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“O alquimista dos valores”. As cartas do último Nietzsche (1885-1889)* * Tradução de Neomar Sandro Mignoni.

“The Alchimist of Values”. The Letters of Late Nietzsche (1885-1889)

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar as cartas de Nietzsche, questionando se podemos legitimamente considerá-las como veículo de compreensão e interpretação de sua obra. Embora as cartas sejam inevitavelmente contaminadas por seu contexto, agora é geralmente aceito que elas não podem ser consideradas “parasitas” nas obras de seus autores, mas são “parte integrante de sua máquina de escrever ou expressar” (Deleuze-Guattari). Não se trata de interpolar ou interpretar a gênese e o conteúdo das obras a partir da pressão dos elementos biográficos, mas sim de utilizar as cartas como uma espécie de esquema hermenêutico, para melhor compreender a representação de si mesmo de um autor, as intenções subjacentes de suas obras, e captar seus elementos estilísticos e recursos argumentativos, que as obras inevitavelmente transformam.

Palavras-chave
Nietzsche; epistolário; Nachlass; biografia; vida

Abstract

This paper aims to analyze the letters of Nietzsche, questioning if we can legitimately regard them as a vehicle for understanding and interpretation his work. Although letters are inevitably tainted by their context, it is now generally accepted that they cannot be thought of as “parasitic” on the works of their author, but are an “integral part of his machine for writing or expression” (Deleuze-Guattari). It is not a question of interpolating or interpreting the genesis and contents of the works with the pressure of biographical elements, so much as using the letters as a sort of hermeneutic scheme, the better to understand an author’s representation of himself, the underlying intentions of his works, and to grasp their stylistic elements and argumentative resources, which the works inevitably transform.

Keywords
Nietzsche; epistolary; Nachlass; biography; life

Mihi ipsi scripsi!

Nietzsche

Não existem discursos senão com alguém dentro de uma situação.

Bourdieu

O epistolário de Nietzsche, como todo epistolário “parte integrante de uma biografia aberta à crítica” 1 1 Cf. P. Manganaro, em Hegel e i suoi carteggi, Introdução a G. W. F. Hegel, Epistolario I. 1785-1808, Napoli 1983, p. 19. , nos restitui momentos da vida privada de um filósofo tímido e reservado que fez da dissimulação a marca da própria filosofia. Assim como ocorre com seus escritos póstumos, não conseguimos resistir, todavia, à tentação de “espia-lo em vestes de dormir” (como ele mesmo dizia), conscientes de que qualquer luz lançada sobre o homem possa ser um veículo para uma melhor compreensão e interpretação. Ainda que comprometido das incontornáveis circunstancias dos escritos, já é aceitável que um epistolário não seja mais compreendido como “parasitário” em relação à obra de um autor, mas parte integrante da sua máquina de escritura ou de expressão (Deleuze-Guattari). Não se trata de interpolar ou interpretar a gênese e os conteúdos das obras perseguindo os elementos biográficos, mas de utilizar o epistolário como uma espécie de crivo hermenêutico, para melhor compreender a representação que um autor tem/dá de si, as intenções subjacentes às suas produções, para captar elementos de estilo e recursos argumentativos que as obras necessariamente transformam.

Isso vale ainda mais para o caso de Nietzsche e das cartas dos últimos quatro anos da sua vida produtiva. A solidão, a incompreensão da qual se sentia objeto, os balanços da sua atividade filosófica e a perspectiva de uma Wirkung sobre o futuro. As vicissitudes editoriais e redacionais dos seus últimos escritos, os diversos registros estilísticos adotados pelos diversos interlocutores, para não falar dos esboços nunca expedidos e talvez conscientemente jamais tornados definitivos: o epistolário se permite completar efetivamente a imagem de Nietzsche - a partir daquela legitimidade que lhe advém do próprio fato de que a carta é, no fundo, estreitamente aparentada com o diálogo2 2 “O diálogo é uma conversação perfeita, porque tudo aquilo que alguém diz, recebe a sua determinada cor, seu som, o seu acompanhante gesto com rigorosa atenção ao outro com o qual se fala, isto é, em conformidade com aquilo que ocorre na troca de cartas, em que uma mesma pessoa mostra dez modos de expressão espiritual, conforme ele escreve ora para estes, ora para aqueles” (M/A 374, KSA 3.245) - com uma mina de mais ou menos voluntárias mémoires, deixando como premissa necessária que a forte “personalização” a qual Nietzsche submete a própria filosofia, sobretudo no último período, em nada prejudique a lucidez, a coerência e a eficácia objetiva, “econômica” e “política” do seu pensamento3 3 Para uma visão geral das cartas de Nietzsche, veja-se R.Müller-Buck, 2000, pp. 169-78 e R.Müller-Buck, 1998. Veja-se também R. Stockmar, 2005. Além disso, consulte-se ainda G. Campioni e M.C. Fornari, 2011. A citações das cartas de Nietzsche serão retiradas desta edição. .

Sem esquecer da riqueza de informações oferecidas pelo epistolário sobre eventos, pessoas, tendências da contemporaneidade - elementos de primeira ordem já considerados nesse sentido por Montinari, na introdução à sua edição crítica do Briefwechsel -, o epistolário de Nietzsche me parece particularmente interessante não apenas em suas implicações psicológicas - Nietzsche é bem consciente, entre outras coisas, do quanto de “indizível” emerge das suas motivações epistolares4 4 “Graças à minha experiência epistolar conheço muito bem o fenômeno pelo qual, depois de haver recebido uma carta, cometemos uma estupidez - e demonstramos uma falta de tato, se manifestamos muito rapidamente a nossa compaixão colocando-se em meio a essa ‘libertação’ natural” (a H. Köselitz, 23 de julho de 1885: Epistolario V, 613, pp. 69-70). “Cada palavra escrita é ambígua, equivoca, necessitada de um comentário feito de olhares e aperto de mãos. Quantas tolices se cometem quando se escreve aquilo que se deseja. Quantas estúpidas cartas já escrevi! Viva a sabedoria dos meus olhos, que me transformam sempre mais em um animal taciturno daquele animal escrevente que era!” (a E. Förster, 5 de julho de 1885: Epistolário V, p. 66). Veja-se também WS/AS 261, KSA 2.665; Nachlass/FP 28 [56] 1878, KSA:8.511 “Contra o escrever cartas entre amigos. Não apenas começa-se a escrever cartas, inicia-se já a errar”. - mas, sobretudo, no seu papel de contraponto à elaboração e à publicação das obras.

Em particular, nos anos aqui examinados, a ideia de uma sistematização, de uma compreensão pregressa e, sobretudo, de uma continuidade de desenvolvimento dos seus escritos “difíceis de se compreender”, é passada mediante as comunicações aos amigos e aos editores; a “tensão para com a tarefa” se revela progressivamente em suas relações com os correspondentes, até aos novos interlocutores dos dias de Turim, supostos mediadores de uma decisiva ação sobre a humanidade, que em seus tons exaltados e talvez delirantes deixa, todavia, entrever fundadas intuições de novas possibilidades.

O Epistolário, quase como um comentário ao texto, acompanha, portanto, ao lado do Nachlass, a composição das Werke, dando razão aos motivos subjacentes à sua composição e às intenções de seu autor; e conjuntamente ao desenrolar-se da vida vivida, aquele Erlebnis do qual Nietzsche afirma haver unicamente composto os seus escritos e cujo compartilhamento permanece o único pressuposto adequado à sua compreensão5 5 “Para compreender-se não basta que se use apenas as mesmas palavras; se deve usar as mesmas palavras também para a mesma espécie de experiências interiores - e se deve tê-las EM COMUM. [...] Aquilo que é dito para explicar por que é difícil compreender escritos como os meus; nas minhas experiências, valorizações e necessidades interiores são diversas” (Nachlass/FP 34 [86], 1885, KSA 11.448). Para a análise de tal teoria hermenêutica veja-se de maneira útil M. Brusoti, 1992, p. 14 ss. .

Em nenhum outro escritor o pensamento podia transformar-se assim completamente em experiência. Nenhuma outra vida dedicou-se de fato assim plenamente ao objetivo de produzir no pensamento toda a sua interioridade. A sua reflexão não se distinguia, como normalmente sucede, da vida real e das suas ocorrências: antes, eram estes a constituir o verdadeiro e próprio evento da vida deste solitário (Lou Salomé, p. 127),

escreve Lou Salomé na biografia intelectual do filósofo que considera como “o primeiro grande estilista de seu tempo”6 6 L. Andreas-Salomé, Friedrich Nietzsche in seinen Werken (1894), Frankfurt/a. M. - Leipzig 2000. Nietzsche redigiu para Lou uma “Zur Lehre vom Stil” (Nachlass/FP 1 [109] julho-agosto 1882, KSA 10.38) na qual teoriza, dentre outras coisas, aquilo que define como “lei da dupla relação” e que aplica magistralmente nas cartas: “O estilo deve ser adequado a ti em relação a uma pessoa bem determinada, à qual pretende comunicar. (Lei da dupla relação)”. Nesse sentido são muito importantes as cartas a Overbeck pelo fato de serem as mais abertas e as menos “censuradas” pelo próprio Nietzsche. . Um curto-circuito entre pensamento, escritura e vida (“escrevo somente aquilo que VIVI [erlebt]”7 7 A E. Schmeitzner, inícios de setembro de 1882, Epistolario IV, p. 300, p. 240. Analogamente: “Esqueço daquilo que vivi (ou os meus “pensamentos”)!” (a H. Köselitz, 18 dezembro 1881, Epistolario IV, p. 180, p. 142). ), no qual a Erlebnis representa não apenas um dispositivo hermenêutico, “não apenas uma circunstância acessória, mas mais essencialmente o conteúdo e o objeto do texto”8 8 M. Brusoti, 1992 p. 17. .

O desenrolar dessa espécie de autobiografia, a exigência da construção de uma “plausível identidade em concordância com o princípio autônomo, não substituível, não participável senão de modo eletivo9 9 Considero interessante aqui a análise de Franco Gallo que incluí Nietzsche entre os “poucos grandes e integrais experimentadores” da décadance. Para esses, segundo a hipótese hermenêutica de Gallo, a impossibilidade de uma dimensão tradicional da sociedade abre a inovação radical no estilo da existência individual, elaboradas “nas formas da originalidade subjetiva, da inventividade, da diversidade impulsionada da singularidade absoluta da pessoa”. Em particular, a filosofia dionisíaca do último Nietzsche propor-se-ia como “instância antropológica alternativa”, “a começar do inconformismo numa escala local, por assim dizer, até a mais absoluta diversificação do gosto, da alimentação, da avaliação moral” (Franco Gallo, 2007, pp. 47-77: 48, 53). , constitui um dos principais núcleos temáticos das cartas do último quadriênio. Nessas, é possível em parte localizar uma hermenêutica que Nietzsche aplica a si mesmo: percorrendo retrospectivamente a experiência dos seus escritos passados, com o objetivo de tornar-se compreensível mediante uma ação no presente, Nietzsche esboça um desenvolvimento pessoal, da qual somente a posteriori pode vir a tornar-se ele mesmo consciente. As cartas ao editor Fritzsch, para convencê-lo a recolocar em circulação volumes que ainda não haviam encontrado um sério confronto com o público, talvez constituíssem a ocasião para Nietzsche declarar a si mesmo a coerência do caminho empreendido e a necessidade de apresentá-lo ao mundo, como o incauto daquilo que, incorporado e superado, pode vir a tornar-se agora objeto de reflexão filosófica10 10 “Você deve ter percebido que Humano, demasiado Humano, Aurora e Gaia Ciência carecem de um prefácio: existiram bons motivos para que eu me impusesse o silêncio na época da composição destas obras - eu estava ainda muito perto, muito ‘dentro’ e quase não me dava conta daquilo que tinha me acontecido. Agora que estou em condição de explicar, no melhor dos modos e com maior precisão, aquilo que caracteriza e torna únicas essas obras, e até que ponto inauguram um gênero literário novo na Alemanha (o prelúdio de uma autoeducação e de uma cultura moral que até agora faltaram aos alemães), me decidirei voluntariamente a compor tais prefácios retrospectivos e a posteriori. Os meus escritos representam um continuo desenvolvimento, e não serei o único a viver uma experiência e um destino símiles: eu sou apenas o primeiro, está surgindo uma geração que compreenderá por si aquilo que vivi, e terá a fineza de gosto necessária para saborear os meus livros. Os prefácios poderiam clarear aquilo que é necessário no curso daquele desenvolvimento: por consequência se teria a vantagem que aquele que já provou uma vez um dos meus escritos, deveria sorvê-los todos” (a E. W. Fritzsch, 7 de agosto de 1886, Epistolario V, p. 230). : “Os meus escritos falam apenas das minhas superações: dentro existe ‘eu’, com tudo aquilo que me era inimigo, ego ipsissimus, até mesmo, se me é consentida uma expressão mais orgulhosa, ego ipsissimum. Já se adivinha: eu tenho muito - abaixo de mim...” (MA II/HH II, Prefácio 1, KSA 2.369), escreve no prefácio ao segundo volume de Humano, demasiado humano, fruto maduro daqueles anos.

Anos de “fata e facta” muito dolorosos, aos quais Nietzsche tenta opor, como é seu costume, afastamento, distância, cura. Além de tons talvez proféticos e quase exaltados, nas cartas do último quadriênio é comum encontrar um registro desencantado e melancólico, com o qual Nietzsche esboça a própria solidão, humana e intelectual. A incompreensão familiar, dentre as quais também aquelas devidas ao matrimônio da irmã com o antissemita Bernard Förster11 11 “Jamais exigi de Ti, como é justo, que Tu <compreendesse> alguma coisa da posição que, enquanto filósofo, assumi em face de meu tempo; todavia, se Tu tivesses tido um grão de afeto instintivo, poderias ter evitado que eu Te colocasse entre os meus exatos antípodas” (esboço a E. Förster, fins de dezembro de 1887: Epistolario V, p. 526). Os esboços à irmã revelam um tom hostil e um distanciamento firme que Nietzsche não consegue manter nas cartas enviadas. , os ataques da doença, o silêncio ensurdecedor que recebeu, por exemplo, Assim falava Zaratustra12 12 Sobre Zaratustra conferir, por exemplo, carta a C. Fuchs de 17 de junho de 1887; rascunho a F. Overbeck, pouco depois de 20 de julho de 1888 e as queixas que Nietzsche mesmo faz em EH/EH, “O caso Wagner”, 4. Epistolario V, 863, pp. 394-95, V, 1066, pp. 672-674. , tudo contribui para alimentar o seu “estado plurianual de desconforto e de décadance”, mas também para convencê-lo de uma superioridade ainda não advertida sobre a sua própria época, em uma inevitável dinâmica da (falta de) recepção das obras e da personalidade do homem de gênio no horizonte da experiência da modernidade:

Considerada a coisa desapaixonadamente: existem pouquíssimas p<essoas> na Europa que possuem uma cultura suficientemente vasta e profunda para poder perceber aquilo que é novo, inesperado, profundamente radical nos meus escritos, mas sobretudo não possuo provas até hoje, e praticamente não consigo nem mesmo crer que pudesse existir alguém capaz de adivinhar e de sentir a condição, a paixão, da qual irrompe um tal modo de pensar. - Essa é a minha solidão (esboço a R. von Seydlitz, pouco antes de 26 de outubro de 1886: Epistolario V, p. 274).

... não conheço uma só pessoa que “saiba” alguma coisa, ou que pelo menos me tenha dado a entender que saiba daquilo que está por detrás de todas essas obras, ou do meu singularíssimo real destino (a E. Förster, 26 de janeiro de 1887: Epistolario V, p. 316)13 13 A F. Overbeck, 14 de abril de 1887: “Neste inverno explorei amplamente a literatura europeia, a ponto de hoje poder afirmar que a minha posição filosófica é de longe a mais independente, por mais que me sinta herdeiro de diversos milênios: a Europa atual não possui ainda nenhum pressentimento das terríveis resoluções em torno das quais gira todo o meu ser e a qual círculo de problemas eu estou ligado - e do fato que comigo se prepara uma catástrofe, da qual conheço o nome embora não pretenda pronunciá-lo” (Epistolario V, p. 358). A R. von Seydlitz, 12 de fevereiro de 1888: “Dito entre nós [...] não é impossível que eu seja o primeiro filósofo desta época, talvez até mesmo alguma coisa a mais, alguma coisa de decisivo e fatal, que está a cavalo entre dois milênios. Uma posição assim singular se cumpre continuamente - mediante uma segregação sempre crescente, sempre mais gélida, sempre mais cortante” (Epistolário V, p. 556). .

Além de confirmar o aspecto da incompreensibilidade como sinal difícil de se classificar do homem superior (veja-se como exemplo Gaia Ciência 371), Nietzsche pretende provar a natureza do destino da própria missão, fundada em um estado de ser coerente, testemunhado pela longa familiaridade com a solidão e a doença, e imediatamente espalhado nos seus escritos, prova essencial da extraordinária Lebensform que ele mesmo representa. Daí a exigência de uma “recapitulação” - evidente nas cartas de 1885 - ou de uma leitura retrospectiva das suas obras precedentes, não apenas para encontrar uma fatal coerência interna, mas também para recolocá-las à luz de suas novas e consequentes concepções filosóficas.

A reflexão dos problemas de fundo que, sem querer, constitui o sentido do meu verão da alta montanha em Engadina me reconduz toda vez, não obstante aos assaltos mais temerários da parte do “cético” que existe em mim, às mesmas decisões: já se encontram, ainda que ocultas e obscuras, no meu Nascimento da Tragédia, e tudo o que eu acrescentei nesse meio tempo cresceu dentro e se tornou parte dessa (a F. Overbeck, 13 de julho de 1885: Epistolario V, p. 69).

Um dia se encontrará talvez alguém que descobrirá que de Humano, demasiado humano adiante não fiz outra coisa que cumprir as minhas promessas. É certo que aquilo que agora chamo verdade é alguma coisa de terrível e repelente: e precisarei de muita arte para persuadir lentamente as pessoas a derrubar completamente as suas mais altas escalas de valores (esboço desconhecido, provavelmente de agosto de 1885: Epistolario V, p. 77).

Nietzsche persegue um objetivo, que recai sobre ele “com o peso de dez toneladas” (“a minha formula acerca disso é a ‘transvaloração de todos os valores”14 14 A R. von Seydlitz, 12 de fevereiro de 1888, Epistolario V, p. 555. ): antes de afrontá-lo, ele deve resolver e dispensar as suas obras precedentes, summa e trampolim de lançamento junto à filosofia futura. As cartas do primeiro período fornecem as razões desse ambicioso projeto. Da nova edição programada dos escritos acordada com a relutância dos editores; à concepção da sua mais recentemente produção finalizada: a compreensão e o lançamento de seu “filho temerário” Zaratustra; à Genealogia da moral concebida como etapa final da sua “aventura propedêutica”15 15 “De resto, com este escrito (que contém três dissertações) a minha atividade propedêutica chegou ao fim: basicamente e a tempo certo, como estava escrito no programa da minha vida, não obstante os terríveis obstáculos e os ventos contrários: mas tudo se torna em vantagem a quem é valoroso” (a F. Overbeck, 17 de setembro de 1887: Epistolario V, p. 462). Mas Nietzsche considerará em seguida também O Crepúsculo dos Ídolos como “uma síntese muito ousada e precisa das minhas principais heterodoxias filosóficas”, suscetíveis a “servir de iniciação e para despertar o apetite” à espera da sua obra maior, a projetada Transvaloração de todos os valores (a H. Köselitz, 12 de setembro de 1888: Epistolario V, p. 731). ; e, não menos importante, a questão dos “Prefácios” de 1886, destinados a uma verdadeira e própria autobiografia filosófica: tudo contribui para encerrar uma fase, em uma vontade de (re)construção narrativa da própria identidade - caso contrário reconhecida impossível16 16 Sobre o tema de um possível conhecimento e construção de si à luz de uma nova ideia de subjetividade, veja-se C. Piazzesi, (2007), pp. 258-295. - mediante a sequência das obras, cuja apoteose é, antes de mais nada, representada no Ecce Homo (não por acaso: Como alguém se torna o que é).

A impressão do meu texto é acrescida da terceira e última parte; o livro se intitulará Genealogia da moral. Um escrito polêmico. Com esse, já foram fornecidas todas as indicações essenciais para uma orientação provisória sobre mim: do prefácio de O Nascimento da tragédia até o prefácio do livro acima mencionado ocorre uma espécie de “história do desenvolvimento”. De resto, não existe nada de mais desgostoso que ter de comentar a si mesmo; mas não existindo a mínima perspectiva que algum outro pudesse suspender-me de tal incumbência, cerrei os dentes, pus um sorriso no rosto e, espero também ter feito um “bom jogo” (a M. von Salis, 14 de setembro de 1887, Epistolario V, 908, p. 455)17 17 “...quero libertar-me absolutamente de tudo isso, e não ser mais incomodado por aquilo que pertence ao passado. Eu gastei todo o ano: bem, salvavi animam, era uma questão de consciência, mas já possuo o bastante. - Agora preciso, por longos e longos anos, de profunda calma: deverei proceder efetivamente à elaboração do meu inteiro sistema de pensamento (a E. W. Fritzsch, fins de dezembro 1886: Epistolario V, p. 302). “Este inverno me faz bem, como um intermédio e um olhar retrospectivo. É incrível! Nestes últimos 15 anos eu coloquei em pé uma inteira obra literária e no fim a “concluí”, dotando-a de prefácio e adicionais, a ponto de poder considerá-la como separada de mim, - de poder até mesmo rir disso, como no fundo rio de qualquer atividade literária. Tudo somado, eu usei para isso os anos mais miseráveis da minha existência” (a F. Overbeck, 23 de fevereiro de 1887: Epistolario V, p. 329). .

Nietzsche se projeta para além da geração presente em vista de uma condição de vida póstuma: a comunicação da sua filosofia, confiada às obras - cuja urgência é denunciada na correspondência -, se, de um lado, visa a instituir uma distância polêmica e intransponível com contemporâneos, de outra, não renuncia a uma possível interação, não tanto com um “público” (cuja presença Nietzsche sempre denunciou como dispensável e perniciosa18 18 “Não me compreendam mal: a última coisa que desejo é a ‘fama’ e o ‘barulho dos jornais’ e a ‘veneração dos alunos’; vi de muito perto o que significa isso nos dias atuais. Ali nesse meio me sentirei muito mais só do que agora, e talvez o meu desprezo para com os homens aumentaria de modo assustador” (esboço de carta à mãe e à irmã, provavelmente próximo ao início de setembro de 1885: Epistolario V, 628, p. 93). ), mas com aqueles cobiçados “discípulos” capazes de compreender a experiência. Trata-se de uma operação de verdadeira e própria “educação” aos pressupostos filosóficos (Nietzsche fala inclusive da necessidade de “eine Menge erzieherischer Prämissen zu geben”19 19 A F. Overbeck, 12 de outubro de 1886, Epistolario V, 761, p. 269. ) na consciência e, todavia, do quanto a sua arquitetura de pensamentos dificilmente pudesse alcançar até mesmo os espíritos mais cultos de seu tempo. Poucos são os interlocutores que Nietzsche reconhece como adequados: aos demais solidão física e isolamento intelectual, sem dúvidas extenuante, mas condição primeira e inevitável para efetivar o próprio fatum20 20 A F. Overbeck, 14 de abril de 1887: “Caro amigo, desde o dia 3 de abril estou aqui no Lago maior [...] a minha velha Sils Maria deve ser posta ad acta, como também Nice: em ambos os locais me falta a condição primeira e essencial, a solidão, a quietude profunda e tranquila, a vida à parte, sem a qual não posso calar-me de meus problemas (dado que, dito entre nós, sou um homem da profundidade em um sentido absolutamente assustador; e, sem este trabalho subterrâneo, não consigo mais suportar a vida). [...] Os problemas que pesam sobre mim e dos quais não procuro mais fugir (como tive de descontar meus desvios! Como, por exemplo, a minha fisiologia), que não me dão literalmente trégua dia e noite - vingam-se cruelmente por qualquer relação equivocada (com pessoas, lugares e livros). Digo-te em um sussurro, porque como poderei pressupor que os estranhos pressupostos da minha criação se compreendam por si mesmo?” (Epistolario V, 831, pp. 356-57). .

Além disso, não me tornei mais rico de amigos: a vida me fez entender sempre mais claramente quanto o cumprimento do meu dever está ligado à terrível condição da solidão. É difícil compartilhar aquilo que sinto; ora, quase parto do pressuposto de ser, de modo grosseiro, incompreendido também por conhecidos, e sou profundamente grato por qualquer fineza interpretativa, e também só pela boa vontade naquele sentido (a E. Rohde, 23 de fevereiro de 1886, Epistolario V, 673, p. 156).

Se eu pudesse, de qualquer modo, dar-te uma ideia do meu sentido de solidão! Não tenho ninguém com quem eu sinta afinidade, nem entre os vivos, nem entre os mortos. Isso é indescritivelmente assustador; e apenas o exercício de suportar essa sensação e um gradual desenvolvimento desde a infância me rende compreensível o fato de não ter ainda naufragado. - Para o resto, tenho claro diante de meus olhos a tarefa para a qual vivo - como um factum de indescritível tristeza, mas transfigurado pela consciência que contém alguma coisa de grande, nunca houve alguma coisa de grande na tarefa de um mortal (a F. Overbeck, 5 de agosto de 1886, Epistolario V, 729, p. 22821 21 A F. Overbeck, 3 de fevereiro de 1888: “Eu também estou muito ocupado; e da neblina afloram sempre mais claramente os contornos da tarefa, sem dúvidas, enorme que está à minha frente. Nesse meio tempo, houve horas escuras. Houve dias e noites inteiras durante as quais não sabia mais como viver e me acometia um negro desespero, que até o momento eu ainda não havia provado. Todavia sei que não posso safar-me, nem para trás, nem à direita e nem à esquerda: absolutamente, não possuo escolha. [...] A ausência prolongada por anos de um humano sentimento de afeto que traz alívio e cura, o isolamento absurdo que torna cada resíduo de relação com os outros apenas uma fonte de feridas: tudo isso é o pior que possa aparecer e há somente uma razão de ser, aquela da necessidade” (Epistolario V, 984, pp. 549-50). ).

Atrás desta fatalidade, uma espécie de providência pessoal, que nada tem a ver com qualquer deus ou divindade: trata-se, antes de tudo, de uma “perspicácia prática e teorética em decifrar e ordenar os acontecimentos” (FW/GC 277, KSA 3.521), à luz daquilo que cada um nós possuímos como tarefa a ser feita de si mesmo. A maravilhosa harmonia que nasce dos sons do nosso instrumento, “uma harmonia que possui uma ressonância muito bela para ousar atribuí-la a nós mesmos” (FW/GC 277, KSA 3.521), é o encontro do acaso com a capacidade de estender até o fundo a unicidade da própria condição. Assim, o próprio Nietzsche revela a Paul Deussen, na ocasião de seu aniversário:

Fiz uma ideia assim alta da tua existência ativa e valorosa, que há pouco senso exprimir desejos particulares. As coisas não exercerão algum domínio sobre aquele que deve exprimir a própria vontade sobre as coisas; no fim das contas, até os eventos fortuitos se conformam às nossas necessidades mais verdadeiras. Tenho me maravilhado muitas vezes do quanto pouco pode até mesmo a máxima inclemência do destino sobre a vontade. Ou mais ainda: digo a mim quanto a vontade mesma deve ser destino para poder ter, sempre de novo, razão também contra o destino, ὑπὲρ μόρον - (3 de fevereiro de 1888: Epistolario V, 969, p. 528)22 22 A expressão homérica é relativa a Egisto que, ao seduzir Clitemnestra, impulsionou-se hyper moron, “para além do fato” (Odisseia, I, v. 34-35). .

Necessidade, fatalidade, seriedade extrema: parecem serem essas, portanto, as palavras-chave no percurso nietzschiano em direção a uma espécie de exemplar Selbstbildung: mas mesmo a vastidão da tarefa, a terribilidade da “verdade” descoberta (“os problemas que eu coloco são novos, o meu horizonte psicológico é assim extenso de incutir medo”23 23 A C. Fuchs, 14 de dezembro de 1887, Epistolario V, 963, p. 517. ), impõe formas de defesa e conforto. Eis então que a seriedade se inverte em alegria, na “suprema malícia de alguém que sofre duramente e se diverte continuamente com um ideal” (Nachlass/FP 2 [164], 1885-86, KSA 12.146). Se o tom irônico, descontraído, quase sarcástico, aquele “esprit gaillard” que Nietzsche toma de empréstimo dos seus modelos franceses - Montaigne, La Bruyère, mas também do “profundíssimo palhaço” Galiani - e que se acentua nas cartas do último período, é, de um lado, uma personalíssima terapia filosófica frente a tudo aquilo que o obceca e o oprime24 24 Veja-se V. Vivarelli, 2002, pp. 55-67. Para Gallo, 2007, p. 62, o cinismo coincide com “a autorreferencialidade pragmática da ironia e da tomada de distância não-cognitivista das próprias assunções teoréticas”. , de outro, é a contrapartida de uma nova posição teorética, “longe de todos os sóis”, iniciada com a morte de Deus.

Existe um mal-entendido na alegria que não se pode eliminar; mas quem dela participa pode, exatamente por isso, sentir-se contente no final. Nós que nos refugiamos na felicidade, nós que temos necessidade de toda espécie de sul e de indomável plenitude de sol [...] não parece que possuímos um saber do qual temos medo? Com o qual não queremos ficar a sós? Um saber cujo contato faz tremer, cujo sussurro faz empalidecer? [...] A nossa alegria - não é a fuga de alguma insana certeza? [...] parece que somos alegres porque somos imensamente tristes. Nós somos sérios, conhecemos o abismo e, por isso, nos defendemos de toda seriedade [...]. Permanece corajosamente ao nosso flanco, zombeteira despreocupação; Resfrie-nos, oh vento que correu sobre as geleiras: não queremos tomar mais nada com o coração, queremos rezar diante da máscara (Nachlass/FP 2 [33], 1886, KSA 12.79).

Não apenas nas obras, mas também no epistolário desses últimos anos, o tema da máscara exerce, sem dúvidas, um papel central: a dissimulação, “pôr um belo sorriso no rosto”, é uma arma que Nietzsche declaradamente usa para tomar distância do mundo e de seus interlocutores25 25 Cf. por exemplo NF 2 [12], 1885-1886, KSA 12.71. Também a dura carta à mãe de 10 de outubro de 1887: “se alguma coisa tivesse sido compreendida do meu primeiro escrito O Nascimento da tragédia, então já se deveria estar com medo e se deveria ter feito o sinal da cruz. Contudo, nesse caso, eu viveria escondido sob um belo véu e seria honrado por aqueles animais chifrudos dos alemães como se eu fosse um deles. Entretanto, isso já fez seu tempo. Sem dúvidas, eu ainda serei “descoberto” alguns anos antes na França do que em minha pátria”. . Mas não se trata apenas de habilidade de moldagem e dissimulação: essa máscara - à qual não corresponde algum semblante verídico - é antes a capacidade mimética e projetiva, é atuação daquele “histrionismo dionisíaco” que constitui a cifra do último filosofar nietzschiano. Esse fenômeno de plenitude comunicativa26 26 Cf.G. Campioni, 2008, p. 24. se traduz também na busca por um novo estilo, adaptado ao novo horizonte teorético. Assim falava Zaratustra (“Para aquilo que ainda tenho a dizer comme poetè-prophete, é-me necessária uma forma diversa daquela usada até agora”27 27 A H. Köselitz, 14 de março de 1885: Epistolario V, 580, p. 22. ), Genealogia da moral (“Um novo gesto linguístico para argumentos novos de qualquer ponto de vista”28 28 A C. Spitteler, 10 de fevereiro de 1888: Epistolario V, 988, p. 554. Nessa importante carta, Nietzsche rebate os juízos do crítico sobre seus escritos, “imprudentes” ou errados do ponto de vista formal, reafirmando, todavia, que não é estilística a questão essencial: “Ele não expõe e não vê outra coisa que questões de estética: os meus problemas são colocados verdadeiramente sob silêncio - inclusive eu mesmo”. Veja-se também a carta a J. V. Widmann de 4 de fevereiro de 1888: “Ele se limita, pelos seus bons motivos, quase inteiramente ao aspecto formal: deixa simplesmente de lado a parte verdadeira e a própria história que está detrás do pensado, a paixão, a catástrofe, o movimento em direção a um fim, em direção a uma fatalidade: - não louvarei nunca o suficiente esse comportamento, no qual existe uma autêntica delicadeza” (Epistolario V, 985, p.551). ) ou, de modo mais evidente, aquele mèlange de estilos que será O Crepúsculo dos ídolos e Ecce Homo, correspondem talvez à tentativa de dar voz a uma filosofia que abandonou cada sólido ancoradouro da “verdade” e pode apenas testemunhar um reconhecido pluralismo de perspectivas29 29 Aquilo que gera, segundo a já clássica leitura de A. Nehamas, 1985, um duplo conjunto de paradoxos, o primeiro constituído pelo conteúdo dos escritos, aí incluída a teoria do perspectivismo, e o segundo, do corpus dos escritos mesmos, que, enquanto projeção perspectiva, põe em questão a possibilidade de interpretação das mesmas concepções nietzschianas. Nehamas e, em modo diverso, Derrida, 1978, sugerem que o estilo constitui uma resposta de Nietzsche à negação sistemática do eu, o qual deverá ser substituído por um processo contínuo de produtividade literária. .

A dificuldade dos meus escritos está no fato que neles prevalecem, sobre aqueles normais, os estados de ânimo mais raros e novos. Não pretendo exaltar esse fato, mas é assim. Por símiles situações emotivas ainda não compreendidas, e muitas vezes dificilmente compreensíveis, eu procuro os sinais; parece-me que nisso se revela a minha capacidade inventiva. [...] Não é talvez verdade que a intenção de um escrito deve sempre criar, por primeiro, a lei de seu estilo? Eu exijo que, quando essa questão mudar, mude também inexoravelmente o inteiro procedimento estilístico. (a. J. V. Widmann, 4 de fevereiro de 1888: Epistolario V, 985, pp. 551-52; itálico meu).

Apesar da cláusula, parafraseada pelo próprio Nietzsche, que não compete a nós mudar nosso meio expressivo e que “a pretensão de uma forma expressiva e adequada é insensata” (Nachlass/FP 14 [122], 1888, KSA 13.301), todavia é indubitável que Nietzsche procure exatamente essa forma. E se, como recorda Brusoti, “a comunicação dos próprios Erlebnisse interiores seriam problemáticos na medida em que, apesar de serem intersubjetivamente acessíveis somente através da linguagem, a sua íntima natureza resta, porém, extralinguística”( M. Brusoti, 1997, p. 14), não é um acaso que Nietzsche tenha dificuldades de comunicar de maneira usual uma “situação emotiva ainda não compreendida e muitas vezes dificilmente compreensível”, que provavelmente coincide com o advento, concreto e encarnado, da plenitude vital do dionisíaco e, conjuntamente, do pleno reconhecimento da inacessibilidade do “verdadeiro”.

Dionisíaco. Que infeliz timidez, falar como erudito de algo que eu poderia ter falado como “vivente” [Erlebter]. E que coisa importa da “estética” a quem deve fazer poesia! (Nachlass/FP 34 [17], 1885, KSA 11.427).

Se as palavras são signos expostos ao equívoco, todavia quem tem familiaridade com o pensamento nietzschiano sabe que esses são signos reveladores de um status, de uma configuração de força em ato: cada página da própria filosofia de Nietzsche poderia ser lida (é a proposta de Jean Pierre Faye, 1998FAYE, Jean Pierre, Le vrai Nietzsche, Paris: Hermann, 1998. 30 30 Faye fala também de “ironia de uma técnica do aspecto comunicacional, com o objetivo de fazer agir pelo conhecimento a diversificação das perspectivas”. Da conspiração das forças pulsionais que habitam o corpo contra o princípio de identidade (ou seja, a consciência), falava também Klossowski, 1969, culminando na valorização do delírio, no qual é abolido o princípio de identidade pessoal. ) como a narrativa de um horizonte impulsional, digamos uma espécie de autoconvalidação não argumentativa da configuração dos impulsos (na linguagem nietzschiana: da vontade de potência) que lhe deram vida31 31 Se não quisermos negligenciar a advertência de Friédéric Cossuta, 1989, que “de fato, se deve sempre poder reportar a forma e o processo de argumentação às teorias filosóficas nas quais se inscrevem e determinam”. . Portanto, não é surpresa que Nietzsche “se coloque agora em cena levando aos extremos a arte da ação, fazendo da sua própria escrita uma ‘ação’ e definindo-se mais de uma vez como bufão da eternidade e do destino”32 32 G. Campioni, 2008, p. 23. .

Caro e digno amigo, você encontrou um momento muito oportuno para escrever-me tal carta. Porque me encontro - quase sem querer, mas obedecendo a uma necessidade inexorável - justamente a de fazer um balanço de pessoas e coisas, colocando ad acta todo o meu “até agora”. Quase tudo aquilo que agora estou fazendo consiste em traçar uma linha abaixo. Nos últimos anos, a veemência das oscilações internas foi terrificante; agora, que devo passar a uma forma nova e superior, tenho necessidade, antes de tudo, de um novo estranhamento, uma despersonalização ainda maior. O essencial nisso é que coisa e quem ainda permanece” (a C. Fuchs, 14 de dezembro de 1887: Epistolario V, 963, p. 516)33 33 Porém, com as precauções das quais Nietzsche fala em JGB 207, KSA 5.134. Veja-se ainda Nachlass/FP 1 [202] 1885 -1886, KSA 12.56. .

Ao contrário do histrião da decadência, caracterizado pela desagregação e pelo exaurimento da força vital, o histrionismo dionisíaco é sinal de um “transbordar de energias que se exprime em jogos de formas e ritmos, na alegria da destruição e recomposição”34 34 G. Campioni, 2008, p. 23. , que nem mesmo a suposta liberdade de espaço da tradicional criação artística consegue conter. Como foi dito, se poderia tentar ler também, neste sentido, a busca estilística do último Nietzsche, em particular a experiência do polimorfo Crepúsculo dos ídolos: audaz, alegre delito, que apresenta em uma forma rigorosa e elegante (“talvez também mais engenhosa”) toda a sua heterodoxia filosófica “escondida atrás de muita elegância e maldade”35 35 Cf. Cartas a C. Fuchs, 9 de setembro (Epistolario V, 1104, pp. 727-730); a H. Köselitz, 12 de setembro (Epistolario V, 1105, p. 730-732); a F. Overbeck, 14 de setembro de 1888 e passim (Epistolario V, 115, pp. 747-751). Cf. F. Avenarius, 10 de dezembro de 1888: “Neste ano, no qual se agrava sobre mim a tarefa desmedida, a Transvaloração de todos os valores, e eu devo literalmente carregar sobre os ombros o destino dos homens, é uma das minhas demonstrações de força ser bufão, sátiro ou, se o senhor preferir, ‘ensaísta’ - conseguir ser, assim como o fui em O caso Wagner. O fato que o espírito mais profundo deva necessariamente ser também o mais frívolo, é quase a fórmula da minha filosofia...” (Epistolario V, 1183, 831-32. “Será portanto, uma língua essencialmente dissimulatória, irônica e funcional a um larvatos prodeo, que não encontrará na efusão ditirâmbica algum momento de plena integração lírica no real, justamente porque teoriza, desde o princípio, que o êxtase ditirâmbico seja incomunicável e excepcional; e será ainda uma língua festiva, na medida em que sua potência será multiplicada no contato com as forças emotivas profundas que são as origens e o ponto de retorno do verdadeiro conhecimento [...] a festa da língua é propriamente e nada a mais que a riqueza indefinida da sua versatilidade, a capacidade da sua prática ad libitum. Essa radical fabulação tem, portanto, o significado de um desempenho substitutivo nos confrontos da linguagem tradicional da interioridade, da consciência de si” (F. Gallo, 2004, pp. 29-30). . Progressivamente, nas cartas do último período ganham vida figuras narrativas, personagens cênicos, visões em perspectivas, naquilo que Faye define ainda como “o teatro de sombras colocado em cena do seu pensamento”36 36 “Retrato de Nietzsche como Anticristo, como espírito livre, como imoralista, como Dioniso filósofo ... nos leva a pensar nos autorretratos de Rembrant que usa um chapéu plumado e um estranho gorro [...]. Ou ainda, nos autorretratos de Artaud, duramente delineados a lápis. Os autorretratos de Friedrich Nietzsche são ao mesmo tempo as narrativas que ele faz aos seus amigos; e também os objetos de reflexão dos próximos séculos - que ‘cortam a história em duas’” (J. P. Faye, 1998, p. 87). . Nietzsche não teme assumir em si “todos os nomes da história”, deixando agora toda máscara que o havia preso, até o momento, no limite do principium individuationis. Como observa Campioni, uma jubilosa dissolução que traz em si a trágica mimese da plenitude37 37 G. Campioni, 2008, pp. 30-31. Para J. Dougnoille o indiferente uso de mais nomes a cada vez seria o resultado de uma deflagração da identidade e do desejo de um perpétuo para além de si mesmo, que renderia um Nietzsche “talvez excessivamente anônimo”, “literalmente ninguém mais” (cf.2005, p. 74). , até a última carta conhecida firmada com seu nome, que alarmou o comedido Jakob Burckhardt:

Caro senhor professor, no fim das contas eu preferiria ser, muito mais, um professor na Basiléia do que Deus. Mas não ousei empurrar o meu egoísmo privado a ponto de abster-se da criação do mundo por culpa dele... (6 de janeiro de 1889: Epistolario V, 1256, p. 892).

As cartas iluminam, portanto, um percurso teórico, crítico e autobiográfico do qual não a projetada e abandonada Wille zur Macht, mas as obras de 1888, e em particular Ecce Homo, são o resultado. A julgar pelo epistolário, Ecce Homo nasce para clarear, para eliminar o campo dos mal-entendidos (ainda) em vista da Transvaloração38 38 “No dia do meu aniversário iniciei, de novo, alguma coisa que parece ter um bom resultado, e está progredindo. Intitula-se ECCE HOMO. Ou Como alguém se torna o que é. Trata com grande audácia de mim e de meus escritos: com isso, eu não quis apenas apresentar-me antes do tremendo, solitário ato da Transvaloração [...] De resto, falo de mim mesmo com toda a ‘astúcia’ psicológica e a serenidade possível, - não queria absolutamente apresentar-me aos homens como profeta, monstro e espantalho moral. Ainda nesse sentido o livro poderia ser útil: evitaria talvez que me confundam com o meu oposto” (a H. Köselitz, 30 de outubro 1888: Epistolario V, 1137, p. 777; veja-se EH/EH, Prólogo 2, KSA 6.257). O escrito: “de fundamental importância, oferece alguns vislumbres psicológicos e inclusive biográficos acerca de mim e dos meus escritos: ele consegue enquadrar-me todo de uma vez” (a F. Overbeck, 13 de novembro de 1888: Epistolario, V, 1143, p. 785). “O último capítulo possui a inquietude do título: ‘Por que sou um destino’. E que isso é verdadeiro está demonstrado com tanta força que, no fim, fica-se imóvel diante de mim como ‘larvas’ ou um ‘espírito emocionado’...” (a H. Köselitz, 13 de novembro de 1888: Epistolario V, 1142, p. 782). ; mas se transforma imediatamente no imaginário de Nietzsche - alargado também pelos consentimentos insólitos e inesperados dos quais o filósofo é feito objeto no último período -, em uma cínica apresentação ao mundo (“com um cinismo que passará para a história”39 39 A G. Brandes, 20 de novembro de 1888, Epistolario V, 1151, p. 797. ), pela qual Nietzsche escolhe, coerentemente e segundo os seus amados modelos, a forma alegre e fatal do pamphlet40 40 Também neste caso lembro as palavras de Gallo, que vê no pamphlet “a única forma ‘séria’ possível de escritura sobre si” e em particular, no Ecce Homo, uma “escritura que pode apenas exibir polemicamente a identidade monumental do autor, entregue à perfeição estilística dos seus escritos e à radical coerência de uma ética, uma metafísica, uma política inaudita, mas não pode ser reconstrução narrativa de como sua identidade pessoal foi determinada” (Gallo, 2007, p. 60). .

Ecce Homo e as últimas cartas correm em paralelo de modo extraordinário: Nietzsche expõe ao mundo - com prepotência - os eventos privados, transformando-os em momentos paradigmáticos da própria existência. Da sua natureza incerta, “decadente e início ao mesmo tempo”, com a qual Nietzsche recupera o valor essencial da doença no final de sua formação (a doença lhe deu olhos e orelhas para a saúde e para as nuances no conhecimento41 41 “A fisiologia é o pressuposto da escritura: ter sido “como summa summarum” saudável tornou possível o Zarathustra” (G. Campioni, 2008, p. 21). Cf. Nachlass/FP F 22 [28], 1888, KSA 13.596, em vista do Ecce Homo: “tirar vantagem da minha doença: um alívio da grande tensão...”. ), aos primeiros admiradores - os nomes de Taine, Brandes, Strindberg, os quais transpassam a confidência epistolar à plena luz da página impressa, exagerados e, de algum modo, falseados no seu assentimento42 42 “... tenho leitores por toda parte - todas inteligências requintadas, caráteres provados, educados nas altas posições e para os altos deveres; eu até tenho alguns verdadeiros gênios entre os meus leitores. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhagen, em Paris e em New York” (EH, “Por que escrevo livros assim tão bons”, 2, KSA 6.301). Essas referências são reveladas no epistolário. - aos detratores, que se tornam paradigmáticos a partir da originalidade da experiência dificilmente compreensível do Nietzsche filósofo e escritor43 43 Veja-se em particular o capítulo “Por que escrevo livros tão bons”, 1, no qual Nietzsche desbarata os mal-entendidos do qual foi objeto por parte de Spitteler e de Widmann (cf. Supra nota 29). Cf. também GD/CI, “Incursões de um extemporâneo”, 37, KSA 6.136. Ou, no parágrafo dedicado ao “Crepúsculo dos ídolos”, 2, Nietzsche retoma as expressões entusiásticas que Köseltiz havia usado na carta de 25 de outubro de 1888 (KGB III/6, 337). . São revelados e transfigurados simbolicamente juntos eventos e lugares (em particular a amada Turim, que lhe presenteia um outono tal como “um Claude Lorrain prolongado ao infinito”44 44 EH/EH, “Crepúsculo dos ídolos”, 3, KSA 6.355. Esse juízo emerge mais vezes na carta. ), até os pequenos casos da vida cotidiana; enquanto uma “imagem incisiva” aparece em uma crítica Bernês caracterizando Para além de bem e do mal, para Nietzsche se transforma na sua mais conhecida e decisiva sentença autocelebrativa: “eu não sou um homem, sou dinamite”45 45 J. V. Widmann, na revista “Bund” de 16-17 de setembro de 1886, havia comparado Il pericoloso libro di Nietzsche à dinamite usada então para escavar o Túnel de São Gotardo. Nietzsche, entusiasta com esta comparação, o reporta ao menos uma dúzia de vezes nas cartas, primeiro (de 20 de setembro a 3 de novembro) como informação, depois em tons sempre mais exaltados, como autocelebração: “Nada daquilo que existe permanecerá em pé, sou mais dinamite que homem”; “tudo saltou aos ares - sou a dinamite mais assustadora que existe no mundo” (a P. Deussen, 26 de novembro de 1888, Epistolario V, 1159, p. 807; a G. Brandes, inícios de dezembro de 1888, Epistolario V, 1170, 815). Veja-se EH/EH, Por que sou um destino 1, KSA 6.365. .

A insólita energia produtiva desse último período é recompensada por novos interlocutores que, efetivamente, se apresentam à cena - em particular Georg Brandes e August Strindberg46 46 Cf. a carta de G. Brandes de 26 de novembro de 1887 (KGB III/6, 120): “Dos seus escritos sopra em minha direção um espírito novo e originário. Não compreendo plenamente aquilo que li; não consigo entender sempre onde pretende chegar. Mas muitas coisas coincidem com meus próprios pensamentos e as minhas simpatias, o desprezo dos ideais ascéticos e a profunda aversão pela mediocridade democrática, o seu radicalismo aristocrático. [...] O senhor é uma das poucas pessoas que desejaria conhecer”. Na sua carta de resposta (2 de dezembro de 1887, Epistolario V, 960, p. 512) Nietzsche comenta: “A expressão ‘radicalismo aristocrático’, da qual o senhor faz uso, é muito apropriada. Se me permite, é a palavra mais inteligente que li, até agora, sobre mim”. Foi Brandes quem intermediou com “o gênio suíço”: “O louco suíço se chama August Strindberg [...]. Ele possui uma imensa admiração pelo senhor, sobretudo porque acredita encontrar em vós o seu próprio ódio pelas mulheres. Por isso sois “moderno” (ironia da sorte) segundo ele. Quando leu nos jornais as relações relativas às minhas lições de primavera [sobre Nietzsche], disse: é impressionante este Nietzsche, é como se muitas das suas coisas eu as tivesse escrito” (carta a Nietzsche de 16 de novembro de 1888: KGB III/6, 353). Nietzsche trocou cartas e volumes com Strindberg. . A perspectiva de agir concretamente sobre os destinos da humanidade através da publicação da Transvaloração (que Nietzsche considera realizada com Anticristo) e, sobretudo, de ultrapassar os confins daquela Germânia que, mais de uma vez, demonstrou-se inapta a compreender a sua filosofia afirmativa e anti-idealista, leva Nietzsche, em um excesso de confiança, a imaginar eventuais tradutores em Giosué Carducci, Ruggierro Bonghi, Jean Bourdeau (eleito arbitrariamente a conselheiro da cultura francesa), no “seu poeta” August Strindberg (“as minhas próximas obras não se venderão aos milhares, mas às dezenas de milhares, e [...] aparecerão simultaneamente em francês, em inglês e em alemão”; a A. Heusler, 30 de dezembro de 1888: Epistolario V, 1226, 878). A loucura é incipiente e as últimas e breves mensagens de janeiro de 1889 inquietam e entristecem. Mas, na hostilidade de Nietzsche em relação aos confrontos do Reich e da casa governante, na sua tomada de distância (jamais abandonada) da obtusidade alemã e dos sustentadores do antissemitismo, até mesmo na obsessiva presença de Dionísio, que juntamente com “O crucificado” assina os últimos assim denominados “bilhetes da loucura”, é possível intuir motivos de continuidade com as razões pelas quais, efetivamente e com previdente lucidez, pretendia tornar-se “um evento capital na crise dos juízos de valor”47 47 A G. Brandes, 19 de fevereiro de 1888 (Epistolario V, 997, p. 567). Para Piazzessi (2007, passim), a transvaloração dos valores não é uma simples modificação teórica, tornar a substituir velhos valores com novos, mas é, “por assim dizer, um trabalho ético, dado que é mediante a transformação da experiência de si e, portanto, através de uma nova psicologia, que se realiza e que, na nova psicologia individualista nietzschiana, significa uma nova fisiologia”. Não tanto abstração e projeção intelectual quanto efetividade, “esse não é um estado potencial teórico que se torna real em virtude de um esforço voluntário de realização. A possibilidade é já a direção de um vir-a-ser real, vale dizer, a fertilidade própria (e condicionada) do ‘Stück fatum’ que algum é”. Sobre o plano da percepção de si, é preciso trabalhar para favorecer, por assim dizer, a própria fatalidade, enquanto “a personalidade não é apenas uma constatação, ela é um destino, que poderia permanecer muito bem inexplorada, ignorada, mal-entendida, sem o trabalho ético de um real encarregar-se do que esta significa”. Estas indicações, que se ligam estreitamente à hipótese da vontade de potência (“A hipótese da vontade de potência não é, neste quadro, uma pura teoria representativa: ela é a ajuda performativa que sustenta o nascimento de uma nova experiência de si”), me parecem preciosas para a leitura do epistolário que procurei conduzir neste breve ensaio. .

A fase que inicia com a elaboração de Ecce Homo e termina com a loucura, e que encontra as suas raízes no cotidiano da vida e do pensamento, dificilmente pode ser, portanto, afrontada com os tradicionais meios hermenêuticos e especulativos. Nietzsche tenta aqui alguma coisa que talvez já se encontre no âmbito do pensamento representativo e que atrai os seus leitores e interpretes com a típica força sedutora de todo cupio dissolvi: não para perder-se nas vagas brumas de um niilismo extenuado, mas antes, na alegre plenitude e insolência do todo

Referências

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  • VIVARELLI, Vivetta, “ ‘Aggiungo una punta di comicità alle cose più serie’: aspetti delle ultime lettere di Nietzsche ”, in: Cultura tedesca 20, 2002, pp.55-67.
  • 1
    Cf. P. Manganaro, em Hegel e i suoi carteggi, Introdução a G. W. F. Hegel, Epistolario I. 1785-1808, Napoli 1983KLOSSOWSKI, Pierre, Nietzsche et le cercle vicieux. Paris: Mercure de France., p. 19.
  • 2
    “O diálogo é uma conversação perfeita, porque tudo aquilo que alguém diz, recebe a sua determinada cor, seu som, o seu acompanhante gesto com rigorosa atenção ao outro com o qual se fala, isto é, em conformidade com aquilo que ocorre na troca de cartas, em que uma mesma pessoa mostra dez modos de expressão espiritual, conforme ele escreve ora para estes, ora para aqueles” (M/A 374, KSA 3.245)
  • 3
    Para uma visão geral das cartas de Nietzsche, veja-se R.Müller-Buck, 2000MÜLLER-BUCK, Renate, “Ich schreibe nur, was von mir erlebt worden ist”. Friedrich Nietzsches Briefe der achtziger Jahre. Tübingen: Diss, 2000. , pp. 169-78 e R.Müller-Buck, 1998MÜLLER-BUCK, Renate. “Briefe”. In: Ottmann, H. (ed.), Nietzsche Handbuch, Leben- Werk-Wirkung, Stuttgart/Weimar: Metzler, 1998, pp. 169-178.. Veja-se também R. Stockmar, 2005STOCKMAR, Rene, Private Briefe - freie Wissenschaft. Briefe edieren am Beispiel von Friedrich Nietzsches Briefwechsel 1872-1874, Frankfurt a. M.: Stroemfeld, 2005. . Além disso, consulte-se ainda G. Campioni e M.C. Fornari, 2011CAMPIONI, G. & FORNARI, M.C. Le lettere di Nietzsche dal 1885 al 1889, In: F. Nietzsche, Epistolario 1885-1889. Adelphi, Milano 2011. . A citações das cartas de Nietzsche serão retiradas desta edição.
  • 4
    “Graças à minha experiência epistolar conheço muito bem o fenômeno pelo qual, depois de haver recebido uma carta, cometemos uma estupidez - e demonstramos uma falta de tato, se manifestamos muito rapidamente a nossa compaixão colocando-se em meio a essa ‘libertação’ natural” (a H. Köselitz, 23 de julho de 1885: Epistolario V, 613, pp. 69-70). “Cada palavra escrita é ambígua, equivoca, necessitada de um comentário feito de olhares e aperto de mãos. Quantas tolices se cometem quando se escreve aquilo que se deseja. Quantas estúpidas cartas já escrevi! Viva a sabedoria dos meus olhos, que me transformam sempre mais em um animal taciturno daquele animal escrevente que era!” (a E. Förster, 5 de julho de 1885: Epistolário V, p. 66). Veja-se também WS/AS 261, KSA 2.665; Nachlass/FP 28 [56] 1878, KSA:8.511 “Contra o escrever cartas entre amigos. Não apenas começa-se a escrever cartas, inicia-se já a errar”.
  • 5
    “Para compreender-se não basta que se use apenas as mesmas palavras; se deve usar as mesmas palavras também para a mesma espécie de experiências interiores - e se deve tê-las EM COMUM. [...] Aquilo que é dito para explicar por que é difícil compreender escritos como os meus; nas minhas experiências, valorizações e necessidades interiores são diversas” (Nachlass/FP 34 [86], 1885, KSA 11.448). Para a análise de tal teoria hermenêutica veja-se de maneira útil M. Brusoti, 1992BRUSOTTI, Marco. Introduzione a F. Nietzsche, Tentativo di Autocritica 1886-1887, Genova 1992., p. 14 ss.
  • 6
    L. Andreas-Salomé, Friedrich Nietzsche in seinen Werken (1894), Frankfurt/a. M. - Leipzig 2000. Nietzsche redigiu para Lou uma “Zur Lehre vom Stil” (Nachlass/FP 1 [109] julho-agosto 1882, KSA 10.38) na qual teoriza, dentre outras coisas, aquilo que define como “lei da dupla relação” e que aplica magistralmente nas cartas: “O estilo deve ser adequado a ti em relação a uma pessoa bem determinada, à qual pretende comunicar. (Lei da dupla relação)”. Nesse sentido são muito importantes as cartas a Overbeck pelo fato de serem as mais abertas e as menos “censuradas” pelo próprio Nietzsche.
  • 7
    A E. Schmeitzner, inícios de setembro de 1882, Epistolario IV, p. 300, p. 240. Analogamente: “Esqueço daquilo que vivi (ou os meus “pensamentos”)!” (a H. Köselitz, 18 dezembro 1881, Epistolario IV, p. 180, p. 142).
  • 8
    M. Brusoti, 1992BRUSOTTI, Marco. Introduzione a F. Nietzsche, Tentativo di Autocritica 1886-1887, Genova 1992. p. 17.
  • 9
    Considero interessante aqui a análise de Franco Gallo que incluí Nietzsche entre os “poucos grandes e integrais experimentadores” da décadance. Para esses, segundo a hipótese hermenêutica de Gallo, a impossibilidade de uma dimensão tradicional da sociedade abre a inovação radical no estilo da existência individual, elaboradas “nas formas da originalidade subjetiva, da inventividade, da diversidade impulsionada da singularidade absoluta da pessoa”. Em particular, a filosofia dionisíaca do último Nietzsche propor-se-ia como “instância antropológica alternativa”, “a começar do inconformismo numa escala local, por assim dizer, até a mais absoluta diversificação do gosto, da alimentação, da avaliação moral” (Franco Gallo, 2007GALLO, Franco, “ Ecce homo: scrittura di sé, monumentalizzazione e narrazione dell’identità. Autobiografia e destinazione postuma della filosofia in Nietzsche tra Goethe, il decadentismo e Leopardi ”, in: Mezzanzanica, M. (ed.), Autobiografia, autobiografie, ricostruzione di sé, Milan: Franco Angeli, 2007, pp. 47-77., pp. 47-77: 48, 53).
  • 10
    “Você deve ter percebido que Humano, demasiado Humano, Aurora e Gaia Ciência carecem de um prefácio: existiram bons motivos para que eu me impusesse o silêncio na época da composição destas obras - eu estava ainda muito perto, muito ‘dentro’ e quase não me dava conta daquilo que tinha me acontecido. Agora que estou em condição de explicar, no melhor dos modos e com maior precisão, aquilo que caracteriza e torna únicas essas obras, e até que ponto inauguram um gênero literário novo na Alemanha (o prelúdio de uma autoeducação e de uma cultura moral que até agora faltaram aos alemães), me decidirei voluntariamente a compor tais prefácios retrospectivos e a posteriori. Os meus escritos representam um continuo desenvolvimento, e não serei o único a viver uma experiência e um destino símiles: eu sou apenas o primeiro, está surgindo uma geração que compreenderá por si aquilo que vivi, e terá a fineza de gosto necessária para saborear os meus livros. Os prefácios poderiam clarear aquilo que é necessário no curso daquele desenvolvimento: por consequência se teria a vantagem que aquele que já provou uma vez um dos meus escritos, deveria sorvê-los todos” (a E. W. Fritzsch, 7 de agosto de 1886, Epistolario V, p. 230).
  • 11
    “Jamais exigi de Ti, como é justo, que Tu <compreendesse> alguma coisa da posição que, enquanto filósofo, assumi em face de meu tempo; todavia, se Tu tivesses tido um grão de afeto instintivo, poderias ter evitado que eu Te colocasse entre os meus exatos antípodas” (esboço a E. Förster, fins de dezembro de 1887: Epistolario V, p. 526). Os esboços à irmã revelam um tom hostil e um distanciamento firme que Nietzsche não consegue manter nas cartas enviadas.
  • 12
    Sobre Zaratustra conferir, por exemplo, carta a C. Fuchs de 17 de junho de 1887; rascunho a F. Overbeck, pouco depois de 20 de julho de 1888 e as queixas que Nietzsche mesmo faz em EH/EH, “O caso Wagner”, 4. Epistolario V, 863, pp. 394-95, V, 1066, pp. 672-674.
  • 13
    A F. Overbeck, 14 de abril de 1887: “Neste inverno explorei amplamente a literatura europeia, a ponto de hoje poder afirmar que a minha posição filosófica é de longe a mais independente, por mais que me sinta herdeiro de diversos milênios: a Europa atual não possui ainda nenhum pressentimento das terríveis resoluções em torno das quais gira todo o meu ser e a qual círculo de problemas eu estou ligado - e do fato que comigo se prepara uma catástrofe, da qual conheço o nome embora não pretenda pronunciá-lo” (Epistolario V, p. 358). A R. von Seydlitz, 12 de fevereiro de 1888: “Dito entre nós [...] não é impossível que eu seja o primeiro filósofo desta época, talvez até mesmo alguma coisa a mais, alguma coisa de decisivo e fatal, que está a cavalo entre dois milênios. Uma posição assim singular se cumpre continuamente - mediante uma segregação sempre crescente, sempre mais gélida, sempre mais cortante” (Epistolário V, p. 556).
  • 14
    A R. von Seydlitz, 12 de fevereiro de 1888, Epistolario V, p. 555.
  • 15
    “De resto, com este escrito (que contém três dissertações) a minha atividade propedêutica chegou ao fim: basicamente e a tempo certo, como estava escrito no programa da minha vida, não obstante os terríveis obstáculos e os ventos contrários: mas tudo se torna em vantagem a quem é valoroso” (a F. Overbeck, 17 de setembro de 1887: Epistolario V, p. 462). Mas Nietzsche considerará em seguida também O Crepúsculo dos Ídolos como “uma síntese muito ousada e precisa das minhas principais heterodoxias filosóficas”, suscetíveis a “servir de iniciação e para despertar o apetite” à espera da sua obra maior, a projetada Transvaloração de todos os valores (a H. Köselitz, 12 de setembro de 1888: Epistolario V, p. 731).
  • 16
    Sobre o tema de um possível conhecimento e construção de si à luz de uma nova ideia de subjetividade, veja-se C. Piazzesi, (2007PIAZZESI, Chiara, “ Pathos der Distanz et transformation de l’expériénce de soi chez le dernier Nietzsche”, in: Nietzsche-Studien 36, 2007, pp. 258-295.), pp. 258-295.
  • 17
    “...quero libertar-me absolutamente de tudo isso, e não ser mais incomodado por aquilo que pertence ao passado. Eu gastei todo o ano: bem, salvavi animam, era uma questão de consciência, mas já possuo o bastante. - Agora preciso, por longos e longos anos, de profunda calma: deverei proceder efetivamente à elaboração do meu inteiro sistema de pensamento (a E. W. Fritzsch, fins de dezembro 1886: Epistolario V, p. 302). “Este inverno me faz bem, como um intermédio e um olhar retrospectivo. É incrível! Nestes últimos 15 anos eu coloquei em pé uma inteira obra literária e no fim a “concluí”, dotando-a de prefácio e adicionais, a ponto de poder considerá-la como separada de mim, - de poder até mesmo rir disso, como no fundo rio de qualquer atividade literária. Tudo somado, eu usei para isso os anos mais miseráveis da minha existência” (a F. Overbeck, 23 de fevereiro de 1887: Epistolario V, p. 329).
  • 18
    “Não me compreendam mal: a última coisa que desejo é a ‘fama’ e o ‘barulho dos jornais’ e a ‘veneração dos alunos’; vi de muito perto o que significa isso nos dias atuais. Ali nesse meio me sentirei muito mais só do que agora, e talvez o meu desprezo para com os homens aumentaria de modo assustador” (esboço de carta à mãe e à irmã, provavelmente próximo ao início de setembro de 1885: Epistolario V, 628, p. 93).
  • 19
    A F. Overbeck, 12 de outubro de 1886, Epistolario V, 761, p. 269.
  • 20
    A F. Overbeck, 14 de abril de 1887: “Caro amigo, desde o dia 3 de abril estou aqui no Lago maior [...] a minha velha Sils Maria deve ser posta ad acta, como também Nice: em ambos os locais me falta a condição primeira e essencial, a solidão, a quietude profunda e tranquila, a vida à parte, sem a qual não posso calar-me de meus problemas (dado que, dito entre nós, sou um homem da profundidade em um sentido absolutamente assustador; e, sem este trabalho subterrâneo, não consigo mais suportar a vida). [...] Os problemas que pesam sobre mim e dos quais não procuro mais fugir (como tive de descontar meus desvios! Como, por exemplo, a minha fisiologia), que não me dão literalmente trégua dia e noite - vingam-se cruelmente por qualquer relação equivocada (com pessoas, lugares e livros). Digo-te em um sussurro, porque como poderei pressupor que os estranhos pressupostos da minha criação se compreendam por si mesmo?” (Epistolario V, 831, pp. 356-57).
  • 21
    A F. Overbeck, 3 de fevereiro de 1888: “Eu também estou muito ocupado; e da neblina afloram sempre mais claramente os contornos da tarefa, sem dúvidas, enorme que está à minha frente. Nesse meio tempo, houve horas escuras. Houve dias e noites inteiras durante as quais não sabia mais como viver e me acometia um negro desespero, que até o momento eu ainda não havia provado. Todavia sei que não posso safar-me, nem para trás, nem à direita e nem à esquerda: absolutamente, não possuo escolha. [...] A ausência prolongada por anos de um humano sentimento de afeto que traz alívio e cura, o isolamento absurdo que torna cada resíduo de relação com os outros apenas uma fonte de feridas: tudo isso é o pior que possa aparecer e há somente uma razão de ser, aquela da necessidade” (Epistolario V, 984, pp. 549-50).
  • 22
    A expressão homérica é relativa a Egisto que, ao seduzir Clitemnestra, impulsionou-se hyper moron, “para além do fato” (Odisseia, I, v. 34-35).
  • 23
    A C. Fuchs, 14 de dezembro de 1887, Epistolario V, 963, p. 517.
  • 24
    Veja-se V. Vivarelli, 2002VIVARELLI, Vivetta, “ ‘Aggiungo una punta di comicità alle cose più serie’: aspetti delle ultime lettere di Nietzsche ”, in: Cultura tedesca 20, 2002, pp.55-67., pp. 55-67. Para Gallo, 2007GALLO, Franco, “ Ecce homo: scrittura di sé, monumentalizzazione e narrazione dell’identità. Autobiografia e destinazione postuma della filosofia in Nietzsche tra Goethe, il decadentismo e Leopardi ”, in: Mezzanzanica, M. (ed.), Autobiografia, autobiografie, ricostruzione di sé, Milan: Franco Angeli, 2007, pp. 47-77., p. 62, o cinismo coincide com “a autorreferencialidade pragmática da ironia e da tomada de distância não-cognitivista das próprias assunções teoréticas”.
  • 25
    Cf. por exemplo NF 2 [12], 1885-1886, KSA 12.71. Também a dura carta à mãe de 10 de outubro de 1887: “se alguma coisa tivesse sido compreendida do meu primeiro escrito O Nascimento da tragédia, então já se deveria estar com medo e se deveria ter feito o sinal da cruz. Contudo, nesse caso, eu viveria escondido sob um belo véu e seria honrado por aqueles animais chifrudos dos alemães como se eu fosse um deles. Entretanto, isso já fez seu tempo. Sem dúvidas, eu ainda serei “descoberto” alguns anos antes na França do que em minha pátria”.
  • 26
    Cf.G. Campioni, 2008CAMPIONI, Giuliano, Friedrich Nietzsche. Lettere da Torino, Milan: Adelphi , 2008., p. 24.
  • 27
    A H. Köselitz, 14 de março de 1885: Epistolario V, 580, p. 22.
  • 28
    A C. Spitteler, 10 de fevereiro de 1888: Epistolario V, 988, p. 554. Nessa importante carta, Nietzsche rebate os juízos do crítico sobre seus escritos, “imprudentes” ou errados do ponto de vista formal, reafirmando, todavia, que não é estilística a questão essencial: “Ele não expõe e não vê outra coisa que questões de estética: os meus problemas são colocados verdadeiramente sob silêncio - inclusive eu mesmo”. Veja-se também a carta a J. V. Widmann de 4 de fevereiro de 1888: “Ele se limita, pelos seus bons motivos, quase inteiramente ao aspecto formal: deixa simplesmente de lado a parte verdadeira e a própria história que está detrás do pensado, a paixão, a catástrofe, o movimento em direção a um fim, em direção a uma fatalidade: - não louvarei nunca o suficiente esse comportamento, no qual existe uma autêntica delicadeza” (Epistolario V, 985, p.551).
  • 29
    Aquilo que gera, segundo a já clássica leitura de A. Nehamas, 1985NEHAMAS, Alexander, Nietzsche: Life as Literature, Cambridge/London: Harvard University Press, 1985. , um duplo conjunto de paradoxos, o primeiro constituído pelo conteúdo dos escritos, aí incluída a teoria do perspectivismo, e o segundo, do corpus dos escritos mesmos, que, enquanto projeção perspectiva, põe em questão a possibilidade de interpretação das mesmas concepções nietzschianas. Nehamas e, em modo diverso, Derrida, 1978DERRIDA, Jacques, Éperons. Les styles de Nietzsche, Paris: Flammarion, 1978., sugerem que o estilo constitui uma resposta de Nietzsche à negação sistemática do eu, o qual deverá ser substituído por um processo contínuo de produtividade literária.
  • 30
    Faye fala também de “ironia de uma técnica do aspecto comunicacional, com o objetivo de fazer agir pelo conhecimento a diversificação das perspectivas”. Da conspiração das forças pulsionais que habitam o corpo contra o princípio de identidade (ou seja, a consciência), falava também Klossowski, 1969, culminando na valorização do delírio, no qual é abolido o princípio de identidade pessoal.
  • 31
    Se não quisermos negligenciar a advertência de Friédéric Cossuta, 1989COSSUTTA, Frédéric, Eléments pour la lecture des textes philosophiques, Paris: Dunod, 1989., que “de fato, se deve sempre poder reportar a forma e o processo de argumentação às teorias filosóficas nas quais se inscrevem e determinam”.
  • 32
    G. Campioni, 2008CAMPIONI, Giuliano, Friedrich Nietzsche. Lettere da Torino, Milan: Adelphi , 2008., p. 23.
  • 33
    Porém, com as precauções das quais Nietzsche fala em JGB 207, KSA 5.134. Veja-se ainda Nachlass/FP 1 [202] 1885 -1886, KSA 12.56.
  • 34
    G. Campioni, 2008CAMPIONI, Giuliano, Friedrich Nietzsche. Lettere da Torino, Milan: Adelphi , 2008., p. 23.
  • 35
    Cf. Cartas a C. Fuchs, 9 de setembro (Epistolario V, 1104, pp. 727-730); a H. Köselitz, 12 de setembro (Epistolario V, 1105, p. 730-732); a F. Overbeck, 14 de setembro de 1888 e passim (Epistolario V, 115, pp. 747-751). Cf. F. Avenarius, 10 de dezembro de 1888: “Neste ano, no qual se agrava sobre mim a tarefa desmedida, a Transvaloração de todos os valores, e eu devo literalmente carregar sobre os ombros o destino dos homens, é uma das minhas demonstrações de força ser bufão, sátiro ou, se o senhor preferir, ‘ensaísta’ - conseguir ser, assim como o fui em O caso Wagner. O fato que o espírito mais profundo deva necessariamente ser também o mais frívolo, é quase a fórmula da minha filosofia...” (Epistolario V, 1183, 831-32. “Será portanto, uma língua essencialmente dissimulatória, irônica e funcional a um larvatos prodeo, que não encontrará na efusão ditirâmbica algum momento de plena integração lírica no real, justamente porque teoriza, desde o princípio, que o êxtase ditirâmbico seja incomunicável e excepcional; e será ainda uma língua festiva, na medida em que sua potência será multiplicada no contato com as forças emotivas profundas que são as origens e o ponto de retorno do verdadeiro conhecimento [...] a festa da língua é propriamente e nada a mais que a riqueza indefinida da sua versatilidade, a capacidade da sua prática ad libitum. Essa radical fabulação tem, portanto, o significado de um desempenho substitutivo nos confrontos da linguagem tradicional da interioridade, da consciência de si” (F. Gallo, 2004GALLO, Franco, Nietzsche e l’emancipazione estetica, Rome: Manifestolibri, 2004., pp. 29-30).
  • 36
    “Retrato de Nietzsche como Anticristo, como espírito livre, como imoralista, como Dioniso filósofo ... nos leva a pensar nos autorretratos de Rembrant que usa um chapéu plumado e um estranho gorro [...]. Ou ainda, nos autorretratos de Artaud, duramente delineados a lápis. Os autorretratos de Friedrich Nietzsche são ao mesmo tempo as narrativas que ele faz aos seus amigos; e também os objetos de reflexão dos próximos séculos - que ‘cortam a história em duas’” (J. P. Faye, 1998FAYE, Jean Pierre, Le vrai Nietzsche, Paris: Hermann, 1998., p. 87).
  • 37
    G. Campioni, 2008CAMPIONI, Giuliano, Friedrich Nietzsche. Lettere da Torino, Milan: Adelphi , 2008., pp. 30-31. Para J. Dougnoille o indiferente uso de mais nomes a cada vez seria o resultado de uma deflagração da identidade e do desejo de um perpétuo para além de si mesmo, que renderia um Nietzsche “talvez excessivamente anônimo”, “literalmente ninguém mais” (cf.2005DUGNOILLE, J., Le désir d’anonymat chez Blanchot, Nietzsche et Rilke, Paris: Éditions L’Hamarttan, 2005., p. 74).
  • 38
    “No dia do meu aniversário iniciei, de novo, alguma coisa que parece ter um bom resultado, e está progredindo. Intitula-se ECCE HOMO. Ou Como alguém se torna o que é. Trata com grande audácia de mim e de meus escritos: com isso, eu não quis apenas apresentar-me antes do tremendo, solitário ato da Transvaloração [...] De resto, falo de mim mesmo com toda a ‘astúcia’ psicológica e a serenidade possível, - não queria absolutamente apresentar-me aos homens como profeta, monstro e espantalho moral. Ainda nesse sentido o livro poderia ser útil: evitaria talvez que me confundam com o meu oposto” (a H. Köselitz, 30 de outubro 1888: Epistolario V, 1137, p. 777; veja-se EH/EH, Prólogo 2, KSA 6.257). O escrito: “de fundamental importância, oferece alguns vislumbres psicológicos e inclusive biográficos acerca de mim e dos meus escritos: ele consegue enquadrar-me todo de uma vez” (a F. Overbeck, 13 de novembro de 1888: Epistolario, V, 1143, p. 785). “O último capítulo possui a inquietude do título: ‘Por que sou um destino’. E que isso é verdadeiro está demonstrado com tanta força que, no fim, fica-se imóvel diante de mim como ‘larvas’ ou um ‘espírito emocionado’...” (a H. Köselitz, 13 de novembro de 1888: Epistolario V, 1142, p. 782).
  • 39
    A G. Brandes, 20 de novembro de 1888, Epistolario V, 1151, p. 797.
  • 40
    Também neste caso lembro as palavras de Gallo, que vê no pamphlet “a única forma ‘séria’ possível de escritura sobre si” e em particular, no Ecce Homo, uma “escritura que pode apenas exibir polemicamente a identidade monumental do autor, entregue à perfeição estilística dos seus escritos e à radical coerência de uma ética, uma metafísica, uma política inaudita, mas não pode ser reconstrução narrativa de como sua identidade pessoal foi determinada” (Gallo, 2007GALLO, Franco, “ Ecce homo: scrittura di sé, monumentalizzazione e narrazione dell’identità. Autobiografia e destinazione postuma della filosofia in Nietzsche tra Goethe, il decadentismo e Leopardi ”, in: Mezzanzanica, M. (ed.), Autobiografia, autobiografie, ricostruzione di sé, Milan: Franco Angeli, 2007, pp. 47-77., p. 60).
  • 41
    “A fisiologia é o pressuposto da escritura: ter sido “como summa summarum” saudável tornou possível o Zarathustra” (G. Campioni, 2008CAMPIONI, Giuliano, Friedrich Nietzsche. Lettere da Torino, Milan: Adelphi , 2008., p. 21). Cf. Nachlass/FP F 22 [28], 1888, KSA 13.596, em vista do Ecce Homo: “tirar vantagem da minha doença: um alívio da grande tensão...”.
  • 42
    “... tenho leitores por toda parte - todas inteligências requintadas, caráteres provados, educados nas altas posições e para os altos deveres; eu até tenho alguns verdadeiros gênios entre os meus leitores. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhagen, em Paris e em New York” (EH, “Por que escrevo livros assim tão bons”, 2, KSA 6.301). Essas referências são reveladas no epistolário.
  • 43
    Veja-se em particular o capítulo “Por que escrevo livros tão bons”, 1, no qual Nietzsche desbarata os mal-entendidos do qual foi objeto por parte de Spitteler e de Widmann (cf. Supra nota 29). Cf. também GD/CI, “Incursões de um extemporâneo”, 37, KSA 6.136. Ou, no parágrafo dedicado ao “Crepúsculo dos ídolos”, 2, Nietzsche retoma as expressões entusiásticas que Köseltiz havia usado na carta de 25 de outubro de 1888 (KGB III/6, 337).
  • 44
    EH/EH, “Crepúsculo dos ídolos”, 3, KSA 6.355. Esse juízo emerge mais vezes na carta.
  • 45
    J. V. Widmann, na revista “Bund” de 16-17 de setembro de 1886, havia comparado Il pericoloso libro di Nietzsche à dinamite usada então para escavar o Túnel de São Gotardo. Nietzsche, entusiasta com esta comparação, o reporta ao menos uma dúzia de vezes nas cartas, primeiro (de 20 de setembro a 3 de novembro) como informação, depois em tons sempre mais exaltados, como autocelebração: “Nada daquilo que existe permanecerá em pé, sou mais dinamite que homem”; “tudo saltou aos ares - sou a dinamite mais assustadora que existe no mundo” (a P. Deussen, 26 de novembro de 1888, Epistolario V, 1159, p. 807; a G. Brandes, inícios de dezembro de 1888, Epistolario V, 1170, 815). Veja-se EH/EH, Por que sou um destino 1, KSA 6.365.
  • 46
    Cf. a carta de G. Brandes de 26 de novembro de 1887 (KGB III/6, 120): “Dos seus escritos sopra em minha direção um espírito novo e originário. Não compreendo plenamente aquilo que li; não consigo entender sempre onde pretende chegar. Mas muitas coisas coincidem com meus próprios pensamentos e as minhas simpatias, o desprezo dos ideais ascéticos e a profunda aversão pela mediocridade democrática, o seu radicalismo aristocrático. [...] O senhor é uma das poucas pessoas que desejaria conhecer”. Na sua carta de resposta (2 de dezembro de 1887, Epistolario V, 960, p. 512) Nietzsche comenta: “A expressão ‘radicalismo aristocrático’, da qual o senhor faz uso, é muito apropriada. Se me permite, é a palavra mais inteligente que li, até agora, sobre mim”. Foi Brandes quem intermediou com “o gênio suíço”: “O louco suíço se chama August Strindberg [...]. Ele possui uma imensa admiração pelo senhor, sobretudo porque acredita encontrar em vós o seu próprio ódio pelas mulheres. Por isso sois “moderno” (ironia da sorte) segundo ele. Quando leu nos jornais as relações relativas às minhas lições de primavera [sobre Nietzsche], disse: é impressionante este Nietzsche, é como se muitas das suas coisas eu as tivesse escrito” (carta a Nietzsche de 16 de novembro de 1888: KGB III/6, 353). Nietzsche trocou cartas e volumes com Strindberg.
  • 47
    A G. Brandes, 19 de fevereiro de 1888 (Epistolario V, 997, p. 567). Para Piazzessi (2007PIAZZESI, Chiara, “ Pathos der Distanz et transformation de l’expériénce de soi chez le dernier Nietzsche”, in: Nietzsche-Studien 36, 2007, pp. 258-295., passim), a transvaloração dos valores não é uma simples modificação teórica, tornar a substituir velhos valores com novos, mas é, “por assim dizer, um trabalho ético, dado que é mediante a transformação da experiência de si e, portanto, através de uma nova psicologia, que se realiza e que, na nova psicologia individualista nietzschiana, significa uma nova fisiologia”. Não tanto abstração e projeção intelectual quanto efetividade, “esse não é um estado potencial teórico que se torna real em virtude de um esforço voluntário de realização. A possibilidade é a direção de um vir-a-ser real, vale dizer, a fertilidade própria (e condicionada) do ‘Stück fatum’ que algum é”. Sobre o plano da percepção de si, é preciso trabalhar para favorecer, por assim dizer, a própria fatalidade, enquanto “a personalidade não é apenas uma constatação, ela é um destino, que poderia permanecer muito bem inexplorada, ignorada, mal-entendida, sem o trabalho ético de um real encarregar-se do que esta significa”. Estas indicações, que se ligam estreitamente à hipótese da vontade de potência (“A hipótese da vontade de potência não é, neste quadro, uma pura teoria representativa: ela é a ajuda performativa que sustenta o nascimento de uma nova experiência de si”), me parecem preciosas para a leitura do epistolário que procurei conduzir neste breve ensaio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2019
  • Aceito
    18 Fev 2019
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