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Ceticismo no jovem Nietzsche: das sugestões de Lange ao ensaio Sobre verdade e mentira em sentido extramoral* * Tradução de Juliana Hass.

Skepticism in young Nietzsche: from Lange’s suggestions to the essay On Truth and Lie in the Extramoral Sense

Resumo:

O ensaio Sobre verdade e mentira em sentido extramoral é um texto impressionante cético, que afasta Nietzsche não apenas da precedente “metafísica da arte” de O Nascimento da tragédia, mas também nega o próprio conceito de verdade. A influência de Friedrich Albert Lange e de sua História do materialismo é importante no percurso que levará, a partir das críticas da metafísica de Schopenhauer, às posições defendidas em Sobre verdade e mentira em sentido extramoral.

Palavras-chave:
ceticismo; verdade; conhecimento

Abstract:

The essay On Truth and Lie in the Extramoral Sense is a striking skeptical text, which sets Nietzsche apart not only from his precedent “metaphysics of art” in The Birth of Tragedy, but also from the concept of truth itself. The influence of Friedrich Albert Lange and his History of materialism is important in the course that will lead, from the criticism of Schopenhauer's metaphysics, to the positions defended in On Truth and Lie in the extramoral sense.

Keywords:
skepticism; truth; knowledge

I

O breve e intenso ensaio de Nietzsche, Sobre verdade e mentira em sentido extramoral, é um texto impressionante, de “ceticismo monstruoso”:1 1 Em relação aos outros escritos deste período, que se referem basicamente aos temas do contexto especulativo e programático do Nascimento da tragédia, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral “se apresenta como um monstruoso ceticismo, na medida em que nele é fundamentalmente contestado o fato de podermos fazer qualquer afirmação sensata sobre esses assuntos” (Behler, 1992, p. 101). O texto de Nietzsche é valorizado na França desde o final dos anos sessenta (lembramo-nos de pelo menos Kremer Marietti, Lacoue-Labarthe e Kofman), juntamente com as aulas sobre retórica (então disponíveis na edição canônica Kröner em formato não completo, Band XVIII, segundo o vol. dos Philologica, organização de Otto Crusius). Além disso, a coleção de fragmentos era utilizada e valorizada - com o título O livro do filósofo, traduzido para o francês e comentado por A. Kremer Marietti, Aubier-Flammarion, 1969 - que fazia parte do título Theoretische Studien do Philosophenbuch, que também continha A filosofia na era trágica dos Gregos. Durante anos, este material foi proposto corretamente, completo, em ordem cronológica, seguindo a ordem dos cadernos, na edição Colli-Montinari. Para uma análise geral da presença variada e múltipla do ceticismo na filosofia de Nietzsche, Cf. Busellato, 2012. não apenas se afasta da precedente “metafísica da arte” de O Nascimento da tragédia, mas - radicalmente - vem negar o próprio conceito de verdade. O escrito, ditado para Gersdorff no verão de 1873, com base em numerosas notas publicadas corretamente apenas na edição Colli-Montinari, tem algumas correspondências também literais com o texto Sobre o pathos da verdade, dedicado a Cosima Wagner, no Natal de 1872, com outros quatro prefácios para livros não escritos.

O material deixado postumamente (caderno P I 20) para um arquitetado e amplo Philosophenbuch, mostra como Nietzsche não se insere no círculo mágico do mundo wagneriano: reflexões filosóficas ousadas dão vida a escritos, deixados inéditos, de importância decisiva para o desenvolvimento de seu pensamento. Este ensaio tem uma forte ligação com as aulas contemporâneas sobre retórica que dão à metáfora um papel central que não será mais seguido.2 2 A este respeito, devemos dizer como os aparatos críticos da nova edição dos Fragmentos póstumos na “Piccola Biblioteca Adelphi” (Milão, 2004-2009) com frequência nos permite compreender a estreita correspondência entre o material dos cadernos dos fragmentos e as lições basileias (em alguns casos, os primeiros são os primeiros rascunhos, também literais, das segundas).

A atitude subjacente em relação à “verdade” permanece constante ao longo do percurso de Nietzsche: “Esses ainda estão longe de ser espíritos livres: pois ainda acreditam na verdade”, diz a Genealogia (GM/GM III 24, KSA 5.399). Ou podemos lembrar as imagens poéticas de Zaratustra: “Como é agradável que existam palavras e sons: não são, talvez, palavras e sons arco-íris e pontes ilusórias entre o que é separado pela eternidade? (...) Falar é uma linda loucura: falando, o homem dança sobre todas as coisas. Como é agradável todos os discursos e todas as mentiras dos sons! Com os sons, nosso amor dança em arco-iris multicoloridos” (Za/ZA, O convalescente, 2, KSA 4.272).

Apenas em um fragmento de 1884 e em um de 1886 (retomado na introdução de Humano, demasiado humano II), Nietzsche faz referência a esse texto, em uma nota “escrito para mim” (“mantido em segredo”):

(...) era, ao contrário, no que diz respeito à minha pessoa, já no meio do ceticismo e da dissolução da moral, ou seja, comprometido tanto na crítica quanto no aprofundamento de todos os pessimismos preexistentes - e já não acreditava “em mais nada”, como diz o povo, nem mesmo em Schopenhauer: precisamente naquela época, um pequeno escrito nasceu, depois mantido em segredo: “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral” (MAII/HH2, Prefácio, 1).3 3 Cf. NF/FP 26[372] do outono de 1884, KSA 11.248-9 e NF/FP 6[4] fim de 1886 - primavera 1887, KSA 12.232-4.

A atitude cética - ligada à probidade filológica, mas também ao mal-estar da impotência diante da massa e, frequentemente, à incerteza ou inverificabilidade das fontes - também é encontrada em sua prática como filólogo em direção às possibilidades de seus resultados. Se lermos atentamente os fragmentos póstumos, encontraremos elementos de ceticismo crescentes que Nietzsche prova em relação ao trabalho filológico. Nas notas deste período, é registrado o eco imediato a essa autonomização do método filológico em relação a todos os objetivos cognitivos mais elevados: o desapontamento pela limitação da abordagem filológica, incapaz de “grandes pensamentos”, às vezes parece levar a uma deslegitimização radical do conhecimento histórico como tal. A descoberta dos graves erros cometidos no início dos estudos literários corroeu toda confiança na tradição e, por essa mesma razão, hoje os estudos histórico-filológicos caracterizam-se pelo domínio incontestado do ceticismo; um ceticismo que, no momento, não parece possível escapar, e que é, contudo, um prenúncio de “ricos resultados colaterais”. O filólogo tem pela filosofia o interesse crítico daqueles que desejam identificar as ideias norteadoras que condicionaram a formação de uma tradição. Esse conhecimento da tradição traz consigo - essa é a esperança de Nietzsche - uma superação dialética do ceticismo, a conquista da verdade “pela negação da negação”:

A ingênua confiança na antiguidade e em suas afirmações diminuiu. Alguém se perdeu sem timão nas ondas agitadas do ceticismo, alguém se agarrou, para não ficar completamente desamparado, a náufragos errantes e tentou se convencer de ter encontrado um terreno firme. A desconfiança agora é tão imensa quanto antes a confiança, agora é a dúvida que parece um fato moral como antes era a fé. Esta situação não tem nada de inquietante, não é sintoma de uma doença da nossa ciência. Pelo contrário, não se deve esquecer de que o ceticismo, devido à sua natureza particular, se volta contra seus próprios filhos, que geralmente chega a um ponto em que se vira e refaz o mesmo caminho que acabou de deixar para trás (...).

Com o ceticismo, minamos a tradição, com as consequências do ceticismo expulsamos de sua caverna a verdade escondida e descobrimos que talvez a tradição estivesse certa, mesmo que se sustentasse em pés de barro. Um hegeliano talvez dissesse, por esse motivo, que tentamos encontrar a verdade através da negação da negação4 4 Nietzsche, 2001, pp. 299-300. .

A influência de Friedrich Albert Lange e de sua História do materialismo é importante no percurso que levará, a partir das críticas da metafísica de Schopenhauer, às posições do ensaio Sobre verdade e mentira. Lange, na realidade, não dedica nenhum espaço à filosofia de Schopenhauer, especialmente na primeira edição de 1866, justificando na introdução do volume essa ausência deliberada na qual afirma encontrar “em sua filosofia um decisivo passo atrás em relação a Kant. As principais questões deveriam ser decididas lá, onde fica a grande fronteira entre a velha metafísica e uma poesia conceitual livre, conciliada à crítica”.5 5 Lange, 1866, pp. V-VI. Na biblioteca de Nietzsche, em Weimar, é preservada a segunda edição de 1887, na qual há algumas referências a mais a Schopenhauer. A respeito da relação entre Nietzsche e Lange e da complexidade de temas específicos sobre os quais Nietzsche se confronta diretamente com Lange, ver Jörg Salaquarda, 1978; 1992. No volume há apenas três referências críticas a Schopenhauer, nas quais afirma que “seu idealismo, em comparação com o de Kant, pode ser definido como reacionário e que, além disso, é difícil de compreender” e em que o filósofo se aproxima a Stirner, que “caracteriza a vontade de tal maneira que ela nos pareça a força fundamental do ser humano”.6 6 Lange, Idem, p. 292. Apesar do juízo liquidatório, Nietzsche usará esse texto criticamente, mantendo uma superior lealdade a Schopenhauer.

Nietzsche declara, em suas reflexões sobre Schopenhauer, escritas na primavera de 1868, que a pretensão do filósofo de colocar a vontade como coisa em si se resolve num xeque-mate. O resultado dessa análise já é antecipado nas primeiras linhas: a tentativa de explicar o mundo “fracassou”. “A coisa em si recebe uma de suas formas possíveis”.7 7 Nietzsche, F. “Su Schopenhauer”. In: Nietzsche, 2001, p. 220. Nietzsche contesta a pretensão fundamental da metafísica schopenhaueriana, isto é, de ter tornado concretamente acessível aquela coisa em si que para Kant era um x. A “vontade” é para Nietzsche apenas “uma palavra de cunhagem grosseira”,8 8 Ibidem, p. 221. e tudo o que Schopenhauer consegue dizer sobre sua coisa em si é, na verdade, derivado do mundo fenomênico:

(...) o que ele coloca no lugar do x kantiano, a vontade, é gerada apenas com a ajuda de uma intuição poética, enquanto as tentativas de demonstrações lógicas não podem satisfazer nem Schopenhauer nem a nós. [...] Somos forçados a nos opor aos predicados que Schopenhauer atribui à sua vontade, os quais, por algo que é impensável por definição, são todos muito determinados e todos derivados da antítese com o mundo da representação: ao passo que entre a coisa em si e o fenômeno sequer faz sentido o conceito de antítese.9 9 Ibidem, p. 222.

Convém destacar a importância da obra de Lange para esclarecer o percurso da filosofia de Nietzsche: enquanto, por um lado, a História do materialismo fornece a Nietzsche os instrumentos para uma crítica de fundo da metafísica schopenhaueriana, por meio de um radical fenomenismo gnosiológico e prático, também fornece a possibilidade de permanecer fiel ao filósofo. O fragmento crítico de Nietzsche contém uma profissão de fé em Schopenhauer: uma fé completamente singular e incompreensível se não estiver ligada à aceitação de algumas teorias mais específicas de Lange. Essas palavras do fragmento são significativas: “Para os erros dos grandes homens é necessário ter respeito, porque são mais frutíferos do que as verdades dos pequenos”.10 10 Ibidem. Para Lange, o sistema de Schopenhauer pertence à antiga metafísica em oposição à vital e livre “poesia conceitual” (Begriffdichtung). Para Nietzsche, porém, é precisamente no filósofo alemão que se encontra aquela “poesia conceitual” que Lange valoriza e chama de “ideia criativa que não está de acordo com o conhecimento histórico e científico, mas que sequer a falsifica”.11 11 Lange, 1886, p. 545. Nietzsche nos esclarece o significado de sua aceitação de Schopenhauer: se sua metafísica não tem alguma validade cognitiva a respeito da essência das coisas, ela tem, no entanto, o significado de uma obra de arte e, como tal, um alto valor no mesmo âmbito do fenomênico (mundo humano).

O ponto de vista do ideal langeano permite a Nietzsche maior fidelidade a Schopenhauer. Nesse período, existe uma tensão entre a valorização do ideal metafísico e o impulso para a destruição dos ideais mediante a ciência. O momento que prevalece no jovem Nietzsche é aquele metafísico-idealista. Para Nietzsche determinar essa escolha ao culto do gênio filosófico de Schopenhauer, rapidamente foram adicionados os laços com Wagner e com a ideologia de Bayreuth, que se tornaram cada vez mais próximas e importantes para aquele processo de fuga no ideal e, ao mesmo tempo, de crítica à realidade contemporânea, à atualidade.

Na carta a Carl von Gerdorff, do final de agosto de 1866, na qual ele resume os temas centrais do neokantismo fisiológico de Lange, lemos: “Como você vê, mesmo nos atendo a esse rigidíssimo princípio crítico, nos fica sempre nosso Schopenhauer, aliás ele se torna para nós quase algo mais” (KSB 2. 160). Simplificando uma tese fundamental da obra de Lange, Nietzsche escreve: “consequentemente - pensa Lange - deixam-se os filósofos livres, desde que daqui por diante nos elevem” (idem) e conclui: “ainda não conheço um filósofo que eleve mais do que o nosso Schopenhauer” (idem). Levando em conta a influência de Lange, O Nascimento da tragédia parece “poesia conceitual”, e a vontade em si é definida nos fragmentos como a forma mais geral do fenômeno. Existe, portanto, desde o início, a consciência da impossibilidade do conhecimento da coisa em si.

O “ponto de vista do ideal” permite, assim, que Nietzsche interprete, diante de si e dos outros, sua profunda ligação com uma filosofia que ele também sabe ser “permeada” de contradições. O rigoroso exame dessas contradições no longo do fragmento Sobre Schopenhauer se mantém, nesse período, um fato isolado: após ter, deste modo, esclarecido as idéias, Nietzsche não tem, até então, razão ou oportunidade para desenvolver, posteriormente, sua crítica a um pensamento que permanece seu equilíbrio centro espiritual.

O schopenhauerismo do Nietzsche de Basileia tem, em suma, entre suas condições o distanciamento ocorrido, testemunhado pelo fragmento da primavera de 1868, da “quintessência do sistema” do mestre. Assim, O Nascimento da tragédia parece uma construção pragmática, para poder agir, que esconde a má consciência do metafísico.

Na “metafísica da arte”, no centro de O Nascimento da tragédia, temos a dialética da Vontade una (o “númeno” correspondente à figura de Dionísio) e do mundo ilusório dos fenômenos (a “bela aparência” de Apolo). O eterno único sujeito criador, a Vontade, encontra somente na arte seu consolo necessário para os sofrimentos da fragmentação individual. O gênio, por sua vez, é “obra de arte” para a Vontade, a mais alta realização, sua justificativa. A perspectiva schopenhaueriana é dominante; portanto, apenas ao gênio (livre do serviço da Vontade) é possível apreender e expressar a unidade e a universalidade das idéias, mediante a superação da ilusão fenomênica e individual.

A unidade metafísica da Vontade schopenhaueriana permite postular (como desideratum ideal) a comunidade natural e “verdadeira” para além da violência e da luta de individualidades fenomênicas. “O principium individuationis aparece como um estado permanente de fraqueza da vontade. Quanto mais a vontade é triste, mais tudo se desfaz na singularidade” (DW/VD, 1, KSA 1.557-8).

Tanto na consagração da bela aparência com Apolo quanto na identificação com a profundidade inesgotável da natureza com Dionísio, obtemos idealmente e na embriaguez a ruptura do vínculo da individuação (da culpa original). O mito idealizador tem a tarefa de ocultar o fluxo contínuo que dissolve as formas e de fixar os valores para a ação.

Nietzsche, por um lado, viu no ideal de Bayreuth a possibilidade de agir sobre a cultura da época e se empenhou nesse sentido. Por outro lado, o caminho metafísico é aceito em uma perspectiva particular: não porque leve à verdade no âmago das coisas, mas porque, se esquecer do real é “edificante” por si só, é capaz de frutificar. No Ecce homo e nas obras da maturidade, Nietzsche criticará como “opiácea” e decadente essa escolha. O desejo de afirmação e renovação encontra-se emaranhado na rede da estrutura metafísica que, por si só, lança a acusação ao mundo do devir. A afirmação precisa do mito como ilusão vital para se legitimar: a metafísica do artista representa esse ideal, já é um novo mito construtivo e pragmático que se fundamenta, porém, no espaço vazio da Vontade schopenhaueriana. Nietzsche está ciente disso. De fato, nos escritos da maturidade, referentes a esse período, ele falará de um voluntário permanecer apegado ao ideal, de uma incorporação forçada da ilusão como base da cultura, de um jesuitismo necessário. 12 12 Cf. NF/FP 16 [23] do outono de 1883, KSA 10.507.

Já em um fragmento de uma carta a Deussen de outubro-novembro de 1867, Nietzsche, após repetir seus argumentos, derivados de Lange, a favor de Schopenhauer (uma Weltanschauung não pode ser contradita pela lógica, como não é criada pela lógica) afirma, com palavras que lembram Pascal, sentir-se à vontade naquela atmosfera: “Se um escravo em seu cativeiro sonha em ser livre e solto de suas correntes, quem será tão perverso em acordá-lo para dizer-lhe que é apenas um sonho? Quem fará isso? Apenas um guarda, nem eu nem você teremos vontade de fazer isso”. Temos, portanto, uma lúcida consciência do caráter de fuga da dura realidade desse caminho. “Mesmo que fosse um erro, uma mentira - - -”, assim termina, interrompido, o fragmento de uma carta extremamente significativa em parte citada por nós (KSB 2.229).

A Nietzsche parece uma vã operação a tentativa de restabelecer a comunidade com a força da arte, mistificando e funcionalizando as contradições. Trata-se de ter a coragem da realidade: o distanciamento de Wagner também é a rejeição das consolações estéticas e metafísicas, além de ser um sinal de desprezo para aqueles que tinham se tornado apologistas da atualidade do Reich.

Nos fragmentos póstumos do período, percebe-se como a construção metafísica não resiste à crítica e à consciência de uma falsidade (ainda que voluntária e pragmática) que já havia revelado a leitura de Lange. Em vários fragmentos, vemos a vontade definida como a forma mais universal do fenômeno e a palavra vontade é frequentemente colocada entre aspas para significar uma palavra que esconde e mistifica a complexidade dos fenômenos nela contidos. Além disso, a conexão necessária entre vontade e representação está em crise: “Não há nada em nós que se possa reconduzir ao Uno-primordial. A vontade é a forma mais universal do fenômeno, a alternância entre dor e prazer” (NF/FP 7[165], KSA 7.202.). 13 13 NF/FP 5[80], KSA 7.112-114. E assim em outros fragmentos: “A projeção da aparência constitui o processo artístico primordial. Tudo o que vive, vive na aparência. A vontade faz parte da aparência. [...] A vontade já é uma forma de aparência: por esse motivo, a música ainda é arte da aparência”. “O imergir-se completamente na aparência é o objetivo supremo da existência: lá em baixo, onde a dor e a contradição não parecem existir”. 14 14 NF/FP 7[167], KSA 7.202 e 7[172], KSA 7.205-6.

II

As lições contemporâneas de Nietzsche sobre a retórica são particularmente importantes para os temas de Verdade e mentira. A obra que forneceu material para a teoria do caráter metafórico da linguagem foi principalmente Die Sprache als Kunst (1871), de Gustav Gerber, uma fonte importante estudada pelos intérpretes de Nietzsche a partir dos anos 70. Gerber, ligado às teorias do primeiro romantismo na linguagem, cita de Jean Paul um tema por ele desenvolvido em seu ensaio, que está na base dos argumentos de Nietzsche, que retoma nas lições (§ 7) toda a citação:

Contra e com razão Jean Paul escreve no Vorschule in Aesthetik: “Como no escrever, a escrita ideogramática precedeu a escrita alfabética, assim como na lingua falada a metáfora, na medida em que designa relações e não objetos, é a palavra originária que, porém, ao alcançar a expressão real, teve que gradualmente se apagar. Dar uma alma e dar um corpo continuaram sendo uma coisa só, porque eu e mundo ainda estavam fundidos. Assim, toda linguagem relativa aos relacionamentos espirituais é um vocabulário de metáforas apagadas”. 15 15 Nietzsche, 1995, pp. 442-43.

O caráter da metáfora que surge da intuição e da sua relação com o conceito são objetos de contínua reflexão nesses anos: a relação da retórica com a linguagem é o assunto central do Curso de Retórica e do ensaio Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. A retórica parece a contínua melhoria dos meios artísticos já presentes na línguagem: não há naturalidade linguística que não tenha a ver com retórica.

Um aforismo de A gaia ciência (“Arte e natureza”) mede toda a distância dos temas centrais da “metafísica da arte”: nas reflexões desses anos, se encontra a distante gênese dessas posições.

Os gregos (ou pelo menos os atenienses) ouviam de bom grado os que sabiam falar: aliás, tinham por eles uma ávida propensão que, mais do que qualquer outra coisa, os distinguia dos não gregos. E assim, também pela paixão cênica, fingiam que sabiam falar bem e sofriam deleitando-se com a antinaturalidade do verso dramático: na natureza, a paixão é tão miserável de palavras, tão muda e desajeitada! [...] O Ateniese ia ao teatro para ouvir bons discursos! (FW/GC 80, KSA 3.435-6).

A distância e a oposição aos temas da metafísica da arte são evidentes.

Devemos, aqui, mencionar a parte mais conhecida do ensaio de Nietzsche, a definição de verdade:

O que é, então, a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram reforçadas poetica e retoricamente, que foram transpostas e ornamentadas, e que após um longo uso, parecem estáveis, canônicas e obrigatórias para um povo: as verdades são ilusões das quais se esqueceu de que a natureza ilusória são metáforas que foram gastas e perderam toda força sensível, são moedas cujas imagens foram consumidas e que são levadas em consideração apenas como metal, não mais como moeda (WL/VM, 1, KSA 1.880-1).16 16 A imagem já havia sido usada por Nietzsche em suas notas filológicas da primavera-outono de 1868: “As anotações de Suidas são preciosas moedas de prata que, no entanto, perderam a marca, por isso não se sabe bem que idade têm” (Nietzsche, 2001, p. 337).

Em uma nota do verão de 1872, início de 1873, temos uma síntese dos temas centrais do ensaio Sobre verdade e mentira:

Quando acreditamos que possuímos a verdade, a vida mais elevada e pura é possível. A fé na verdade é necessária ao homem. A verdade se apresenta como uma necessidade social: e depois, através de uma metástase, é aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária. Todas as virtudes surgem de necessidades urgentes. Junto à sociedade, começa a necessidade de veracidade. Sem isso, o homem vive em disfarces eternos. A fundação dos Estados suscita a verdade (NF/FP 19[175], KSA 7.473).

Essas reflexões da crítica da linguagem são decisivas para o filosofar de Nietzsche; elas não só tiveram uma relevância temporária, mas sim uma influência duradoura. Certamente, Nietzsche as desenvolve vendo as consequências sociais da relação de conhecimento: por um lado, o homem que coloca suas ações sob o domínio das abstrações e que não admite ser levado por impressões instantâneas e generaliza essas impressões, chegando a conceitos inexpressivos dos quais faz despender sua vida e sua ação; por outro lado, aquele que encontra no mito e na arte “um novo campo de ação, outro leito para a sua corrente”.

III

A centralidade da retórica é encontrada em Nietzsche até 1875: posteriormente, a própria palavra “metáfora” desaparece de seu vocabulário. Resta o “perspectivismo”, que certamente encontra sua distante origem neste ensaio e que está ligado à “vontade de potência” (uma metáfora, também? Distante, decerto, de uma segurança ontológica e quase sempre entre aspas). “Suposto que também isso seja interpretação - e vocês serão zelosos o suficiente para objetar - pois bem, tanto melhor!” (JGB/BM 22, KSA 5.37).

Nietzsche, com seu estilo aforístico, se posiciona progressivamente aos antípodas da linguagem metafórica, no desejo de definir e de expressar, com a sentença, “uma forma da eternidade”: “Minha ambição é dizer em dez proposições aquilo que os outros dizem em um livro - aquilo que os outros não dizem em um livro” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 51, KSA 6.153). Nietzsche se encontra próximo da ambição clássica do moralista francês expressa por Joubert: “Se há um homem atormentado pela amaldiçoada ambição de colocar um livro inteiro em uma página, uma página inteira em uma frase, e esta frase em uma palavra, esse sou eu”.17 17 Joubert, 1874, p. 8 (NB. grifo de Nietzsche). Aos antípodas do estilo da decadência se colocam os escritos de Taine: um processo real, “anatomia psicológica de um pesquisador que vê um sinal na literatura”.18 18 Paul Bourget, 2007, p.188. A filosofia é a “paixão dominante” capaz de dar ordem demonstrativa à força das imagens, inserindo-as em uma estrutura argumentativa:

Na literatura atual, não há estilo mais sistemático e cujo ritmo traduza melhor as posições assumidas por um pensamento autoconfiante. Cada frase de uma de suas fortes páginas é um argumento, cada parte dessas frases uma prova para o sustento de uma tese que o parágrafo inteiro suporta; cada parágrafo está intimamente ligado ao capítulo, o qual se liga ao todo, tão bem que, como em uma pirâmide, toda a obra converge, das menores moléculas das pedras da base ao bloco da rocha no topo, para um ponto supremo que atrai toda a massa para si... 19 19 Idem., p.188.

A construção rigorosa que domina e se submete também às “métaphores visionnaires” se opõe ao estilo da decadência, como caracterizado por Bourget para Baudelaire e retomado por Nietzsche para Wagner. Em muitos fragmentos de Nietzsche, encontramos explícita a contraposição entre o estilo túrgido e metafórico de Balzac (“plebeu” que precisa de fortes sensações, vítima da grande cidade) e o estilo seco, claro e matemático de Stendhal. Essa oposição se refere ao ensaio de Taine: em contraste com as fortes cores de Balzac, Beyle permanece clássico: “simple élève des idéologues et du sens commun” [simples aluno dos ideólogos e do senso comum]. O estilo metafórico é o estilo impreciso, diz Taine: “Quando a ideia de vocês, na falta de reflexão, ainda é imperfeita e obscura, não podendo mostrá-la, indiquem os objetos aos quais se assemelha; evitem expressão curta e direta para se jogarem para a direita e para a esquerda, nas comparações. É, portanto, por impotência que vocês acumulam imagens”.20 20 Taine, 1865, p. 57.

A potência e a riqueza da definição querem pertencer ao aforismo e à escrita de Nietzsche, que é conscientemente distante (após o período romântico) de qualquer valorização do estilo metafórico. “O que é imagem, ou símbolo, tudo se oferece como a expressão mais próxima, mais justa e mais simples” (EH/EH, Assim falava Zaratustra, 3, KSA 6.340).

A escolha da metáfora, se afasta do desejo de definir, significa imprecisão, sugestão, fraqueza. Ou é um efeito do multiplicar indiferentemente os pontos de vista, as interpretações, na moderna idade crítica. A incapacidade do “grande estilo” e de uma arte “clássica”, que coordena de uma forma sem desequilíbrios, que não busca fortes “efeitos” emotivos, implica a tendência à “confusão” e a uma mistura de linguagens.

IV

Voltemos ao início do ensaio Sobre verdade e mentira. O fim da humanidade, numa perspectiva cósmica, aparece no início do escrito:

Em um canto remoto do universo cintilante e difuso por infinitos sistemas solares, era uma vez um astro no qual animais inteligentes descobriram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas tudo isso durou apenas um minuto. Após poucos suspiros da natureza, o astro congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer. Alguém poderia inventar uma fábula deste tipo, mas não conseguiria, no entanto, ilustrar suficientemente o quanto mísero, espectral, fugaz, vão e arbitrário seja o intelecto humano ante a natureza. Eternidades passaram sem que ele existisse; quando tudo tiver novamente terminado para ele, nada terá acontecido (WL/VM, 1, KSA 1.875).

A primeira parte da fábula também é encontrada no final de Sobre o phatos da verdade como palavras de “um demônio insensível” que debocha das soberbas metáforas (“história do mundo”, “verdade”, “glória”). Os “animais inteligentes”, os “animais desesperados”, pereceram e descobrindo ter conhecido tudo falsamente, “morrendo, amaldiçoavam a verdade” (FV/CP, KSA 1.759-60).

E não faltam fragmentos preparatórios nesta direção:

Por acaso, o homem se tornou um ser conhecedor, através da união involuntária de duas qualidades. Cedo ou tarde ele terá um fim e nada terá acontecido. Durante muito tempo eles não existiram e, quando deixarão de existir, nada terá acontecido. Estão sem uma missão adicional e sem propósito. O homem é um animal extremamente patético e leva todas as suas qualidades tão a sério, como se estas fossem o centro do universo (NF/FP 19[179], KSA 7.475).

A imagem do fim da vida orgânica também é encontrada em Burckhardt, nas aulas sobre a época da revolução (na introdução de novembro de 1871). 21 21 Depois de ter afirmado que esta cega “vontade de transformação” “que superficialmente, para o atual otimismo, é chamada ‘progresso’ ou mesmo cultura, civilização, iluminismo, evolução, moralidade e coisas semelhantes”, possa realmente produzir algo “duradouro” e que as gerações futuras consigam ver “como um todo” o que para nós hoje parece “um século de crise”. Nesse ponto, Burckhardt insere um parêntese: “Também é possível viver sem estabelecer por quanto tempo nosso planeta ainda terá vida orgânica e em quanto tempo a humanidade terrestre desaparecerá com seu resfriamento e com total esgotamento do anidrido carbônico e da água”. Burckhardt, 1959, pp. 315-16.

Surpreendente é a imagem inicial do ensaio de Nietzsche que retorna em um fragmento da primavera-verão de 1888:

Homem: uma pequena espécie animal excêntrica que - felizmente - tem seu tempo; a vida na terra é em geral um momento, um acidente, uma exceção sem consequências, algo que para o caráter total da terra permanece sem importância; a própria terra é, como todo astro, um hiato entre dois nadas, um evento sem plano, razão, vontade, autoconsciência, a pior forma de necessidade, a necessidade estúpida... Algo em nós se rebela a essa consideração; a serpente vaidade nos sussurra: “tudo isso deve ser falso, porque desperta desdém... Não poderia ser apenas ilusão?... (NF/FP 16 [25], KSA 13.488-9).

Quanto ao tema do fim da vida devido ao esgotamento das forças, muito difundido nas cosmologias da época, que mantinham, no entanto, a sombra de deus e eram expressão de niilismo, Nietzsche dará como resposta o eterno retorno. Sobre a reserva documental dos volumes das bibliotecas de Nietzsche e das glossas é possível reconstruir as referências precisas, os termos da discussão com as várias hipóteses cosmológicas contemporâneas.

A dureza da realidade e a fraqueza do homem a quem “é vetada uma luta pela existência a ser realizada com chifres ou com as mordidas pungentes dos animais selvagens” se apresenta como o primeiro passo para “aquele impulso enigmático à verdade”. Há a exigência social da “verdade”, do uso comum das metáforas rígidas e, portanto, a necessidade de um controle do poder estabelecido contra quem “abusa das sólidas convenções, trocando arbitrariamente ou mesmo invertendo os nomes”. Ao fazer isso, os homens tentam evitar, tanto não ser enganados quanto ser prejudicados pelo engano: também nesse plano eles, no fundo, não odeiam o engano, mas as conseqüências desagradáveis e hostis de certos tipos de enganos.

O intelecto, como meio para preservar o indivíduo, explica suas principais forças no fingimento.

A meta final é um ceticismo em que, afirma Nietzsche nos fragmentos preparatórios, “ninguém pode viver”. Um ceticismo assustador: o debate genealógico visa mostrar como o conhecer é um não-conhecer. “Devemos superar esse ceticismo, devemos esquecê-lo! (...) Nossa salvação não está no conhecer, mas no criar!” (NF/FP 19 [125], KSA 7.459).

Já mencionamos o fato de que a perspectiva “cética”, à qual tentará responder ativamente, nunca será, no fundo, abandonada, mesmo que Nietzsche não pense mais por meio da linguagem da retórica e a própria palavra “metáfora” desapareça de seu vocabulário. E apenas algumas vezes, após 1873, encontramos a palavra. A retórica é substituída pela “fisiologia”: o perspectivismo está ligado à “vontade de potência”, aos centros de potência individuais e a própria expressão “vontade” faz parte de uma interpretação.

Às vezes, Nietzsche, com impaciência, parece resolver o todo, eliminando o problema: “O refletir sobre ‘liberdade e não liberdade da vontade’ me levou a uma solução deste problema que é impossível imaginar mais radical e conclusiva - ou seja, a eliminação do problema, tendo alcançado a intuição de que não há vontade, nem livre nem não livre” (NF/FP 27 [1], KSA 11.275).

Nietzsche fala de uma fidelidade de Schopenhauer a uma mitologia simplificadora e falsificadora: para ele, como para quem “é pobre de pensamento”, “a vontade é uma força que age de maneira magica: a fé na vontade, como causa de efeitos, é a fé nas forças magicamente agentes” (FW/GC 127, KSA 3.482).22 22 Sobre o complexo problema da vontade em sua relação com a “consciência”, Cf. Lupo 2006.

Mas, a partir de Assim falava Zaratustra, encontramos um uso forte e generalizado dos termos “vontade” e, acima de tudo, da “vontade de potência”, que aparece pela primeira vez aqui. Tendo abandonado o terreno das análises fisiológica e psicológica, temos, conscientemente, na linguagem figurada de Nietzsche, um uso público do termo para comunicar a perspectiva de novas formas de vida. E então, mais de uma vez, afirma-se que “a vontade liberta”: “Querer liberta: essa é a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade - assim como a ensina Zaratustra”. “A vontade liberta: porque querer é criar: assim eu ensino” (Za/ZA, Nas ilhas bem-aventuradas, KSA 4.111). Mas também afirma: “Todas as vezes que encontrei um ser vivo, também encontrei vontade de potência” (Za/ZA, Da superação de si).

V

Em todo o ensaio Sobre verdade e mentira, se desenvolve o confronto entre o homem racional e o homem intuitivo: “o primeiro com medo da intuição, o segundo desprezando a abstração. Este último é tão irracional quanto o primeiro é insensível em relação à arte”. Nietzsche designa o homem intuitivo como “herói supremamente alegre” que, diferentemente do homem racional, que enfrenta as necessidades mais urgentes munido de “precaução, prudência, regularidade”, não vê nem mesmo essas necessidades e “considera como real apenas a vida disfarçada pela aparência e beleza” (WL/VM, 2, KSA 1.889).

A referência escondida, mas importante, é à figura de Sigfried, de Wagner. Quando Nietzsche cobrir de sarcasmos os vários heróis e heroínas wagnerianos, manterá uma valorização pela primitiva ideação do herói nibelungo Siegfried, ainda que o jovem Wagner tenha escrito sobre isso. O jogo livre é o elemento que caracteriza Siegfried como “überfroher Held” [“herói supremamente alegre”] (O crepúsculo dos deuses, III Ato, Cena II, v. 1677), em sua relação de antítese/complementaridade com Wotan, o deus triste, “o menos livre de todos” (Walkiria, II Ato, Cena II, v. 879). Em Para além de bem e mal, no aforismo 256), Nietzsche valoriza, contra o Parsifal, a criação de um Siegfried “antilatino”, muito livre, alegre e inocentemente bárbaro e anticatólico, decididamente anti-romântico. Afirma, em vários pontos, que apenas sua filosofia é adequada a essa figura e que Schopenhauer falsificou a direção da arte wagneriana, decididamente anticristã.

Nas intenções de Nietzsche, Siegfried significava a recuperação de Wagner das fontes naturais: ainda “o homem não se esgotou”. Wagner “afasta a representação segundo a qual o mundo teria se tornado organicamente velho”. O dummer [tolo] Siegfried afirma a força da criação por meio do inconsciente, contra o conhecimento dos deuses que leva à aniquilação.

As palavras e os conceitos, nos quais o poder se tornou rígido, dominam as intenções dos homens, que são afastados de seu destino mais alto (a comunidade). A música dos grandes mestres alemães, em particular de Beethoven e Wagner, é apresentada como a linguagem inimiga de todas as convenções e de todos os “distanciamentos artificiais e incompreensão entre os homens”.

Como tentamos ver, o ensaio contém muitas referências importantes e subjacentes: gostaria de mencionar o esplêndido final, extremamente significativo e resumo dos temas em que os dois protagonistas, ambos derrotados, agem de maneira diferente:

Enquanto o homem orientado pelos conceitos e pelas abstrações consegue por meio deles apenas afastar a infelicidade, sem conseguir ele mesmo obter a felicidade de suas abstrações, enquanto, quer dizer, ele se esforça o máximo possível para se libertar da dor, o homem intuitivo, ao contrário, erguendo-se no meio de uma civilização, obtém de suas intuições, além da defesa do mal, uma iluminação, um serenamento, uma redenção, que fluem incessantemente. É verdade que ele sofre mais violentamente quando sofre: ele sofre, aliás, mais frequentemente, uma vez que não sabe aprender pela experiência e cai sempre novamente no mesmo fosso em que já tinha caído uma vez. Na dor, então, é tão irracional quanto na felicidade: ele grita alto e não encontra consolo. Como é diferente, diante de um igual infortúnio, o comportamento do homem estóico, treinado pela experiência, o qual se domina graças aos conceitos! Ele, que de outra maneira busca apenas a retidão, a verdade, a liberdade dos enganos e proteger-se das surpresas sedutoras, agora, em infortúnio, mostra a obra-prima da dissimulação, como o homem intuitivo havia feito na felicidade: ele não revela um rosto humano móvel e vibrante, mas uma máscara, por assim dizer, com um equilíbrio digno nos traços; ele não grita nem altera sua voz. Se uma nuvem de tempestade passa por ele, ele se envolve em sua capa e vai embora lentamente sob a tempestade (WL/VM, 2, KSA 1.889-90).

Aqui Nietzsche parece se lembrar de um episódio de sua infância, contado por sua irmã, de quando ia à escola (1850-1851), da qual já surge a forte vontade de se dominar, mesmo que inquietante, em relação a uma natureza telúrica, que será uma característica de toda a sua vida:

Um dia, justamente no final das aulas, caiu uma forte chuva; olhávamos ao longo da Priestergasse para procurar nosso Fritz. Todos os meninos fugiam como uma legião de fantasmas - finalmente aparece também o pequeno Fritz, andando tranquilamente, com o boné coberto pelo quadro, no qual havia estendido um lençinho. Sua mãe fez sinais para ele e gritou de longe: “Vamos, corra!”. A chuva forte nos impediu de ouvir a resposta. Quando chegou completamente encharcado, sua mãe o repreendeu, mas ele respondeu seriamente: “Mas mãe, no regulamento escolar diz que os meninos, ao saírem da escola, não devem correr ou pular, e sim voltar para casa calma e educadamente”.23 23 Förster-Nietzsche, 1912, p. 28.

Referências

  • BEHLER, Ernst “Tradizione romantica e decostruzione nella filosofia del linguaggio del giovane Nietzsche”. In: CAMPIONI, Giuliano; VENTURELLI, Aldo (orgs.). La biblioteca ideale di Nietzsche Napoli: Guida, 1992.
  • BOURGET, Paul. Saggi di psicologia contemporânea A cura di Francesca Manno. Torino: Aragno, 2007.
  • BURCKHARDT, Jacob. Lezioni sulla storia d’Europa Torino: Boringhieri, 1959.
  • BUSELLATO, Stefano. Nietzsche e lo scetticismo, eum Macerata 2012.
  • FÖRSTER-NIETZSCHE, Elisabeth. Der junge Nietzsche Leipzig: Kröner, 1912.
  • JOUBET, Joseph. Pensées Paris: Didier et cie, 1874.
  • LANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart Iserlohn: Baedeker, 1866.
  • LUPO, Luca. Le colombe dello scettico. Riflessioni di Nietzsche sulla coscienza negli anni 1880-1888, Pisa: Ets, 2006.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Darstellung der antiken Rhetorik (SS 1874) In: Nietzsche, F. Werke. Vorlesungsaufzeichnungen (WS 1871/72- WS 1874/75), II/4. Berlin: de Gruyter, 1995.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Opere Milano: Adelphi, 2014.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Scritti giovanili 1865-1869 In: Opere, vol. i, t. ii. Milano: Adelphi, 2001.
  • SALAQUARDA, Jörg. “Nietzsche e Lange”. In: CAMPIONI, Giuliano; VENTURELLI, Aldo (orgs). La ‘biblioteca ideale’ di Nietzsche Napoli: Guida Editori , 1992.
  • SALAQUARDA, Jörg. “Nietzsche und Lange”, in Nietzsche Studien, vol. 7, 1978, pp. 236-260.
  • STACK, George J. Nietzsche and Lange, de Gruyter, Berlin: New York, 1983.
  • TAINE, Hippolyte Nouveaux essais de critique et d’histoire Paris : Hachette, 1865.
  • 1
    Em relação aos outros escritos deste período, que se referem basicamente aos temas do contexto especulativo e programático do Nascimento da tragédia, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral “se apresenta como um monstruoso ceticismo, na medida em que nele é fundamentalmente contestado o fato de podermos fazer qualquer afirmação sensata sobre esses assuntos” (Behler, 1992BEHLER, Ernst “Tradizione romantica e decostruzione nella filosofia del linguaggio del giovane Nietzsche”. In: CAMPIONI, Giuliano; VENTURELLI, Aldo (orgs.). La biblioteca ideale di Nietzsche. Napoli: Guida, 1992., p. 101). O texto de Nietzsche é valorizado na França desde o final dos anos sessenta (lembramo-nos de pelo menos Kremer Marietti, Lacoue-Labarthe e Kofman), juntamente com as aulas sobre retórica (então disponíveis na edição canônica Kröner em formato não completo, Band XVIII, segundo o vol. dos Philologica, organização de Otto Crusius). Além disso, a coleção de fragmentos era utilizada e valorizada - com o título O livro do filósofo, traduzido para o francês e comentado por A. Kremer Marietti, Aubier-Flammarion, 1969 - que fazia parte do título Theoretische Studien do Philosophenbuch, que também continha A filosofia na era trágica dos Gregos. Durante anos, este material foi proposto corretamente, completo, em ordem cronológica, seguindo a ordem dos cadernos, na edição Colli-Montinari. Para uma análise geral da presença variada e múltipla do ceticismo na filosofia de Nietzsche, Cf. Busellato, 2012BUSELLATO, Stefano. Nietzsche e lo scetticismo, eum Macerata 2012..
  • 2
    A este respeito, devemos dizer como os aparatos críticos da nova edição dos Fragmentos póstumos na “Piccola Biblioteca Adelphi” (Milão, 2004-2009) com frequência nos permite compreender a estreita correspondência entre o material dos cadernos dos fragmentos e as lições basileias (em alguns casos, os primeiros são os primeiros rascunhos, também literais, das segundas).
  • 3
    Cf. NF/FP 26[372] do outono de 1884, KSA 11.248-9 e NF/FP 6[4] fim de 1886 - primavera 1887, KSA 12.232-4.
  • 4
    Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Scritti giovanili 1865-1869. In: Opere, vol. i, t. ii. Milano: Adelphi, 2001., pp. 299-300.
  • 5
    Lange, 1866LANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart. Iserlohn: Baedeker, 1866. , pp. V-VI. Na biblioteca de Nietzsche, em Weimar, é preservada a segunda edição de 1887, na qual há algumas referências a mais a Schopenhauer. A respeito da relação entre Nietzsche e Lange e da complexidade de temas específicos sobre os quais Nietzsche se confronta diretamente com Lange, ver Jörg Salaquarda, 1978SALAQUARDA, Jörg. “Nietzsche und Lange”, in Nietzsche Studien, vol. 7, 1978, pp. 236-260.; 1992SALAQUARDA, Jörg. “Nietzsche e Lange”. In: CAMPIONI, Giuliano; VENTURELLI, Aldo (orgs). La ‘biblioteca ideale’ di Nietzsche. Napoli: Guida Editori , 1992..
  • 6
    LangeLANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart. Iserlohn: Baedeker, 1866. , Idem, p. 292.
  • 7
    Nietzsche, F. “Su Schopenhauer”. In: Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Scritti giovanili 1865-1869. In: Opere, vol. i, t. ii. Milano: Adelphi, 2001., p. 220.
  • 8
    Ibidem, p. 221.
  • 9
    Ibidem, p. 222.
  • 10
    Ibidem.
  • 11
    Lange, 1886LANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart. Iserlohn: Baedeker, 1866. , p. 545.
  • 12
    Cf. NF/FP 16 [23] do outono de 1883, KSA 10.507.
  • 13
    NF/FP 5[80], KSA 7.112-114.
  • 14
    NF/FP 7[167], KSA 7.202 e 7[172], KSA 7.205-6.
  • 15
    Nietzsche, 1995NIETZSCHE, Friedrich. Darstellung der antiken Rhetorik (SS 1874). In: Nietzsche, F. Werke. Vorlesungsaufzeichnungen (WS 1871/72- WS 1874/75), II/4. Berlin: de Gruyter, 1995., pp. 442-43.
  • 16
    A imagem já havia sido usada por Nietzsche em suas notas filológicas da primavera-outono de 1868: “As anotações de Suidas são preciosas moedas de prata que, no entanto, perderam a marca, por isso não se sabe bem que idade têm” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Scritti giovanili 1865-1869. In: Opere, vol. i, t. ii. Milano: Adelphi, 2001., p. 337).
  • 17
    Joubert, 1874JOUBET, Joseph. Pensées. Paris: Didier et cie, 1874., p. 8 (NB. grifo de Nietzsche).
  • 18
    Paul Bourget, 2007BOURGET, Paul. Saggi di psicologia contemporânea. A cura di Francesca Manno. Torino: Aragno, 2007. , p.188.
  • 19
    IdemBOURGET, Paul. Saggi di psicologia contemporânea. A cura di Francesca Manno. Torino: Aragno, 2007. ., p.188.
  • 20
    Taine, 1865TAINE, Hippolyte Nouveaux essais de critique et d’histoire. Paris : Hachette, 1865., p. 57.
  • 21
    Depois de ter afirmado que esta cega “vontade de transformação” “que superficialmente, para o atual otimismo, é chamada ‘progresso’ ou mesmo cultura, civilização, iluminismo, evolução, moralidade e coisas semelhantes”, possa realmente produzir algo “duradouro” e que as gerações futuras consigam ver “como um todo” o que para nós hoje parece “um século de crise”. Nesse ponto, Burckhardt insere um parêntese: “Também é possível viver sem estabelecer por quanto tempo nosso planeta ainda terá vida orgânica e em quanto tempo a humanidade terrestre desaparecerá com seu resfriamento e com total esgotamento do anidrido carbônico e da água”. Burckhardt, 1959BURCKHARDT, Jacob. Lezioni sulla storia d’Europa. Torino: Boringhieri, 1959., pp. 315-16.
  • 22
    Sobre o complexo problema da vontade em sua relação com a “consciência”, Cf. Lupo 2006LUPO, Luca. Le colombe dello scettico. Riflessioni di Nietzsche sulla coscienza negli anni 1880-1888, Pisa: Ets, 2006..
  • 23
    Förster-Nietzsche, 1912FÖRSTER-NIETZSCHE, Elisabeth. Der junge Nietzsche. Leipzig: Kröner, 1912., p. 28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
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