia para fortalecer, pelos efeitos do ritmo da palavra, o efeito já habitual da palavra sobre os acontecimentos. A poesia é, portanto, um fortalecimento das palavras faladas.

A prioridade axiológica da palavra falada é evidente em todas as fases da antiga tradição poética. O culto oferece mais uma prova dessa posição central das palavras faladas, que paradoxalmente manifestam-se na escrita. Num interessante texto das preleções da Basileia, Nietzsche discute algumas teses do famoso compêndio Literaturgeschichte de Theodor Bergk. Bergk trata das primeiras evidências da escrita na Grécia, em Delfos, onde os sacerdotes anotavam as frases hexamétricas do oráculo em pequenas tábuas e as guardavam no armazém do templo. No entender de Bergk, essa prática encontrou expressão na própria língua grega, a rigor, na específica fórmula fixa que era normalmente usada para introduzir os oráculos: Apollon echre. “Bergk explicou Apollon echre como ‘ele entalhou’, ‘ele escreveu’ (relacionado a chrauo charasso)” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 281).14 14 Cf. Bergk, 1872, fn. 53. Nietzsche toma posição neste debate, na medida em que, de certa maneira, corrige a hipótese de Bergk mas que, apesar disso, segue apontando na direção de seus próprios interesses.

Pelo contrário, o oráculo é originalmente um determinar, uma força que coage o futuro: semeia tèrata [Sinal e Portento] exercem um poder mágico sobre o futuro. Deixar-se profetizar é originalmente “deixar-se determinar o futuro”: isto é, chrao dito pelo Deus. (Transição do significado de “tocar”, “acercar-se do corpo”, “urgir”, “compelir” “coagir”; chre significa “é forçoso que eu”, “Apolo coage, determina, que isso e aquilo aconteça”) (História da Literatura Grega, KGW, II/5, 281).

A partir daqui, poder-se-ia também explicar a fama do oráculo: não só poderia adivinhar o futuro, mas também determiná-lo, influenciá-lo. Ele pode, justamente, produzir o futuro que ele profetiza. Novamente, é a palavra falada que carrega um poder quase mágico, fortalecido primeiro pela forma poética e depois pela fixação escrita. Pois como os provérbios dos oráculos contêm palavras poderosas e perigosas, era judicioso escrevê-las corretamente, fixando o seu conteúdo.

Dirigir ou caminhar para a modernidade?

Como última etapa, resta discutir como se dá a transição entre uma cultura capaz de imergir completamente no som e que tinha na poesia seu primeiro meio de comunicação, e uma cultura literária como a dos modernos, que emprega a prosa e marginaliza a poesia. Alguns momentos dessa transição da oralidade para a escrita, ou melhor, de uma cultura oral para uma literária, já podem ser descobertos na Grécia. Pesquisas de renomados cientistas famosos do século XX seguiram nessa direção. Em Orality and Literacy, o trabalho de Walter Jackson Ong de 1982ONG, W. J., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. London: Methuen & Co, 1982., bem como em numerosos estudos de Eric Havelock15 15 Cf. E. Havelock, 1981 e 1986; W. J. Ong, 1982; A. Lord, 1960. , fala-se sempre do surgimento de uma educação literária na Grécia, bem como de uma crise de oralidade, de uma revolução ou de uma ruptura. Mas essas palavras “fortes” não são totalmente confiáveis. Como os próprios autores supõem, tal terminologia aplica-se apenas “em princípio” à transição da oralidade pura para a literalidade pura. Na verdade, esse processo é apenas gradual e não pode ser exaurido em nosso tempo.

Poder-se-ia chamar Friedrich Nietzsche de um pioneiro desses estudos. Mas sua tese é mais radical que a de Ong e Havelock. Na opinião de Nietzsche, apesar de um progresso manifesto e constante em direção à aplicação cada vez mais exclusiva da escrita, essa transição para uma civilização literária, que ampara a cultura, a formação e a comunicação por meio da escrita, nunca foi realizada na antiguidade. Em todas as áreas da literatura nas quais a escrita se estabeleceu - na história, na literatura filosófica, na retórica, etc. -, a oralidade sempre teve prioridade absoluta. Apenas para dar um exemplo macroscópico: esses textos foram lidos em voz alta (vorgelesen). Portanto, há uma transição da recitação originária, comum a todos os gêneros poéticos, para a leitura em voz alta (Vorlesen), habituais na academia e nas escolas retóricas; mas uma leitura (Lesen) simples e íntima não será encontrada.

Segundo Nietzsche, só em um caso a Grécia criou uma genuína prosa artística, concebida e composta apenas para leitores: a prosa isocrática. Mas, mesmo neste caso, os elementos rítmicos dessa prosa altamente elegante tornam-na extremamente memoráveis. Lembremo-nos que Nietzsche usa a metáfora do Libretto quando fala da incompatibilidade entre a escuta moderna e a constituição oral da obra de arte antiga. Uma outra metáfora muito importante usada por ele é a da partitura. Visto que um texto antigo, na forma de uma transmissão escrita, é apenas um substituto do complexo sonoro do trabalho cantado ou recitado, o filólogo teria que aprender a ler a textura musical originária por debaixo das linhas desse texto. O homem moderno, quando diante dos textos antigos, é como um analfabeto musical diante de uma partitura. Mas o que aconteceria se ante a partitura não estivesse um analfabeto, mas um regente de orquestra? “Inversamente: quando surge para os gregos uma prosa artística para leitores (desde Isócrates), o leitor é apenas o ouvinte sublimado, o ouvinte particularmente perspicaz, que tudo escuta, o lento leitor atento: em seus ouvidos a fala (Rede) realmente soa, não é apenas um sinal de conceitos e instruções: portanto, assim como agora um músico lê uma partitura: ele tem em mente o som completamente modificado, ele ocasionalmente julga com mais finura uma obra através leitura do que pela escuta real” (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 280).

Se se quer falar na Grécia antiga de uma efetiva revolução, não se deve procurar na relação entre oralidade e escrita. Em vez disso, nós a encontramos na transição mais complexa da poesia para a prosa. A poesia é a forma literária mais antiga da Grécia, mas de forma alguma “primitiva” ou “simples”; trata-se, antes, de uma construção complexa envolvendo diferentes métricas, dialetos, complicadas estruturas rítmicas, regras internas e externas de vários gêneros poéticos, normas formais e restrições não escritas. Se a poesia proporciona a potencialização artística da palavra falada, por exemplo, no contexto do culto, ela pode fazê-lo adicionando dificuldades, pelo estabelecimento de uma disciplina. Decerto que a poesia custa mais esforço do que a fala normal, e isso é digna de nota, porque, normalmente, se alguém tem em maior conta o utilitarismo, não se deve preferir o que custa mais esforço. Na verdade, já encontramos vestígios desse juízo na antiguidade. Os gregos chamavam a prosa de pezos logos, a conversa caminhante, enquanto a poesia era associada à metáfora do carro16 16 Essas metáforas, com esse significado específico, foram explicitamente introduzidas por Élio Aristídes em seu discurso Serápis; mas elas já eram comuns muito antes. , com Píndaro o carro da guerra (harma Moisàn).

Nietzsche segue novamente a análise de Theodor Bergk da história dessa metáfora do carro na Grécia. Bergk propõe a hipótese radical de que a metáfora já poderia ser lida em Homero. Homero descreve o início da canção do Aedo na Odisséia (VIII, 500) como “enthen helon”, o que é geralmente traduzido por “partindo daqui”. Bergk alegou que helon veio de helauno, que literalmente significa “dirigir o carro”, enquanto a derivação hoje aceita volta a heleìn (como haireo, “pegar”, “ir”). A atualidade, portanto, aceitaria traduzir lectio por “para fazer um começo”, enquanto o Aedo iria, segundo a lectio de Bergk, dar início ao carro da canção. É digno de nota como Nietzsche aceita essa lectio e como ele continua nessa direção. Ainda um outro exemplo sobre isso: Nietzsche faz uma conexão explícita entre o famoso prólogo de Perì Physeos de Parmênides com essa metáfora da carro da poesia. O prólogo diz em forma poética como Parmênides dirige-se até as portas do templo de Dike em um carro. Nietzsche lê essa imagem do carro como uma metáfora de todo o prólogo em si, que, como é bem conhecido, foi escrito em verso e em uma linguagem altamente poética.

A cientificação da língua grega e o nascimento da filosofia

Mas, se a forma poética custa mais esforço, por que se deveria tornar a vida difícil? Por que um grego privilegiaria cantar em verso em vez de simplesmente falar, arrear um carro em vez de ir a pé, dançar em vez de andar (laufen)? Tudo isso parece, à primeira vista, uma complicação. Mas ela permite, no final, obter mais facilmente resultados elevados. A esse respeito, o ritmo e a métrica da poesia são uma ferramenta de memória e um reforço, não apenas uma complicação da linguagem. Portanto, o aparente absurdo esconde uma vantagem mais profunda.

No todo e perguntado: havia algo em geral mais útil para a antiga natureza supersticiosa do homem do que o ritmo? Tudo era possível com ele: promover magicamente um trabalho; forçar um deus a aparecer, a estar perto, a escutar; o futuro ser criado (zurecht machen) por sua vontade; aliviar (entladen) a própria alma de algum excesso (do medo, da mania, da compaixão, da vingança), e não apenas a própria alma, mas a do demônio mais maligno, - sem o verso não se era nada; através do verso quase torna-se um deus. Esse sentimento básico não pode mais ser completamente extirpado, - e mesmo agora, após milênios de trabalho no combate a tal superstição, até mesmo o mais sábio de nós ocasionalmente é feito de tolo pelo ritmo, por sentir seu pensamento como verdadeiro quando ele possui uma forma métrica e surja de um espanto divino (FW/GC 84, KSA, 3.442).

A forma poética sozinha viabilizava tudo: memória, inviolabilidade da palavra dada, eficácia da comunicação. Mas é um fato que a partir de um certo momento a prosa começa a substituir a poesia em mais domínios. Platão é um dos defensores desse estabelecimento da prosa, que forma uma reação contra os mestres da oralidade, os poetas. Devido a essa perda gradual de meios poéticos de expressão, que, subsequentemente, a escrita é disseminada. Como os suportes da forma poética não estão mais disponíveis, a escrita entra como ferramenta da prosa.

De onde provêm a estimativa tardia da escrita? que se torna tão elevada, a ponto de, gradualmente, fazer com que a formação se torne literária. [no entanto] A deferência pela escrita foi, antes de tudo, promovida pelo homens puramente científicos, matemáticos, astrônomos, médicos, naturalistas, etc., que se serviram dela: para eles era importante apresentar o pensamento da forma mais pura possível, deixando o temperamento (Gemüt) de lado, o afeto. Justamente por causa disso que a compreensão do que está escrito fica difícil, porque o temperamento, o afeto, não pode ser reproduzido em signos senão de forma parca. Interrogação, ponto de exclamação, etc, são ferramentas pobres. Mas se se quiser exprimir puramente o pensamento como, por exemplo, na obra matemática, na lógica, física, etc., a escrita é suficiente, pois, em seu fundamento, é sem afeto. Quanto maior o prazer com o lógico, com o científico, aumenta também a deferência pela a escrita enquanto o órgão para isso. Agora, é uma das mais elevadas práticas dos gregos fazer com que a linguagem, que não foi criada para comunicar pensamentos e conhecimentos, seja gradualmente preparada para isso. Todos os tipos de maneiras espirituosas de evitar essa dificuldade são inventados; deve-se encontrar alguma forma de auxílio a fim de poder se comunicar. O pensamento metafórico-simbólico precede o causal e dedutivo. (História da Literatura Grega, KGW, II, 5, 282-283)

Em qual posição nessa “cientificação” da língua grega podemos colocar a tradição filosófica clássica, especialmente Platão? Justamente Platão poderia causar dificuldades para o argumento de Nietzsche: ele mais valoriza a qualidade oral nos processos de ensino e aprendizagem do que o uso da escrita (pelo menos, no que diz respeito ao seu representante Sócrates); apesar disso, ele foi o primeiro genuíno “escritor” que expressa sua individualidade em seus diálogos; e, finalmente, ele escolhe a prosa e despreza os poetas em sua Politeia, embora sirva-se de formas e conteúdos míticos, bem como de uma linguagem figurativa em seus diálogos. Como todos os jovens nobres atenienses, Platão, enfim, desfrutou de uma educação retórica de alta qualidade. A diversidade estilística, a atenção à forma, a longa reformulação formal de seus diálogos, evidenciam essa dimensão normativa e, portanto, quase poética, que ainda faz com que suas obras apareçam hoje como obras-primas artísticas. Como então explicar esse controverso Platão: um Platão “escritor”, que, nesse sentido, não foi um aluno obediente do filósofo que nunca quis escrever, Sócrates?

Não é fácil justificar o uso da escrita no contexto da formação e do ensino filosófico17 17 Os verdadeiros filósofos não escrevem, senão seriam confundidos com sofistas (Platão, Fedro, 257d). . Nietzsche menciona o caso de outros filósofos “não-escritores”, como Tales, de quem é citada a famosa (pseudo) carta a Ferecides (documentada por Diógenes Laércio). A carta diz o seguinte:

Ouvi dizer que és o primeiro dos jônios com a intenção de levar aos gregos um escrito sobre coisas divinas. E talvez estejas certo em, através do escrito, fazer do assunto uma propriedade comum, ao invés de confiá-la a uma pessoa qualquer, o que não seria verdadeiramente útil para nada. Então, se estás de acordo, quero eu fazer-me instruído por aquilo que estás escrevendo; e, se for de tua vontade, gostaria de ir à tua casa em Syros. (...) Tu, contudo, estás tão aprisionado ao amor pelo lar que raramente vais à Jônia, e não te sentes atraído pela conversação com homens estranhos; diferentemente, como suponho, vives inteiramente voltado para o trabalho em teu escrito como única ocupação. Nós, ao contrário, que não temos a ocupação de escritor, perambulamos pela Grécia e Ásia (Diog. Laert., I, 43-44).

Na dupla ironia desta carta escrita por um "não-escritor" para elogiar outro que passa toda a sua vida escrevendo, encontramos um inestimável sumário de antigas polêmicas contra a escrita. A propósito, Platão teve a experiência do ditar do seu mestre Sócrates, que entendia que o ensino da filosofia só era possível através da palavra falada, através da dialética. “Mas então por que você escreve” (FW/GC 93, KSA, 3.448), - esta questão, que Nietzsche dirigiu a si mesmo, poderia ser designada como a questão cardinal do Fedro. Para respondê-la, precisamos revisar toda a produção literária de Platão. Platão escreve para fins didáticos, para que seus alunos na Academia pudessem reler e memorizar as melhores conversas que, aliás, foram inteiramente concebidas para uma situação cunhada oralmente. A escrita novamente fornece apenas um auxílio para a discussão oral, que goza de prioridade. A forma retórica pretendia corrigir as lacunas na escrita e recordar a dinâmica da conversa real.

E se Sócrates não pudesse escrever?

Por fim, deixemos Nietzsche contar um chiste sagaz que será o último ponto em nossa argumentação. Depois de responder à pergunta “Porque Platão escreveu”, Nietzsche tenta responder a outra pergunta difícil: “Por que Sócrates não escreveu?”. Sócrates foi o philologos por excelência, como diz Platão no Fedro (236e), i.e, ele amava as conversas. As razões seculares para a conveniência do ensinamento oral da filosofia não bastam, contudo, para compreender por que ele se recusou a escrever, uma vez que as mesmas razões não impediram, por exemplo, que Platão escrevesse. Então, por que Sócrates não escreveu? A resposta de Nietzsche é bastante bizarra: “Sócrates não escreveu porque não podia” (História da Literatura Grega, KGW, II/5, 295, 308, 386). Com essa suposição paradoxal, Nietzsche quer colocar uma provocação. Ele não quer dizer que Sócrates era realmente analfabeto, i.e., que ele simplesmente não sabia escrever e ler. Em vez disso, ele quer dizer que ele não sabia “escrever bem”; que ele não dominava a arte de escrever. É de fato possível que Sócrates, por causa de sua pobreza e baixo status social em Atenas, não tenha recebido a formação retórica refinada que homens aristocratas como Platão e Fédon consideravam normal. É por isso que Sócrates não escreve; porque não tinha habilidade suficiente para isso e seus escritos nunca alcançaram seus objetivos tão efetivamente quanto o que ele poderia expressar verbalmente. Sem recursos retóricos, a escrita era para ele apenas um obstáculo e não um suporte.

É assim que se explica um Sócrates que não escreve. E assim, talvez, poder-se-ia também ter uma contribuição para explicar aquele enigmático comando divino, que tanto impressionou Nietzsche em O nascimento da tragédia: “Sócrates, faz música” (GT/NT, KSA, 1.96).18 18 Ver também: ST/ST, KSA, 1.544; 634; Nachlass/FP, 1869, KSA, 7, 1[7]; 1870-71, KSA, 7, 5[29]; 1870-72, KSA, 7, 8[13-15]; 1871, KSA, 7, 9[39]. Nós já encontramos este provérbio em Platão: «O Sòkrates (…) mousikèn poiei kaì ergazou» (Plat., Phaid., 60e, 7-8). O mousikèv grego não deveria, de fato, ser traduzido como “música”. Nietzsche conhece o significado original da palavra, que diz respeito a todas as artes protegidas pelas musas. No entanto, ele escolhe traduzir a palavra como “música” porque esta arte, no sentido wagneriano, deve compreender todas as artes: poesia, drama, dança. Nesse pedido recebido em sonho, Sócrates acreditava reconhecer primeiramente um encorajamento à filosofia, que ele estimava como a arte mais elevada. Mas quando ele se aproximou da morte, no tempo dado a ele de presente pelo atraso dos navios sagrados, ele começa a duvidar se havia dado uma falsa interpretação ao comando e se ele realmente cumprira seu dever com a divindade. Ele então queria tentar criar uma genuína obra de arte. Ele primeiro compôs um hino a Apolo, que se provou bastante insatisfatório. Tentou, então, traduzir as famosas fábulas de Esopo em versos. Mas tal tentativa de transferir alguns trabalhos concebidos em prosa para verso deve ter soado muito estranha à escuta dos antigos gregos. O próprio Nietzsche compartilharia dessa opinião: “O que o impeliu a tais exercícios foi algo parecido à voz admonitória do daimon, foi sua percepção apolínea de que não compreendia um rei bárbaro, uma nobre imagem de um deus e corria assim o perigo de ofender sua divindade - por sua incompreensão” (GT/NT, KSA, 1.96. Trad. J. Guinsburg). Assim como um rei bárbaro, reconhecido por Vivetta Vivarelli como o Thoas de Ifigênia de Goethe19 19 V. Vivarelli (Ed.) Friedrich Nietzsche, La nascita della tragedia, p. XIV, nota 23. , mesmo o homem teórico Sócrates, odioso às Musas, não entende o que deve ser culpado aos deuses. Como Thoas, por causa de seu temor e ignorância, que exagera e permite que Ifigênia fuja, Sócrates, depois de ter estado distante das artes por toda a vida, tenta um pouco desajeitadamente remediar esse “sacrilégio”.

Referências bibliográficas

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  • WOLF, F. A. Prolegomena zu Homer, Leipzig: Reclam, 1908.
  • *
    Tradução Eduardo Nasser. Revisão Vinícius de Andrade.
  • 1
    Codex Vaticanus Basilicanus (H25(V)), 8.-9. Jh.
  • 2
    A tese de que a linguagem experimenta a degeneração e a esclerotização de suas fontes mais íntimas de formação por meio da fixação escrita e limitação dentro de estruturas gramaticais e sintáticas, é considerada por Nietzsche nas preleções sobre gramática latina (LatG, KGW, II, 2, 187-188). Ali, Nietzsche discute as teses sobre a origem da linguagem de Immanuel Kant, Johann Gottfried Herder, Friedrich Schelling e os Irmãos Grimm, que ele conhecia graças à mediação de HARTMANN, E. von. A filosofia do inconsciente.
  • 3
    A citação não é tirada diretamente do Prolegomena de Wolf, que foi traduzido somente muito mais tarde para o alemão (WOLF, F. A. Prolegomena zu Homer) e que, portanto, Nietzsche só poderia ter conhecido em latim. As citações de Wolf nas Vorlesungen über die Geschichte der grieschichen Litteratur, bem como os parágrafos que comentam essas citações, são de fato longos excertos de F. Nutzhorn, Die Entstehungsweise der homerischen Gedichte (Esta citação específica pode ser encontrada na página 83). A tese apresentada é, portanto, a tese de Nutzhorn; mas muitas das intervenções diretas de Nietzsche permitem-nos concluir que ele geralmente concorda. Além disso, encontramos trechos de Nutzhorn duas vezes nessas preleções (p. 40 e p. 294) e em ambos os casos são as mesmas longas passagens sobre Homero: Nietzsche parafraseia-os e interpola-os com suas observações pessoais, de modo que esses excertos tornam-se quase parte de seu raciocínio e conclusão. Lê-se na citação de Wolf original em latim : “Id Homerus efficere non potuisset decem linguis, ferrea voce et aeneis lateribus; (…) Quid? quod, si forte his instructus, unus in saeculo suo, Iliada et Odysseam hoc tenore pertexuisset, in ceterarum opportunitatum penuria similes illae fuissent ingenti navigio, quod quis in prima ruditate navigationis fabricatus in loco mediterraneo, machinis et phalangis ad protrudendum, atque adeo mari careret, in quo experimentum suae artis capere” (F. A. Wolf, 1795WOLF, F. A. Prolegomena ad Homerum: sive de operum Homericorum prisca et genuina forma variisque mutationibus et probabili ratione. Halle: 1795., XXVI, 112, p. 67).
  • 4
    Citação de Nutzhorn, 1869NUTZHORN, F. Die Entstehungsweise der homerischen Gedichte. Leipzig: Teubner, 1869, p. 84.
  • 5
    Sobre o fatum libellorum, ver também PHG/FT, KSA, 1, 811; VPP, KGW, II, 4, 214. Este provérbio vem de Terenciano Mauro, De litteris, De syllabis, De Metris, 1286: “pro capitol lectoris habent sua fata libelli”.
  • 6
    A metáfora do mármore, que deveria designar a monumentalidade da poesia, foi introduzida pela primeira vez por Simónides e, mais tarde, tomada de empréstimo por Píndaro. (Pind. N. IV, 80)
  • 7
    “Quando deparamo-nos com a apresentação da música de um poeta, com os tons de um compositor, quase nunca entramos no sentimento geral, mas, ao invés disso, aproveitamos o musical por si mesmo e o poético por si mesmo; também não é incomum que a música ofusque em muito o texto. Acabamos acostumando-nos a apreciar de duas maneiras o texto durante a leitura - por causa disso não confiamos em nosso julgamento quando escutamos um poema lido em voz alta e demandamos o livro - e a música enquanto ouvimos” (Lírica grega, KGW, II, 2, 168). Não só isso: “Para os gregos, no entanto, o texto e a música pertenciam-se tão intimamente que, um e o mesmo artista, sem exceção, cria ambos. A propósito, isso também não é incomum: lembremo-nos dos trovadores, dos Minnesänger, até mesmo, mais propriamente, do Meistersinger”. (Lírica grega, KGW, II, 2, 108).
  • 8
    Dionysios Thrax, Alexandriner, 2. Jh. v. Chr.. É muito provável que Nietzsche conheça a diferença entre as duas categorias de R. Westphal & A. Rossbach, 1867/68, vol. I, p. 3-7. Também é possível que ele estivesse diretamente familiarizado com o escólio do trabalho de Dionísio Trácio (techne grammatikè [Ars grammatica]), publicado em BEKKER, I. Anectoda graeca, vol. II, pp. 653 ss.
  • 9
    Como, por exemplo, no mito de Orfeu e Árion.
  • 10
    Com variações interessantes FW/GC 84, KSA, 3.440.
  • 11
    C. Santini, 2016SANTINI, C., Nietzsche et la rhythmique grecque. Une approche philologique et anthropologique. In: Les Cahiers Philosophiques de Strasbourg, 40, 2016, p. 113-142., p. 113-142.
  • 12
    Nessa direção, cinquenta anos depois, Milman Parry, independentemente de Nietzsche, continuará sua pesquisa e descobrirá resultados inacreditáveis para o estudo da fraseologia da poesia homérica. M. Parry, 1928PARRY, M. L'Épithète traditionnelle dans Homère. Essai sur un problème de style homérique, Paris, (Thèse) 1928.; A. Parry, 1971PARRY, A. (ed.) The Making of the Homeric Verse. The Collected Papers of Milman Parry. Oxford : Clarendon Press, 1971..
  • 13
    Cf. H. Helmholtz, 1863HELMHOLTZ, H. v. Die Lehre von Tonempfindungen als physiologische Grundlage für die Theorie der Musik. Braunschweig: Vieweg, 1863..
  • 14
    Cf. Bergk, 1872BERGK, T. Griechische Literaturgeschichte. Berlin: Weidmann, 1872., fn. 53.
  • 15
    Cf. E. Havelock, 1981 HAVELOCK, E. The Literate Revolution in Greece and its Cultural Consequences. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1981.e 1986HAVELOCK, E. The Muse Learns to Write: Reflections on Orality and Literacy from Antiquity to the Present. New Haven: Yale University Press, 1986.; W. J. Ong, 1982ONG, W. J., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. London: Methuen & Co, 1982.; A. Lord, 1960LORD, A. The Singer of Tales, Cambridge MA: Harvard University Press, 1960..
  • 16
    Essas metáforas, com esse significado específico, foram explicitamente introduzidas por Élio Aristídes em seu discurso Serápis; mas elas já eram comuns muito antes.
  • 17
    Os verdadeiros filósofos não escrevem, senão seriam confundidos com sofistas (Platão, Fedro, 257d).
  • 18
    Ver também: ST/ST, KSA, 1.544; 634; Nachlass/FP, 1869, KSA, 7, 1[7]; 1870-71, KSA, 7, 5[29]; 1870-72, KSA, 7, 8[13-15]; 1871, KSA, 7, 9[39]. Nós já encontramos este provérbio em Platão: «O Sòkrates (…) mousikèn poiei kaì ergazou» (Plat., Phaid., 60e, 7-8). O mousikèv grego não deveria, de fato, ser traduzido como “música”. Nietzsche conhece o significado original da palavra, que diz respeito a todas as artes protegidas pelas musas. No entanto, ele escolhe traduzir a palavra como “música” porque esta arte, no sentido wagneriano, deve compreender todas as artes: poesia, drama, dança.
  • 19
    V. Vivarelli (Ed.) Friedrich Nietzsche, La nascita della tragedia, p. XIV, nota 23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2018
  • Aceito
    16 Ago 2018
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